CHILE

Hoje, assim como ontem, Frente Popular conduz o proletariado a profundas derrotas

Ocorre em dezembro o primeiro turno das eleições presidenciais chilenas. A "Concertación Democrática", coalizão formada pela Democracia Cristã (DC), o Partido Socialista (PS) e o Partido pela Democracia (PPD) terá como candidato o dirigente "socialista" Ricardo Lagos, Ministro de Obras do atual governo da Concertación cujo presidente é o democrata-cristão Eduardo Frei. Lagos concorrerá para a presidência contra Joaquín Lavín, candidato da Aliança pelo Chile, uma coligação entre a Renovação Nacional e a União Democrática Independente, partidos que representam diretamente o pinochetismo.

A vitória em primeiro turno da Concertación, aparentemente tranqüila há tempos atrás, é agora incerta, com a disputa se acirrando nos últimos meses devido ao crescimento eleitoral de Lavín, que está capitalizando a onda de crise social que atingiu o Chile nos últimos anos, produto direto do aumento do desemprego, que antes estava na média de 5% e, agora, cresceu vertiginosamente para a casa dos 12%. Esse deslocamento de um setor do eleitorado tradicional da Concertación para os braços dos representantes do pinochetismo revela, por uma lado, o descontentamento da população com os ataques promovidos pelo governo e, por outro, demonstra a ausência de uma alternativa genuinamente operária que dirija o ódio das massas contra todas as variantes políticas que dão sustentação ao regime.

A disputa tende a ir para o segundo turno, onde o candidato "socialista" da Concertación deve vencer porque teria o apoio certo do Partido Comunista (PC), que apesar de ter candidato próprio, Gladis Marín, se constitui concretamente como um braço político externo da coalizão governista e arrebataria também o eleitorado do Partido Humanista.

O fato de um homem do PS estar sendo alçado à presidência do Chile após nove anos de uma transição pactuada que gestou um regime com traços democratizantes, mas baseado fundamentalmente nas mesmas estruturas políticas e econômicas impostas pela ditadura militar que derrubou em 1973 o também "socialista" Salvador Allende, da Unidade Popular (UP), tem despertado entre as massas chilenas uma certa expectativa política.

Porém, o simples fato de Ricardo Lagos ser o candidato oficial da Concertación, coalizão política que está à frente do governo desde 1990, dando continuidade à recolonização imperialista do país iniciada pela ditadura militar e que tem como um de seus principais partidos membros a DC, entusiasta apoiadora do golpe pinochetista, revela que, longe de qualquer governo "de esquerda", o candidato do PS encarna integralmente a figura reacionária de um fiel seguidor das ordens do FMI travestido sob uma roupagem social-democrata, como o próprio Lagos se orgulha em declarar: "Como diz meu companheiro Tony Blair, a política deve completar e melhorar a ação do mercado e não dificultá-la" (revista Veja, novembro 99). Lagos, como Ministro de Obras de Frei, já começou a "melhorar a ação do mercado", abrindo as rodovias chilenas para a exploração privada através da cobrança de pedágios a alto preço em uma espoliação aberta às massas e prometeu, se eleito, privatizar a Codelco, estatal de exploração de cobre do Chile.

A conduta abertamente pró-imperialista do principal líder atual do PS é na verdade uma evolução à direita da própria política de colaboração de classes que marcou o governo da UP (1970-1973), responsável por desarmar a classe operária chilena frente ao sangrento golpe contra-revolucionário encabeçado por Pinochet e abrir caminho para a reação que deixou mais de 8 mil lutadores da vanguarda operária e popular chilena sem vida, obrigando a milhares de ativistas e militantes de esquerda a fugirem do país para não morrer sob as garras da ditadura.

No Chile, essa pretensa "terceira via" social-democrata representada pelo PS, apresenta-se aos olhos das massas como uma alternativa frente a uma crise social galopante, já que a economia do país está sendo muito golpeada pelo debacle capitalista internacional dos últimos três anos, principalmente por sua ligação comercial com os países do sudeste asiático que compravam 40% dos seus produtos exportados como também pela queda do preço internacional do cobre desde 97. Para se ter uma dimensão da crise, a produção industrial chilena caiu 6% em 98, a balança comercial teve um déficit de 10 milhões de dólares no mesmo ano e o desemprego é recorde com a falência de 40% das microempresas do país.

Nesse momento que precede as eleições, a luta de classes começa novamente a se aquecer no Chile. O governo enfrenta várias greves, com a ameaça de paralisação do serviço telefônico em todo o país na antevéspera do primeiro turno contra as mais de 1600 demissões planejadas na CTC Chile e cresce a mobilização dos médicos do setor público, que já estão em greve há vários dias. No rastro desse ascenso, os portuários fizeram uma paralisação recente e estão em estado de greve, enquanto os funcionários do Teatro Municipal de Santiago estão parados há 40 dias contra as demissões. A poucos dias das eleições, o Chile se encontra em meio a uma onda de greves contra os ataques do governo DC-PS.

As contradições inerentes dessa conjuntura nos obriga a fazer um balanço preciso da política da Frente Popular no Chile, que deu origem ao governo de Salvador Allende no início da década de 70 e de seus nefastos desdobramentos na atualidade, já que a conduta da UP representou no continente latino-americano o melhor exemplo do quão desastrosa é para o proletariado a política de colaboração de classes levada a cabo pelo reformismo e pelo stalinismo; agora, após a queda contra-revolucionária da URSS e do Muro de Berlim, ainda mais adaptados à ordem capitalista.

A ‘Unidade Popular’: um recurso da burguesia contra a revolução proletária

A ascensão do movimento operário chileno ganhou impulso nas décadas de 50 e 60. Durante esse período, a conjuntura chilena teve como características centrais o início de um processo de reformas burguesas diante da enorme pressão popular, por um lado, e um notável desenvolvimento das lutas do movimento operário, por outro. Como produto desse ascenso, em 1953, foi fundada a CUT, sob a influência direta do PC e do PS.

A tentativa de conter a radicalização do movimento operário através das reformas cosméticas iniciadas no governo Alessandri (Partido Nacional) teve continuidade na gestão democrata-cristã de Eduardo Frei no final dos anos 60, mas fracassou ante as suas próprias limitações. O potencial de luta dos trabalhadores ampliou-se com a incorporação dos camponeses, estimulados pelas primeiras reformas e do proletariado fabril mobilizado das cidades.

A frustração frente às promessas não cumpridas dos governos burgueses tradicionais, principalmente no campo (reforma agrária) e na cidade (habitação e emprego) levou os explorados a uma luta aberta contra o regime. O ascenso e radicalização da classe operária, além da perda de controle por parte do governo anterior da Democracia Cristã, causando uma divisão inter-burguesa, foram algumas das causas pelas quais a burguesia permitiu transitoriamente que os partidos reformistas de massas (PC e PS) ascendessem eleitoralmente ao governo, como um recurso extremo para tentar desviar e, em última instância, desmoralizar os explorados que se lançavam em luta contra a ordem capitalista.

O governo instaurado pela Unidade Popular (UP) em 1970, encabeçado por Allende, correspondeu às características clássicas de uma frente popular, onde a burguesia em crise extrema e sob a pressão do ascenso popular faz concessões e entrega o poder a partidos reformistas de massas para que estes controlem o movimento operário nos marcos do regime político burguês.

A Unidade Popular era formada pelo PS, PC, Partido Radical e vários partidos raquíticos da pequena burguesia (MAPU, API, PSD), uma frente popular entre partidos operários e partidos burgueses "progressistas" minúsculos. O predomínio da plataforma política defendida pelo PC e o PS - adoção da via pacífica para a construção do socialismo e o respeito incondicional à constitucionalidade burguesa – permitiu a ampliação das alianças políticas com essas sombras da burguesia e transformou sua estratégia inicial (adoção da via pacífica para o socialismo) em camisa-de-força sobre o movimento revolucionário desencadeado independente das limitações e objetivos políticos da UP.

O exemplo da frente popular chilena, onde o Partido Radical e setores ultraminoritários da DC, no caso, o MAPU, integram a UP, encaixa integralmente na caracterização de Trotsky sobre a Espanha na década de 30: "O fato mais surpreendente politicamente é que no caso da frente popular na Espanha nem sequer há paralelo de forças: o lugar da burguesia está ocupado pela sua sombra. Através dos stalinistas, dos socialistas e dos anarquistas, a burguesia espanhola subordinou o proletariado sob seu controle sem ao menos ter o trabalho de participar da Frente Popular... Porém, graças a seus aliados socialistas, stalinistas e anarquistas, esses fantasmas políticos jogaram na revolução um papel decisivo. Como? Simplesmente, encarnando o princípio da ‘revolução democrática’, isto é, da inviolabilidade da propriedade privada" (Lições da Espanha, Última advertência, 1937).

A UP entrou em cena quando as massas estavam em uma mobilização ascendente que ameaçava destruir o Estado burguês. O aniquilamento eleitoral da direita (Partido Nacional), a derrota do democrata-cristão Eduardo Frei — em condições de divisão da burguesia — era uma expressão aberta de que se estava na ordem do dia para as massas chilenas a luta por construir um governo operário e camponês. Para sair dessa encruzilhada, que a própria evolução da luta de classes impunha, os partidos frente populistas se aliaram com a burguesia, o exército e o clero com o objetivo de preservar a ordem burguesa. Essa tarefa era impossível sem desorganizar as massas e derrotá-las.

Esta foi a função política que veio a ter o governo da UP: organizar a derrota pacífica dos trabalhadores e, portanto, pavimentar o caminho para o seu esmagamento sangrento. A derrota das massas chilenas não foi um subproduto da política reformista ou conciliadora de Allende, mas a realização plena dos próprios objetivos fixados pela UP.

Os discursos de Allende sintetizam bem seu programa de construir a "via pacífica para o socialismo" no Chile, em uma negativa clara de marchar pelo caminho da revolução proletária. Em sua primeira mensagem ao Congresso Nacional, o presidente eleito pela UP expressa essa concepção em toda sua plenitude: "As circunstâncias entre Rússia de 1917 e as do Chile de hoje são muito diferentes... Nosso modelo revolucionário, o método pluralista, foi antecipado por teóricos marxistas clássicos porém nunca foi posto em prática antes. O Chile é hoje a primeira nação no mundo que está pondo em prática o segundo modelo de transição a uma sociedade socialista... Os céticos e os profetas da ruína dirão que isto é impossível. Dirão que um parlamento que serviu às classes dirigentes com tanta eficácia não pode transformar-se em um Parlamento do Povo chileno. Ainda mais, declararam enfaticamente que as Forças Armadas e o Corpo de Carabineiros não consentiriam em garantir a vontade do povo se este decidisse o estabelecimento do socialismo em nosso país... Já que o Congresso Nacional está baseado no voto do povo, não existe nada em sua natureza que impeça que se transforme para voltar-se, de fato, a ser um Parlamento do Povo. As Forças Armadas e os Carabineiros, fiéis a seu dever e a sua tradição não intervirão no processo político que corresponde com a vontade do povo...." (Dircurso de Allende em sua primeira mensagem ao Congresso, 1970).

No programa da UP, a conquista do poder deveria ocorrer a partir de mecanismos institucionais existentes através de um processo gradual, progressivo e pacífico, ou seja, rechaçava a tarefa de armar as massas para pôr abaixo o Estado burguês em um enfrentamento direto com a burguesia nacional e o imperialismo. As reacionárias instituições e estruturas capitalistas deveriam ser transformadas paulatinamente sem a necessidade de organismos de poder popular e soviéticos que superassem e destruíssem a estrutura jurídica, política e econômica que mantinha de pé o regime burguês. Essa utopia reacionária pregava que a ordem capitalista deveria ser transformada a partir da insti-tucionalidade montada para mantê-la, a passagem do poder de uma classe para outra deveria ocorrer sem que se abrisse um processo revolucionário para sua conquista.

Justamente por essa razão, os principais líderes da UP tentavam esfriar a euforia popular e fixar limites ao processo revolucionário aberto contra a sua vontade, usando uma fraseologia esquerdista para justificar sua política criminosa: "É necessário ter uma clara consciência de que o programa da UP não é um programa socialista, está destinado a preparar o país e o povo - desenvolvendo sua educação e sua consciência - para entrar em uma etapa socialista. Definiria a etapa atual como pré-socialista" (Entrevista de Altamirano, dirigente do PS ao Le Monde de fevereiro de 1971).

Logo os pressupostos da "via pacífica ao socialismo" de Allende se fizeram concretos e se mostraram reacionários. Pelos dispositivos constitucionais, o candidato da UP precisaria ser confirmado pelo Congresso Nacional para tomar posse, já que não tinha obtido mais de 50% nas eleições presidenciais.

Neste caso, a maioria parlamentar formada pela DC cujo candidato obteve 27% dos votos e o Partido Nacional (PN) que também foi derrotado com 34% dos votos, poderia indicar um outro concorrente que não Allende, mesmo que este fato contrariasse a "tradição" de se respeitar o mais votado. Essa alternativa era extremamente arriscada: a classe operária estava em ascenso, havia derrotado o governo Frei e aniquilado a candidatura de Alessandri. Um acordo entre a DC e o Partido Nacional poderia gerar uma crise ainda maior com a classe operária saindo em luta superando objetivamente a política conciliadora de suas direções e colocando em xeque as estruturas de dominação burguesa.

O apoio da DC a Allende no Parlamento, por sua vez, era algo também perigoso. Implicava em confiar, ainda que de forma transitória, o aparato estatal a partidos reformistas de massas. Mesmo que suas direções jurassem fidelidade à "ordem constitucional" (capitalista), a burguesia era consciente que por trás da UP se encontrava uma classe operária em mobilização, capaz portanto, de ultrapassar suas direções. Mais ainda, na medida em que o governo passava para as mãos de uma coalizão onde os partidos ditos operários eram o centro, toda a atenção das massas se concentravam no exercício desse poder, polarizando a luta de classes ao redor do Estado.

Diante desse quadro, os partidos burgueses mais direitistas (PN) e os grupos paramilitares, com o aval da DC, desenvolvem intensos esforços entre a eleição de Allende e a data de sua indicação para impedir a ratificação de seu nome pelo Congresso, no sentido de criar um clima para que a aprovação do parlamento não ocorresse. Após uma ameaça de golpe fracassar pela mobilização popular, a DC condiciona seu apoio a posse de Allende a uma série de compromissos firmados pela UP através do "Estatuto de Garantias Democráticas". Por este acordo, a UP se compromete a respeitar a legalidade burguesa, o estado de direito, o pluralismo político que assegurava a organização política da direita e dos grupos fascistas, a autoridade exclusiva dos três poderes, a não interferir na hierarquia interna do exército, a manter os subsídios para a Igreja e o seu controle sobre o ensino privado e a não estatizar os meios de comunicação.

Buscando um compromisso explícito da UP para arrancar-lhe garantias de respeito à ordem capitalista, a DC redatou um documento público onde enumerava suas exigências: "Queremos um estado de direito. Isto requer a exigência de um regime político em que a autoridade seja exclusivamente exercida pelos órgãos competentes: executivo, legislativo e judiciário, sem a intervenção de outros órgãos ‘de fato’ que se reivindiquem de um suposto poder popular. Queremos que as FFAA e os corpos de Carabineiros continuem sendo uma garantia de nosso sistema democrático, o que significa que sejam respeitadas as estruturas orgânicas e hierárquicas das Forças Armadas, Carabineiros etc." (Documento da DC, 24 de setembro de 1970). Não havia uma forma mais clara de exigir a submissão do governo da frente popular às necessidades do grande capital.

A resposta de Allende é criminosa e subordina completamente seu ‘governo popular’ às exigências da grande burguesia chilena e do imperialismo: "Devo afirmar que sou um defensor intransigente das prerrogativas do chefe de Estado. Afirmo, que a UP não terá nenhum direito sobre a nomeação do alto comando militar pois é uma prerrogativa do Presidente da República e preservarei zelosamente minhas atribuições constitucionais", concluindo "que todas as transformações políticas, econômicas e sociais se realizarão a partir da ordem jurídica atual e segundo o Estado de direito" (Resposta de Allende a DC, setembro de 1970)

Sobre as forças armadas, o Estatuto de Garantias Democráticas delibera que "a força pública está única e exclusivamente constituída pelas forças armadas e os corpos de carabineiros, instituições essencialmente profissionais, hierárquicas, disciplinadas e não deliberativas. O recrutamento de novos efetivos das FFAA e dos carabineiros está reservado às escolas superiores dessas instituições", preservando integralmente o aparato repressivo que anos mais tarde iria servir para dizimar a esquerda chilena.

O Estatuto de Garantias Democráticas, na verdade, um pacto de garantia das instituições burguesas e da inviolabilidade da propriedade privada, selou um acordo histórico entre a UP, a grande burguesia nacional e o imperialismo contra qualquer tentativa das massas de marchar rumo à destruição do Estado burguês. O estabelecimento desse acordo demonstrou em toda sua abrangência que a UP rompia não só os seus últimos vínculos proletários, mas com todo o caráter antiimperialista que até então proclamava, porque a partir desse momento expressa claramente seu objetivo de não se apoiar no movimento de massas contra as instituições e o regime político reacionário de um estado semicolonial, ao contrário, firma um compromisso aberto com as forças comprometidas com a ordem capitalista existente contra o ascenso de massas.

A Frente Popular abre caminho para a ditadura pi-nochetista

A ilusão reacionária de que era possível edificar uma via pacífica ao socialismo, sobre a base de aprofundar a democracia burguesa agregando-lhe justiça social, a fórmula mágica defendida por todos os reformistas e stalinistas da moda (PT do Brasil, CNA na África do Sul, Frente Ampla no Uruguai etc.) conduziu à pior das derrotas o proletariado chileno. Toda a política do PS e do PC consistiu em canalizar a radicalização dos explorados dentro do marco do regime burguês: confiar na ala democrática do exército, não avançar nas nacionalizações, reprimir o movimento de massas em suas ações mais radicalizadas.

Cumprindo esse objetivo, Allende promulgou uma lei que dava poderes ao Exército para fazer apreensões de armas sem aviso prévio. Esta medida estava dirigida às fábricas ocupadas e aos partidos de esquerda, em especial o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionário) que possuía um contigente de mais de 16 mil homens armados, que compunham a própria UP. Allende "redigiu uma lei que concedia às Forças Armadas, o direito de controlar o armamento dos civis. Esta lei, propiciada pelo governo, está respaldada pelos uniformizados e estes, sem dúvida, a aplicaram à risca (Clarín, 07/09/72). Ao mesmo tempo que exigia o desarmamento dos cordões industriais, em meio à maior crise militar de seu governo, nomeou Augusto Pinochet como chefe das FFAA.

O Governo da UP reprimiu o movimento operário, as ocupações de fábricas, as invasões de terras e as mobilizações antifascistas organizadas pelas juntas de abastecimento e preços (JAP’s), os cordões industriais e os comandos comunais no campo e na cidade, já que esses organismos de base fugiam muitas vezes do controle da UP.

Para se ter uma dimensão desses embriões de poder proletário, os cordões industriais chegaram a agrupar mais de 100 mil trabalhadores somente em Santiago, tendo relativa independência política do PC e da CUT e, muitas vezes, sendo simpáticos à plataforma do Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR). O MIR era um grupo foquista pró-castrista que criticava pontualmente a UP, mas se negava a denunciar de conjunto sua política de colaboração de classes, limitando-se a declarações diplomáticas como: "apesar de não concordarmos com cada passo da Unidade Popular, apesar de termos diferenças com aspectos da sua política, isso não significa que tenhamos que romper definitivamente com a UP" (Ponto Final, 09/11/71).

No conjunto, os organismos de base não se constituíram apenas em instrumentos políticos imediatos para solucionar, na perspectiva dos trabalhadores, os problemas da produção-distribuição-consumo-transporte ou de habitação-saúde-escola. Assumiram, na verdade, feições de um poder popular, ainda que embrionariamente. A sua evolução - até se configurarem enquanto um poder dual, paralelo à institucionalidade burguesa - foi barrada conscientemente pela política dos partidos da UP e pela conduta inconseqüente do MIR.

A cúpula da coalizão governista apoiava-se nestes organismos de base exclusivamente para pressionar a direita e buscar uma solução negociada para a crise, conferindo-lhe funções de colaboração com o governo. Ademais, o próprio Allende e o PC se manifestam contra os organismos de base, taxando-os de esquerdistas e desestabilizadores do quadro jurídico-político e institucional. Dado o peso e a influência da UP no movimento operário e popular (CUT e sindicatos) e a ausência de um partido revolucionário que dirigisse esses setores mais conscientes, a vanguarda classista que se aglutinava em torno dos organismos de base não conseguiu se contrapor frontalmente ao governo e às instituições do Estado burguês que, naquele momento, eram apresentadas pelo PC e o PS como estando a serviço dos interesses dos explorados. Em conseqüência dessa política criminosa, um dos momentos de maior radicalização das massas foi desprezado e seu ímpeto contido, como forma de garantir a estratégia política reformista.

Alçada ao poder para conter e desviar o avanço das massas trabalhadoras do campo e da cidade, criando a ilusão de uma "via pacífica para o socialismo", a frente popular foi derrubada num momento em que a classe dominante e o imperialismo conseguiram organizar a contra-ofensiva auxiliados pela política da UP de desarmar o proletariado e pactuar com os setores "constitucionalistas" da burguesia (DC) e das FFAA. Como bem sintetizou Trotsky: "a política conciliadora das Frentes Populares condena a classe operária à impotência e abre caminho para o fascismo" (Programa de Transição, 1938).

A burguesia, com as bases fundamentais da economia em suas mãos e o aparato repressivo intacto, teve tempo para esperar os resultados desmoralizantes da política de Unidade Popular. A medida que os capitalistas instalavam o caos econômico no país, organizavam lockoutes e mobilizações da classe média enfurecida com o desabastecimento, a UP capitulava cada vez mais, reivindicando a entrada da DC no governo. Por outro lado, o governo perseguia e isolava a vanguarda classista e as ações dos cordões industriais, desmoralizando a classe operária e trazendo divisão e confusão às suas fileiras. Os Carabineiros chegaram, por ordem direta de Allende, a asassinar 06 camponeses que ocupavam terras no interior do país, ligados à União Revolucionária Camponesa, fração sindical rural do MIR.

No auge dessa crise, ocorre o golpe militar em setembro de 1973. Com ele, o exército seqüestrou e assassinou mais de 8 mil militantes e provocou o exílio e o cárcere de outros milhares. As Forças Armadas bombardearam bairros populares, fuzilaram e prenderam milhares de pessoas nos quartéis e, principalmente, no Estádio Nacional em Santiago do Chile. O imperialismo norte-americano, através da CIA, ajudou ativamente a preparação do golpe. Esse massacre esteve a serviço de assegurar a recolonização do país e a destruição das conquistas da classe operária. O "pinochetaço" e o estabelecimento da ditadura militar finalizaram a curta experiência do governo da UP.

A partir desse momento, sob a base de uma imensa derrota da classe operária, o país foi transformado em cobaia de um modelo econômico que mais tarde apelidou-se de ‘neoliberalismo’. Ao contrário de algumas ditaduras militares ocorridas no continente que impulsionaram a indústria nacional, a junta pinochetista, assessorada pelos tecnocratas norte-americanos conhecidos como Chicago’s Boys, promoveu a liquidação do parque industrial nacional, escancarou as portas do país para o capital estrangeiro, privatizou em grande escala, inclusive a seguridade social, transferindo para o setor privado uma enorme massa de capital.

O golpe de Pinochet não vinha simplesmente barrar as tendências à radicalização proletária e para disciplinar o movimento de massas. Como agente do imperialismo e da grande burguesia, a ditadura ascendeu para reestruturar a economia chilena, submetendo-a mais ferreamente aos ditames dos monopólios e dos centros financeiros internacionais.

Os direitos trabalhistas e sindicais foram suspensos e permitiu-se à burguesia acumular mais valia sob uma repressão sangrenta. Simultaneamente, impulsionava-se a quebra do velho parque industrial nacional, condenando à bancarrota grande parte das empresas vinculadas ao mercado interno, enquanto aquelas rentáveis que sobreviviam eram anexadas aos complexos industriais dos grandes monopólios norte-americanos e japoneses.

O processo acelerado de recolonização do país não teria sido possível sem uma profunda derrota da classe operária, que teve como base posterior a criação de sindicatos por empresa e, inclusive, por ramos de cada empresa, atomizando completamente a classe operária em suas lutas.

De 1973 a 1990, a ditadura levou a cabo um profundo processo de recolonização imperialista no Chile, gerando uma falsa estabilidade econômica, através do completo controle de todos os ramos da economia pelos grandes monopólios.

A transição pactuada entre Pinochet, a DC e a Frente Popular

Em meados dos anos 80, as massas chilenas voltaram a protagonizar importantes lutas com manifestações de ruas que enfrentaram a polícia e o exército. Isso foi um sinal do desgaste extremo da ditadura e a obrigou, como um meio preventivo para contornar sua própria crise, a buscar uma saída negociada com a "oposição socialista", através do estabelecimento de um governo com fachada civil. A tarefa de costurar essa alternativa de aparências democráticas ao regime militar, mantendo intocável a estrutura jurídica, política e econômica montada pelos generais, foi incubida aos genocidas sem fardas, os homens da DC.

A institucionalização das mudanças ditadas pela ditadura ocorreu através da aprovação da arquireacionária Constituição de 1980 e, posteriormente, através da aceitação, pela oposição burguesa, das regras impostas por Pinochet para a transição pactuada.

Essa manobra contra as massas foi integralmente avalizada pelo PS, que se integrou à coalizão política encabeçada pela DC e formou a "Concertación". Por sua vez, o mesmo PC que chamou as massas em 73 a confiar nos "militares patrióticos" ou "contitucionalistas" levou as mobilizações democráticas dos anos 80 para a manobra da transição pactuada.

As seguidas traições do PS e do PC na década de 80 permitiram a sobrevivência do regime pinochetista, com a anistia aos militares genocidas em 1978, confirmada através da constituição reacionária de 1980 que consagra a impunidade, o controle pelos pinochetistas das FFAA e até de setores do parlamento.

Em 1988, o PC reiteirou seu papel de sustentáculo do regime, chamando a votar pelo não no plebiscito, quando estava colocado o boicote ativo ao plebiscito fraudulento, convocando mobilizações de massas para derrubar Pinochet imediatamente, deslegitimando a farsa montada por todas as variantes burguesas civis e militares.

Apesar do PC não ter feito parte do comando do "não" no plebiscito de 1988, que deu origem à Concertación, o stalinismo deu legitimidade ao plebiscito que permitiu que Pinochet seguisse governando até 1990 e legalizou a transição, chamando os explorados a votar nas eleições de 1990 na Concertación, cujo candidato à época, Patricio Aylwin, foi um líder destacado da DC em 1973 e apoiador declarado do golpe de Pinochet.

Tendo como base a colaboração direta de todas as forças políticas do Chile, desde Pinochet até o PC, surgiu um regime militar com elementos democratizantes a partir do pinochetismo reciclado. Essa "democracia" pinochetista repousa sob o pacto de anistia ampla aos torturadores e genocidas que continuam a exercer tranqüilamente influência na vida pública do país, ou seja, são afastados os expoentes da ditadura genocida para permitir a continuidade das suas estruturas econômicas básicas sob a roupagem democrática.

Quando Pinochet passou a faixa presidencial a Patricio Aylwin, em 90, o imperialismo já estava seguro do compromisso assumido pela Concertación. A "transição" foi discutida exaustivamente. A aliança de "oposição" havia se comprometido a levar a cabo a recolonização imperialista, tal como a ditadura concebia. Pinochet, os grandes monopólios e a burguesia chilena estavam seguros que a pseudo-oposição iria seguir zelosamente a política econômica pró-imperialista, em muitos aspectos de forma ainda mais conseqüente.

Na verdade, a ditadura forjou uma caricatura de democracia burguesa, tutelada, que apresenta a peculiaridade de ter senadores designados pela FFAA e um senador vitalício (Pinochet).

Essa "institucionalidade" desenhada pela ditadura com suas leis antioperárias é que garante aos patrões nacionais, aos monopólios estrangeiros e ao governo da Concertación dar continuidade ao "modelo econômico chileno" que empobreceu os trabalhadores e o povo, eliminando as conquistas operárias. A ditadura congelou os salários, decretou o trabalho fabril aos sábados e liberou a jornada de trabalho para 10 horas sem qualquer seguro-desemprego, ataques mantidos até hoje pela caricatura democrática imposta ao Chile, com o apoio do PS e do PC. Nesse mesmo caminho, a seguridade social foi privatizada e o ensino público severamente golpeado, houve, enfim, uma flexibilização trabalhista irrestrita.

Mas a política do PC e do PS vem até hoje sendo uma garantia dessa manobra armada pela ditadura e os partidos burgueses tradicionais. O exemplo mais recente dessa política desenvolveu-se na greve dos mineiros de Lota, ocorrida entre 96 e 97, contra o fechamento da principal mina de carvão do país. Essa luta foi isolada pelo PC e a CUT, até que esta política foi rompida pelos próprios mineiros que, contra a orientação do stalinismo, levaram sua greve para as portas do palácio de La Moneda. Frente a repercussão do conflito, a conduta do PC, que dirige a CUT, foi dedicar-se a desgastar o conflito em negociações e protocolos intermináveis com o governo, se negando a enfrentar o fechamento das minas com a convocação de uma greve geral.

Como na greve dos mineiros de Lota, a política do PC e do próprio PS, é levar todas as lutas das massas para plebiscitos e acusações constitucionais, colocando nas mãos da justiça burguesa a resolução das reivindicações operárias. Enquanto o PS, o grande susten-tador da Concertación trai os trabalhadores desde o interior da coalizão burguesa, o PC como garante do grande acordo nacional desde fora, está jogando novamente, frente ao agudizamento da crise, um papel contra-revolucionário para impedir a confluência das lutas da classe operária com as lutas democráticas, que faça voar pelos ares o regime pinochetista-concer-tacionista.

Com o argumento de que qualquer coisa é melhor que Pinochet, os "socialistas" e stalinistas impulsionam a reconciliação nacional com o regime genocida, limitando todas as iniciativas contra a ditadura aos "marcos constitucionais" estabelecidos pela constituição elaborada pela própria ditadura.

Isso se expressou no caso da ameaça da prisão de Pinochet pela justiça imperialista, quando a euforia das massas, embora com desconfiança que nada iria ocorrer no final, se expressou em manifestações de rua só comparadas as das eleições de 1990, quando Pinochet deixou formalmente a presidência.

O apoio da esquerda chilena, particularmente do PC, à farsa da justiça imperialista denuncia sua própria impotência de lutar pela condenação de Pinochet e de seus colaboradores no próprio Chile, ao reivindicar que a justiça imperialista "democrática" européia e não as massas julguem o ditador através de um tribunal popular do movimento operário internacional. São esses mesmos "democratas" da "terceira via" que agora teatralizam o apoio ao julgamento de Pinochet, como Blair, Schroder e Jospin que, ao lado de Clinton, invadiram a Iugoslávia, através de seu braço de guerra , a OTAN, massacrando milhares de sérvios e kosovares para impor a recolonização imperialista nos Bálcãs.

Já as principais figuras públicas do PS não se deram sequer ao trabalho deste malabarismo, saindo em defesa da libertação do carrasco de seus próprios militantes. A missão de negociar a libertação de Pinochet em Londres ficou a cargo do ministro "socialista" do exterior, José Miguel Isulza. Há um consenso no atual governo em torno da defesa da libertação de Pinochet para, como declarou Ricardo Lagos, se "preservar a democracia no Chile como um bem superior" (Revista Veja, outubro/98).

Os mesmos partidos que chamaram as massas a confiarem nos militares "patrióticos" e são co-responsáveis pela morte de centenas de militantes de esquerda no Chile, agora, em meio à farsa democrática, colocam nas mãos da justiça imperialista o julgamento do carrasco chileno, que nunca ocorrerá, ou ainda, de forma mais criminosa, defendem em nome dessa mesma democracia a liberdade de Pinochet.

Construir um partido revolucionário no Chile

No Chile, com o aval do imperialismo, os partidos burgueses diretamente representantes do pinochetismo, a Igreja, a Concertación e o PS, com o Partido Comunista atuando como braço auxiliar do governo por fora da coalizão, buscam costurar um grande acordo nacional para salvar o conjunto do regime pinochetista-concertacionista e sua reacionária constituição de 1980, tentando estancar a crise que se abriu no regime. Essa política significa manter o conjunto do regime, tirando de cena Pinochet, que neste momento é uma figura que pelo ódio popular dificultaria esse acordo, e introduzindo algumas mudanças cosméticas que lhes permitam ter melhores mecanismos para enganar as massas.

Os partidos burgueses e a esquerda necessitam estancar essa crise para fortalecer o regime, construindo melhores condições de passar a um ataque ainda mais profundo à classe operária e aos explorados frente a crise econômica que golpeou duramente o Chile a partir do chash no sudeste asiático.

Através da eleição do "socialista" Ricardo Lagos, que tem a vantagem de ter mais simpatia entre os setores populares, a burguesia deseja criar ilusões nas massas de que estas terão um governo minimamente comprometido com seus interesses, quando na verdade o novo homem da Concertación no governo levará a cabo a mesma plataforma reacionária dessa coalizão burguesa no marco de um regime cívico-militar. Como declarou o líder do PS no Congresso, deputado Ignácio Walker, "Lagos já disse que não quer ser o segundo presidente socialista do Chile, mas o terceiro presidente da Concertación" (jornal El Mercúrio, 31/10/99).

Nesse contexto, as recente mobilizações de rua dos partidos da direita pino-chetista e o ressurgimento de grupos fascistas (como o Pátria e Liberdade, que foi o principal grupo fascista de 73 que abasteceu as fileiras da polícia política da ditadura, a DINA) são parte da forma da direita exercer pressão para que o atual regime se mantenha com a menor quantidade de mudanças possíveis.

Assim como no passado, a política frente populista da esquerda chilena é a principal responsável pelas derrotas impostas à classe operária. Um passo adiante na luta pela libertação dos presos políticos, o combate à superexploração capitalista e à opressão política somente serão possíveis através de uma profunda delimitação com a política de reconciliação com a ala democrática do pinochetismo, levada a cabo pelo PS e apoiada pelo PC.

É preciso forjar um autêntico partido operário revolucionário, reconstruindo os organismos de poder da classe operária (como foram os cordões industriais), unificando os trabalhadores em fortes sindicatos por categoria e intersindicais, apontando a luta pela revolução socialista e o governo operário e camponês.

O conjunto da esquerda oscila entre o apoio crítico à DC como representantes da suposta democratização contra o pinochetismo, como o PS e o PC, ou, em sua versão mais à esquerda, desejam o aprofundamento da democracia através da reedição de um governo da UP, como é o caso da Frente Patriótica Manuel Rodrigues (FPMR). Em todos os casos, são reféns de uma política que não sai dos marcos do regime burguês.

A FPMR, uma ruptura foquista à esquerda do PC entre a década de 70-80, apesar de denunciar a atual política do stalinismo oficial como uma ala externa da Concertación, que adota o discurso de apoio disfarçado ao PS através do apelo para que as massas fortaleçam a esquerda chilena, adota uma conduta abstencionista e supostamente esquerdista de não participar por princípio das eleições burguesas , negando-se a denunciar, como é dever dos verdadeiros leninistas, também no próprio terreno privilegiado da burguesia (as eleições) a política pró-imperialista da Concertación , do PS e do próprio PC.

O aparente esquerdismo da FPMR não vai longe e esbarra no programa democratizante histórico do stalinismo e da UP em defesa do aprofundamento da democracia burguesa, fazendo das mobilizações das massas um instrumento de pressão para aperfeiçoar a ordem capitalista: "sem lutas não haverá melhoras substanciais na situação dos direitos das pessoas. A luta por justiça social requer mudanças políticas profundas em nossa sociedade, ou seja, não haverá uma autêntica democracia enquanto exista a superestrutura política e jurídica herdada da ditadura militar" Declaração da FPMR sobre as eleições, outubro/99).

Os trabalhadores chilenos não podem nutrir nenhuma confiança nessa esquerda frente populista parceira dos partidos burgueses e, em última instância, do pinochetismo genocida. As massas precisam retomar o caminho de ascenso e luta que trilharam no início dos anos 70, reconstruindo organismos de poder popular que impulsione sua ação direta numa luta aberta contra a influência da burguesia liberal. Somente através da ação de massas, das greves com ocupação de fábricas, minas e universidades, como fizeram os mineiros de Lota, os explorados poderão avançar na luta por derrotar os governos da Concertación pró-imperialista, não depositando nenhuma confiança na candidatura "socialista" de Ricardo Lagos.

Forjando um partido revolucionário, os trabalhadores conseguirão levar os genocidas ao paredão e destruir as velhas instituições do regime para, sobre suas cinzas, construir um Governo Operário e Camponês.



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