Ex-Iugoslávia

Ofensiva imperialista reaquece guerra civil na ex-Iugoslávia

Artigo extraído do JLO nº 22 (setembro/97)

A luta contra a intervenção imperialista voltou com todo vigor nos últimos três meses na ex-Iugoslávia. Mais uma vez foi posto a nu o caráter fraudulento dos acordos de paz de Dayton (cidade dos EUA onde aconteceram as negociações), firmados entre o imperialismo e os líderes nacionalistas bósnios, croatas e sérvios em novembro de 1995. Os acordos que, aparentemente, puseram fim à mais longa e mais sangrenta guerra européia, depois da II Guerra Mundial, praticamente condenaram os sérvios a viverem num campo de concentração sob a mira da OTAN.

As origens da Guerra dos Bálcãs

Os desdobramentos atuais da guerra dos Bálcãs tiveram suas origens na crise do Estado operário multinacional deformado da Iugoslávia, levado à bancarrota pela política da burocracia de Tito de ‘socialismo autogestionário’, a versão balcânica do ‘socialismo num só país’ de Stálin. Esta orientação reacionária, comum a todas as burocracias dos países onde a burguesia foi expropriada, alimentou ilusões em estabelecer uma ‘convivência pacífica’ com o imperialismo, oposta à estensão da revolução internacionalmente.

A Iugoslávia foi o Estado operário onde a ‘boa vizinhança’ com o imperialismo foi aplicada com maior profundidade. Após a quebra de relações com a URSS, em 1948, Tito aproxima-se dos EUA, passando a receber ‘ajuda’ econômica e militar americana. A dependência econômica externa, que havia cessado com a revolução, volta a intrometer-se na política do país. A Iugoslávia foi o primeiro Estado operário a filiar-se ao FMI. No bloco dos países não alinhados (formado por nações onde a burguesia havia sido expropriada, mas que não faziam parte do Leste europeu, ou não obedeciam diretamente às ordens de Moscou e países dirigidos por capitalistas terceiromundistas), Tito era um dos mais intransigentes opositores à URSS, opondo-se a qualquer aproximação dos não-alinhados ao chamado bloco socialista da Europa oriental. Essa traição servia aos desejos do imperialismo para estrangular a URSS, através do bloqueio econômico, e ao mesmo tempo tornava a própria Iugoslávia cada vez mais refém dos capitalistas ianques. Em plena guerra do Vietnã, Tito manteve uma atitude hostil à revolução indochina, reaproximou-se de Washington em troca de visitas oficiais a Nixon. Nesta condição, a burocracia iugoslava sempre foi a ‘mais simpática’ aos EUA, enquanto o imperialismo ianque cobrava ajustes econômicos em função do pagamento da dívida externa, minando o controle do comércio exterior do Estado operário e preparando a restauração capitalista.

Em oposição à autêntica democracia proletária, onde os trabalhadores pudessem definir os rumos da economia e da revolução, os elementos capitalistas sobreviventes (lei do valor, estratificação social) foram incrementeados e fortalecidos em prejuízo aos elementos socialistas (coletivização da propriedade, monopólio do comércio exterior, planificação da economia). Tito procurou acomodar os interesses dos dirigentes stalinistas das distintas repúblicas dos Bálcãs. O culto à autarquia, da auto-suficiência nacional, voltou-se contra a própria Federação, impulsionando as aspirações separatistas das frações burocráticas. A ‘auto-gestão’ de Tito, enquanto apresentava ao mundo uma caricatura de conselhos operários completamente manipulados pela burocracia, possibilitava aos burocratas manejar em separado com as economias regionais e, inclusive, a recorrer a empréstimos internacionais junto ao FMI.

Se a expropriação da burguesia feita sob a unidade revolucionária dos povos dos Bálcãs foi capaz de trazer conquistas extraordinárias no campo social (pleno emprego para homens e mulheres e pensão de aposentadoria para todos, assistência médica, educação e creches comunitárias gratuitas) e econômico (industrialização da economia, eletrificação do campo, aumento espetacular da produção de bens), a política da burocracia, no princípio, foi um freio e, depois, um coveiro deste desenvolvimento. O culto ao socialismo nos marcos nacionais levaram à manutenção do atraso tecnológico, fazendo com que a produtividade do trabalho fosse baixíssima. Isso fazia com que a qualidade e, conseqüentemente, os preços dos produtos do país no mercado mundial sofressem uma imensa desvantagem frente às mercadorias produzidas pelos capitalistas. Como nos avisara o velho revolucionário bolchevique, "a diferença entre os preços internos e os do mercado mundial constitui um dos índices mais importantes da relação de forças" (A revolução traída, L. Trotsky) entre o Estado operário e o proletariado mundial, de um lado, e as forças interiores hostis e o capitalismo mundial, de outro. A troca desigual e a queda das exportações levava ao aumento do déficit da balança comercial que, por sua vez, era compensado com mais endividamento externo.

Neste quadro, o estreitamento das relações com o imperialismo só fazia piorar as coisas, pois as relações comerciais baseavam-se na capitulação política agravada pelo atraso econômico iugoslavo. Na falta de divisas para importar, o país recorria às ‘ajudas’ internacionais do FMI e, para saudar as dívidas com o imperialismo, o Estado apelava para a emissão de papel-moeda, criando uma inflação anual de quase 40%, já dos anos 70. Um índice superelevado se comparado a qualquer outro Estado operário.

"Se a revolução fez diminuir o atraso econômico das regiões empobrecidas, a aplicação dos planos dos credores internacionais aprofundou as desigualdades entre as repúblicas. A crise econômica fez evoluir a discriminação salarial não só entre a burocracia e o proletariado, mas a partir da troca, e do desenvolvimento desigual entre as repúblicas, cresceu a discriminação salarial e de direitos trabalhistas entre as distintas etnias. Esta condição, criada a partir dos interesses da casta burocrática, aliada à pressão do capital fiananceiro é a raiz da guerra fratricida atual" (JLO nº0).

Os vínculos já bastante estreitados com o imperialismo alemão, durante a profunda crise econômica da década de 80, as burocracias da Croácia e Eslovênia, regiões que concentravam a maior parte das indústrias do país, jogavam a culpa da crise nas demais repúblicas, o mesmo fizeram os outros setores reciprocamente.

A insatisfação popular aumentava paralelamente com a crise, nas diversas repúblicas, os trabalhadores foram às ruas em centenas de greves.

Insuflada por diferentes potências capitalistas a apropriar-se do espólio do Estado operário, não mais como luxúria passageira, mas já como sua propriedade, a burocracia logrou dividir o proletariado por etnia, antes que os povos de conjunto encontrassem um meio de acertar as contas com os verdadeiros responsáveis pela crise.

Nos Bálcãs, as várias fases da restauração capitalista combinaram muitos elementos já previsto por Trotsky em A Revolução Traída, desde "a intervenção de mercadorias estrangeiras a baixo preço" que provocou a desagregação econômica; passando pela "contra-revolução interna", levando ao fracionamento da Federação e, em seguida, a "intervenção armada dos exércitos estrangeiros".

A Guerra Fratricida

A desagregação do país e a guerra fratricida deixaram um saldo de 250 mil mortes, 200 mil pessoas feridas e provocou a saída de 2 milhões de refugiados do país (sem contar os 1,13 milhões de pessoas que, apesar de permanecerem na Bósnia, foram obrigadas a mudar de cidades ou região) foram impulsionadas pelo imperialismo para destruir o Estado operário iugoslavo e sobre suas cinzas promover a restauração capitalista. Após despedaçar a antiga Federação Iugosláva jogando uns povos contra os outros, o imperialismo tomou partido pelos bandos mais débeis na guerra, os chauvinistas croatas e bósnios, contra os sérvios.

A princípio, os EUA esperavam tirar proveito de sua influência sobre os chauvinistas sérvios, mas avaliaram que, tomando o lado da frente croata-bósnia causariam uma destruição maior na economia que poderia causar maior dependência dos povos da região a ‘ajuda’ estrangeira, e ser recompensada posteriormente com a estensão de sua influência militar e econômica na Europa, partido da ocupação bélica sobre a região dos Bálcãs, onde os conflitos passados já foram o estopim para a I Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, o grande capital americano disputava a influência de mercado no mesmo terreno que as outras potências imperialistas, como a Alemanha por exemplo. Para isso, fazia-se necessário uma intervenção direta das tropas da OTAN em favor do prolongamento da guerra.

Sob a justificativa de conter o genocídio que ele próprio havia insuflado, o imperialismo, através da ONU e OTAN, avançou impiedosamente sobre as massas sérvias e, desde então, descarregam milhares de bombas sobre suas populações civis, paralelamente comandaram uma intervenção de 60 mil soldados de 20 países como uma "força de estabilização". A intenção do imperialismo, após arruinar a economia do antigo Estado operário, é utilizar os Bálcãs como ponte para os os novos mercados do Leste Europeu, garantindo uma maior influência americana através da estensão da influência militar da OTAN e, enquanto isso, aproveita-se da mão-de-obra barata dos trabalhadores dos Bálcãs, agora distribuídos em um punhado de republiquetas semi-colonizadas.

Os acordos de Dayton dividiram a Bósnia em duas repúblicas: metade para a Federação muçulmano-croata e metade para os sérvios-bósnios, a República sérvia da Bósnia, chamada Srpska (RS). A Bósnia passou a ter a partir de então três co-presidentes representando cada uma das frações em disputa e também legislativos distintos.

A República sérvia-bósnia, desde então, passou a ser ocupada por um regimento francês e uma divisão dos EUA. Nela habitam 900.000 pessoas em estado crescente de barbárie. Apenas 2% da chamada ‘ajuda internacional’ para reconstrução da Bósnia vai para a RS, os outros 98% vão para a reconstrução do capitalismo na Federação croata-muçulmana, sendo destinado a maior parte do dinheiro para as mãos dos novos burgueses desta região. Na RS, 80% da população não tem emprego, não recebe nenhum salário e as escolas estão fechadas porque não há como pagar os professores.

Ocupação Militar Estrangeira e Caçadas Humanas

Para estabelecer uma carapuça jurídica à perseguição da OTAN e da ONU aos sérvios, foi acionado o Tribunal Penal Internacional (TPI), ou Tribunal Internacional de Haia (em referência à cidade holandesa em que está sediado). Esta corte imoral passou a ter maiores poderes que o Tribunal de Nuremberg, como por exemplo o de fazer a acusação antes mesmo de indiciar a pessoa suspeita, pronunciar o indiciado em sessões secretas (o réu não sabe que é procurado até ser preso) e de perseguir e prender indiscriminadamente qualquer acusado em qualquer parte da Bósnia. "Alguns suspeitos tiveram que esperar mais de um ano na prisão até o início do julgamento" (O Estado de São Paulo, 28/08). Para se ter uma idéia da parcialidade deste tribunal da ONU, basta ver para onde se orientam suas ações. Dos 77 acusados por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio pelo TPI, 54 são sérvios-bósnios, 18 croatas da Bósnia e 3 muçulmanos da Bósnia. A perseguição a alguns muçulmanos ou croatas que também cometeram alguns ditos ‘excessos’ na guerra serve obviamente para tentar fingir um papel de árbitro imparcial na região.

A justiça da burguesia internacional transformou a Bósnia num estado de exceção, onde a priori todos os sérvios são culpados, criminosos de guerra, até que se prove o contrário. Segundo o co-presidente sérvio da Bósnia, Momcilo Krajisnik "a melhor defesa é um bom ataque, essa é a razão da propaganda sobre supostos delinqüentes entre nós. Temos chegado a uma situação em que cada cidadão desta república deve provar que não é um criminoso de guerra. Não vamos mais nos justificar" (El País, 18/09).

Na prática, o Tribunal tem servido para justificar verdadeiras caçadas humanas contra os sérvios, alvos não só de prisões arbitrárias, como de execuções sumárias. Marcando o início de uma nova ofensiva política mais severa contra os sérvios-bósnios, no dia 10 de julho, uma unidade da SAS (tropa de elite do Exército do Reino Unido) prendeu o diretor do hospital da cidade, Milan Kovacevic sob a acusação de criminoso de guerra, em Prijedor (no norte da Bósnia). Em outra operação na mesma cidade, o ex-chefe policial sérvio Simo Drljaca, foi brutalmente assassinado juntamente com seu filho e motorista, enquanto comiam num restaurante, por soldados da SAS. A ação foi orquestrada pelas tropas do mais novo palhaço do imperialismo britânico, o trabalhista Tony Blair: "a ação militar foi discutida previamente entre o primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, e o presidente dos EUA, Bill Clinton" (Folha de São Paulo, 11/07).

Durante os vinte meses passados desde os acordos de Dayton, a CIA e os serviços secretos inglês e francês vêm organizando comandos para caçar e seqüestrar os dirigentes sérvios proscritos, enquanto as medidas repressivas são estendidas contra o conjunto da população sérvia. Na cabeça da lista negra dos comandos assassinos internacionais estão os nacionalistas Rodovan Karadzic e Ratko Mladic, os dois principais dirigentes militares da resistência dos sérvios da Bósnia

A intervenção militar estrangeira que também vem ocorrendo na Albânia e o restabelecimento da justiça e da democracia burguesas são condições fundamentais para atrair o capital estrangeiro a investir na reconstrução do mercado a serviço do capital internacional.

A restauração capitalista nos Bálcãs, que teve como pontos fundamentais da capitulação das camarilhas stalinistas a via da democracia burguesa (no caso da Albânia), ou a do separatismo seguido da guerra fratricida (Iugoslávia), vem ser completada pela intervenção militar estrangeira, demonstrando que o caminho de volta para o capitalismo não está sendo tão tranqüilo quanto esperava a burguesia mundial. Não é uma tarefa fácil restaurar o capitalismo apenas com escombros e uma produção econômica que chega a apenas 5% do que era antes da guerra, como é o caso da ex-Iugoslávia. O problema é que nenhuma multinacional se arrisca a investir enquanto o perigo da volta da guerra atrapalhar seus lucros. Esta é a razão da nova ofensiva capitaneada pelos EUA contra os principais obstáculos a estabilidade dos acordos de Dayton e da ordem imposta pela OTAN na região, a oposição sérvia que desde 1993 enfrenta-se com os ataques das "Forças de Estabilização", Sfor, dentro das quais o contingente americano é de 8,5 mil soldados. Sem a prisão dos dirigentes nacionalistas sérvios-bósnios e o controle completo da situação por marionetes do capital internacional, não é possível reafirmar as autoridades americanas e da OTAN sobre a região. Com a nova ofensiva foi também mais uma vez adiado, por tempo indeterminado, o prazo de retirada das tropas da Sfor, previstas nos acordos de Dayton para meados de 98.

Golpe de Estado Pró-Ianque Reincendeia Guerra Civil

A atual presidenta da República Sérvia da Bósnia, Biljana Plavsic, que até maio do ano passado era vice de Karadzic no governo da RS e chegou ao cargo por indicação deste último, foi cooptada pelo imperialismo para lutar contra o seu antigo mentor. "Ela (Plavsic) pode ser a chave do sucesso dos EUA na região. Nos últimos dois meses ela tem cooperado com a administração de Clinton e a OTAN deslocou 35 mil soldados para ficar do seu lado na luta pelo poder contra o acusado de criminoso de guerra e homem forte da Sérvia Rodovan Karadzic" (Time, 08/09). Curiosamente, Plavsic foi uma das principais defensoras e articuladoras do racismo e dos crimes contra as populações muçulmanas durante a guerra dos Bálcãs. "Anteriormente ela defendeu as limpezas étnicas, as quais resultaram no assassinato de 150 mil muçulmanos e a expulsão de outros meio milhão de suas casas. ‘Eu gostaria de ver a região leste da Bósnia, completamente limpo de muçulmanos’, afirmou ela numa entrevista em 1993"(idem). Descaradamente o mesmo semanário da burguesia britânica conclui "ela não é um exemplo, mas qual é a alternativa?"

Com o apoio político e militar das grandes potências capitalistas, Plavsic passa a ser a ponta de lança da nova investida contra a população sérvia. O imperialismo passa a apostar todas as suas fichas nesta ‘cristã-nova’ da Bósnia, numa prova de que a caçada movida pelo Tribunal de Haia nada tem a ver com justiça. "Plavsic não é uma santa. Durante a guerra ela foi uma ardente advogada das ‘limpezas étnicas’ e ajudou a organizar a tomada de Sarajevo, uma ação que causou a morte de muitos civis e é um dos motivos pelo qual Mr. Karadzic é procurado pelo Tribunal de Haia" (Financial Times, 01/09).

No dia 03 de julho, Plavsic, decretou a dissolução do parlamento onde a maioria é pró-Karadzic, convocou novas eleições legislativas para outubro e reivindicou a prisão do líder sérvio e de seus partidários pelas tropas da OTAN, afirmando que a paupérrima Srpska não merecia qualquer ajuda financeira internacional até que tivesse se livrado dos criminosos perseguidos pelo Tribunal de Haia. Na verdade, ela quer dizer que controla apenas uma parte do Estado na pequena república sérvio-bósnia e se o dinheiro da ajuda internacional não fosse diretamente para as suas mãos, acabaria servindo para alimentar de armas a oposição sérvia à ocupação imperialista.

Poucos dias depois do golpe contra o parlamento, as forças leais à presidenta, ajudadas pelas tropas da OTAN, tomaram de assalto as principais delegacias e outros prédios controlados pelo Partido Democrático Sérvio (SDS) de Karadzic e a estação de rádio e TV estatal de Banja Luka (norte), a SRT, que fazia propaganda anti-ocupação estrangeira comparando os tanques da OTAN com os blindados nazistas.

Embora o parlamento sérvio-bósnio não seja de forma alguma um instrumento das massas contra o imperialismo e o capitalismo, nem deve-se se alimentar qualquer confiança no bando chauvinista de Karadzic na luta antiimperialista, os revolucionários devem tomar o lado militar dos nacionalistas sérvios-bósnios contra o golpe de Plavsic e as caçadas humanas das tropas da ONU e OTAN, porque estas medidas apontam para o recrudescimento de um regime títere dos EUA e para o esmagamento da resistência à ocupação imperialista, o que é um ataque não só à luta das massas oprimidas nos Bálcãs, mas a todo o proletariado mundial.

Revolta Antiimperialista das Multidões Enfurecidas Sérvias

A entrada em cena da OTAN ao lado de Plavsic desencadeou um profundo ódio da população sérvia, massacrada há mais de quatro anos ininterruptos pelas tropas imperialistas. No dia 28 de agosto as massas avançaram para cima das tropas da Sfor atacando-as com paus, pedras, coquetéis molotov , barras de ferro e tudo mais que estivesse a mão. Após ouvir um toque da sirene da rádio de Pale (sob o controle de Karadzic), o sinal convencionado para começar o combate, multidões iradas foram às ruas acertar as contas com os invasores. "Veículos da ONU foram incendiados e soldados saíram feridos no povoado de Celopek. Um oficial da Sfor descreveu a situação como sendo ‘muito tensa (...). Em Brcko, em meio a uma cacofonia de gritos, tiros, bombas de gás lacrimogêneo e pedradas, as tropas da Sfor foram obrigadas a recuar de suas posições. Mais tarde, o contingente inteiro da polícia internacional, conhecida como IPTF, foi retirado da cidade. O número de vítimas não era certo, mas pelo menos dois soldados norte-americanos teriam sido feridos" (Folha de São Paulo, 29/08).

Sem dúvida, o confronto em Brcko impôs uma grande derrota às tropas de ocupação: "os soldados da OTAN tiveram de recuar de suas posições levando consigo 58 funcionários da ONU que também haviam sido cercados pelos manifestantes irados, que gritavam ‘fora’ e usavam suas armas improvisadas, em estilo semelhante ao dos palestinos na Cisjordânia. Vários veículos das forças de paz foram danificados e alguns foram saqueados, um dos soldados americanos feridos foi atingido no olho por uma pedra e teve de ser hospitalizado." (O Estado de São Paulo, 29/08).

Varrer as tropas da Sfor de Brcko foi uma vitória importante na luta pela expulsão do imperialismo, porque esta cidade está justamente na divisa geográfica entre duas cidades centrais do conflito, a primeira é Branja Luka, a capital da RS e primeira cidade ocupada pelos guardas de Plavsic e da OTAN após o golpe de estado e a segunda é Pale, cidade que é o quartel general dos sérvios da Bósnia desde o início da guerra.

"A humilhante situação em que se viu implicado o poderoso contingente estadunidense provocou ontem uma contundente reação da Casa Branca" (El País, 29/08). O enviado especial de Clinton, Robert Gelbard, "disse que os ataques de quinta ‘representam uma agressão à comunidade internacional’ (pseudônimo utilizado para embelezar o imperialismo), disse também que se os sérvios-bósnios continuassem com este comportamento totalitário ‘terão de enfrentar conseqüências mais graves do que podem imaginar’. Gelbard ignorou a linguagem diplomática e chamou os radicais sérvios-bósnios de ‘estúpidos’ por obstruir seu processo de acesso ao Banco Mundial. E chamou-os também de corruptos por causa das acusações segundo as quais exploram negócios rendosos enquanto a população passa fome" (O Estado de São Paulo, 29/08). Nas entrelinhas se percebe que o homem da Casa Branca acusa o bando de Karadzic de ‘estúpido’ não por impedir que as populações sérvias livrem-se de seu estado de miséria, que certamente seria agravado a partir da dependência criada com a ‘ajuda’ do Banco Mundial, mas por não ter aceitado, como a ex-colega do bando, Plavsic, ser corrompido com o dinheiro do Banco Mundial, limitando-se a ganhar dinheiro com o contrabando e o mercado negro.

O co-presidente sérvio da Bósnia, Krajisnik, respondeu que considerava a ameaça de Washington "extremamente perigosa, capaz de provocar uma nova guerra na Bósnia. A comunidade internacional está jogando com os acordos de Dayton. Alguns dirigentes ocidentais querem um novo conflito e acham que os sérvios bósnios não vão reagir. Mas já está soando o alarme da guerra" (idem).

Dois dias depois dos combates de Brcko, "cerca de 300 bósnios de origem sérvia apedrejaram novamente soldados da OTAN. O ataque ocorreu em Udrigovo, perto de Bijeljina. Numa ação paralela, um grupo menor lançou pedras contra um comboio de carros blindados dos EUA, na estrada entre as cidades de Bijeljina e Tuzla" (Folha de São Paulo, 02/09).

Os enfrentamentos destes dias foram "o incidente mais grave desde a entrada em vigor dos acordos de Dayton" ( El País 29/08), o maior levante de massas desde dezembro de 1995. "A frente dos protestos estavam anciões e anciãs" (idem) que viveram num Estado onde todos tinham trabalho (pleno emprego) e acesso à saúde, educação e moradia gratuitas. Agora, aqueles que viveram no Estado operário iugoslavo saem às ruas contra os que lhe tomaram os salários, o emprego, a aposentadoria, proibiram as crianças de ir às escolas, bombardearam seus hospitais e moradias e, agora, querem lhes impor um estado-de-sítio sob ocupação estrangeira.

A demonstração de resistência das massas sérvias tem sido o principal obstáculo a que a OTAN leve adiante a captura de Karadzic. "Existe uma leitura simplista: ‘Detido Karadzic, os problemas se solucionariam’. Os incidentes de Brcko de quinta demonstram que sua captura, além das dificuldades técnicas, terá um prejuízo agravado, a rebelião dos radicais"( El País 29/08). Sabendo disso, o bando de Karadzic que ganhou muito prestígio junto às massas sérvias, dirigindo o enfrentamento contra as tropas de ocupação desde 1993, passaram a ser considerados "não como criminosos de guerra, mas como heróis nacionais" (El País, 18/09). Ao contrário de organizar o conjunto de população sérvia para varrer em definitivo com a invasão imperialista, vem tramando ataques de baixa intensidade, que a exceção dos levantes ocorridos em agosto e setembro, se caracterizam apenas por atentados individuais contra membros das missões estrangeiras, bombas explosivas como as que explodiram na sede do partido socialista (oposição a Karadzic), nos jornais pró-Plavsic e na estação ferroviária de Branja Luka. Enquanto isso, a principal acusação que fazem contra Plavsic é a de ser "vendida ao Ocidente" e de romper com a ordem constitucional dissolvendo o Parlamento, apresentando como saída para a crise não a explusão das tropas imperialistas dos Bálcãs, mas o respeito aos acordos de Dayton e eleições gerais (presidenciais e legislativas) na república sérvia-bósnia.

Apesar dos levantes em Brcko e Celopek, utilizados como medida defensiva diante do avanço de Plavsic e da OTAN, particularmente devido a tomada dos meios de comunicação como as emissoras de rádio e TV de Banja Luka, os falcões (como são conhecidos os nacionalistas sérvios), dirigidos por Karadzic limita-se a agir como outras organizações burguesas e pequeno-burguesas nacionalistas como o IRA, o Hamas, o ETA ou o MRTA, caracterizadas por ações isoladas das massas e pela oposição à tomada do poder pelo proletariado e limitando-se a levantar consígnias burguesas de democratização do Estado (eleições gerais e respeito à Constituição). Desta forma, a luta antiimperialista sob estas direções acaba sendo abortada nas mesas de negociação de "acordos de paz" ou "de desarmamento" com o imperialismo.

O conflito provocou uma cisão imediata no seio das forças armadas da RS que a princípio se comprometeram a não intervir na disputa entre os dois bandos do governo. O comandante da Força Aérea, o do corpo de Krajina e o do corpo de Beijeljina tomaram o lado da presidenta, enquanto o chefe do Estado maior do Exército e outros quatro comandantes dos corpos do Exército negaram-se a cumprir as ordens de Plavsic, aliando-se ao bando de Karadzic

Após serem postos para correr de Brcko as tropas da Sfor preparam-se para retomar a ofensiva. "O Conselho da OTAN, reunido ontem, em sua sede em Bruxelas, autorizou a força de paz a da Bósnia a dar apoio total a Plavsic e a usar ‘todos os recursos necessários, incluindo a força’ contra os meios de divulgação que incitem os sérvios bósnios a atacar as tropas encarregadas de manter a paz nessa nação, ou outras organizações" (OESP, 30/08). Mais uma vez, as populações sérvias podem ter a oportunidade de descobrir o significado da democracia e da paz imperialistas. Há 50 anos eles provaram de sofrimento similar sob as botas do nazismo. Os sérvios, mais do que qualquer outro povo, têm o direito de odiarem a manutenção dos acordos de paz que até agora serviram de justificativa para todas as suas misérias, eles já sofreram bombardeio sobre populações civis inteiras, o fuzilamento de inocentes, a ameaça constante de serem presos só por pertencerem a uma etnia condenada por crimes de guerra, a dissolução do parlamento, um o estado de sítio vigiado por 60 mil soldados estrangeiros, o cerceamento da liberdade de imprensa pela força tudo isso em nome da paz! De fato, os tanques da OTAN em nada ficam a dever aos blindados nazistas.

Milosevic, Entre a Cruz e a Espada

Paralelamente, tanto a ONU quanto os EUA vêm pressionando o presidente Iugoslavo, Milosevic para – nas palavras da Secretária de Estado norte-americana, Madaleine Albraight – "sair de cima do muro" (El País, 28/09) e dissuadir os nacionalistas sérvios-bósnios de levar a frente o confronto com a presidenta, itermediando em favor de Plavsic. Caso contrário, "tal como seu protegido durante a guerra dos Bálcãs, Milosevic poderia ter a mesma sorte que Karadzic" (El País, 27/08).

Milosevic encontra-se entre a cruz e a espada, já fora acusado de traidor mais de uma vez pela população sérvia quando negou-se a defender os sérvios-bósnios dos ataques da OTAN e ao assinar os acordos de Dayton, não quer perder em definitivo o título de principal dirigente de todos os sérvios. Se Plavsic levar a melhor nesta disputa, ele perde o controle sobre a Bósnia. "Todos os fatos estão erosionando a posição de Milosevic. Ele quer ser o que diz como as coisas devem ser feitas, mas com os falcões em dificuldades ele perde esta posição. Com Plavsic no poder (e não só como representantes do SDS de fachada para Karadzic), o Ocidente já não necessita de Milosevic como garantia do cumprimento dos acordos de Dayton pelos sérvios-bósnios" (El País, 28/08).

A perda do controle sobre a situação dos sérvios na Bósnia também tem implicações políticas internas na Sérvia, desmoralizando mais ainda o governo, basta avaliar o resultado do primeiro turno das últimas eleições parlamentares do dia 21 de setembro no país. O Partido Socialista, de Milosevic, embora tenha sido o mais votado, perdeu a maioria absoluta do Parlamento, caindo para 110 parlamentares, 13 a menos do que elegeu em 1993. O grande vencedor político destas eleições foi o Partido Radical, de Volkislav Seselj, que é contrário aos acordos de paz de Dayton e reivindica uma parte da Croácia. A coalizão Zajedno (Unidos) que em janeiro liderou as manifestações pró-ianques contra Milosevic boicotou as eleições. Mas, ainda assim, o pleito contou com a participação de 62% do eleitorado (12% a mais do que o necessário para que fossem válidas).

Apesar de deformadamente e expressando-se de maneira desviada pela ausência de uma organização revolucionária que representasse os verdadeiros interesses da massas sérvias, os resultados eleitorais são uma clara demonstração de que as massas demonstram, pelos meios que têm a mão, o ódio contra a ocupação estrangeira no país. A perda da popularidade pelo governo Milosevic, após ter firmado os acordos de Dayton e a capitalização do descontentamento, não pelas forças apoiadas pelo imperialismo (coalizão Zajedno), mas por um partido burguês radical anti-Dayton é uma demonstração da disposição de resistir aos planos do imperialismo da população oprimida sérvia.

Por outro lado, não fazer o que exigem os EUA também pode custar a cabeça do vacilante Milosevic. "O emissário de Bill Clinton para a Iugoslávia, Robert Gelbard, disse ontem em Belgrado que a Iugoslávia e Slobodam Milosevic enfrentarão um novo embargo (falou de isolamento internacional) se sua política pusesse em perigo os acordos de paz firmados... ele (Gelbard) leva na mala uma mensagem clara para Milosevic: ou colabora com a OTAN e apóia Plavsic ou haverá sanções" (idem)

O Novo Acordo já foi pelos ares

Temendo as desastrosas conseqüências políticas que pudessem lhe trazer um acordo aos moldes do imperialismo antes do primeiro turno das eleições iugoslavas, Milosevic manteve-se "em cima do muro" até quando pode, e só desceu para promover os acordos quando os resultados eleitorais haviam sido apurados, três dias após o pleito iugoslavo. No dia 24 de setembro, Milosevic reuniu-se em Belgrado com Plavsic e Krajisnik. "Ambos os líderes alcançaram um acordo para solucionar a crise, segundo anunciou a agência sérvia Tanjug. O compromisso é a celebração de eleições legislativas (o que desejava Plavsic) em 15 de novembro e presidenciais (o que queria Krajisnik) em 7 de dezembro na República Srpska" (El País, 25/09).

Apesar da capitulação das direções nacionalistas sérvias, o novo acordo já nasceu com seus dias contados, pois ambos os lados preparam-se para passar por cima dos resultados eleitorais se estes não lhes forem favoráveis. A exemplo das últimas eleições municipais bósnias supervisionadas pela ‘comunidade internacional’, as eleições legislativas marcadas para 15 de novembro poderão ser uma grande fraude, onde será jogado todo o peso das tropas de ocupação para que Plavsic obtenha maioria absoluta no parlamento. Antes que a tinta das assinaturas do novo acordo tivesse secado, ele já havia sido rasgado pelo imperialismo. No primeiro dia de outubro, as tropas da Sfor tomaram de assalto quatro retransmissores de TV, expulsaram os diretores responsáveis e puseram no seu lugar homens da confiança das forças de ocupação, tudo isso para combater a "manipulação de informações" (ABC espanhol, 03/10). Cinicamente, o mesmo diário burguês espanhol (mas que poderia ser em qualquer outro país), afirma "sem o controle da televisão e outros meios informativos, os radicais sérvios não poderão enfrentar com êxito os comícios legislativos e presidenciais" (idem). Mais uma vez está comprovado que o significado de ‘liberdade de imprensa’ e ‘eleições democráticas’ para o grande capital são a manipulação de informações’ em favor dos detentores do poder econômico e militar.

"A emissora da TV alemã diz que o serviço secreto do país infiltrou agentes na missão da União Européia na ex-Iugoslávia e teria envidado carregamentos de armas aos muçulmanos" (Folha de São Paulo, 27/2). Mais uma vez está provado que o chamado embargo de armamentos só funciona para os sérvios e que, desde o começo da guerra, as preces das correntes de esquerda, muitas das quais reivindicando o trotskismo (LIT, healistas, LICR) pelo fim do embargo de armas à Bósnia, há muito tempo já estavam sendo atendidas. Para satisfação destes traidores pseudotrotskistas, o imperialismo continua enviando munição, tanques e soldados para afogar em sangue os sérvios da Bósnial. Diante do perigo constante do reinício da guerra, além de alimentar financeiramente as nascentes burguesias muçulmana e croata, o imperialismo tem patrocinado o armamento destes povos que foram utilizados como carne de canhão na Guerra contra os últimos obstáculos a seus planos de colonização total do antigo Estado operário iugoslavo.

É preciso organizar o conjunto das massas sérvias para derrotar Plavsic, a presidenta da RS, fantoche do imperialismo e expulsar as tropas da Sfor, a ONU e OTAN dos Bálcãs. Neste sentido, o levante de setembro foi uma grande demonstração da disposição de luta das massas sérvias em se enfrentar contra o seu principal inimigo e serve de exemplo de que o emprego da ação direta consegue fazer retroceder o mais poderoso dos exércitos. O principal obstáculo no avanço das lutas dos explorados dos Bálcãs, em particular na RS, é a capitulação das direções chauvinistas ao imperialismo, negando-se a travar a luta até a expulsão dos abutres internacionais e entregando a cabeça das massas na mesa de negociação. A cooptação de Plavsic foi apenas uma amostra das forças centrífugas existentes no ninho dos falcões. Na defesa incondicional da população oprimida sérvia, contra o imperialismo e seus aliados (incluindo os que são utilizados como carne de canhão), não podemos descartar atividades de frente única com as direções nacionalistas ligadas a Karadzic e Milosevic, e simultaneamente propagandear para as massas que estas direções burguesas apenas contigencialemente chocam-se com o aparato repressivo da burguesia mundial, podendo capitular a qualquer momento.

A única forma de combinar estas duas tarefas: frente militar com os nacionalistas e independência política para construir uma direção genuinamente revolucionária para as massas, é forjando um autêntico partido trotskistas nos Bálcãs. Um partido internacionalista que lute pela reunificação dos valentes explorados das distintas repúblicas dos Bálcãs, que no passado foram capazes de derrotar os capitalistas, a opressão nazista, os monarquistas para novamente expulsar os abutres do imperialismo mundial rumo a uma nova revolução social e ao socialismo!


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