Wilhelm Reich,

extrato do prólogo à primeira ediçom de

Análise do Carácter (1949)

 

O carácter humano e a sua transformaçom histórica

 

 

[ I ]

 

  Por umha série de motivos, um deles o tempo, nom puidem satisfacer o desejo de muitos dos meus colegas, e escrever um extenso livro sobre técnica psicoanalítica. A tarefa que aquí [nesta obra] me tenho imposto é apresentar os princípios técnicos tal e como resultam da análise do carácter(1). A técnica analítica nom pode apreender-se nos livros, de todos os jeitos, pois na prática as cousas som tanto mais complexas; o preciso é um minucioso estudo dos casos em seminários e em análises de controlo.

  É provável que se formule umha objecçom que precisa de abundante discussom. É a seguinte: Nom significa esta publicaçom, como tal, umha sobrevaloraçom tremenda e unilateral da psicoterápia e a caracterologia(2) individuais? Numha cidade como Berlím existem milhons de seres neuróticamente arruinados enquanto às suas estruturas psíquicas, a sua capacidade de trabalhar e goçar da vida; cada hora do dia, a educaçom familiar e as condiçons sociais criam milhares de novas neuroses(3). Nestas circunstáncias, tem algum sentido publicar um livro que discute a técnica analítica individual, a estrutura e dinámica do carácter, e cousas semelhantes?  E tanto mais quanto que nom pode dar directivas úteis para umha terápia colectiva das neuroses, para um tratamento breve e seguro. Por muito tempo impressionou-me a aparente validez desta objeçom. Finalmente, houvem de admitir que tal posiçom tem em conta só o imediato e, em última instáncia, é ainda pior que a actual preocupaçom exclusiva por questons de psicoterápia individual. Pode resultar paradóxico, mas é certo: foi precisamente o conhecimento da posiçom socialmente desesperada da psicoterápia individual, tal corno xurde da produçom social em massa de neuroses, o que conduziu a umha dedicaçom ainda mais intensa aos problemas da psicoterápia individual. Tenho tentado demonstrar que as neuroses som um resultado da educaçom patriarcal, autoritária, coa sua supressom sexual, e que o verdadeiro problema está na prevençom das neuroses. No nosso sistema social actual, faltam todos os requisitos prévios para um programa prático de prevençom; primeiro haverám de ser criados meiante umha revoluçom básica nas instituiçons e ideologias sociais, cámbio que dependerá do resultado das luitas políticas do nosso século. Vai implícito que nom é possível prevençom algumha das neuroses, a menos de contar para ela cum alicerce teórico; vale dizer, o requisito prévio mais importante é o estudo dos factores dinámicos e económicos da estrutura humana. Como se relaciona isto coa técnica da terápia individual?  A fim de estudar a estrutura humana co olhar em previr as neuroses, deve melhorar-se a nossa técnica analítica. O nosso trabalho demonstrará por que o estádio anterior do conhecimento técnico foi insuficiente para essa tarefa. O primeiro prerrequisito para umha futura prevençom das neuroses é contar cumha teoria da técnica e a terápia, baseada nos processos dinámicos e económicos que tenhem lugar no aparelho psíquico. Em primeiro lugar, necessitamos de terapeutas que saibam que é o que lhes permite modificar estruturas, ou por que fracassam nesta labor. Se tratamos de combater umha praga em qualquer outro ramo da medicina, examinaremos os casos típicos da doença cos melhores métodos possíveis, a fim de poder sinalar o seu caminho ao epidemiológo. Nom nos concentramos na técnica individual porque sobreestimemos a importáncia da terápia individual, senom porque só umha boa técnica pode subministrar-nos os conhecimentos necessários para o objectivo mais amplo de compreender e modificar a estrutura.

 

[ II ]

 

  Deve considerar-se aquí outro aspecto das nossas investigaçons clínicas. A diferência doutros ramos da ciência médica, nom tratamos com bactérias ou tumores, senom com reacçons humanas e doenças psíquicas. Ainda que derivada da medicina, a nossa ciência tem ido muito além. Se como se dixo, o home fai a sua própria história, dependendo de certas condiçons económicas; se o conceito materialista da história há de partir da premissa básica da sociologia, a organizaçom natural e psíquica do home, resulta claro que a nossa investigaçom adquirirá em certo ponto umha importáncia sociológica decisiva. A força produtiva mais importante, a faculdade productiva, a capacidade de trabalho, depende da estrutura psíquica. Nem o chamado "factor subjectivo" da história, nem a faculdade produtiva, a capacidade de trabalho, podem conceber-se sem umha psicologia científico-natural. Isto pressupóm o rejeitamento desses conceitos psicoanalíticos conforme aos quais a cultura e a história da sociedade humana explicam-se polos instintos. Deve apreçar-se o facto de que primeiro as necessidades humanas devem ser influidas e modificadas polas condiçons sociais, antes de que os impulsos e necessidades alteradas comecem a obrar como factores históricos. Os melhores caracterólogos da actualidade tratam de compreender o mundo partindo de "valores" e do "carácter", em lugar de tratar de compreender, à inversa, o carácter e a adopçom de valores definidos, partindo dos processos sociais.

  Em relaçom coa funçom sociológica da formaçom do carácter, devemos estudar o facto de que determinadas ordes sociais correspondem a certas estruturas humanas médias, ou bem -para dize-lo doutra maneira- que toda orde social cria aquelas formas caracterológicas que necessita para a sua preservaçom. Na sociedade de classes, a classe dominante assegura a sua posiçom com ajuda da educaçom e a instituiçom da família, fazendo das suas próprias ideologias as ideologias reitoras de todos os membros da sociedade. Mas nom se trata simplesmente de impôr aos membros da sociedade ideologias, atitudes e conceitos. Mais bem, trata-se dum processo de profundos alcances em cada nova geraçom, da formaçom dumha estrutura psíquica que corresponda à orde social existente, em todos os estratos da populaçom. A psicologia e caracterologia científico-natural possue, pois, umha tarefa claramente definida: deve descobrer os meios e mecanismos, cos quais a existência social transforma-se em estrutura psíquica e, com ela, em ideologia. Deve-se distinguir entre a produçom social de ideologias e a sua reproduçom nos membros da sociedade. Estudar o primeiro processo é tarefa da sociologia e a economia; estudar o segundo da caracterologia psicoanalítica. A caracterologia tem que estudar os efeitos da situaçom económica imediata (alimentos, vivenda, vestido, processos produtivos), assí como os efeitos da chamada superestructura social, isto é, da moral, as leis e instituiçons, sobre o aparelho dos instintos; deve definir, de forma tam completa como for possível, os numerosos elos intermeios entre "base material" e "superestrutura ideológica". Nom pode resultar indiferente à sociologia a eficacia com que a psicologia cumpra com este trabalho pois, em primeiro lugar, o home é o objeto das suas necessidades e do sistema social que regula a gratificaçom das mesmas dum modo ou doutro. Mas, ao mesmo tempo, é sujeito da história e do processo social que "el mesmo fai", embora nom de todo como quixer, senom submetido a certas condiçons económicas e culturais que determinam o conteudo e o efeito da acçom humana.

 

[ III ]

 

  Desde que a sociedade se escindiu nos possuidores dos meios de produçom e os possuidores da mercadoria força de trabalho, toda orde social tem sido establecida polos primeiros, passando por alto ou contra a vontade dos segundos. Posto que esta orde forma a estrutura psíquica de todos os membros da sociedade, se reproduz na gente. Dado que isto fai-se utilizando e alterando o aparelho instintivo, tamém chega a ancorar-se efetivamente no povo. O primeiro e mais importante lugar de reproduçom da orde social é a família patriarcal; esta cria nos nenos umha estrutura de carácter que lhes fai susceptíveis às influências posteriores dumha orde autoritária. O papel desempenhado pola educaçom sexual dentro da totalidade do sistema educativo mostra que se trata principalmente de interesses e energias libidinais, mediante os quais tem lugar a ancorage da orde social autoritária. As estruturas de carácter das persoas pertencentes a umha determinada época ou orde social nom som, pois, somentes reflexos desta orde: muito mais importante ainda, representam a ancorage desta orde. A investigaçom do cámbio na moral sexual coa transiçom do matriarcado ao patriarcado (cf. minha obra A irrupçom da moral sexual) mostra que esta ancorage meiante a adaptaçom da estrutura de carácter à nova orde social, constitue a natureza conservadora da chamada "tradiçom".

  Esta ancorage caracterológica da orde social explica a toleráncia dos oprimidos ante o domínio dumha classe superior, toleráncia que algumhas das vezes chega até a afirmaçom do seu próprio submetimento. Isto resulta muito mais patente com respeito à supressom da sexualidade que com respeito à gratificaçom de necessidades domésticas e culturais. Contudo, a ancorage dumha orde social que frustra em medida considerável a gratificaçom de necessidades, vai paralela ao desenvolvimento de factores psíquicos que tendem a minar essa anclage caracterológica.  Gradualmente, co desenvolvimento do processo social, xurde umha discrepáncia en contínuo aumento entre a renúncia obrigada e a tensom libidinal incrementada; esta discrepáncia socava a "tradiçom" e constitue o núcleo psicológico de atitudes que ameaçam a ancorage.

  O elemento conservador presente na estrutura do carácter da gente de hoje nom pode fazer-se equivaler ao que se denomina "super-eu". É certo que as inibiçons morais da persoa derivam de determinadas proibiçons da sociedade, representada polos pais. Mas incluso os primeiros cámbios do eu e dos instintos, que temhem lugar com ocasiom das mais cedas frustraçons e identificaçons, muito antes da formaçom dum super-eu, estám, em última análise, determinadas pola estrutura económica da sociedade; som já as primeiras reproduçons e ancorages do sistema social, e determinam as primeiras contradiçons.  (...)

  O modo no que a formaçom do carácter depende da situaçom histórico-económica, na qual tem lugar, revela-se coa máxima claridade nos cámbios produzidos nos membros de sociedades primitivas quando recebem influências económicas e culturais estranas ou quando, por motivos intrínsecos, começam a desenvolver umha nova orde social. Os trabalhos de Malinowski amossam que se producem rápidamente cámbios de carácter quando se modifica a estrutura social. Este autor encontrou, por exemplo, que os habitantes das ilhas Amphlett eram suspicaces, tímidos e hostís, mentres os das vicinhas ilhas Trobiand eram singelos, naturais e abertos. Os primeiros tenhem já umha orde patriarcal, cumha moral familiar e sexual estrita, mentres que os segundos goçam ainda da maior parte das liberdades do matriarcado. Estes factos confirmam o descubrimento clínico(4) de que a estrutura económico-social da sociedade influe sobre a formaçom do carácter, nom directamente senom dumha maneira indirecta mui complexa: a estrutura económico-social da sociedade cria determinadas formas familiares; estas, nom obstante, nom só pressuponhem certas formas de vida sexual senom tamém as producem meiante umha definida influência sobre a vida instintiva das crianças e adolescentes, o que da como resultado diferentes atitudes e modos de reacçom. A estrutura de carácter é, pois, a cristalizaçom do processo sociológico dumha determinada época. As ideologias dumha sociedade poden chegar a ter poder material só a condiçom de que alterem efectivamente as estruturas de carácter.

  A investigaçom desta estrutura reviste, por conseguinte, algo mais que um mero interesse clínico; conduz à questom de por que as ideologias cámbian com tanta maior lentitude que a base económico-social; por que o home -por regra geral- está mui atrasado respeito de aquelo que el cria e que devera e poderia cambia-lo. O motivo é que a estrutura de carácter se adquire na ceda infáncia e sofre poucas modificaçons. A situaçom económico-social que a criou modifica-se, porém, rápidamente, a medida que se desenvolvem as forças produtivas; umha vez que tem mudado, formula demandas diferentes e precisa de diferentes modos de adaptaçom. Tamém cria, é certo, novas atitudes e modos de reacçom; estas, ainda que se infiltram entre as antigas, nom as reempraçam. As duas atitudes, correspondentes como o som a diferentes situaçons sociológicas, entram agora em conflito.  Assí, por exemplo, a mulher educada na família de 1900 desenvolveu um modo de reacçom correspondente à situaçom económico-social de 1900; em 1925, contudo, a situaçom tinha mudado de tal jeito, como resultado dos cámbios nas modalidades produtivas, que a mulher, apesar dumha adaptaçom superficial, encontra-se presa das mais severas contradiçons. O seu carácter require, por exemplo, umha vida sexual estritamente monógama, e no entanto a monogamia compulsiva viu socavados os seus alicerçes, tanto social como ideológicamente. Do ponto de vista intelectual, a mulher já nom pode exigir a monogamia, nem a si própria nem ao seu marido; mas do ponto de vista estrutural afronta um conflito coas novas condiçons e coas exigências do seu próprio intelecto.

  Problemas análogos resultam evidentes nas dificultades com que tropeça a Rússia Soviética nas tentativas de transformar a agricultura individual em agricultura colectivista. As dificultades derivam nom só de circunstáncias económicas, senom tamém da estrutura do labrego russo, adquirida durante o zarismo e o período da agricultura individualista. Os informes com que se conta amossam o papel da substituiçom da família pola granja colectiva e, em particular, os cambios na vida sexual. As velhas estruturas nom só estám atrasadas respeito dos novos desenvolvimentos; mui a miúdo os resistem vigorosamente. Se a velha ideologia, correspondente a umha situaçom sociológica anterior, nom estiver ancorada na estrutura do carácter como um modo de reacçom crónico e automático, com ajuda da energia libidinal, a adaptaçom aos cámbios económicos seria relativamente fácil. Vai implícito em todo isto que um conhecimento minucioso dos mecanismos que relacionam situaçom económica, vida instintiva, formaçom do carácter e ideologia, conduciria a numerosas medidas práticas, particularmente na educaçom, possivelmente tamém na psicologia colectiva prática.

 Todas estas cousas esperam ser desenvolvidas. A ciência psicoanalítica nom pode, nom obstante, esperar reconhecimento prático e teórico a escala social, a menos que domine os campos nos quais pode demonstrar o seu valor e onde pode mostrar que já nom deseja permanecer alonjada dos acontecimentos históricos decisivos do nosso século. 

 

 



 

(1) Carácter: O carácter é a estrutura típica dum indivíduo, a sua maneira fixa de actuar e reaccionar. O conceito reichiano do carácter é funcional e biológico, e a sua análise consiste numha terápia psicoanalítica (aquí "análise" do carácter tem um sentido teorico-prático, como em "psicoanálise").

 

(2) Caracteriologia: Análise do carácter ou conjunto das propriedades funcionais do mesmo. O "caracteriólogo" seria o analista do carácter.

 

(3) Umha definiçom sintética da neurose poderia ser: um conflito entre o "eu" e o conjunto das energias e tendencias inconscientes do individuo, o "isso". As conseqüências deste conflito manifestam-se como alteraçons nervosas que perturbam profundamente a psique e impidem a adaptaçom social e a capacidade realizadora do indivíduo.

 

(4) Der Einbruch der Sexualmoral (A irrupçom da moral sexual), 1932, e Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse (Materialismo dialéctico e psicoanálise), 1929

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