O imprevisto na história

 

Revolução e contra-revolução em Portugal*

 

Charles Reeve

 

 

  Desde as primeiras horas, os militares que organizaram e levaram a bom termo o golpe contra o antigo regime foram levados pelo desenrolar dos acontecimentos. Sob a pressão do movimento social foram forçados a inflectir os seus projectos iniciais em duas questões políticas essenciais: por um lado, a libertação dos presos políticos e neutralizar as forças repressivas especializadas, por outro, a resolução da questão colonial. Na ideia dos chefes "putschistas", seria apenas necessário libertar os «políticos» das «organizações responsáveis», com quem se podia contar para voltar a pôr o Estado em funcionamento. A pressão popular obriga-os a libertar todos os presos, até os da extrema esquerda [1]. No que se refere à polícia política, a PIDE, os militares tinham de deixar a sua estrutura intacta, sobretudo nas colónias, onde desempenhava um papel essencial na guerra e no controlo das populações. Neste aspecto também não contaram com a raiva do povo contra estes esbirros fascistas, razão pela qual pouco faltou para que dela não surgisse um massacre, sendo o exército obrigado a protegê-los, prendendo-os. Na loucura, o corpo de polícia especializado na repressão de rua, foi igualmente dissolvido. Enfim, a exigência de paragem no envio de novas tropas para África e a vinda imediata do contingente lá existente precipitam a procura de uma solução política para a questão colonial.

 

  Desde os primeiros dias, sucedem-se as manifestações a exigir o fim da guerra, motins impedem o embarque de tropas. Em África, os soldados revoltam-se, depõem as armas e exigem voltar para Portugal. No início de Junho de 1974, os dirigentes do partido comunista explicam que «o fim da guerra não será fácil». Mas, um mês depois, os chefes militares falam já da necessidade de transferir o poder para as organizações nacionalistas africanas que conduzem a luta armada nas colónias. O que será feito, um ano mais tarde. No espaço de pouco tempo, a mobilização popular contra a guerra impõe o fim do colonialismo, o que permanecerá um facto histórico marcante, irreversível, da «revolução dos cravos». A solução encontrada à pressa pelos políticos e pelo exército para o fim da guerra, as concessões feitas às organizações nacionalistas envolvidas na guerra de guerrilha, mas mal preparadas para assumir o novo poder do Estado pós-colonial foram fruto da aceleração da história pela intervenção do povo.

 

 

Quando a esquerda defende o «interesse geral» contra as greves

 

  Passados os primeiros dias de festa popular nas ruas, a agitação desloca-se para os locais de trabalho, as fábricas, as administrações, os bancos, etc. O fim do antigo regime significa, antes de mais, a possibilidade de reunião e de livre discussão. Numa palavra, o fim do medo. Como consequência da natureza totalitária do regime, os trabalhadores assimilaram o autoritarismo fascista à arrogância patronal, à dureza das relações de trabalho e aos maus tratos dos assalariados.

 

  O desaparecimento do medo conduziu imediatamente a uma contestação política da hierarquia nas empresas. As primeiras assembleias organizam-se e tentam-se as primeiras ocupações. Inquieta, a Junta Militar condena as greves e as reuniões, os ataques contra a hierarquia. Mas, uma vez mais, as ordens dos militares são ignoradas. Ao longo dos primeiros meses (Maio a Julho de 1974) o movimento vai alastrando até às concentrações industriais. Reclamam-se aumentos de salários, férias pagas, redução de horários de trabalho e o fim do trabalho à peça. Exige-se a expulsão dos espiões, dos chefezinhos, dos chefes de pessoal, muitas vezes associados à antiga polícia política. Por vezes, as reivindicações são pouco precisas e negociáveis, sinal de que qualquer coisa de profundo estava para nascer: um desejo de mudar a vida.

 

  A agitação enche as ruas e nos bairros generaliza-se a ocupação de casas vazias, favorecida pela ausência da polícia e pela hesitação dos militares, neutralizados pelo entusiasmo popular. A burguesia tem medo. Num primeiro tempo, cola-se ao poder militar e ao primeiro governo provisório - com participação comunista e socialista [2] - que faz as primeiras concessões, instituui o Salário Mínimo. Estas medidas, ainda que só em parte, respondam às reivindicações e acalmam a situação. Mas os patrões começam a despedir e a fechar fábricas; outros, ligados ao antigo regime, fogem.

 

  Em Julho de 1974 emerge um novo acesso de febre. As greves contra os despedimentos, são mais reivindicativas e mais militantes; nos correios, na indústria automóvel, nos estaleiros navais, na função pública, nos transportes e na imprensa. Nas primeiras greves, os militares intervinham como mediadores, estavam presentes como aliados dos trabalhadores face aos patrões. Tentavam amortecer os conflitos. A greve dos correios, em Julho de 1974, e sobretudo a greve dos técnicos de manutenção da companhia aérea TAP em Setembro de 1974, marcam um virar das relações entre os trabalhadores, os militares e a esquerda. O partido comunista lança uma campanha de calúnias, organiza manifestações de rua contra as greves.

 

  Pela primeira vez após o 25 de Abril, os militares intervêm de forma repressiva nas empresas. À sua custa, os grevistas descobrem então que há limites que não podem ultrapassar. A mensagem é clara: é preciso ficar dentro dos limites do possível. E o possível é a reprodução do sistema de exploração num quadro democrático. Tentar ir para além disso é confrontar-se com a repressão. Em Junho, o exército democrático dispara sobre os detidos das prisões de Lisboa que se amotinaram para exigir uma amnistia alargada e, alguns dias mais tarde, esse exército coloca-se abertamente ao lado do Estado e dos patrões. A companhia aérea TAP é «militarizada» e os trabalhadores submetidos ao regulamento da disciplina militar. A hierarquia militar mostra os dentes. Os «cabeçilhas» são presos e interrogados, as fotos das manifestações são apanhadas para fins de identificação e o patrulhamento policial dos bairros de periferia recomeça; os soldados que recusem as ordens são presos. O partido comunista apoia: «Em nenhum país, mesmo os da velha democracia, se pode permitir apelos abertos à deserção e à agitação no seio do exército» [3]. Por sua vez, o partido comunista mostra-se decidido a opor-se ás greves em nome da táctica política da «União Povo Movimento das Forças Armadas» e do interesse nacional: «Nós vivemos em regime capitalista e não em regime socialista. As empresas têm proprietários. Não cabe aos trabalhadores decidir quem deve ou não trabalhar nas empresas» [4].

 

  Em Agosto de 1974 a lei da greve é votada, reconhece-se o direito à greve, limitando contudo a sua aplicação, interditando em particular as greves políticas. O que tem alguma ironia numa sociedade paralisada há meses por greves políticas selvagens... Em simultâneo, uma feroz campanha anti-greve é lançada pelos comunistas: «Não à anarquia económica», «Não à greve pela greve», «Não às greves irresponsáveis». Cunhal repete incansavelmente que: «A greve geral leva ao caos» [5]. Consciente do descrédito que toca as antigas estruturas sindicais fascistas [6], o partido agarra a ocasião para criar um novo sindicato único [7], a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP).

 

 

A ideia prática da coordenação autónoma

 

  O confronto com as novas forças do Estado, o exército e os partidos de esquerda, conduzem ao endurecimento das lutas e à sua politização. A repressão das greves produz um salto qualitativo no movimento social. Os sectores operários radicalizam-se. As reivindicações tornam-se explicitamente políticas, criticam a ideia do «interesse geral» - que a esquerda tenta impor como limite às suas lutas e os grevistas utilizam os meios das empresas para produzir folhetos e jornais. Num país com elevada taxa de analfabetismo esta abundância da imprensa política independente é um facto marcante. Uma vez mais, a radicalização de um poderoso afrontamento social une os campos de agitação, quebra separações, ultrapassa os muros das empresas. Os estalinistas portugueses mostram-se incapazes de fazer cessar a contestação nas empresas.

 

  Às manipulações políticas, os trabalhadores opõem a auto-organização e a democracia de base. Passando além do quadro dos novos sindicatos, elegeram comissões de trabalhadores em assembleias gerais. Os delegados são controlados de perto, os comités são revogáveis e criados a qualquer instante e as comissões de trabalhadores organizam-se a nível local e depois nacional. O grande problema prático do momento é o da coordenação autónoma dos organismos de luta. Este passo, o movimento está prestes a dá-lo. Duas coordenações de comissões de trabalhadores aparecem então. A Comissão Inter-Empresas, dos distritos de Lisboa e Setúbel, tornar-se-á o polo da esquerda sindical e, mais tarde, das tendências do «poder popular». Mas a vontade dos militantes não podia preencher a passividade da colectividade dos explorados envolvidos. Além disso, dadas as condições espirituais do momento, estas formas vão ser, a pouco e pouco, preenchidas por conteúdos que são a negação do objectivo de autonomia procurada. Fortemente influenciadas pela presença de correntes maoistas e outras formações de vanguarda, elas transformaram-se em arenas de confrontos burocráticos, esvaziando-se progressivamente da participação da base operária. Apesar do carácter atrasado de Portugal e do seu isolamento, que impediram que um processo revolucionário se tenha desenvolvido até ao fim, estes centros de acção e de defesa autónomos foram uma das raras criações novas do movimento português, a expressão da sua mais forte radicalidade. A sua curta vida impediu que tivesses uma ressonância internacional.

 

  No final de 1974 e início de 1975, oito meses após o "putsch", a situação económica agravou-se bruscamente: as pequenas empresas fecham, o grande capital privado nacional exila-se e as multinacionais esperam. O País vive numa atmosfera de contestação geral, de confusão política. O poder do Estado fraccionou-se em vários centros. Para os trabalhadores militantes, dois campos polarizam as energias: o «dos realistas», que seguem as ordens dos sindicatos controlados pelo partido comunista e a corrente emergente do radicalismo revolucionário, representada por algumas comissões de trabalhadores, que se posiciona claramente á esquerda do partido comunista e contra ele. O sucesso da grande manifestação realizada em Lisboa no dia 7 de Fevereiro de 1975, organizada pela Comissão Inter-Empresas, contra os despedimentos e a pressão capitalista, a solidariedade manifestada no sentdido contrário pelos soldados que tinham enviados para proteger o Ministério do Trabalho (comunista) e a Embaixada Americana, provam as capacidades mobilizadoras da corrente radical [8]. Mais do que a importância alcançada pelos comunistas no aparelho de Estado, é a radicalização de uma agitação social generalizada o que mais inquieta a burguesia e os sectores políticos e militares, garantes dos interesses capitalistas e geopolíticos do bloco ocidental.

 

  O partido comunista português, pela sua história, a sua capacidade de controlo e de mobilização do movimento grevista, ganhara um lugar na sociedade e nas instituições portuguesas. Mas, ao fazer isto, conseguiu também reforçar os partidos que estavam à sua esquerda. Por sua vez, o partido socialista, estreitamente ligado à social-democracia europeia, não tinha peso específico neste confronto e colocar-se sob a protecção da hierarquia militar. Com a tentativa do "putsch" em 11 de Março de 1975, as correntes conservadoras tentam alterar a tendência do momento. Mas, o envolvimento popular, o ódio contra o antigo regime permaneciam fortes e a resposta de rua varre as tendências mais direitistas, representadas pelo general Spínola. Este fracasso, e o consequente reforço das correntes à esquerda do partido comunista português, abrem a segunda fase da «revolução dos cravos», com a constituição de um governo de pendor Capitalista de Estado, próximo desse partido.

 

 

Contra a propriedade privada da terra

 

  Até ao início de 1975, o proletariado agrícola dos latifúndios do Alentejo na metade sul do País ficou na expectativa, manifestando sempre o seu apoio político ao partido comunista. O primeiro governo provisório apressou-se, aliás, a legalizar os sindicatos de operários agrícolas, com fraca implantação no tempo do fascismo e, por outro lado, algumas convenções colectivas foram assinadas com os grandes proprietários.

 

  Durante séculos, estes operários tinham lutado para sobreviver miseravelmente num sistema de trabalho sazonal. Na nova situação, apesar da pressão do governo e os discursos oficiais sobre a necessidade de uma Reforma Agrária, os grandes proprietários não demonstram qualquer intenção de mudar de atitude. Mesmo as poucas convenções colectivas assinadas com os sindicatos não são aplicadas e, de Novembro de 1974 a Março de 1975, como habitualmente, os trabalhadores agrícolas encontram-se sem trabalho e sem meios para sobreviver. Num primeiro tempo, o descontentamento exprime-se por acções directas: incêndio de colheitas e de bens pertencentes aos latifundiários. Por vezes os grandes proprietários são alvo de atentados [9]. No início de 1975 emergem as primeiras ocupações de propriedades baseadas num movimento espontâneo que se faz para além de qualquer palavra de ordem do partido comunista, muitas vezes mesmo sem a participação dos raros quadros sindicais locais. Embora os trabalhadores agrícolas apelem ao exército para garantir as suas acções, eles agem, contudo, fora de qualquer plano político e não se agarram nada à ideia de partilhar os latifúndios para criar retalhos de terra privada. Ao contrário, eles limitam-se a organizar colectivamente o trabalho e a produção para viverem.

 

  Dois acontecimentos que simbolizam uma mudança nas relações das forças políticas a nível nacional vão acelerar o movimento de ocupação de propriedades: o sucesso, em Fevereiro de 1975, da grande manifestação da extrema esquerda operária em Lisboa, e, um mês depois, o fracasso da tentativa do "putsch" conservador. Durante os primeiros seis meses de 1975, o forte movimento de ocupações alarga-se a toda a metade sul do País, com excepção do Algarve, região de pequena propriedade. Se ele não toma uma forma explicitamente política, de contestação anticapitalista, o objectivo deste proletariado rural era claramente no sentido de alterar as condições de propriedade existentes, ficando assim com meios de vida. Para fazer isso eles expropriam colectivamente a propriedade privada da terra. Em várias regiões do Alentejo em outras regiões criam-se cooperativas, mas, em geral, os ocupantes não têm uma ideia precisa da nova forma de propriedade que colocam em prática.

 

  Só ao longo do Verão de 1975 é que os sindicatos agrícolas e o partido comunista são capazes de retomar o controlo do movimento. Em Julho de 1975, o Estado ajuda-o legalizando o movimento. A «Lei da expropriação das terras» transforma um movimento de ocupações selvagens e de gestão colectiva das terras numa Reforma Agrária oficial. Transformação que foi facilitada pelo espírito colectivista dos trabalhadores agrícolas, os quais não tinham sequer procurado dividir as propriedades. A partir deste momento, o partido comunista e os militares preocupam-se em conter o que eles chamam de «ocupações selvagens, oportunistas e mesmo anti-revolucionárias». Porque, no conjunto das propriedades ocupadas, um bom quarto delas encontra-se fora do campo de aplicação da nova lei... Para o partido comunista a Reforma Agrária foi sempre concebida como uma acção do Estado, organizada do topo para a base. O parido comunista português apresentará sempre a Reforma Agrária como um aspecto essencial do seu projecto de socialismo de Estado, cujo fim era a reorganização da produção agrícola e o aumento da produtividade. As propriedades ocupadas, enquanto cooperativas tornam-se Unidades Colectivas de Produção (UCP), empregando, em finais de 1977, mais de 70 000 assalariados, geridas por quadros comunistas segundo critérios de rentabilidade, ligadas financeiramente ao Estado.

 

  O partido comunista português toma, assim, o controle económico e político desta região agrícola, que representa metade do país. Mas, enquanto que o proletariado agrícola continua a ver a Reforma Agrária como uma garantia de vida, o aumento da produtividade e dos rendimentos agrícolas programados pelos comunistas são impossíveis de realizar. Os trabalhadores agrícolas aceitaram sem ressentimento a nacionalização das terras ocupadas, mas isso não implicava sujeitarem-se a critérios de rentabilidade capitalista. Os quadros comunistas não estão em posição de exigir um aumento da produtividade do trabalho através de uma redução da força de trabalho [10]. Daí o fraco rendimento das Unidades Colectivas de Produção e um endividamento face ao Estado e aos Bancos.

 

 

O Estado contra o «poder popular»

 

  A institucionalização da Reforma Agrária não foi um caso isolado. De Março a Agosto de 1975, o governo pró-comunista do general Vasco Gonçalves, que conduzia uma política dirigista de intervenção na economia conforme a ideia do socialismo de Estado do partido tenta normalizar a situação social. Com este objectivo, desenvolve uma vasta reforma do quadro jurídico, regulamentando quase tudo, reprime movimentos, acções ou iniciativas independentes, procura, aliás, um acordo com as forças políticas da direita, em particular com a igreja católica. O processo de nacionalização das empresas é acelerado sob a pressão do partido comunista, que encontra ali um meio de reforçar a sua implantação no Estado, dando, assim, resposta às inquietações populares face ao desemprego. Devido aos financiamentos, e como havia feito com a Reforma Agrária, o Estado retoma o controlo das experiências de «autogestão» na indústria. Com efeito, depois do verão de 1974, inúmeras fábricas abandonadas pelos patrões são ocupadas e uma rede de empresas em «autogestão» é criada, sobretudo, no têxtil. Estas empresas continuavam a funcionar segundo as leis do mercado, não obstante terem havido tentativas para instaurar uma maior igualdade de salários e rotatividade de tarefas e pôr em questão a hierarquia. Finalmente, as trabalhadoras e os trabalhadores limitavam-se a vender directamente ao público as mercadorias produzidas e não encontravam salvação senão graças a trabalho a mais e ao endividamento junto do Estado. Para além de uma experiência de autogoverno de empresa, não houve ali qualquer ruptura com a lógica capitalista e a «autogestão» que foi realizada transformou-se rapidamente em auto-exploração.

 

  A atitude arrogante do partido comunista no aparelho de Estado e nos sindicatos; as suas campanhas produtivistas de puro estilo estalinista [11] e a sua oposição aos movimentos grevistas autónomos, coloca contra si os trabalhadores mais combativos. A corrente dita de «poder popular» apresenta-se como uma alternativa autónoma. Mesmo que fosse, maioritariamente, dominada pelas concepções vanguardistas do maoismo, ela exprimia, também, ideias vagas de socialismo não autoritário e salientava a importância das organizações de base e dos laços horizontais entre elas. Ela construiu-se nas zonas urbanas de Lisboa e do Porto, em torno de algumas comissões de trabalhadores, das comissões de moradores de bairros pobres e dos comités de soldados, os SUV (Soldados Unidos Vencerão), aparecidos no Verão de 1975. É neste momento que o Partido efectua uma viragem esquerdista, ao procurar aliar-se com a extrema esquerda, aproxima-se das organizações do «poder popular». O partido comunista português era, então, o alvo das forças reaccionárias que, no Norte e Centro do País, atacavam violentamente as suas sedes e militantes, indo por vezes até ao assassinato. Se bem que, antes, os comunistas tivessem perseguido os militantes da extrema esquerda, viam-se, agora, obrigados a defender-se em conjunto. Mas esta táctica durou pouco. O partido comunista português reconsidera, deixando a extrema esquerda militar e os que a sustinham isolados face ao exército que preparava o contra-golpe militar de 25 de Novembro de 1975. O esmagamento das correntes esquerdistas pelo exército só pode confortar os comunistas. Uma vez bem sucedido o golpe, os dirigentes do partido comunista português não esconderão: «A derrota da esquerda militar cria novas condições para a unidade das forças interessadas na defesa das liberdades, da democracia e da revolução» [12]. Com esta recentragem de último instante, o partido negociou a sua continuação política no interior do quadro institucional que se consolidava.

 

 

A ausência do «duplo poder»

 

  Os limites do movimento social residiam no seu isolamento dentro de uma Europa, fortaleza capitalista, que seguia atentamente os acontecimentos. O maior receio vinha de um possível contágio na Espanha vizinha. Não foi nada disso. A transição do regime franquista para uma democracia parlamentar prosseguiu sem muito perigo para as forças do capitalismo privado. Por outro lado, o projecto de um mini-socialismo de Estado «lusitano» não podia encontrar o mínimo apoio num bloco soviético, na época já bem enterrado na crise [13].

 

  Quando um movimento social de grande amplitude se desenvolve no quadro de um enfraquecimento do poder do Estado, a questão do duplo poder coloca-se inevitavelmente. Em Portugal, após a queda do antigo regime, os diferentes centros do Estado, as administrações locais, os órgãos repressivos, parecem atacados de paralisia. Mas estas instituições não foram desmanteladas, com excepção de alguns serviços, muito conotados com o antigo regime e afinal supérfluos para a democracia parlamentar. O poder político tinha rebentado, estava fraccionado em vários centros, por vezes, em conflito uns com os outros. Mas nunca o poder esteve vazio [14]. Jamais houve duplo poder. O exército a sua estrutura golpista baseada no Movimento das Forças Armadas assegurou, ao longo deste período confuso, a continuidade do Estado. As forças políticas de esquerda, o partido comunista e o partido socialista, foram admitidos no aparelho de Estado a fim de assegurar a transição para um quadro democrático parlamentar. Para levar esta tarefa a bom termo, a esquerda governou constantemente, invocando os perigos de «esquerdismo», de «extremismo» dos «provocadores», dos «aventureiros»; e sobretudo a ameaça de um retorno ao fascismo.

 

  Os trabalhadores, na sua grande maioria, como se descobrissem o seu poder colectivo, viram no MFA "putschista" e na esquerda, os garantes dos seus interesses imediatos. As organizações do «poder popular», sempre que se viram afrontadas pelo partido comunista português e pelo Estado, procuraram apoio numa das fracções do MFA. As tentativas de coordenação dos organismos autónomos tiveram vida curta. Como se cada um esperasse que das lutas no interior do MFA saísse a solução do combate decisivo. Em suma, ou se respeitava as instituições legitimadas pelos partidos de esquerda, ou se respeitava a facção de esquerda do MFA.

 

 

O fracasso do projecto esquerdista e a vitória sem futuro

 

  Para a extrema esquerda, o golpe militar de 25 de Novembro de 1975, será o ponto de partida de um deslizar rápido para a decomposição. Durante dois anos, a totalidade das correntes marxistas-leninistas tinham defendido a ideia segundo a qual a instituição militar poderia, graças à capacidade de acção dos seus militantes, transformar-se num exército popular. Um tal activismo escondia a fraqueza da acção autónoma, o esgotamento da vontade e da iniciativa de luta, da imaginação subversiva. Fosse o que fosse, o certo é que investimento das energias militantes neste projecto se revelou suicida. A defesa destas concepções implicava necessariamente a submissão aos princípios da política tradicional: delegação de poder, centralização das decisões e do comando. Era bem a lógica bolchevista clássica que privilegiava a tomada do poder no Estado contra o desenvolvimento das estruturas horizontais dos conselhos, comités e outras organizações de base dos operários. A importância dada aos diversos centros de poder militar, incluindo os colonizados pela extrema-esquerda, legitimou finalmente e tão-só a confiança no Estado. Apenas a pequena corrente libertária se distanciou do projecto estatista, mas as suas críticas tinham pouco peso face ao cilindro compressor marxista-leninista e encontraram pouco eco na sociedade [15].

 

  A derrota do esquerdismo em Portugal teve um significado que ultrapassou as fronteiras do pequeno país que é Portugal. Quebrou com toda uma concepção de revolução partilhada por toda a extrema esquerda ocidental. Aqui, pela última vez no século XX, o esquema vanguardista tinha parecido plausível, possível. Após 1968, os estados maiores da extrema-esquerda tinham decretado o necessário voltar aos valores seguros do partido detentor da verdade revolucionária. O desfecho da «revolução dos cravos» dará um golpe fatal nestas concepções. Esta falência da concepção "putschista" da revolução social irá acelerar, por todo o lado, a decomposição das correntes esquerdistas activas nos anos 70 do século XX. Com alguns anos de avanço, o desfecho português, anunciava a mote do comunismo ortodoxo, do qual o esquerdismo leninista procurou demarcar-se, mas que permanecia como a sua referência principal. A posteriori, o fracasso do projecto bolchevique confirmou as críticas anti-autoritárias de Maio de 68.

 

  Aqui chegados, importa separar o que, ao longo destes dois anos, foi o produto das práticas rígidas de vanguardismo e o que foi o fruto da acção autónoma das lutas, das experiências de auto-governo. As acções directas, as ocupações de fábricas, a coordenação de órgãos autónomos, as expropriações de terras e de habitações, as tentativas de gestão colectiva da produção e troca de bens, a liberdade de expressão e do pensamento crítico, tudo isto liga a «revolução dos cravos» às correntes modernas de emancipação social. Procurando respostas para os problemas do momento, os mais combativos viram-se confrontados com a lógica do partido comunista e descobriram a necessidade de dar um novo conteúdo à ideia de socialismo. O novo conceito nascido ao longo deste movimento: Apartidário, simboliza bem o que tinha de potencialmente subversivo este movimento.

 

  Estes primeiros passos de emancipação social estão hoje completamente apagados da história oficial e da memória colectiva. E no entanto, eles são os únicos elementos universais de futuro gerados ao longo destes anos turbulentos. Só por isso, pode esperar-se que a emancipação humana tenha uma "chance" no planeta Terra.

 

  A vitória da «transição democrática» abre o caminho da modernidade capitalista para uma sociedade que, sob a longa noite do salazarismo, tinha acumulado arcaísmos e atrasos. Dito de outra forma, foi o caminho para parte nenhuma! A classe dirigente portuguesa vai poder restaurar a sua violência, desta vez de forma democrática, as condições de uma exploração moderna do trabalho são possíveis e Portugal integra o processo de construção do espaço europeu. Mas esta integração parece também fechar um longo ciclo histórico, evolução que havia sido pressentida por alguns dos primeiros socialistas portugueses no fim do século XIX: a da "decadência dos povos peninsulares". O quotidiano do cinzento e a náusea da política insignificante - com o seu cortejo de mediocridades, corrupções, infâmias e oportunismos -, a alienação do espectáculo moral ou desportivo, mascaram afinal a crise do pequeno Estado-Nação, privado, para além das condições geopolíticas e económicas, da sua evolução histórica.

 

  Claro que tudo isto estava longe de ser evidente na época. No momento, em que a história era feita pelos próprios interessados, ela era percebida como uma variedade de possíveis, de probabilidades e de projectos. Anos-luz parecem separar os combates desses anos das preocupações de hoje. E, no entanto, os dados da actual crise cultural, social e política já lá estavam contidos, no essencial.

 

 

Reproduzido a partir da versom publicada em Utopia - Revista Anarquista de Cultura e Intervenção.

 



* O subtítulo foi posto por esta ediçom, para dar umha idea clara dos conteúdos do texto. (CdC da Galiza)

 

[1] Nenhum preso de «direito comum» foi libertado, ainda que o fim do fascismo tenha sido saudado com entusiasmo nas prisões.

 

[2] Desde o primeiro governo provisório que o partido comunista tem a seu cargo o Ministério do Trabalho.

 

[3] Entrevista de um chefe do partido comunista, Expresso, 22 de Junho de 1974.

 

[4] Declaração de um dirigente do partido comunista (colocado na direcção dos transportes públicos de Lisboa), 5 de Dezembro 1974.

 

[5] Álvaro cunhal, 25 de Maio 1974.

 

[6] Durante os últimos anos do regime fascista o partido comunista infiltrou-se nos sindicatos oficiais. Esta táctica demonstrou-se pouco rentável, quer por causa da repressão do Estado, quer da desconfiança dos trabalhadores face a estas organizações.

 

[7] Na sequência a CGTP, posteriormente, encontrou-se em concorrência com um sindicato que obedece à social-democracia, a União Geral dos Trabalhadores (UGT).

 

[8] Esta manifestação tratada como provocação pelo partido comunista português teve lugar enquanto ancorava no rio Tejo uma armada da NATO.

 

[9] O caso mais conhecido é o assassinato, em Castro Verde (baixo Alentejo), de um gordo proprietário fascista. José Diogo, um trabalhador agrícola, é preso e acusado desse assassínio Será julgado e condenado mais tarde, uma vez passada a febre revolucionária.

 

[10] As UCP vão assalariar praticamente todo o proletariado da região. As propriedades que empregavam, antes da ocupação, 20 000 trabalhadores , têm 70 000 em 1976 e a produção por trabalhador cai para metade entre estes dois períodos. Ver F. Baptista, «Economia das UCP», Economia e Socialismo, Lisboa, Agosto-Setembro 1978.

 

[11] Por iniciativa do partido comunista portguês, o governo organizou em 1974-75, várias «campanhas patrióticas de trabalho voluntário pela Nação» que foram, bem entendido, fracassos. Este partido lança também campanhas através de temas evocativos: «Esforço nacional para salvar a economia», «Trabalhemos mais e melhor», «Mais trabalho, é mais riqueza a distribuir com justiça», ou, ainda, «A batalha da produção».

 

[12] Álvaro Cunhal, Lisboa, 8 de Dezembro de 1975.

 

[13] Na Conferência para o desarmamento, de Helsínquia, em 1975, os dirigentes russos fizeram-no claramente entender aos portugueses.

 

[14] Logo após a sua rendição aos militares "putschistas", o antigo primeiro ministro Marcelo Caetano desejou que o poder não caísse «na rua».

 

[15] O desenvolvimento da autonomia operária e experiências de auto-governo das lutas, são defendidas pelo jornal Combate (sem relação com o actual órgão do Partido Socialista Revolucionário, trotskista). O jornal anarco-sindicalista A Batalha defende igualmente estas práticas.

 

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