Canudos: Resistência e Luta Extermínio em nome da acumulação capitalista Artigo extraído do JLO nº 23 (novembro/97) Após 100 anos da destruição de Canudos, um sangrento episódio em que as polícias de vários estados e o Exército da recém instaurada República dizimaram a população desta cidade, estimada em 30.000 habitantes, os camponeses continuam sendo assassinados por bandos armados a serviço dos grandes fazendeiros e pelo braço armado do Estado capitalista, que promovem chacinas como as de Corumbiara (RO) e Eldorado dos Carajás (PA). A permanência da propriedade da terra, concentrada nas mãos de latifundiários em detrimento das condições mínimas de existência da maior parcela da população camponesa, constituída de pequenos proprietários, sem-terra e operários agrícolas, é a causa principal da violência no campo, seja na República Velha, sob o poder das oligarquias rurais, seja hoje, no governo FHC, sob o poder da oligarquia financeira que tem em suas mãos enormes propriedades territoriais. Concentração Fundiária: Centro dos Conflitos no Campo No início do século, "havia em todo o território brasileiro 648.153 propriedades rurais. Destas, cerca de 4% constituíam-se de latifúndios de mais de mil hectares, ocupando, porém, 60% das terras!" (História da Sociedade Brasileira, Fco. Alencar, Lúcia Carpi, Marcus Venícios Ribeiro - 2a. edição). Comparando-se esses dados com os do recadastramento do INCRA realizado em 1992, verifica-se um crescimento exorbitante da concentração de terras no país, onde apenas 1,6% das 3.114.898 propriedades existentes, são latifúndios com mais de 1.000 hectares, controlando 50% das terras (Fonte: INCRA/SNCR - recadastramento 1992, in Atlas Fundiário, 1996)! A violenta repressão e os massacres promovidos por latifundiários e o governo contra os trabalhadores sem-terra tendem a se repetir, com uma maior intensidade, a medida em que se multiplicam as ocupações em todas as regiões do país, e têm os mesmos motivos que levaram à destruição da comunidade dirigida por Antônio Conselheiro. A formação de uma massa de camponeses despossuidos no Brasil teve origem a partir da segunda metade do século passado e está diretamente ligada à "abolição" da escravatura. Ao aproximar-se o fim da escravidão, a propriedade da terra tornou-se uma condição para subjugar o trabalho. Já em 1850, ano em que foi declarado extinto o tráfico negreiro, a Lei de Terras proibia o camponês de tomar posse de terras devolutas e só permitia o acesso à terra mediante compra. A partir de então, um número crescente de camponeses passou a sobreviver, vendendo sua força de trabalho nas chamadas "feiras de trabalhadores", onde os fazendeiros escolhiam os mais fortes para uma pesada jornada de trabalho. Os salários eram extremamente baixos para garantir o lucro dos grandes fazendeiros e o reduzido custo de produção das matérias-primas compradas pelas Companhias estrangeiras, principalmente inglesas. Com a "abolição" da escravatura em 1888, essa massa de trabalhadores sem-terra cresceu ainda mais com a adesão de ex-escravos. Além disso, a opressão dos "coronéis" fazia-se sentir também sobre outros segmentos da população sertaneja, como pequenos proprietários, artesãos, vaqueiros, agregados, etc. O advento da República em nada mudou essa situação. Ao contrário, a Constituição de 1891, ao transferir o controle das terras devolutas para os governos estaduais, permitiu uma maior concentração das terras nas mãos dos grandes proprietários, fortalecendo as bases do seu poder político. A crescente opressão e exploração dos camponeses explica porque eles atenderam ao chamado de Antônio Conselheiro para construir Canudos em 1893. Ao contrário da Igreja que, como uma verdadeira agente dos latifundiários, pregava a submissão, Antônio Conselheiro chamava os camponeses a construírem uma comunidade onde pudessem viver sem a exploração do latifúndio. Propriedade Coletiva: forma Superior de Organização Social Apesar de localizada em uma das regiões mais secas do nordeste, Canudos tornou-se, em apenas quatro anos, a segunda maior cidade da Bahia, ficando atrás apenas de Salvador (primeira capital do país até 1763, sediando o governo colonial durante toda a fase de desenvolvimento da empresa açucareira, quando esta era a principal atividade econômica do país). Este rápido desenvolvimento baseou-se no fato de que, em Canudos, os rebanhos, as terras, as lavouras, além dos produtos do trabalho artesanal eram de propriedade coletiva e os bens produzidos eram divididos entre todos, de acordo com as necessidades. Apenas os objetos de uso, móveis, moradia, eram de propriedade individual. Canudos desenvolveu atividades comerciais com outras cidades, chegando a exportar peles de cabrito e carneiro, inclusive, para a Europa. A maior demonstração de superioridade das formas coletivas de propriedade sobre a propriedade privada está no crescimento excepcional de Canudos que, em apenas quatro anos, desenvolveu uma produção diversificada: na agricultura, cultivando milho, batata, melancia, cana-de-açúcar, entre outros gêneros; na pecuária, com a criação de cavalos, gado vacum, caprinos e ovinos; e na indústria artesanal, fabricando farinha, redes, sal da terra, foices, facas e chuços. Décadas de exploração, humilhações e perseguições dos latifundiários aos trabalhadores do campo, já havia ensinado a estes que as forças repressivas do Estado burguês (polícia, Exército, Justiça etc.), agem sempre em defesa dos interesses da classe dominante. Dessa forma, os canudenses logo compreenderam a necessidade de organizar sua autodefesa através de milícias armadas, sendo fundamental para que não caíssem logo ao primeiro ataque e impusessem duras derrotas às quatro expedições militares, combatendo mais de 12 mil soldados (metade do efetivo do Exército brasileiro), apesar de sua inferioridade em armamentos, diante de um exército controlador de armas sofisticadas para a época. Ameaça ao Latifúndio: Razão do Ódio contra Canudos Mais que uma forma de resistência, Canudos foi a afirmação prática e empírica de que era possível construir uma ordem social sem exploração e de que as massas oprimidas do Sertão desejavam mudanças reais e profundas para extirpar definitivamente de suas vidas a miséria. Tais mudanças implicavam a extinção das relações burguesas de propriedade, portanto, não podiam ser realizadas pelos latifundiários, a Igreja, a burguesia industrial emergente ou qualquer outro segmento da classe dominante, que passou a dirigir um ódio mortal contra Canudos. Este ódio pode ser medido nas palavras de Prudente de Morais, Presidente da República: "em Canudos não ficará pedra sobre pedra, para que não mais possa se reproduzir aquela cidadela maldita". Mesmo não sendo a estratégia dos conselheiristas a tomada do poder e a expansão da organização social de Canudos para o restante do país, o exemplo desta comunidade, que graças à coletivização da economia, cresceu rapidamente, colocando em risco a ‘sagrada’ propriedade privada, poderia influenciar a imensa maioria da população explorada. Por isso, a burguesia não hesitou, um só momento, em exterminá-la. Como justificativa para toda esta fúria, as classes dominantes apresentavam o fanatismo e as supostas tendências monarquistas de Antônio Conselheiro. Porém, o verdadeiro motivo pelo qual queriam sua destruição estava no fato de que a existência de Canudos questionava a propriedade privada, a cobrança de impostos, etc. A burguesia, hoje, não age de maneira diferente. Qualquer movimento que questione a propriedade privada é ferozmente reprimido, como o massacre aos metalúrgicos da CSN em 88, a repressão às greves com ocupação, as chacinas no campo e perseguição aos sem-teto. O mesmo Exército que destruiu Canudos — hoje bem melhor equipado e organizado — está sempre pronto para massacrar qualquer movimento que ameace o fundamento essencial da sociedade burguesa. Os métodos adotados pelos governantes atuais são similares aos da República Velha. A prova disso está nas afirmações de Marco Maciel (PFL), representante das oligarquias e vice-Presidente do governo FHC: "sem superar o episódio de Canudos, a República não se teria consolidado no momento em que o fez e com as características pelas quais se realizou essa consolidação" (FSP, 13/10/97). Dessa forma, justifica não somente a destruição de Canudos, como também os massacres promovidos hoje com o aval do governo federal. É em nome da manutenção da exploração capitalista, da propriedade privada e do latifúndio, ou seja, das mesmas "características pelas quais se realizou a consolidação da República", que FHC investiu R$ 6 milhões em um filme, "A Guerra de Canudos", lançado recentemente para falsear a verdade histórica, mostrando os habitantes daquela comunidade como meros adoradores de Antônio Conselheiro e movidos pelo ódio à República; quando, na verdade, os canudenses lutaram até a morte em defesa da sociedade sem exploração que haviam construído. O motivo pelo qual o governo FHC investiu tanto dinheiro neste filme, longe de apenas querer conquistar a simpatia de alguns intelectuais que se apresentam como defensores da cultura nacional, mas na verdade defendem seus próprios interesses, é evitar que, por ocasião da comemoração de seu centenário, Canudos possa ainda exercer alguma influência e se reproduzir através das ocupações de terras que, neste momento, crescem em todo o país. Para a burguesia, a comemoração do centenário da destruição de Canudos significa alimentar seu velho ódio contra todos aqueles que se insurgem diante de sua dominação. As atrocidades cometidas pelo Exército em Canudos, só encontram similaridade, no século XIX, com os crimes cometidos contra os prisioneiros da Comuna de Paris de 1871, onde 20 mil operários foram executados. Um contemporâneo que assistiu os momentos finais de Canudos relatou: "eu vi e assisti a sacrificar-se todos aqueles miseráveis (...) e com sinceridade o digo: em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros (...) levar-se homens de braços atados para trás como criminosos de lesa-majestade, indefesos e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora o de uma ave e cortar com o assassino ferro o pescoço, deixando a cabeça cair sobre o solo — é o cúmulo do banditismo praticado a sangue-frio (...) Assassinar-se uma mulher pelo simples fato de ser o seu companheiro conivente com o que se dava — é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a uma criancinha (...) é o maior dos barbarismo e dos crimes que o homem pode praticar" (Horcades, Alvim Martins. Descrição de uma viagem a Canudos. Bahia. Tourinho, 1899). Passados cem anos, as ações repressivas do Estado burguês contra os trabalhadores se manifestam, freqüentemente, através de massacres e execuções que, em nível de crueldade e covardia, em nada ficam a dever aos algozes de Canudos. Nos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, ocorridos durante o governo FHC, cerca de 95 pessoas foram mortas e 350 ficaram feridas. Os trabalhadores sem-terra, apesar de completamente dominados, foram sumariamente executados com tiros a queima-roupa na altura do tórax e da cabeça. Dezenas de crianças e mulheres foram mortas e seus corpos escondidos nas matas. Em Corumbiara, o acampamento dos sem-terra foi completamente queimado e a repressão se estendeu aos sobreviventes, que foram confinados durante vários dias depois da chacina. Isto demonstra de forma clara e objetiva não apenas a continuidade, mas o recrudescimento dos métodos de repressão aos trabalhadores do campo pelo Estado burguês, ao menor sinal de insubordinação ao latifúndio. Autodefesa e a Resistência Camponesa A cidade de Canudos, isolada no norte da Bahia, foi capaz de provocar pavor e desespero na burguesia a ponto de fazê-la tirar sua máscara, expondo a sua face sanguinária, também pela sua capacidade de resistência. Essa resistência estava fundamentada no armamento geral da população, através de milícias constituídas antes mesmo dos ataques do governo, como forma de garantir a existência daquela sociedade sem exploradores. Foram essas milícias que, embora tenham sido formadas para autodefesa, por pouco não derrotaram por completo as forças de repressão do Estado burguês. Hoje, mesmo após os sucessivos massacres aos trabalhadores sem-terra, a direção do MST se nega intransigentemente a construir os comitês de autodefesa e, inclusive, impede qualquer ação espontânea nesse sentido, expondo os trabalhadores a novos massacres. Esta conduta é fruto de uma estratégia política que, longe de superar a direção de Canudos quanto à necessidade de lutar pela tomada do poder, resume-se a uma luta estéril por uma reforma agrária de acordo com a Constituição de 1988, ou seja, somente em terras improdutivas e com indenização aos latifundiários. Ao invés de trabalhar uma aliança dos sem-terra com a classe operária para impulsionar as lutas no campo e na cidade, a direção do MST chegou às raias do absurdo da política de conciliação de classes ao apoiar candidatos do PFL, do vice-presidente Marco Maciel, nas eleições de 1996 no Pontal do Paranapanema, uma das regiões de conflitos mais explosivos do país na luta pela terra. Diante desta prova irrefutável de traição, os trabalhadores explorados do campo, e em particular os sem-terra, devem relembrar, neste centenário de Canudos, o seu exemplo de resistência, para impulsionar a luta contra a exploração capitalista e a violenta repressão dos latifundiários e do governo FHC. Ao mesmo tempo devem, através da ocupação de latifúndios produtivos e da criação de comitês de autodefesa, superar a política de suas direções, buscando numa aliança operário-camponesa o caminho da revolução proletária e do socialismo para pôr fim a toda forma de exploração. |
![]() |
![]() |
![]() |