Movimento Negro / 300 Anos da Morte de Zumbi

Lutar contra o racismo é lutar contra o capitalismo

Artigo extraído do JLO nΊ06 (novembro/dezembro/96)

A partir do início da colonização do Brasil (1530), começa, aos poucos, a chegar os primeiros escravos negros, que iriam viabilizar o sucesso da implantação da empresa açucareira, escolhida pelos portugueses como modelo econômico que proporcionaria a colonização do país, além da possibilidade de enriquecer os investidores, devido à existência de grandes mercados consumidores de açúcar na Europa.

Vários fatores contribuíram para a utilização da mão-de-obra escrava negra no Brasil. No início, houve a tentativa de escravizar os índios que se dispuseram à extração do pau-brasil no período anterior, através de uma relação de escambo (troca). A partir de 1570, a resistência dos aborígenes e as epidemias que os golpeavam, reduziram tanto a disponibilidade quanto a rentabilidade da mão-de-obra nativa. Também era inviável a utilização da mão-de-obra branca, devido à sua escassez (a população de Portugal não ultrapassava 1.350.000 pessoas na época) e ao seu elevado custo. Ao contrário, a alta lucratividade que era produzida pelo tráfico negreiro. O fundamental na escravidão negra, portanto, foi o fator econômico e não o étnico.

O tráfico negreiro surge quando da conquista de Ceuta em 1415. É quando Portugal inicia também sua exploração na África, sendo o patrocinador inicial desse longo martírio do povo africano.

A igreja desponta como um fator relevante de apoio à escravidão do negro africano, através da publicação da bula Romanus Pontifex, assinada em 1455 pelo papa Nicolau V, que outorgava poderes de captura dos negros aos navegantes portugueses. Através de toda uma construção ideológica de que o negro não tinha alma, eram seres inferiores, etc. criou-se as condições ideais para a expansão da escravidão e do tráfico negreiro.

Entulhados nos porões dos chamados ‘navios negreiros’, onde eram submetidos aos mais cruéis maus- tratos que a história do período colonial tem conhecimento, os negros de diversas nações africanas, clãs e reinados eram trazidos ao Brasil, sendo comercializados já no cais do porto.

Escravidão e capitalismo

A colonização do Brasil se dá no início da expansão do capitalismo comercial na Europa. A desigualdade do desenvolvimento histórico da humanidade foi claramente exposta: a Idade da Pedra vivida pelos índios chocava-se com o final da Idade do Ferro e início da mecanização em que encontravam-se os invasores portugueses, a produção para o consumo imediato da comunidade indígena contra uma economia monetária e o comércio internacional português.

É o capitalismo comercial que busca o negro na África para vendê-lo como mercadoria visando atingir um lucro imediato, num tempo em que o comércio tornava-se a atividade econômica mais importante da época. E é esse mesmo capitalismo que os escraviza nas lavouras da cana-de-açúcar no Brasil, voltada para o comércio exterior (plantation), visando lucros a médio prazo, com a exploração permanente da força de trabalho escrava à disposição dos senhores, que a adquiria por meio de uma inversão inicial reposta pelo grande excedente criado pela mesma força de trabalho escrava.

O Brasil, dessa forma, ultrapassou algumas etapas históricas. Da organização tribal passa para o capitalismo comercial, servindo aos interesses do emergente capitalismo mercantil de Portugal. Permanecendo, apesar disso, as contradições nesse sistema, devido ao desenvolvimento desigual das sociedades, continuando a existir as tribos, que foram expulsas para o interior, contrastando com a tecnologia moderna dos engenhos de açúcar. Em contrapartida, devido à lei do desenvolvimento desigual e combinado, necessita-se implantar a escravidão, modo de produção que pertencia à infância da sociedades de classes, para o avanço do capitalismo. Isto porque o sistema capitalista do assalariado não poderia ser aplicado, dentre outras coisas, em um país subpovoado, com grandes extensões de terras por ocupar e disponíveis aos grupos que se apoderassem de áreas de mais difícil acesso.

Trotsky na ‘História da Revolução Russa’ escreve: "o desenvolvimento das nações historicamente atrasadas leva necessariamente a uma combinação peculiar de diferentes etapas do desenvolvimento histórico". É o que permite hoje, por exemplo, no Brasil, existir o parque industrial mais desenvolvido da América Latina, em São Paulo, combinado com as precárias ‘queimadas’, forma de preparação da terra para o plantio feito pelos pequenos camponeses, que têm a enxada como principal instrumento de trabalho no campo.

Essa tese relativa ao desenvolvimento brasileiro, gera, até hoje, graves divergências, tendo produzido polêmicas bastante acirradas dos anos 20 até a década de 60, devido à sua importância para o movimento operário insurgente.

Desde os primeiros anos de existência, até a década de 60, o PCB defendia a necessidade de uma revolução ‘democrático-burguesa’, caracterizando o Brasil como uma economia eminentemente feudal. Por meio de uma análise abstrata do modo de produção, levantou a tese de que a revolução brasileira teria um caráter puramente agrário e antiimperialista. Dessa forma, buscou justificar sua linha de alianças com a burguesia nacional, característica esta que permanece até os dias de hoje com o PCdoB (racha do PCB de 1961), que apoiou Collor para o governo de Alagoas em 86, Brizola nas últimas eleições do Rio, etc.; enquanto o PPS (ex-PCB) assumiu a sua face social democrata, tendo até participado diretamente do governo Itamar. A concepção stalinista da revolução por etapas leva o movimento operário a um beco sem saída.

Combatendo a aliança com a burguesia nacional, sócia menor do imperialismo e incapaz de encampar as tarefas democráticas burguesas já realizadas nos países mais desenvolvidos, surgiram os primeiros trotskistas brasileiros que denunciaram a traição do PCB ao movimento operário. Analisando o desenvolvimento desigual, através de uma análise histórica, caracterizaram o Brasil como um país capitalista, impondo-se a necessidade da implementação das teses da Revolução Permanente, pois o problema da reforma agrária e da miséria dos trabalhadores só poderia ser resolvido através de uma revolução proletária, anti-imperialista e anti-capitalista com a implantação da ditadura do proletariado rumo ao socialismo e à sua extensão para o mundo.

RACISMO: Uma Ideologia de Classe

Para justificar a escravidão do negro foi criada toda uma ideologia pela classe dominante, que desviou o problema da escravidão de uma justificativa meramente econômica e buscou apresentá-lo com a fundamentação da inferioridade da raça negra, além de associar tudo o que fosse de ruim ao negro.

Nesse processo, já dissemos, a igreja teve um papel fundamental, tanto para justificar a escravidão para a sociedade, como para pregar um catecismo de paciência, resignação e obediência aos escravos. Alguns chegavam a dizer que o negro era o filho do ‘maldito’ e pertenciam a uma raça de condenados cuja salvação estava em servir ao branco, com paciência e devoção! Nessa época, a confissão aparecia como o melhor antídoto contra as insurreições. O racismo procura de todas as formas descaracterizar o povo negro na sociedade colonial: negação da história desse povo, suas culturas, religiões, enfim, a negação do seu próprio ser social. Os negros eram considerados como ‘peças da África’ e eram comercializados por metro e às vezes também por quilo, sofrendo um total desrespeito da sua dignidade humana. Uma ‘peça da África’ no geral era de 1,75 metro de negro. Eram vistos como a objetivação de um capital, um animal humano, um objeto, um mero instrumento de produção.

 

A Resistência Negra

Ao chegar no Brasil, vindo de diversas nações africanas, desconhecendo a língua, os costumes, a terra em que chegava, tendo passado pelas piores torturas nos ‘navios negreiros’, os negros não esboçavam de imediato uma reação, mas logo que passavam a conhecer o local e a manter contato com os demais negros, demonstravam uma grande resistência à escravidão.

No início, essa resistência expressava-se através de revoltas individuais que tornaram-se cotidianas durante todo o sistema escravista, como a sabotagem, atrasos intencionais, roubos, a música, os cultos africanos, culminando com o ‘banzo’, os infanticídios, os suicídios e envenenamentos. Depois, vieram as fugas e com elas a criação de quilombos que espalharam-se por todo o país.

Os quilombos surgiram não apenas como forma de luta contra o sistema escravista, mas sim como uma proposta de uma nova sociedade, onde não existiam as divisões de classe, nem se absolutizava o poder. Uma sociedade anti-escravista e anti-latifundiária onde a todos os quilombolas eram dados direitos e deveres comuns de produzir e adquirir os bens que eram colocados à disposição de todos para a realização plena dos membros do quilombo. Não abrigava apenas negros, mas também brancos marginalizados da sociedade, mestiços e alguns índios. Destacando-se, dentre outros, o Quilombo dos Palmares, considerado o maior (350 Km no sentido norte-sul) e o que sobreviveu por mais tempo aos ataques da repressão.

Formado no final do séc. XVI por negros rebelados de engenhos no sul da Capitania de Pernambuco que escondem-se na serra da Barriga, o Quilombo dos Palmares foi, segundo Décio Freitas, autor do livro ‘Palmares- A Guerra dos Escravos’: "um dos mais importantes problemas da colonização portuguesa do século 17. Do ponto de vista bélico, foi o mais importante. Eles empregaram mais força contra Palmares do que na guerra contra os holandeses" (FSP, 12/11/95).

Em 1678, após vários confrontos, Ganga-Zumba, o primeiro grande chefe de Palmares, pressionado com a prisão de dois filhos em 1677, firmou um acordo de paz com o governador de Pernambuco que concedia a liberdade só para os nascidos em Palmares, a deposição de armas em troca de terra e da entrega de negros fugitivos que fossem abrigar-se nestas terras.

Zumbi torna-se o líder da resistência ao acordo. Ganga-Zumba e seus homens abandonam o quilombo. Os que ficam, sob o comando de Zumbi, desenvolvem um forte esquema militar e continuam a resistência até o fim de sua vida em 20 de novembro de 1695, mais de um ano depois da destruição do Quilombo dos Palmares por expedição liderada por Domingos Jorge Velho em fevereiro de 1694, da qual conseguiu escapar. Foi denunciado por Antônio Soares, homem de sua confiança que foi capturado e torturado. Sendo-lhe prometido a liberdade, conduziu 15 bandeirantes paulistas para onde Zumbi se encontrava, ferindo-o mortalmente.

Após a morte, sua cabeça é decepada, tratada em sal fino e enviada a Recife, onde fica exposta em praça pública para servir de exemplo aos negros que quisessem fugir e também para acabar com o mito popular de que Zumbi era imortal. No entanto, Zumbi permanece vivo, e sua luta para manter livre a sociedade do Quilombo dos Palmares é um exemplo para todos os trabalhadores.

As revoltas dos negros continuarão nos sécs. XVIII e XIX . Em Salvador, Bahia, no ano de 1835, ocorreu uma importante rebelião urbana que culminou com uma verdadeira guerra entre afro-brasileiros muçulmanos, os chamados malês, e as autoridades baianas da época, conhecida como ‘Revolta dos Malês’. Foi reprimida duramente, sendo os negros executados ou deportados para a África.

O Negro hoje após sua 'Libertação'

A lei Áurea, de 13 de maio de 1888, declara extinta a escravidão no Brasil, mantendo a terra nas mãos dos grandes proprietários, que se organizaram para evitar que fosse doada aos negros, pois, se mantivessem o monopólio da propriedade da terra, teriam a mão-de-obra assalariada barata face à inexistência para o escravo de uma opção que não fosse vender sua força de trabalho aos antigos senhores.

No sudeste, os fazendeiros já dispunham de um sistema de imigração protegido e estimulado pelo Estado em que a senzala era substituída pela colônia. Entre 1884 e 1933, chegaram ao Brasil 1,4 milhão de italianos, 1,1 milhãos de portugueses, 557 mil espanhóis, além de alemães, japoneses,etc.

A libertação dos escravos não foi uma dádiva de ninguém, mas uma exigência do sistema, devido ao esgotamento do regime escravista ( o Brasil foi o último país a libertar seus escravos na América), a necessidade do enfraquecimento da produção do açúcar brasileiro que competia com o açúcar do imperialismo inglês produzido nas Antilhas (o que gerou o fim do tráfico), além do medo constante de uma revolução comparável a do Haiti (1792). Entretanto, o sistema do trabalho assalariado só começaria a ganhar importância nas primeiras décadas do séc. XX.

A regra geral foi a desintegração do negro na sociedade, não tendo condições de concorrer com o imigrante melhor qualificado tecnicamente. A maioria negra deslocou-se para as cidades, onde os aguardavam o desemprego e uma vida marginal.

Hoje, "dados estatísticos comprovam que os ramos de atividades agrícolas, das indústrias da construção civil e prestação de serviços absorvem cerca de 68% de negros e mulatos, contra 32% de brancos; 54% dos trabalhadores negros recebem em média até 1 salário mínimo, 16% recebem de 2 a 5 salários mínimos. Quanto à mulher negra, chega a receber até 50% dos vencimentos da mulher branca, além de exercerem, em sua maioria, funções de trabalhadora doméstica" (IBGE/88). A mulher negra deixou as obrigações das fazendas e os caprichos dos senhores para servir aos caprichos da ‘patroa’.

A mesma mão do capitalismo que aprisionou o negro na África e o escravizou no Brasil, joga-o nas favelas e cortiços das cidades, explorando-o nas indústrias, utilizando-o como exército de reserva para pagar menores salários. O que parecia ser um problema transitório, de mera ‘adaptação à liberdade’, demonstra ser um problema estrutural, permanecendo assim, o preconceito racial.

A evolução capitalista aperfeiçoa as teorias racistas para explicar o fracasso do sistema em proporcionar empregos para todos e condições de vida adequadas. A pobreza do negro, conseqüência da incapacidade do capitalismo de absorção da sua força de trabalho assalariada, faz com que aspectos inerentes às condições subumanas de vida sejam interpretados como devido à raça.

Por isso, o preconceito racial permanece até hoje, apesar da grande miscigenação ocorrida no Brasil, onde estudos realizados por cálculos de freqüências gênicas demonstraram que a população do Nordeste e de parte do Sudeste já atingiu 97% de panmixia, ou seja, de mistura total.

Mesmo assim, o racismo é uma realidade cotidiana. Fica fácil, então, compreender que o problema do negro no Brasil não é simplesmente étnico. A raiz do problema é o capitalismo que marginaliza e explora a sua força de trabalho, fortalecendo o racismo.

Poucos são os negros que conseguiram acumular capital no país; estes se ‘aculturaram’ e adotam a ideologia da classe dominante, inclusive, com preconceitos contra sua própria raça. Apesar disso, as atuais direções do movimento negro, considerando a questão étnica como principal fator de discriminação dos negros, pregam a unidade de todos os negros (inclusive os burgueses) contra o racismo.

A Marcha do Dia 20/11

No dia 20 de novembro foram realizadas manifestações no país, sendo organizada uma marcha à Brasília convocada por várias entidades, que vão do movimento negro organizado até as centrais sindicais pelegas (Força Sindical, CGT) e a igreja católica! Fizeram questão de ainda fazer um chamado ainda mais amplo a ‘todos os democratas’ para participarem da marcha (Jornal da Marcha - out/95), desejando, inclusive, a presença de Pelé; este, convocado por Lula (PT).

A marcha, como era de se esperar, transformou-se numa grande festa, com direito a um show de Mílton Nascimento e Olodum, mas sem iniciativas de luta, desnudando a perspectiva burguesa a qual vem sendo atrelado o movimento negro, devido à política de suas direções. Impressiona a participação, com destaque, da igreja católica, principal apoio dos portugueses para justificar ideologicamente a escravidão dos negros, e o convite ao ‘democrata’ Pelé, o mesmo que defendeu a ditadura, dizendo que brasileiro não sabia votar!

Pelé não compareceu. Preferiu fazer honras a FHC em Alagoas, onde Zumbi foi condecorado como herói nacional. Junto com ele, a ilustre presença de... Benedita da Silva do PT!

Procurando alianças com estes setores, a direção do movimento negro quer desviá-lo do problema essencial, econômico e social, e colocá-lo apenas como uma questão racial. Para Hélio Santos "a marcha à Brasília personifica o início da reconstrução da cidadania que Palmares promoveu" (Jornal da Marcha, out/95). A solução, portanto, seria ampliar um pouco mais a capacidade de participação do negro no atual sistema.

A redução de Palmares a uma mera ‘reconstrução da cidadania’ é uma aberração completa. O quilombo jamais pretendeu a maior participação, a ‘cidadania’ dos negros na sociedade colonial portuguesa, era sim proposta de uma nova sociedade onde a todos os quilombolas eram dados direitos e deveres comuns de produzir e adquirir os bens postos à disposição de todos.

No sistema capitalista, não podemos alcançar o pleno emprego e a socialização dos meios de produção. Ao contrário, só mais e mais exploração! Não será, portanto, com a ‘reconstrução da cidadania’ neste sistema, que mudaremos a discriminação sofrida pelo negro em nossa sociedade.

Hoje, não se pode falar de libertação dos negros sem vinculá-la à luta de classes e à necessidade de emancipação do proletariado. A consciência meramente étnica é uma falsa consciência e o preconceito racial, uma ideologia da classe dominante. Para proporcionar a real libertação dos negros de sua secular exploração e de todo tipo de preconceito é necessário a destruição do sistema que o escravizou, humilhando-o e explorando-o até hoje: o capitalismo.

Mas essa luta não é apenas dos negros. O objetivo não é somente a libertação de uma raça, mas de todo o proletariado. Neste momento, em que relembramos os 300 anos da morte de Zumbi, seguindo a sua luta, o povo negro explorado e marginalizado deve ultrapassar suas atuais direções, chamar os operários e camponeses brancos, amarelos, mestiços, índios e demais raças a construírem uma perspectiva única de classe, para destruir a raiz de sua opressão, o capitalismo, através da revolução proletária, rumo à construção do socialismo, onde a igualdade econômica e social proporcionará uma vida plena e o fim do preconceito contra todas as raças.


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