Nildo
Viana
Um marxismo vivo
Índice :
O Capitalismo de Estado da URSS
A autogestão como conteúdo do novo ciclo revolucionário
Luta de Classes e Universo Cultural
Apéndice:
Manifesto do Movimento Autogestionário
Breve
Biografia
O
seguinte escrito biográfico foi-nos enviado por Nildo e sua esposa Maria Angélica,
a solicitude nossa. Publicamo-lo tal como nos chegou, somentes com algumha
emenda -puramente superficial e pontual- de estilo para perfilar mais o texto
como narraçom biográfica “objetiva”. Também acrescentamos umha nota sobre
Goiânia, procedente dumha carta que nos remeteu o próprio Nildo.
1. Origens sociais e
trajetória
Nildo
Viana nasceu em 1965, em Goiânia (estado de Goiás, Brasil) [1]. De família
pobre, passou parte da sua vida, infância e parte da juventude, em situação
difícil. Morando na periferia de Goiânia, vivendo de subemprego-desemprego, em
1985 aderiu ao partido político mais radical da época, o PT – Partido dos
Trabalhadores, justamente por estar procurando o mais radical. No entanto, não
efetuou nenhuma participação concreta em tal organização, tendo em vista as
suas dificuldades financeiras e a falta de incentivo por parte da organização,
que não realizava nem reuniões nem formas de integração de pessoas sem ligações
anteriores ou orgânicas com o partido ou que atuavam já em alguma
instituição/movimento.
Estudou irregularmente até 1980, sendo que iniciou novamente os estudos nos
três anos posteriores, mas teve que abandonar devido à impossibilidade
financeira. Em 1987 fez o curso supletivo e eliminou as séries não estudadas e
pode prestar vestibular, sendo aprovado em 1988, para o curso de Ciências
Sociais, na Universidade Federal de Goiás. Com muitas dificuldades, desde as financeiras,
passando pelas de locomoção (02 horas de trajeto casa-universidade), concluiu o
curso e depois, para garantir a sobrevivência consegue outros títulos
acadêmicos e passa a viver como professor universitário. Após concluir o curso
universitário, ficou desempregado por alguns anos, vivendo de subemprego,
inclusive devido aos concursos nos quais não foi aprovado por ser incompatível
com os cânones acadêmicos vigentes. Após 1996 passa a viver de bolsas e aulas
em faculdades particulares e em 1999 passa a ter estabilidade ao entrar para a
Universidade Estadual de Goiás, onde permanece até os dias de hoje. Morou em
Brasília de 1997-1998. Mudou, assim, de classe social, passando de
lumpemproletário para um membro da intelligentsia, embora apenas no que
se refere a condição de classe e não a posição política [2].
2. Prática política
Ao se
filiar ao PT em 1985 não efetivou nenhuma prática política no interior deste
partido. Participou de grupo de estudos de bairro para discutir a realidade
local e questões políticas. Ao ingressar na Universidade (1988), travou contato
com militantes de diversos partidos de “esquerda” (PCdoB, PT, CGB, etc. [3]). Passou a
atuar nas lutas estudantis junto com os independentes, isto é, os sem ligação
partidária, e enfrentar o PCdoB, às vezes com apoio dos demais, às vezes
isoladamente, pois a partir de 1990, o PT e CGB/PLP já não tinham mais nenhuma
força política própria no movimento estudantil goiano. Nesta mesma época (1989)
se junta com outros estudantes e militantes do Movimento Negro e ajuda a formar
a Liga Spartacus, agrupamento que atuava sem se apresentar publicamente
enquanto coletivo.
O
coletivo, que mudou seu nome para Movimento Conselhista (1990), embora
sem divulgá-lo publicamente, atuava no movimento estudantil universitário,
movimento negro, e no interior do PT, usando a estratégia trotskista do
“entrismo”, buscando atrair os setores mais radicais para a luta
autogestionária. Atua conjuntamente com as tendências mais à esquerda do PT,
inicialmente a TM – Tendência Marxista, leninista-reformista, posteriormente ao
PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, também conhecido como
“Tendência Brasil Socialista”, de influências autonomistas e de orientação
leninista-gramsciana. A colaboração com esta última tendência ocorre também –
além das lutas intrapartidárias – na esfera do movimento estudantil a nível
nacional, já que a nível local ela não tinha militantes no movimento estudantil
universitário. Ocorre um conflito em uma preparação para o Congresso da UNE [4], no qual o
texto escrito pelos integrantes do Movimento Conselhista que seria a
tese para o referido congresso não foi aceito em um de seus itens – análise da
União Soviética, qualificada como Capitalismo de Estado – e isto inviabilizou a
divulgação do texto, realizado de forma precária pelo MC, devido às condições
financeiras dos seus integrantes.
Pouco
depois, o Movimento Conselhista resolve romper com o PT (e, como a
tendência Brasil Socialista resolve permanecer, só saindo alguns anos depois,
ocorre um afastamento, mas sem animosidades políticas, além das divergências
que sempre existiram) e assumir publicamente seu nome e editar sua publicação,
a Revista Ruptura (1993). Em 1994, o coletivo recebe novas adesões e
passa a possuir hegemonia no movimento estudantil secundarista em Goiânia, além
de continuar atuando no movimento estudantil universitário e negro. O coletivo
passa a atuar na Região Leste de Goiânia, através do movimento de bairros,
junto a estudantes e trabalhadores da região. Um grupo local, UJR – União da
Juventude Revolucionária, passa a atuar junto com o Movimento
Conselhista, que altera seu nome para Movimento Socialista Libertário,
de mais fácil compreensão, e posteriormente se funde com ele. O coletivo
continua editando sua revista, lançando panfletos, utilizando boletins e outras
estratégias, puxando voto nulo e outras ações. A partir de 1996 passa a abrir
contato com várias organizações e indivíduos anarquistas. Realizou trabalhos
nas suas esferas de atuação e posteriormente se articulou com indivíduos
anarquistas e um grupo anarco-punk surgido na cidade. Posteriormente, o grupo
ficou por um longo período desarticulado, aproximadamente quase dois anos, com
poucas reuniões e atividades, inclusive em matéria de publicação, embora sem
deixar de existir e sem abandonar as ações individuais dos seus membros (uns
mais, outros menos, é claro), isto, em parte, devido a alguns terem abandonado
o movimento estudantil por ter encerrado seus cursos e mudarem de cidade para
fazer cursos de pós-graduação, alguns abandonaram a luta política, outros
mudaram de cidade.
A
partir de 2000, com seu retorno a Goiânia, feito em 1999, Nildo passa a se
juntar aos demais e buscar rearticular o MSL. Novos integrantes aderem ao
coletivo e os remanescentes do coletivo que permaneceram passam a retomar
algumas atividades, criando uma ação no interior da academia, onde muitos
passaram a trabalhar, e em publicações, ações coletivas, contatos nacionais e
internacionais. Assim, o coletivo ficou ativo, fazendo campanha por voto nulo,
articulando com os coletivos anarquistas da cidade, atuando conjuntamente com o
coletivo anarquista União Popular e os membros voluntários do CMI – Centro de
Mídia Independente, e participando de reuniões nacionais a nível nacional, bem
como realizando contatos via internet. Agora em 2007, novas atividades estão
sendo propostas e algumas retomadas, reformulando publicações e site na
internet, e novos integrantes aderiram recentemente ao coletivo.
3. Prática teórica
Antes
de entrar na universidade já lia alguns autores, livros introdutórios, sobre
sociologia, marxismo, etc. Na Universidade, passou a ser freqüentador assíduo
de sebos, onde encontrou obras que tiveram grande influência: O Futuro
Pertence ao Socialismo Libertário, de Daniel Guérin; O Medo à
Liberdade/Análise do Homem/Psicanálise da Sociedade Contemporânea, Erich
Fromm; Manuscritos Econômico-Filosóficos, Karl Marx; Reflexões sobre
o Socialismo, de Maurício Tragtenberg; O Movimento Comunista, de
Jean Barrot entre outros. Passou por leitura assídua de Marx e Rosa Luxemburgo
e, posteriormente, dos Comunistas Conselhistas (Korsch, Pannekoek, Ruhle,
Mattick, etc.), através de encomendas de livros de Portugal, já que não eram
acessíveis no Brasil. Foi aprofundando a leitura de Marx, dos conselhistas, e
de novos autores, tal como Robert Michels, André Gorz, Jean Barrot, João
Bernardo, Marcuse, Lúcia Bruno, Fernando Motta, Freud, Bakunin, entre outros.
Também leituras negativas foram realizadas: Lênin, Stálin, Trotsky, ideólogos
burgueses da sociologia, filosofia, etc. Enquanto estudante, buscou compreender
o movimento comunista e sua história, e devido à necessidade de contribuir com
a formação das teses e escritos do movimento político que participava, além do
movimento estudantil, escreveu alguns textos, e publicou alguns nas revistas da
Tendência Brasil Socialista, chamadas Brasil Revolucionário e Teoria
& Práxis. Já terminando seus estudos universitários, e o conjunto de
leituras derivadas daí, começa a escrever ensaios sobre o materialismo
histórico e escreve o artigo O Capitalismo de Estado da URSS, recusado
pela revista Brasil Revolucionário e depois publicado na revista Ruptura,
número 01, 1993.
Ao
encerrar o curso de graduação, se dedica ao mestrado em filosofia e, depois, ao
de sociologia, até concluir o doutorado em sociologia, passando por reflexões e
temáticas da academia, sempre numa perspectiva crítica, e análise da realidade
contemporânea, principalmente das lutas sociais e desenvolvimento capitalista.
A crítica da ideologia se torna prática constante. A partir de 1995 trava os
primeiros contatos com a literatura situacionista e em 1997 lê a primeira tradução
no Brasil de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. Neste mesmo ano
publica sua mais importante obra até o momento: A Consciência da História –
Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético (Goiânia, Edições Combate,
1997), em pequena tiragem realizada pelo próprio autor. No ano posterior,
derivado de discussões acadêmicas e a visível deformação do pensamento de Marx
por seus opositores, escreve e publica Escritos Metodológicos de Marx
(Goiânia, Edições Germinal, 1998; reeditada em 2001 e agora, por editora com
distribuição nacional, será relançada este ano). Obra que é, de certa forma,
continuação da anterior, já que a primeira é mais livre e pessoal e a segunda é
uma análise do pensamento de Marx, que revela que parte das teses básicas já
apresentadas na obra anterior já se encontrava neste autor. Escreveu textos
para diversas revistas, acadêmicas e políticas, bem como alguns livros voltados
mais para a academia, embora numa perspectiva crítica e relacionada com as
demais publicações.
Em 2002
publica Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico, uma busca de uma
nova síntese entre marxismo e psicanálise; em 2003 publica duas obras
produzidas em períodos anteriores: O Que São Partidos Políticos (escrito
em 1996) e Estado, Democracia e Cidadania (o primeiro capítulo, sobre
estado, foi escrito em 1990; o segundo e o terceiro, sobre democracia e
cidadania, respectivamente, escritos em 1997; e o quarto, que aborda a questão
dos regimes de acumulação, em 2003). Agora, em 2007, além da reedição de A
Consciência da História (Rio de Janeiro, Achiamé) e Escritos
Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa), está acertando a publicação
de O Capitalismo na Era da Acumulação Integral (Rio de Janeiro, Ciência
Moderna), Os Valores na Sociedade Moderna (desdobramento de um artigo
chamado A Questão dos Valores) e Manifesto Autogestionário (em
negociação com editora).
[Parte
só de Nildo:]
Em
termos de evolução intelectual, posso dizer que comecei minha visão política numa
perspectiva de reformista radical-humanista, antes de entrar para a
universidade. Depois, mantendo contato com as obras de Guérin (que trabalha
bastante com os textos críticos do Jovem Trotsky e Rosa Luxemburgo em relação
ao bolchevismo), fui passando para uma visão trotskista-luxemburguista (mas
levando em consideração apenas o jovem Trotsky, anti-bolchevista), e com certa
simpatia pelo anarquismo. Depois encontrei referência ao comunismo de conselhos
e passei a procurar obras dos conselhistas. No entanto, apenas alguns extratos
eram acessíveis, tal como o texto do Ruhle sobre partido (na obra de Denis
Authier, A Esquerda Alemã, editada em Portugal). Até que finalmente tive
acesso a algumas obras (especialmente Marxismo e Filosofia, de Karl
Korsch) e, assim, posso dizer que me tornei um marxista-korschiano, já que a
partir de Marx e Korsch fui desenvolvendo minha visão de materialismo histórico
e método dialético. As teses de Pannekoek, entre outros, também foram
fundamentais para ajudar a pensar um marxismo libertário, conselhista,
autogestionário. A obra do bordiguista Jean Barrot foi fundamental para pensar
o capitalismo e seu desenvolvimento histórico. O anarquismo (revolucionário)
também contribui com a crítica da política, mas com suas limitações em matéria
teórica. A psicanálise é uma contribuição fundamental para compreender o
indivíduo e os processos sociais de preservação do capitalismo, bem como a
questão da cultura dominante.
Sem
dúvida, a necessidade de compreender a realidade contemporânea e as lutas
atuais (inclusive incluindo as discussões contemporâneas, desde as meras
fantasmagorias das ideologias burguesas, quanto as questões sociais e
movimentos sociais, tal como a questão racial e feminina, entre outras), trazem
a necessidade atualizar a teoria e abordar questões no sentido de pensar em
aprofundá-las, desenvolvê-las. Neste sentido, a busca de uma interpretação do
capitalismo contemporâneo, ao lado da crítica da política (institucional) e da
ciência e das ideologias burguesas, passaram a fazer parte do meu programa de
pesquisa. Alguns artigos e livros já ensaiaram esta análise, mas falta muita
coisa, aprofundamento em alguns casos, desenvolvimento em outros, pesquisa em
outros tantos. As discussões coletivas que temos no interior do grupo e as
colaborações com outras pessoas, inclusive de outros estados, contribuem
bastante. Algumas teses desenvolvidas são importantes e alguns autores
contemporâneos contribuem com a compreensão de aspectos do capitalismo
contemporâneo, apesar do obstáculo permanente dos modismos ideológicos e das
ideologias burguesas renovadas. Mas a síntese geral que poderia apresentar é
que me considero herdeiro do comunismo de conselhos, e um militante teórico
buscando atualizar e desenvolver as teorias revolucionárias dos comunistas de
conselhos, me inspirando neles e em outros pensadores, especialmente Marx e a
psicanálise.
Nildo e Maria Angelica
Nildo Viana
O
Jovem Marx e o Marxismo
Publicado
na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 1, num. 2,
Out./Dez. de 2004.
O
presente texto discute a idéia defendida por muitos pesquisadores que se dizem
“marxistas”, segundo a qual haveria uma ruptura entre o “jovem Marx” e o “Marx
da maturidade”, derivando daí a estranha tese de que o “jovem Marx” não era
“marxista”. Althusser é o principal arquiteto desta concepção e por isso iremos
abordar alguns elementos de sua tese para discutirmos esta questão. Nossa tese
é a de que não houve nenhuma ruptura no pensamento de Marx, pois o que houve
foi um desenvolvimento, o que implica alterações, continuação e,
fundamentalmente, aprofundamento.
A tese
que vê uma oposição inconciliável entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro” se
baseia em uma análise a-histórica. Na realidade, procura-se analisar o “jovem
Marx” à luz do “último Marx”, ou seja, querem ver no “jovem Marx” todas as
teorias do “Marx da maturidade” prontas e acabadas. Mas, como elas ainda estão
em formação, são taxadas de “não-marxistas”. Entretanto, não é o futuro que
explica o passado, mas ao contrário, é o passado que explica o futuro. Um
pensamento só pode ser compreendido em sua historicidade.
A análise que afirma a continuidade do pensamento de Marx não é
teleológica, como diz Althusser (1979), mas sim histórica. Ela não diz que no
“jovem Marx” já estava presente o “Marx maduro” e nem que o primeiro tinha como
finalidade se tornar o segundo. O que esta tese afirma é que o “jovem Marx” já
tinha elementos e preocupações, que mais tarde seriam desenvolvidas e
aprofundadas pelo “Marx da maturidade”, ou seja, era uma tendência que se
efetivou e que a análise depois do processo concretizado revela isto. O “Jovem
Marx” não tinha a finalidade de se tornar o “Marx maduro” mas isto aconteceu
historicamente. Isto não ocorreu arbitrariamente, pois já havia essa tendência
e ela se realizou posteriormente. Se Althusser fosse utilizar seu esquema
defeituoso de análise para estudar o desenvolvimento do capitalismo teria que
dizer: “existe uma ruptura radical entre o ‘capitalismo concorrencial’ e o
‘capitalismo monopolista’ e, por isso, só o último é capitalismo, assim como só
o ‘Marx maduro’ é marxista; dizer o contrário é fazer uma análise teleológica”.
Eis a miséria da história.
A tese da continuidade do pensamento de Marx deve não só se justificar
metodologicamente como, também, se fundamentar e se comprovar nos escritos de
Marx. Veremos, então, o desenvolvimento do pensamento de Karl Marx e assim
demonstrar a continuidade nele presente. O seu pensamento apresentou três
fases: a primeira fase, que vai de 1838 a 1844, expressa preocupações
humanistas e filosóficas esboçando sua teoria da história e a análise do
capitalismo; a segunda fase, que vai de 1845 a 1848, concretiza a sistematização
de sua teoria da história; a terceira fase, que vai de 1849 até 1883 (ano de
sua morte), elabora mais completamente sua teoria do capitalismo, que é uma
teoria da luta de classes na época moderna e da transformação social, ou,
segundo Rossana Rossanda, uma “teoria da revolução” (Rossanda,
1989).
Esta periodização do pensamento de Marx coincide com a de Korsch (1977),
que relaciona tal evolução do pensamento de Marx com o desenvolvimento do movimento
operário. Concordamos com Korsch no fato de que o marxismo se constitui,
efetivamente, a partir da segunda fase, que coincide com uma época de ascensão
das lutas operárias, mas no que concerne à terceira fase, temos uma pequena
divergência. Sem dúvida, nesta fase há um recuo parcial do movimento operário
(mas também uma ascensão no seu final, pois basta lembrar a Comuna de Paris de
1871, acontecimento de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria
marxista, o que é reconhecido pelo próprio Marx), o que fez com que Marx se
dedicasse ao estudo do modo de produção capitalista, mas isto foi realizado no
mesmo espírito do que o existente na fase anterior e significou um
aprofundamento da teoria do capitalismo. Iremos retomar isto mais adiante.
Ao
analisar a primeira fase de seu pensamento vemos uma preocupação com a
“emancipação humana”, que leva a crítica do Estado, da sociedade burguesa e da
propriedade privada (Marx, 1980). Mas é a
partir da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que
Marx esboça os fundamentos de sua teoria da revolução.
Neste escrito, Marx expõe uma crítica ao humanismo abstrato (como o de
Feuerbach), pois o “homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade” (Marx, 1978, P. 02) [1]. Portanto, a crítica da “forma sacra da
auto-alienação humana” deve ser substituída pela crítica de sua “forma
profana”. A crítica da religião e da teologia devem ser substituídas pela
crítica do direito e da política.
A partir dessa premissa Marx elabora de forma embrionária sua teoria da
luta de classes. Na Alemanha, segundo Marx, é preciso surgir uma classe que se
contraponha à classe dominante de forma radical. Todas as classes que
conquistaram o poder implantaram uma nova forma de dominação. Por isso, todas
as classes que pretendem se tornar a nova classe dominante, devem apresentar
seus interesses particulares como os interesses gerais da sociedade e, assim,
aparecer como a classe emancipadora de toda a sociedade. Mas é o proletariado,
devido suas “cadeias radicais”, que representa, ao mesmo tempo, os interesses
particulares de classe e o interesse geral da sociedade. O proletariado ao se
libertar leva à libertação de toda a sociedade, pois ele é a dissolução da sociedade
de classes.
Mas, segundo Marx, toda revolução necessita de um “elemento passivo”,
de um “fundamento material”. O elemento ativo da revolução só será
eficaz quando expressar o “elemento passivo”. O materialismo
histórico-dialético se encontra esboçado neste texto. Quando Marx compara a
política alemã com a dos outros países europeus e critica a primeira por apenas
“pensar” o que os outros “fizeram”, realiza-se o prelúdio de A Ideologia
Alemã. O papel revolucionário do proletariado e a luta de classes já são
analisados por Marx. A importância dada ao “fundamento material” (que
futuramente será identificado no conceito de modo de produção) e ao elemento
ativo (a luta de classes) será retomada nos escritos posteriores formando a
base do pensamento marxista [2].
Todo o
pensamento posterior de Marx será dedicado a fundamentar as premissas teóricas
colocadas acima. O movimento da propriedade privada passa a ser acompanhado e
explicado através do conceito de trabalho alienado. Este expressa as relações
de produção capitalistas. Segundo Marx:
“Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua
relação com o objeto e o processo da produção, como homens estranhos e hostis;
também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a
relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como cria sua própria
produção como uma perversão, uma punição, e o seu próprio produto como uma
perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do
não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria
atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é dele” (Marx,
1983, p. 89).
Aí se
encontram as relações de produção como realidade não-conceitualizada, isto é, a
idéia de relações de produção já está esboçada mas o conceito ainda não
aparece. A percepção de determinadas relações sociais existe mas sua
conceituação só será efetivada posteriormente.
Nos Manuscritos de Paris, Marx procura fundamentar sua tese de
que o proletariado é a classe revolucionária de nossa época (capitalista) e que
sua libertação leva à “emancipação humana em geral”, ou seja, de toda a
sociedade. Segundo ele:
“Da
relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a
emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma
política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a
emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda humanidade.
Pois toda a servidão está enredada na relação do trabalhador com a produção e
todos os tipos de servidão são somente modificações ou conseqüência desta
relação” (Marx, 1983, p. 100).
Esta tese já
estava presente na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel
e seria retomado no Manifesto Comunista, e se tornou um elemento
permanente da teoria marxista.
Em seu
último “escrito juvenil”, A Sagrada Família, Marx novamente nega o
humanismo abstrato e afirma o humanismo concreto:
“A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação
humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma
confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela
a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta
alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana”.
É, para empregar uma expressão de Hegel, no aviltamento, na revolta contra esse
aviltamento, revolta para a qual aquela classe é empurrada pela contradição
entre a sua natureza humana e a sua situação de vida, que reside a negação
franca, categórica total desta mesma natureza” (Marx, 1979,
p. 53).
Assim sendo,
“No seio desta contradição, o proprietário privado é pois a parte conservadora,
o proletário é a parte destruidora. Do primeiro emana a ação que mantém a
contradição, do segundo a ação que a aniquila” (Marx, 1979,
p. 53).
A
partir daí Marx procura sistematizar sua teoria da história esboçada
anteriormente. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels pretendiam acertar
contas com sua consciência filosófica anterior. É nesta afirmação que muitos se
fundamentam para dizer que houve uma mudança brusca no “jovem Marx” que se
transformou no “Marx maduro”. O Marx idealista, humanista e filosófico foi
substituído pelo Marx materialista, classista e científico.
Isto, entretanto, não é verdade. O acerto de contas não significou a
passagem do idealismo ao materialismo. Marx já havia notado em seus “escritos
juvenis” que:
“É certo
que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder
material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria
transforma-se em poder material logo que se apodera das massas, a teoria é
capaz de apoderar-se das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e
argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical; ser radical é tomar
as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem” (Marx,
1978, p. 8-9).
Portanto, só
quando se forma uma unidade entre teoria e necessidades radicais é que a teoria
se transforma em poder material. Para o “jovem Marx”:
“As revoluções precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento
material. Num povo, a teoria realiza-se somente na medida que é a realização de
suas necessidades” (Marx, 1978, p. 9).
Marx
afirma que não é suficiente o pensamento estimular sua realização; é preciso
que a realidade estimule este pensamento. Portanto, a teoria se torna força
material quando é expressão real das necessidades radicais e, com isso, torna a
necessidade ainda mais necessária.
Marx
não aderiu ao “humanismo abstrato” e não abandonou o “humanismo concreto” e já
colocava nos escritos de juventude que a emancipação humana seria resultado da
luta de classes com vitória do proletariado. A separação entre o Marx
“filosófico” e o Marx “científico” apresentada por Althusser é totalmente
destituída de sentido, pois, além de ser um produto de uma concepção
positivista, que busca transformar o marxismo em uma ciência, ela ignora que o
marxismo significa a superação simultânea tanto da filosofia quanto da ciência,
que são formas de pensamento constituídas em sociedades de classes e
objetivando reproduzi-las, sendo, pois, formas sistematizadas de falsa
consciência. Marx apontava para a superação da filosofia (Korsch, 1977; Viana, 2000) e sua obra, embora nem
sempre com clareza, significou uma radical crítica da ciência, e unir marxismo
e ciências humanas é, tal como colocou Fougeyrollas, igual ao casamento do fogo
com a água.
Mas, então, qual é esse acerto de contas? Acontece que nos seus escritos
juvenis, Marx, fazia, essencialmente, a “crítica das ideologias”. Isto não
significa idealismo, pois qualquer materialista pode criticar as ideologias. O
que define o caráter idealista ou materialista desta crítica é o ponto de vista
em que ela se baseia. Quando Marx disse, que “em política os alemães pensaram o
que os outros povos fizeram”, apenas anunciou a concepção materialista da
história exposta nos Manuscritos de Paris e na Ideologia Alemã.
É na
quarta tese sobre Feuerbach que compreendemos o “acerto de contas” de Marx:
“Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa da duplicação do mundo em
religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em
seu fundamento terreno, mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo
e se fixe nas nuvens como um reino autônomo, só pode ser explicado pelo
auto-dilaceramento e pela contradição desse fundamento terreno. Este deve,
pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como
revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto, que a
família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser
teórica e praticamente aniquilada” (Marx, 1982, p. 12-13).
Portanto, a crítica das ideologias deve ser precedida pela crítica do modo de
produção, tal como na Ideologia Alemã. Nos escritos juvenis havia
referências à base material, mas superficialmente, com exceção dos Manuscritos.
É na Ideologia Alemã que Marx expõe as diversas formas de propriedade em
seu desenvolvimento histórico culminando com o capitalismo que abre
possibilidade para a realização do comunismo.
Após a Ideologia Alemã, Marx continua a aprofundar sua teoria da história
mas agora em relação direta com sua teoria do modo de produção capitalista.
Vê-se isto, em A Miséria da Filosofia, na Carta a Annenkov e no Manifesto
Comunista. Em O Manifesto Comunista, Marx retoma sua tese de que o
proletariado liberta toda a sociedade:
“Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a
situação submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os
proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais sem abolir o
modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo meio de
apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar;
sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada
existentes até agora” (Marx e Engels, 1988, p. 86) [3].
Já
tendo elaborado sua teoria da história, Marx passa a desenvolver sua teoria do
capitalismo, que é um momento de desenvolvimento desta teoria e sua confirmação
em um caso concreto. Marx começa seu primeiro escrito desta fase dizendo:
“De vários lados nos criticaram por não termos analisado as relações econômicas
que formam a base material da luta de classes e das lutas nacionais nos nossos
dias” (Marx, 1987, p. 19).
É justamente
isso que Marx começa a realizar em sua nova fase: analisar o modo de produção
capitalista e as lutas de classes geradas por ele. No entanto, ele faz isso em
um período não-revolucionário, tal como Korsch (1977) coloca, o que significa
que sua teoria do capitalismo focaliza as lutas espontâneas e cotidianas que
formam a essência do modo de produção capitalista, tal como se vê em O
Capital. Somente com a ascensão da luta operária, ocorrida no final da
década de 70 do século 19, com a Comuna de Paris, é que as lutas revolucionárias
voltam ao foco de análise de Marx, embora ele já dedicasse atenção ao processo
revolucionário a partir de 1848, em seus escritos sobre as lutas de classes na
França.
Portanto, em Trabalho Assalariado e Capital, em O Capital, em Teorias
da Mais-Valia, entre outros, Marx procura revelar a base material da
revolução de nossa época: o capitalismo. Em As Lutas de Classes na França,
O 18 Brumário, A Guerra Civil na França, entre outros, ele expõe o
elemento ativo da revolução: a luta de classes. No primeiro caso, ele analisa
as lutas de classes espontâneas, cotidianas; no segundo, as lutas mais radicais
e que já apontam para se tornar lutas revolucionárias, o que ocorre no último
texto acima citado, que tem uma parte dedicada à análise da Comuna de Paris.
Em Para a Crítica da Economia Política ele resume sua teoria da
história e faz alguns apontamentos sobre o capitalismo. Nos Grundrisse
(1857-1858) retoma o desenvolvimento das formas de propriedade [4]. Ainda nos Grundrisse
analisa o capitalismo e volta a um tema, que, segundo muitos, foi superado pelo
“Marx maduro”: a alienação. A Introdução Geral (1857) é, segundo
Althusser, a prova de que Marx abandonou seu humanismo da juventude:
“Althusser
cita regularmente – e com razão – a Introdução de 1857 como um
texto clássico e primoroso do método marxista. Depois tem de enfrentar o caso
dos Grundrisse, mas como é possível depreciar um livro que contém uma
introdução saudada como magistral? Se Marx abandonou em 1845 toda noção de uma
natureza humana alienada, então em 1857 estava irremediavelmente confuso,
regredindo a suas preocupações de juventude e escrevendo um manuscrito que é ao
mesmo tempo a quintessência da maturidade e um ato de infantilismo teórico” (Harrington,
1977, p. 163) [5].
Nos
seus escritos considerados “históricos”, Marx analisa a luta de classes na
França e em outros países, mas já como luta de classes em processo de
radicalização. No 18 Brumário, Marx coloca novamente que toda revolução
precisa de um “elemento passivo” e de um elemento ativo:
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem
sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1986,
p. 17).
Os
homens fazem sua história em condições determinadas, marcadas por lutas de
classes cotidianas, pelo predomínio absoluto da classe dominante, do trabalho
morto sobre o trabalho vivo e é sob estas condições que se desenvolvem as lutas
de classes. As lutas de classes do presente são realizadas tendo por base as
lutas de classes do passado e as cirscunstâncias constituídas por elas.
Entretanto, não se deve pensar que nos escritos “históricos”, Marx
analisava apenas o elemento ativo (luta de classes extra-cotidianas) e nas
obras “econômicas” apenas o elemento passivo (luta de classes cotidianas). A
ênfase era colocada em um ou em outro, dependendo do escrito, mas não é
possível separar um do outro a não ser em nível analítico e mesmo assim esses
dois elementos se confundem, pois são partes constituintes e
inter-relacionados, que formam a totalidade concreta. Basta ler suas “obras
históricas” (Marx, 1986a; Marx, 1986b) ou O Capital (1988) para se notar
isso. Segundo Engels:
“Se Barth pensa, pois, que nós negamos toda a reação dos reflexos políticos,
etc. do movimento econômico sobre este movimento, ele combate simples moinhos
de vento. Que estude o 18 Brumário de Marx, em que quase
só se trata do papel particular que as lutas e os acontecimentos políticos
desempenham naturalmente nos limites que lhes traça a sua dependência geral das
condições econômicas, ou ainda, O Capital, o capítulo, por
exemplo, sobre a jornada de trabalho, onde a legislação, que é todavia um ato
político, tem uma ação tão profunda, ou o capítulo sobre a história da
burguesia” (Engels, 1979, p. 47).
Engels, mais à frente, conclui: “o que falta a todos estes senhores é a
dialética”. Apesar disso tudo, Louis Althusser afirma que existe um “corte
epistemológico” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”. Para ele, a
análise do pensamento de Marx não pode se basear na “história ideológica”, pois
as idéias estão ligadas à história real. Althusser afirma:
“É preciso que se nasça um dia em alguma parte, e se comece a pensar e a
escrever em um mundo dado. Esse mundo, para o pensador, é imediatamente o mundo
dos pensamentos vivos do seu tempo, o mundo ideológico onde ele nasce para o
pensamento” (Althusser, 1979, p. 62).
Marx, o
pensador, nasceu em um “mundo dado” e este era o “mundo da ideologia alemã” e
por isso ele coloca como sua “problemática” a problemática desse “mundo
ideológico”. Althusser cai em contradição ao afirmar que não se deve partir
apenas da “história ideológica” e que se deve ligá-la à história real e, no
fundo, dissolve a dita “história real” na “história ideológica”. A história
real de Althusser é a história ideológica da Alemanha e o que ele entende por
“história ideológica” é o pensamento de Marx tomado isoladamente. Assim, ele
realiza a subsunção do indivíduo Marx ao mundo ideológico alemão, e apresenta
uma concepção de história real reduzida à história coletiva da ideologia em
determinado país.
Porque o mundo para o pensador é imediatamente “o mundo dos
pensamentos vivos do seu tempo”? Este é um pensador abstrato inventado por
Althusser e não um pensador real que não é só um pensador, mas também um
determinado indivíduo com todas as implicações derivadas daí. Entre o pensador
e o “mundo dos pensamentos vivos” existe a mediação do processo histórico de
vida de tal pensador e este não é apenas o mundo das idéias mas um mundo
concreto, múltiplo, marcado pelo conjunto das relações sociais. Logo, a ligação
entre eles não é imediata e sim mediada.
A “história real” ao qual a “história ideológica” de Marx está ligada é
a história da “ideologia alemã”. A proposta analítica de Althusser leva a
imaginar uma Alemanha dominada pela ideologia e sem nenhuma contradição: a
sociedade alemã é uma “sociedade sem história”. Ao negar em Marx uma “história
ideológica”, Althusser cria uma “história ideológica” da sociedade alemã. Os
pensadores individuais (independentemente da classe, religião, etc.) estão
subsumidos à ideologia dominante. A relação de um pensador com a ideologia
dominante, ao contrário do que pensa Althusser, não é uma relação de “submissão
automática”. Além disso, Althusser cai em contradição, como já dissemos, pois
afirma que a análise do pensamento de Marx não pode se basear apenas na “história
ideológica”, pois esta está ligada à “história real”, mas o que faz Althusser é
ligar o pensamento de Marx à história ideológica alemã, e, ao mesmo tempo,
desligar esta da história real (história da sociedade), isto é, autonomiza a
ideologia, como se esta tivesse um desenvolvimento autônomo. A ideologia do
indivíduo Marx não é autônoma e nem pode ser desligada da história real, mas a
ideologia alemã é autônoma e desligada da história real... [6]
Quando Althusser diz que os jovens hegelianos colocam as idéias
européias dentro de sua própria “problemática”, ele revela que estas não se
impõem totalmente e automaticamente aos jovens hegelianos. Da mesma forma, a
ideologia alemã não se impõe totalmente e automaticamente ao “jovem Marx”, pois
ele a coloca, para utilizar expressão de Althusser, dentro de sua própria
“problemática”. O que Althusser faz é negar qualquer papel ao processo
histórico de vida do “jovem Marx”. Este estaria preso no reino da “ideologia
alemã” e só poderia se libertar ao chegar na França. Althusser só não explica
porque muitos pensadores alemães foram para a França, mas não se tornaram
“marxistas”...
Mas, agora vejamos os fundamentos políticos-ideológicos, que levam a
opor o “jovem Marx” ao “Marx maduro” [7].
Os que privilegiam o “jovem Marx” (da primeira fase) evitam a crítica do modo
de produção capitalista aderindo a um “humanismo abstrato” e os que privilegiam
o “Marx maduro” (da terceira fase) evitam a crítica humanista (portanto,
universal, o que revela o caráter simultaneamente particular e universal da
luta proletária) ao capitalismo aderindo a uma concepção economicista do homem
(homo economicus).
A negação da crítica humanista serve para justificar a concepção de
socialismo que Marx denominou nos Manuscritos de “comunismo vulgar”. A
crítica humanista nega tanto o pseudo-socialismo pequeno-burguês que se baseia
na distribuição de propriedade ou de renda, expressando a “inveja universal”,
quanto o pseudo-socialismo estatal que se baseia na transformação de todas as
pessoas em assalariados submetidos ao capital incorporado na comunidade como
“capitalista abstrato” (Marx, 1983). Em outras palavras, a crítica humanista é
dos elementos do marxismo que serve para refutar o pseudo-socialismo, tanto o
pequeno burguês, presente, por exemplo, nas correntes reformistas
(social-democracia), e em propostas específicas como a da reforma agrária,
quanto no estatal, expressão dos interesses de classe da burocracia e que se
revela no capitalismo de estado seu modelo exemplar (cuja experiência histórica
teve na URSS, Leste Europeu, China, Cuba, etc., enquanto formas de
manifestação).
A negação da crítica ao modo de produção capitalista serve para
justificar a tese da via pacífica ao socialismo ou que a transição ao
socialismo não é realizada através da ação revolucionária do proletariado. A
crítica do modo de produção capitalista nega tanto a possibilidade de passagem
pacífica ao socialismo quanto a possibilidade da transformação ser realizada
pelo conjunto da sociedade.
É claro que em Marx não existe uma diferença entre a crítica humanista e
a crítica ao modo de produção capitalista, mas existe em alguns intérpretes de
sua obra que se submetem à divisão capitalista do trabalho intelectual e com
isso reproduzem a alienação. Ao separar teoria e prática, razão e valores, etc.
cria-se o positivismo “marxista”, ou melhor, o positivismo revisitado em
linguagem marxista.
Assim, os pseudomarxistas que defendem o falso socialismo do capitalismo
de estado russo (a antiga URSS) querem abandonar a crítica humanista e até
mesmo o papel revolucionário da luta de classes para defender uma metafísica
“luta de sistemas” ou de “modos de produção”, compreendendo este último de
forma fetichista. Esta é a posição dos stalinistas e althusserianos. Para eles,
o marxismo nada tem a ver com luta de classes e sim com luta de sistemas ou
modos de produção – o capitalismo de estado (“socialismo real”), por um lado; e
o capitalismo privado, por outro (Santos, 1986).
Numa entrevista entre Sartre e Pierre Victor, este último coloca que uma
afirmação do primeiro lhe lembrava o que Althusser certa vez lhe disse. Sartre,
imediatamente, retrucou: “sou muito pouco parecido com Althusser, deve ser
um mal-entendido, sabes” (Sartre; Gavi; Victor, 1975, p. 184). A rapidez
com que Sartre busca se desvencilhar da comparação com Althusser é não apenas
perspicaz e justificada, como necessária, principalmente depois da afirmação de
P. Victor: “tinha-lhe dito, um dia, que se éramos comunistas era por causa
da felicidade. Respondeu-me [Althusser] em suma: não se deve dizer isso;
é para provocar uma mudança no modo de produção...” (Sartre, Gavi; Victor,
1975, p. 184). Assim, o althusserianismo é, com seu estruturalismo
anti-humanista, uma cópia do stalinismo, com sua consciência coisificada de
acordo com os interesses da burocracia soviética.
Em resumo, Marx na sua primeira fase se preocupava com a “emancipação
humana” e caminhou para a percepção, com o desenvolvimento do seu
pensamento, de que isto só seria possível com a revolução proletária. Na
segunda fase sistematizou sua teoria da história, sua visão do desenvolvimento
histórico da humanidade comandado pela luta de classes e pela tendência histórica
da revolução proletária. Na terceira fase, desenvolveu esta teoria e aprofundou
sua análise do capitalismo para descobrir a tendência histórica de criação do
comunismo através da revolução proletária. O marxismo é uma teoria da alienação
(humanismo histórico-concreto), uma teoria da história (materialismo
histórico-dialético), uma teoria do capitalismo e da revolução proletária
(expressão teórica do movimento operário), sendo estes elementos inseparáveis,
constituindo uma totalidade indivisível e que só podem ser analisados e
desenvolvidos conjuntamente em sua forma posterior acabada, e a partir daí só é
possível enfatizar um aspecto mas sem separá-lo dos demais.
A
conclusão final a que chegamos é, portanto, a seguinte: não existe nenhuma “ruptura
radical” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”.
Referências
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Nildo Viana
A
Fonte do Poder
Publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista,
Ano 2, num. 6, Out./Dez. de 2005.
“Em
qualquer sociedade assente sobre a exploração duma classe trabalhadora por uma
classe dominante, se trava uma luta permanente, cuja razão é a divisão
do produto total do trabalho, ou, noutros termos, o grau de exploração”.
Anton Pannekoek
O
surgimento das classes sociais ocorre simultaneamente com o aparecimento do
estado. Esta simultaneidade, entretanto, não deve nos confundir. A dominação e
a exploração surgem juntas mas após o seu surgimento ambas buscam se
autonomizar. É através deste processo que se produz a ilusão de que o estado é
a fonte do poder. Buscaremos, aqui, explicar como o estado e as classes sociais
surgem simultaneamente mas que se processa uma separação entre ambos e que tal
separação produz a primazia das lutas de classes sobre o estado.
A
fonte do poder é a alienação do trabalho produtivo. O trabalho produtivo é
aquele que produz um excedente, ou seja, um rendimento superior ao necessário
para a reprodução da força de trabalho. É a existência do trabalho produtivo
que possibilita a exploração. É a partir do momento em que a sociedade passa a
produzir um excedente é que se torna possível a exploração. Para esta se
realizar, entretanto, é necessário surgir uma classe dirigente que executa a
dominação no processo de trabalho e assim se apropria do que é produzido.
A
instauração da escravidão significou, simultaneamente, a criação de uma classe senhorial
(composta pelos senhores de escravos) e de uma classe de escravos e, ainda, do
estado (Viana, 2005). A instauração da
dominação no processo de trabalho ocorreu concomitantemente com o surgimento da
dominação em todas as outras esferas da vida social. Ocorre, porém, que os
primeiros senhores de escravos tinham que tomar conta não só do processo de
produção como da sociedade em geral (controlar as demais classes sociais
existentes, as divisões internas da classe dominante, as ameaças de invasões, etc.)
e isto, juntamente com o crescimento populacional (Copans,
1988), provocou uma divisão do trabalho no interior da classe dominante.
A partir deste momento a classe dominante passou a se dividir em classe
senhorial (responsável pela dominação na produção) e a classe burocrática
(responsável pela dominação nas outras esferas da vida social, que, quando
necessário, intervém também na esfera da produção).
Isto
produziu uma separação entre sociedade civil e estado, entre as classes sociais
em luta na sociedade civil e o poder coletivo da classe dominante representado
pelo estado que mantinha a ordem, ou seja, garantia a reprodução das relações
de produção dominantes. Tal como colocou Engels:
“O estado
não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para
dentro; tão pouco é ‘a realidade da idéia moral’, ou ‘a imagem e a realidade da
razão’ como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a
um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se
enredou numa irremediável contradição consigo mesma e está dividida por
antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses
antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem
e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder
colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a
mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas
posto acima dela e distanciando-se cada vez mais é o estado” (Engels, 1988,
p. 225).
Desta
forma, há não só uma divisão de funções no interior da classe dominante como se
realiza uma separação cada vez maior entre estado e sociedade. Esta divisão e
separação proporcionaram a supremacia da classe dominante sobre a burocracia e
é isto que marca a subordinação (utilizando a palavra no seu sentido marxista,
ou seja, significando que há uma relação entre dois termos no qual um é
dependente do outro mas não se opõe a ele, pois segue a mesma lógica de
desenvolvimento, só que de forma dependente e sempre a posteriori, embora haja
contradição nesta relação) do estado em relação à sociedade.
Esta
divisão criou a supremacia da classe senhorial sobre a burocracia, sendo que
esta se tornou mera classe auxiliar daquela. A razão disto se encontra no fato
de que a classe senhorial ao dirigir o processo de produção detinha o controle
do excedente e, por conseguinte, controlava o estado. A classe senhorial passou
a ser a única classe dominante e a burocracia passou a ser sua classe auxiliar.
Sem dúvida, alguns indivíduos provenientes da classe senhorial executavam, ao
mesmo tempo, a função de burocrata do estado, mas isto se trata de casos
individuais e não de uma situação de classe e isto é comum em quase todos os
modos de produção.
A
burocracia estatal, por sua vez, se tornou uma classe social que executa
trabalho improdutivo com o objetivo de reproduzir o modo de produção dominante.
Em troca disso, a classe dominante, a maior beneficiada pela manutenção deste
modo de produção, cede uma parte do excedente produzido pela classe produtora
(e apropriado por ela) a esta classe auxiliar. Neste sentido, os rendimentos ou
os meios de sobrevivência da burocracia, geralmente muito superiores ao da
classe produtora, são retirados de uma parcela da exploração de classe ocorrida
no processo de produção, embora a classe dominante reserve para si uma maior
fatia do bolo. Em todas as sociedades, a burocracia fica com uma parte do
excedente produzido pela classe produtora, mas não se trata de exploração
direta, pois esta é feita pela classe dominante (que é a proprietária dos meios
de produção) e sim uma “exploração indireta”. A exceção ocorre quando a
burocracia é, ao mesmo tempo, a classe dominante.
Esta
separação entre classe senhorial e burocracia estatal possibilitou a ilusão de
que o estado é a fonte do poder. É o estado que possui a função de assegurar a
permanência das relações de produção dominantes, ou seja, das relações entre a
classe exploradora e explorada no processo de produção e também de todas as
outras relações sociais derivadas daí, e, para que isto seja legítimo, ele
possui o monopólio do uso da violência física e é apresentado como estando
acima das classes sociais. Desta forma, o estado, através da repressão, entre
outros meios, busca regularizar as relações de produção e as demais relações
sociais.
Tal
separação se aprofunda cada vez mais com o desenvolvimento e complexificação
tanto do estado quanto da sociedade. A criação de diversas instituições
estatais, o desenvolvimento da sociedade civil, o surgimento de novos segmentos
sociais, entre outros fatores, são formas de se ampliar a esfera estatal e
também da sociedade e isto expressa a tendência de um distanciamento cada vez
maior entre estado e sociedade.
Além
da repressão, o estado utiliza outros artifícios (que variam dependendo do modo
de produção) para manter a ordem, tal como a ideologia, o direito, a
intervenção da produção e distribuição (intervenção “econômica”, diriam
alguns), etc. Mas é o uso da repressão, através da violência física e de outras
formas, que fornece a impressão de que o estado é a fonte do poder.
Os
elementos acima citados reforçam esta impressão. Mas o que se vê é que
concomitantemente com a produção de instituições estatais que produzem uma
descentralização aparente do poder ocorre uma centralização do poder no
aparelho de estado. O estado realiza a centralização do poder e, ao mesmo
tempo, o dispersa pela sociedade. Neste sentido, o estado é, ao mesmo tempo,
centralização e divisão do poder:
“o
estado é o centro de uma dupla delegação de poderes, da sociedade para o estado
e do estado para postos ou regiões específicas. Estes dois processos vão a par,
da mesma forma que a separação dos postos. O estado é também uma divisão do
trabalho político e não apenas a sua centralização” (Copans, 1988, p. 119).
O
estado, ou seja, a instituição dirigida pela burocracia (estatal) visando a
reprodução das relações de produção dominantes, recebe o direito/dever de
controlar a sociedade. A classe dominante aceita como sendo legítima a sua
existência, pois sabe que ele representa os seus interesses. Mas como a classe
explorada aceita a existência desta instituição repressora que existe para
reproduzir sua exploração e alienação (expandindo esta para além da esfera da
produção)?
Sem
dúvida, a repressão é um dos “fatores reais do poder” (para utilizar expressão
lassaliana) do estado. O estado possui os meios de repressão (armas, pessoas
especializadas, tais como guerreiros, soldados, etc., cujo nome varia de acordo
com o modo de produção) e, sempre que é necessário, os utiliza.
Outro
elemento importante para manter a ordem e impedir a destruição do estado e da exploração
é a ideologia. Esta vem para justificar não só as relações de produção como
também o estado. Na ideologia, este é apresentado como sendo “neutro” e acima
das classes sociais. Além disso, sem o estado, afirma a ideologia, a
convivência social seria impossível, pois o crime, o roubo, a guerra, etc.,
iriam dilacerar a sociedade. Assim, se justifica e legitima, ao mesmo tempo, o
“monopólio do uso legítimo da força” (Weber, 1986).
É claro que esta argumentação da dilaceração da sociedade por falta de uma
instituição repressiva toma como base a sociedade existente, onde as
contradições de classe e o conjunto de conflitos derivado delas, bem como a
exploração e a pobreza, criam um alto índice de violência e “delinqüência”
(sendo que esta é definida pelas leis da referida sociedade que busca tornar
regra as relações sociais existentes, tal como se vê, no capitalismo, no
chamado “direito à propriedade”, que é o direito da burguesia se manter
proprietária dos meios de produção e o proletariado se manter como
não-proprietário.)
Em
algumas sociedades, para reforçar a ideologia e legitimar o estado, surge um
conjunto de regras formais chamado direito, que busca regularizar, numa série
de leis, as relações sociais existentes.
Outros
elementos colaboram com a permanência do estado como instituição repressora e,
ao mesmo tempo, aceita pela sociedade, ou seja, “legitima”, tal como, por
exemplo, o apoio da classe dominante. Porém, é a repressão e a ideologia (bem
como sua difusão e popularização) que são os principais elementos que garantem
a reprodução desta relação de dominação de classe chamada de estado. Em
determinado modo de produção ou em certos momentos históricos deste, existe um
predomínio da repressão sobre a ideologia ou o contrário. Mas apesar do predomínio
de uma ou de outra, ambas coexistem. Elas não existem sem motivo. O que as
tornam necessárias é a luta das classes exploradas, pois estas resistem sempre.
A
fonte do poder não é o estado e sim o que lhe dá sustentação. É o modo de produção
que é a fonte do poder. A dominação que a classe dominante exerce sobre o
processo de produção, ou seja, sobre o processo de trabalho executado pela
classe produtora, é que é a fonte do poder.
Isto
ocorre pelo simples motivo de que a classe dominante ao dirigir o processo de
produção controla os meios de sobrevivência disponíveis na sociedade e
assim coloca todas as demais classes sociais sob sua dependência. A única
classe que poderia romper com isto é a classe produtora. Esta, porém, precisaria
abolir não só as relações de produção como enfrentar a oposição das classes
auxiliares da classe dominante, pois é esta que lhes garante os seus
privilégios, entre as quais a burocracia estatal, ou seja, o próprio
estado.
Quais são
as razões disto? É a produção e reprodução da vida material que garante a
sobrevivência de uma sociedade. Os seres humanos precisam comer, beber, vestir,
etc., e para fazer isto precisam manter uma relação com natureza mediada pelo
trabalho. Os meios de sobrevivência são adquiridos no processo de trabalho. O
trabalho produtivo permite a produção de um excedente que poderá fornecer os
meios de sobrevivência aos não-trabalhadores.
A
classe dominante controla essa produção e daí extrai mais-trabalho da classe
produtora e assim consegue os meios necessários para sua sobrevivência. Ocorre,
porém, que a classe dominante precisa sustentar aqueles que irão controlar o
estado e reprimir a resistência das demais classes sociais. Por isso, ela
sustenta a classe improdutiva que se aquartela no estado, a burocracia. Esta,
portanto, existe e se reproduz graças à classe dominante.
A
burocracia estatal é dependente da classe dominante e existe para servir aos
interesses dela. Sem dúvida, a burocracia estatal busca se autonomizar mas não
ultrapassa certos limites. É por isso que o estado possui uma autonomia
relativa. Esta autonomia relativa lhe permite, por exemplo, reprimir indivíduos
e frações da classe dominante e isto reforça a aparência de autonomia e a ilusão
de que ele é a fonte de poder. Paralelamente a isto, ele se legitima e passa a
ser considerado “neutro”, “imparcial”, “público”, etc.
Acontece, contudo, que esta ação contrária a indivíduos e frações da classe
dominante não é realizada contra o conjunto desta classe, pois, se fosse,
significaria solapar o seu próprio meio de sustentação. É por isso que existe
uma unidade de interesse entre o estado e a classe dominante mesmo quando esta
não o dirige diretamente. A partir disto tudo se conclui que a fonte do poder
se encontra na dominação sobre o processo de produção da vida material
realizada pela classe dominante.
As
teses que afirmam a existência de uma autonomia do estado e se esquecem que
esta autonomia é relativa, possuem como principal problema a consideração de
que o estado pode servir de ponto de partida para a transformação social. Toda
concepção que aponta a conquista do estado como meio de transformação social
(tal como o bolchevismo) é uma ideologia da burocracia, pois apenas há uma mudança
no pessoal que é responsável pela direção do estado e que cumpre o papel de
buscar reproduzir as relações de produção.
Na
verdade, a burocracia aquartelada no estado não pode transformar o conjunto das
relações sociais e muito menos as relações de produção. Para se fazer isto
seria necessário o apoio de uma das duas classes fundamentais que se relacionam
no processo de produção: a classe exploradora e a classe explorada. A
burocracia estatal não participa das relações de produção e por isso não pode
intervir diretamente nelas e desta forma a alteração das relações de produção
está fora do seu controle.
Se é o
modo de produção a fonte do poder, então o que adianta combater o estado?
Podemos dizer que sem alterar as relações de produção de nada adianta
conquistar o estado. Este não possui autonomia suficiente para alterar as
relações de produção. Entretanto, nenhuma transformação social ocorrerá se se
deixar intacto o poder coletivo da classe dominante, ou seja, o estado. Ele é,
geralmente, o último obstáculo que todo movimento de transformação social tem
que enfrentar para concretizar-se. Mas não se trata de conquistá-lo e sim de
destruí-lo, se o objetivo for abolir a sociedade de classes (Marx, 1986).
O modo
de produção não só é a fonte do poder como cria um conjunto de relações sociais
que lhes são idênticas. Estas relações sociais são formas de regularização
tanto do modo de produção quanto de si mesmas. Neste contexto, todas as formas
de dominação são derivadas e idênticas à dominação de classe no processo de
produção. Desta forma, o modo de produção é a determinação fundamental da
totalidade ao qual chamamos sociedade.
Historicamente, a criação da burocracia estatal, como classe auxiliar da classe
dominante, é marcada por contradições específicas em cada modo de produção. No
capitalismo, a classe dominante, a partir de um certo estágio de
desenvolvimento deste modo de produção, cede o domínio do processo de trabalho
à burocracia na indústria. Assim, surge a burocracia civil. Com a expansão da
divisão social do trabalho e a criação de diversas instituições privadas
(principalmente ligadas à democracia representativa, tal como os partidos
políticos, entre outras) e estatais há uma burocratização das relações sociais
e o surgimento da sociedade civil organizada, que possui a função de realizar
uma mediação burocrática entre estado e sociedade (Viana,
2003).
Em
outras palavras, com a expansão da divisão social do trabalho, surge um
conjunto de instituições estatais e privadas que são dominadas pela burocracia,
tal como partidos, igrejas, sindicatos, hospitais, escolas, etc., instituições
burocráticas privadas formam a chamada sociedade civil organizada. Neste
sentido, há uma burocratização crescente das relações sociais e a burocracia, enquanto
classe social, se vê reforçada. Ocorre, porém, que ela é perpassada por suas
divisões internas (burocracia estatal x burocracia civil, burocracia do
aparelho de estado x burocracia das instituições estatais, etc.).
Independentemente disto, a visão aparente que deriva daí é que é o estado o
centro do poder e que é conquistando-o que se pode realizar a transformação
social.
Desta
forma, o poder se reproduz no conjunto das relações sociais. O poder surge na
produção e se condensa no estado. Após isto ele se espalha para o conjunto da
sociedade. Todas as instituições privadas e estatais se organizam de forma
burocrática, estando submetidas as relações dirigentes-dirigidos que perpassa
todas as suas camadas constitutivas, isto é, todas as suas instâncias.
Contudo, o que ocorre é que é no modo de produção que se produz o excedente que
sustenta a classe dominante e o conjunto de trabalhadores improdutivos, tal
como os burocratas, e é daí que surge a dominação. Neste caso, o que há é uma
confusão que executa uma identificação da fonte do poder com a sua reprodução.
Podemos, para esclarecer esta questão, dizer que a fonte do poder é onde o
poder surge, sendo que sua origem é, ao mesmo tempo, o seu fundamento. A re-produção
do poder é onde este poder fundamental é novamente produzido seguindo a mesma
lógica embora com algumas alterações devido a especificidade do local onde
ocorre esta reprodução. Em suma, a fonte do poder é onde ele é produzido e a
reprodução do poder é onde ele é re-produzido.
Referências
Bibliográficas
COPANS, J. A Antropologia Política. in: COPANS, J.
e outros. Antropologia: Ciência das Sociedades Primitivas? Lisboa.
Edições 70. 1988.
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado. Lisboa, Presença, 1988.
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo,
Global, 1986.
VIANA, N. A Origem da Dominação. Revista
Possibilidades, ano 01, nº 04, Abr./Jun. de 2005.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio
de Janeiro, Achiamé, 2003.
WEBER, M. Três Tipos de Dominação Legítima. In: COHN, G. (org.). Weber. São Paulo, Ática, 1986.
Nildo Viana
A
Origem da Dominação
Publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista,
Ano 1, num. 4, Abr./Jun. de 2005.
Como
surgiu o poder? Esta é uma pergunta que já recebeu muitas respostas. Hoje, esta
resposta possui uma versão bastante difundida, que é defendida por diversas pessoas,
principalmente ligadas à teoria antropológica. Segundo esta abordagem, a
dominação do sexo feminino precedeu a dominação de classe e por conseguinte é
aí que reside a origem do poder. A versão marxista apresenta sua tese de que é
com o surgimento das classes sociais que aparece o poder.
É daí
que surgem as duas visões sobre a opressão da mulher: o marxismo –com raras
exceções (influenciadas pela antropologia)–, defende a tese da existência do matriarcado,
e as antropólogas “feministas” e os antropólogos em geral, com poucas exceções
(sendo que na maioria destas há a influência do marxismo), defendem a tese da
subordinação universal da mulher. São duas posições que se apresentam como duas
teorias do surgimento do poder. Ambas, entretanto, apresentam problemas, como
veremos a seguir. Mas elas deixam claro uma coisa e tal coisa será o ponto de
partida do nosso estudo: a questão da origem da dominação da mulher é um
elemento na história da humanidade que poderá contribuir com a resposta sobre a
questão da origem do poder.
A tese
do matriarcado teve como primeiros defensores as figuras de Bachofen e Morgam.
Estes dois “precursores da antropologia”, como se costuma dizer, ao analisarem
os mitos das sociedades antigas ou então as sociedades indígenas, observaram o
considerável poder que as mulheres possuíam diante dos homens. Aperfeiçoando e
se baseando no material recolhido por estes dois pesquisadores, Marx e
principalmente Engels lançariam a idéia de que existiu um matriarcado antes do
surgimento da sociedade de classes e que o aparecimento das classes sociais
seria o fator que teria provocado a dominação masculina sobre a mulher. Alguns
poucos antropólogos e outros cientistas sociais aceitam ainda hoje, se baseando
em novos dados, esta tese.
Entretanto, a partir do surgimento da obra de Simone de Beauvoir, O Segundo
Sexo, e, posteriormente, de Claude Lévi-Strauss, Estruturas Elementares
do Parentesco, tornou-se comum refutar a idéia de que tenha existido um
matriarcado e a se defender a tese de que a subordinação da mulher é universal.
Tal idéia ganhou penetração no movimento feminista graças a obra de Beauvoir e
na antropologia graças ao livro de Lévi-Strauss. Antropólogos, antropólogas,
antropólogas feministas, feministas culturalistas, passaram a fazer parte
daqueles que postulam a existência da subordinação universal da mulher. As
raras exceções se deviam a influência do marxismo.
Ocorre, porém, que desde a obra de Simone de Beauvoir existe uma ambigüidade
não resolvida. Para esta representante do existencialismo, não se nasce mulher,
mas torna-se mulher e sempre houve a subordinação da mulher, pois esta é uma “condição
natural”. Entretanto, ela pergunta a si mesma sobre o início da subordinação
da mulher:
“mas uma
questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a
dualidade dos sexos, como toda dualidade, se tenha traduzido num conflito.
Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta
deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu
desde o início” (Beauvoir, 1978, p. 19).
Ora, se é
universal, então não surgiu, sempre existiu. Neste sentido, a formulação é
contraditória. O natural não teve começo, pois a naturalidade de algo vem do
desenvolvimento espontâneo. É somente quando o ser humano interfere através da
cultura é que se rompe com a natureza. Sendo assim, não há sentido em dizer que
é natural e simultaneamente perguntar pelo começo. De onde vem esta ambigüidade?
Ela
vem da ambigüidade comum daqueles que são oprimidos e buscam sua libertação,
mas não conseguem fazê-lo de forma autônoma. Em outras palavras, devido a esta
falta de autonomia os oprimidos utilizam as concepções, linguagem e ideologia dos
dominantes para se efetivar uma crítica da dominação, mas tal crítica é
limitada justamente pelo motivo de que estes oprimidos não conseguiram se
libertar totalmente dos dominantes. Por isto, apenas podem postular uma
libertação parcial, utilizando-se de uma concepção parcialmente liberada da
ideologia dominante.
A tese
da subordinação universal da mulher possui outros defensores nos dias de hoje.
Este é o caso de antropólogas que buscam refutar Bachofen. É isto que tentou
fazer a antropóloga Joan Bamberger. Segundo ela, Bachofen teria analisado os
mitos das sociedades primitivas e uma análise dos mitos pode revelar que quando
eles falam de um “governo feminino” é para justificar e demonstrar que tal
governo é indesejável e que as mulheres perderam-no por que não sabiam
utilizá-lo (Bamberger, 1978). Pois bem, tal tese seria até certo ponto
aceitável se ela tivesse analisado os mesmos mitos que Bachofen.
Ocorre, porém, que ela analisou mitos do continente americano e, assim, sua
refutação de Bachofen é apenas uma comparação entre dois temas de estudo
diferentes. Sociedades e mitos diferentes. Uma análise desmistificadora deveria
ter analisado o mesmo tema. Além disso, o fato de que os mitos descritos por
Bamberger retratarem um período de “governo feminino” significa que elas
tiveram o poder de fato ou então que podem conquistá-lo, pois, caso contrário,
qual seria o motivo de se criar tais representações sobre o mal que é o governo
feminino? Esta interpretação dos mitos retira o contexto social no qual eles
foram produzidos e desconhece o seu caráter simbólico. Na verdade, no mito não
se fala de “governo feminino” e o que ele retrata só pode ser compreendido
levando-se em conta não só a relação mulheres-homens, mas também todas as
demais relações sociais.
Além
disso, não se entende como os homens, superiores naturais e universais, segundo
este tipo de abordagem, poderiam perder tempo criando fabulosas estórias sobre
o “desgoverno feminino”, se as pobres e universalmente subordinadas mulheres
não tivessem nenhuma condição de implantar o seu domínio. Aliás, esta postura
reflete bem a visão de vítima daqueles oprimidos que não possuem um projeto de
libertação. Eternas vítimas da história, da natureza, do dominante.
Na
verdade, não se pode provar a existência de uma subordinação universal da
mulher. Isto se deve ao fato de que a própria noção de subordinação (tal como
muitas outras noções correlatas ou não, tal como “governo”, hierarquia, etc.)
apresenta dificuldades quando aplicada às sociedades primitivas ou indígenas. O
que é a subordinação? O uso desta palavra, neste caso, tem um sentido
claramente não-marxista. Subordinação, Sub-ordem, Hierarquia, Estratificação.
Tais são as palavras que vêem para substituir a teoria marxista das classes
sociais. A mulher subordinada significa que ela constitui uma sub-ordem. Assim,
existem ordens a, b, c, d, e assim por diante, sendo que as primeiras possuem,
no que diz respeito às sociedades, mais poder, prestigio, autoridade, ou seja,
estão no cume da pirâmide da hierarquia social, da estratificação. Desta forma,
se destrói a visão da totalidade e se isola relações (que passam a ser, na
ideologia feminista mais recente, de “gêneros”...), criando mais uma ideologia,
inversão da realidade.
Neste
sentido, existia subordinação da mulher? Bom, seria muito difícil falar em
ordens numa sociedade que os próprios antropólogos chamam de “holistas”. Além
disso, todas as categorias utilizadas para retratar isto, seriam deslocadas em
tais sociedades, pois poder, prestigio, hierarquia, estratificação, etc., são
expressões ilusórias das relações sociais em nossa sociedade. Aliás, é o
estruturalismo que utiliza a expressão subordinação no estudo das relações de
parentesco nas sociedades simples. A concepção estruturalista reproduz uma
posição que é hegemônica na concepção positivista: busca criar um modelo para
encaixar a realidade. A matemática e a lingüística, podem muito bem falar em
subordinação, seja de números ou de orações. A ideologia das ordens vem para
justificar a sociedade existente, pois diz que a divisão da sociedade em ordens
(ao invés de classes e mesmo quando se utiliza esta expressão é no interior de
uma concepção de hierarquia e estratificação) sempre existiu e por isso irá
continuar existindo. Podemos dizer que existem, factualmente, ordens, mas na
ideologia tais ordens são apresentadas como dados naturais (o que torna
possível sua universalização) e a-históricos (logo, universais), pois se omite
o seu processo de formação, reprodução, os seus fundamentos sócio-históricos.
Assim, existe subordinação na sociedade capitalista, mas sua gênese e
reprodução é omitida e só resta os dados naturais, comprovados por fatos
transformados em fetiches.
Assim,
o que se vê é que são duas posições antagônicas a respeito da “dominação
masculina” e que este antagonismo não é resultado da visão das sociedades
primitivas ou indígenas e sim das contradições da nossa sociedade, que é onde
se produzem as categorias, ideologias, visões de mundo, “métodos”, com os quais
se analisa ao outras sociedades. O antagonismo está em nossa sociedade. A tese
da subordinação universal da mulher é uma ideologia burguesa e nada mais do que
isto. Ela projeta e assim naturaliza e universaliza uma forma de opressão desta
sociedade, e assim contribuiu com sua reprodução.
E a
tese do matriarcado? Já se disse que ela foi aceita tanto pelos adeptos do
socialismo quanto por extremistas de direita (Fromm,
1977). Na verdade, o que se pode perguntar é se é possível ter existido um
“governo feminino” numa sociedade simples. É difícil comprovar tal tese, mas
independente dos fatos que podem elucidar a questão, é preciso dizer que não se
trata de “governo feminino”, pois não há governo em tais sociedades. Trata-se
de uma utilização indevida de uma noção que se aplica apenas às sociedades de
classes. Neste sentido, nunca houve matriarcado. Mas se observarmos o que disse
Engels (1988), veremos que ele utilizou a
palavra “matriarcado” apenas 5 vezes, sendo que utilizava de preferência a
expressão “direito materno” (considerando mesmo esta expressão, utilizada
originalmente por Bachofen, inexata, pois não existia “direito” nas sociedades
primitivas, e isto revela que Engels era muito mais cuidadoso do que muitos
antropólogos de hoje, que falam, de forma ideológica, sobre “governo” e outras
expressões inaplicáveis nas sociedades simples).
O que
significava matriarcado na concepção de Engels? Para ele, o matriarcado representava
o fato de que a mulher possuía um “prestígio” e uma posição muito superior a
que a mulher encontra nos dias de hoje. Significava também que a descendência
era definida pela linha materna (Engels, 1988).
Portanto, Engels nunca falou de algo como um “governo feminino”, embora por
vezes ele colocava a opinião, retirada dos dados que lhe eram disponíveis na
época, de que elas detinham a decisão sobre as questões mais importantes das
sociedades primitivas. No sentido restrito apresentado por Engels, não há
nenhuma prova de que o “matriarcado” não tenha existido.
O
problema, entretanto, está não na discussão da existência de um matriarcado ou
não e sim na da existência da subordinação universal da mulher ou não. No
primeiro caso, temos uma idéia de que o poder sempre existiu, ou seja, que ele
é constitutivo do social. Assim, a abolição do poder seria impossível, pois
seria anti-social.
Na
verdade, como já colocamos anteriormente, a tese da subordinação universal da
mulher não tem uma fundamentação convincente. As pesquisas das sociedades
simples são feitas com esquemas analíticos deficientes (que são produtos da
mentalidade da sociedade contemporânea, capitalista, e, portanto, estão
carregados de preconceito étnico) e uma ideologia típica da sociedade existente
(expressa pelos métodos utilizados: estruturalismo, funcionalismo, etc.). É
bastante difícil para um ser humano criado em nossa sociedade imaginar uma
outra sociedade sem hierarquia, sem poder, sem divisão, etc., e significa uma
limitação na apreensão da especificidade das demais sociedades. A linguagem, os
métodos, as hipóteses, etc., são produzidas na sociedade capitalista
contemporânea e são, na verdade, na grande maioria dos casos, uma projeção
desta sobre as sociedades simples. Aliás, tal visão se projeta não só sobre as
sociedades simples mas até mesmo sobre as “sociedades animais”, onde se vê,
entre outras coisas, hierarquia, que passa, assim, a ser considerada universal (Moscovici, 1977).
A
idéia da subordinação da mulher é fundamentada na sua situação inferior nas
sociedades simples ou então numa nova interpretação dos mitos indígenas. Novos
dados colhidos, entretanto, refutam a fundamentação que se baseia na situação
inferior da mulher (Sacks, 1980; Moore, 1991).
Resta, então, a fundamentação baseada nos mitos. Esta é muito mais
questionável, pois os mitos podem ser interpretados de mil e uma maneiras,
inclusive sobre formas extremamente arbitrárias e deslocadas da realidade no
qual eles são produzidos.
Apresentar uma interpretação diferente sobre os mitos que colocam a mulher numa
posição inferior, por exemplo, pode ilustrar a limitação deste tipo de análise
e também observar a flexibilidade com que um mito ou qualquer outra
representação cultural oferece para sua interpretação. Uma interpretação
alternativa é a de que os mitos quando colocam a mulher como perigosa,
feiticeira, etc., não expressa a visão da mulher em si e sim algo que ela
representa. Isto é perfeitamente aceitável tendo-se em vista que o mito se
manifesta sob uma linguagem simbólica. Nas sociedades simples as relações de
parentesco são marcadas pela regra da exogamia, onde um homem de um clã não
pode se casar com uma mulher do mesmo clã e vice-versa. Assim, ele irá se casar
com uma mulher do outro clã. As relações entre os clãs que compõem uma tribo
são marcadas pela necessidade de retribuição, tanto de pessoas (casamento)
quanto de bens (presentes, alimentos, etc.). Assim, podemos interpretar estes
mitos como sendo expressão não da visão da mulher em geral ou de todas as
mulheres e sim uma utilização da mulher para simbolizar o outro clã, o que
reflete uma oposição entre clãs e não entre homens e mulheres. Aliás, segundo
alguns antropólogos, a mãe não se inclui nunca entre as mulheres dos quais se
desconfia.
Também
seria útil analisar a interpretação de Lévi-Strauss sobre a “troca de
mulheres”. Ele diz que, de acordo com as regras de exogamia, são os homens que
trocam as mulheres e não vice-versa (Lévi-Strauss,
1982). Ora, tal interpretação pode ser questionada, pois o que garante
que são as mulheres que são trocadas e não os homens? O simples fato da mulher
ir para o clã do homem não é suficiente para provar isto, pois o que é a troca?
Uma troca ocorre quando alguém oferece algo em retribuição à outra coisa, ou
seja, X oferece um bracelete em troca de um colar que recebe de Y. Portanto, há
aqui uma relação social entre dois indivíduos (X e Y) e uma transação de dois
objetos (bracelete e colar). Esta relação ocorre no contexto das regras de
exogamia? É muito difícil alguém dizer isto, pois se persiste uma relação
social não entre indivíduos e sim entre grupos de indivíduos (clãs), não há
entretanto a transação entre dois objetos, pois se o que se troca são as
mulheres, elas são trocadas pelo quê?
Sem
dúvida, Lévi-Strauss e seus discípulos poderiam dizer que as mulheres são
trocadas por outras mulheres, pois um homem ao adquirir uma mulher de um clã
aceita doar todas as mulheres do seu clã a outro clã. Os objetos da transação
seriam as mulheres. Esta concepção retoma o velho individualismo de nossa
sociedade e o projeta sobre as sociedades simples, pois na verdade a troca
ocorre entre clãs e não entre indivíduos, ou seja, não são os homens enquanto
indivíduos e sim os clãs que realizam a troca. Em outras palavras, se o clã X
oferece uma mulher, resta saber o que ele recebe em retribuição. Dizer que é
outra mulher só faria sentido se esta relação ocorresse entre apenas dois clãs,
o que não ocorre na maioria dos casos, que envolvem 4 ou 8 clãs e as regras de
exogamia diz que o clã X deve buscar parceiros no clã Y, mas este deve
buscá-los no clã Z e este, por sua vez, no R e (no caso de quatro clãs) este no
X. Desta forma, o clã X ofereceu uma mulher para o clã Y não este não lhe
retribuiu com nada. Assim, vê-se que não há troca nenhuma. Se deixarmos de lado
quem vai residir no clã de quem, poderíamos aplicar este esquema defeituoso de
análise para dizer que o que existe é uma troca de homens. Para se utilizar a
idéia de troca teria que se dizer que o que se troca é mulheres por homens ou
homens por mulheres e neste sentido não há troca de mulheres e sim troca de
homens por mulheres ou vice-versa. Mas como esta relação ocorre entre clãs,
então o mais correto é se afirmar que não existe troca nesta relação. O que existe
é uma relação social e a idéia de troca não passa de um reflexo da mentalidade
da sociedade capitalista que se projeta sobre as sociedades indígenas, onde não
há troca de mulheres.
Outra
resposta é a de que em troca das mulheres se recebe pequenos objetos (facas,
por exemplo) ou animais (porco, por exemplo). Mas aí não se poderia falar em
troca de mulheres e sim em troca de mulheres por objetos. A troca mercantil é
uma troca de coisas que se apresentam como equivalentes (mercadoria por
mercadoria, que podem sem dúvida ter valores diferentes). A troca não-mercantil
é uma troca que não precisa possuir elementos materiais para se manifestar e
não possui a necessidade de retribuição imediata. A questão dos presentes
relacionados com os “casamentos” significa não uma troca e sim um sinal de
amizade e nada mais do que isso.
Mesmo
se houvesse tal troca, deveria-se reconhecer que quem a realiza são os clãs e
não os homens e isto significa que não há subordinação das mulheres. O próprio
Lévi-Strauss, que fala que são os homens que trocam as mulheres, apresenta
afirmações, quando se refere ao pedido de casamento entre os bosquímanos da
África do Sul, que refutam tal idéia:
“Os pais
da moça, solicitados por um intermediário, respondem: somos pobres, não podemos
nos permitir entregar nossa filha. O pretendente visita então sua futura sogra
e diz: vim falar com a senhora; se morrer, eu a enterrarei, se seu marido
morrer, eu o enterrarei. A isso se segue imediatamente os presentes”
(Lévi-Strauss, 1982, p. 105).
Os
itálicos não são de Lévi-Strauss, pois isto significaria reconhecer que se há
uma troca de mulheres, o pretendente deveria se dirigir ao pai e não a mãe da
pretendida. Isto revela antes de tudo a visão sexista e carregada de
preconceito étnico que este antropólogo possui das sociedades simples. Para
ele, como é comum em nossa sociedade, o homem é o sujeito e a mulher é o objeto
e o primeiro controla o segundo. Visão, portanto, sexista.
Se não
há troca de mulheres, então não há necessidade de refutar as teses que buscam
explicá-las, tal como a de Godelier, que afirma que a troca de mulheres ocorre
pela necessidade dos “indígenas” controlarem as “produtoras de força de
trabalho” (Godelier, 1980).
O que
resta explicar é a origem da dominação. A origem da dominação masculina não
precede a dominação de classes pelo simples fato de que nas sociedades
primitivas, assim como nas sociedades indígenas, não existe dominação da
mulher. Por isso, a questão a ser respondida não é sobre a origem da dominação da
mulher e sim a origem da dominação de classe.
O
processo histórico que culminou com a formação das sociedades de classes se
caracterizou por ser longo. Não cabe aqui remontar o processo de transição da
animalidade para a humanidade, que foi extremamente longa, tal como vários
pesquisadores reconhecem (Geertz, 1980; Moscovici,
1977; Leontiev, 1980; Engels, 1980). Mas é necessário colocar em
evidencia a existência dessa transição. Sem dúvida, o ser humano foi o
resultado de um longo processo histórico, ao contrário do que pensam aqueles
que consideram que ele surgiu de repente, em um momento que seria um “ponto
crítico”.
A vida
animal é uma vida comunitária e não é desprovida de laços entre os seres que compõem
uma determinada população animal. A teoria de Mendel segundo a qual a vida
animal não deve ser estudada a partir de indivíduos e sim a partir de uma
população é extremamente correta. Os macacos de várias espécies (rhesus,
chimpanzés, gorilas, etc.) vivem em bandos (Moscovici,
1977). As primeiras sociedades humanas compartilham as mesmas
características das populações animais. As sociedades de caçadores-coletores
também viviam em bandos (Service, 1971; Moscovici,
1977).
O
interessante é descobrir alguma hipótese sobre a origem do poder a partir da
transformação da sociedade. Podemos reconhecer que as sociedades de
caçadores-coletores eram bastante dependentes dos recursos existentes no meio
ambiente. A relação que esta sociedade mantinha com o meio ambiente é
fundamental para se compreender as suas relações internas. Isto se deve ao fato
de que as sociedades primitivas não possuírem as condições de produzirem seus
meios de existência, mas apenas de colher ou caçar o que existe de disponível
no meio ambiente.
O
desenvolvimento das forças produtivas marca a origem das sociedades de classes.
Tal desenvolvimento significou o desenvolvimento da “principal força
produtiva”, a força de trabalho. Os seres humanos desenvolveram suas
habilidades tanto manuais quanto intelectuais através destas mesmas atividades.
Eles também criaram meios exteriores que permitiam-lhes enfrentar os obstáculos
do meio ambiente. Tais meios foram armas, técnicas, consciência de aspectos do
meio ambiente (tanto do mundo animal quanto vegetal), etc.
Isto
já vinha ocorrendo desde a época das sociedades de caçadores-coletores, nas
quais se utilizavam armas, tais como arcos e flechas, machados de pedra, etc.,
e também se desenvolvia a consciência relacionada com o processo da caça, onde
se buscava descobrir as formas mais adequadas de encontrar e submeter a caça.
Este
desenvolvimento produziu um aumento populacional, pois desta forma cai o índice
de mortalidade infantil e aumenta-se a idade média de vida das pessoas, já que
há o crescimento da produção, a criação de formas de defesa de outros animais
mais eficientes, elevava-se a quantidade de alimentação adquirida, etc. Este
crescimento populacional, por sua vez, provocou a criação de diversas regras
sociais para controlá-lo. Podemos dizer, que uma das principais características
deste tipo de sociedade é a busca incessante do controle sobre o aumento
populacional. As regras de exogamia têm como principal objetivo controlar este
crescimento. O mesmo acontece com as guerras e é este também o motivo do
infanticídio realizado por algumas sociedades primitivas.
O
desenvolvimento posterior se caracterizou pela aprendizagem da domesticação dos
animais e da agricultura. Daí surge a transição do nomadismo ao sedentarismo.
Isto tem várias conseqüências para a sociedade primitiva. Uma delas se encontra
no fato de que pela primeira vez se podia falar em propriedade do solo. A
agricultura abriu caminho para o domínio sobre territórios e o pastoreio abriu
caminho para a propriedade de animais. Entretanto, o aparecimento da
propriedade não aparece imediatamente com tal transição. Apenas a sua
possibilidade está dada. Cabe lembrar que daí surge a propriedade coletiva. Há
assim um crescimento da produção, o que provoca o crescimento populacional.
Este crescimento já não era controlado pelas comunidades devido ao fato da
produção ter aumentado. Mas aí também se revela um crescimento da divisão do
trabalho. Surge a especialização do trabalho. Isto é reforçado com o
desenvolvimento da cerâmica e da metalurgia. Pastores, agricultores, ferreiros,
etc., componham o novo quadro de divisão do trabalho, que se limitava, na
comunidade primitiva, à divisão sexual e etária do trabalho. Também surgem os
sacerdotes e como veremos adiante, os guerreiros especializados.
A
expansão da divisão social do trabalho não constitui ainda as classes sociais
devido ao fato de sua interdependência e a existência de uma unidade social que
produzia a cooperação sem haver exploração. A divisão existia mas não produzia
classes justamente porque a divisão estava submersa na homogeneidade da
comunidade. Entretanto, não só a possibilidade estava dada como a tendência ao
surgimento das classes já existia e se manifestava. O crescimento da divisão
social do trabalho provocou alterações no conjunto das relações sociais, tal
como nas relações de parentesco, nas relações intertribais, no novo papel
atribuído às crianças, etc.
O
aumento da produção não só proporcionou um crescimento populacional como também
possibilitou o surgimento da produção mercantil simples, a troca mercantil
simples, o sedentarismo, a expansão territorial, etc. A guerra também se tornou
mais intensa. Isto ocorreu devido a diversos motivos, sendo que três se
destacavam: a) a utilização de metais como o cobre, que não é encontrado com a
mesma facilidade que a pedra e que se encontra principalmente em regiões
montanhosas, produziu a necessidade de expedições para tais regiões, o que
certamente provocava confrontos entre tribos diferentes (sem dúvida, ao lado das
tribos de agricultores e pastores continuavam existindo outras tribos, tanto de
caçadores-coletores, quanto de outros tipos que poderíamos chamar de “mistos”
ou “intermediários”); b) o aumento populacional que produzia “aldeias-filhas” (Gordon Childe, 1988) e, conseqüentemente, a expansão
territorial; e c) o esgotamento do solo pelo seu uso sem utilização de técnicas
de restauração, o que tornava necessário a mudança de território.
Esta
guerra teve como principal conseqüência a formação de uma casta nova: a casta
dos guerreiros. Estes se especializaram na guerra e na proteção de suas
aldeias. A produção de um excedente visando a manutenção da comunidade em
tempos de entre safra acabou sendo utilizada em parte para sustentar esta
casta, que buscava cada vez mais se autonomizar. Os inimigos eram mortos
e a descoberta da possibilidade de “domesticar” os seres humanos abriu caminho
para a instituição da escravidão. Podemos colocar a hipótese de que foram os
guerreiros que se tornaram os primeiros senhores de escravos e formaram uma
união para manter o seu domínio sobre os escravos e posteriormente sobre toda a
comunidade. Nasce, assim, a sociedade de classes. Esta união de guerreiros para
manter o controle dos escravos e posteriormente de toda sociedade é o que
chamamos de estado (que devido ao fetichismo da linguagem sua inicial é escrita
geralmente com letra maiúscula e aqui rompemos com tal idolatria). Desta forma,
as sociedades de classes e o estado surgem simultaneamente, ou seja, a
propriedade privada não antecede a existência do estado e o estado não antecede
a existência da propriedade privada e, neste sentido, tanto alguns
“anarquistas” quanto alguns “marxistas” estão equivocados. Esta é a origem da
dominação, do poder. O estado surge com o surgimento da dominação de classe na
produção.
O modo
de produção escravista se expande e demonstra o seu potencial econômico
subjugando todas as outras formas de produção e o desenvolvimento da troca
mercantil simples acabou proporcionando o comércio de escravos e o surgimento
de uma nova forma de transformar os homens e mulheres livres em escravos:
através da dívida. A moeda, já em uso nesta forma de sociedade, e a troca
mercantil simples marcariam um meio adicional de se conseguir escravos, a
principal fonte de riquezas do escravismo antigo.
É
assim que surge a sociedade de classes. A opressão da mulher, no verdadeiro
sentido do termo e não no sentido fantasioso que se vê em certas concepções,
surge a partir daí, embora as relações sociais entre os sexos já tivesse
começado a alterar-se durante o período de transição. A mulher livre passava a
ter uma posição inferior no interior da unidade de produção e a escravização
das mulheres se tornou comum na sociedade escravista. As mulheres foram
transformadas, ideologicamente, em seres inferiores e equivalentes aos escravos
e estrangeiros, ou seja, possuindo um estatuto social e político inferior. No
plano social, o trabalho das mulheres livres não era compensado, pois era
revertido para o marido, devido à instauração da monogamia e assim se pode
instaurar o processo de herança da propriedade e a opressão da mulher pelo
homem.
Em
outros lugares, em especial na Ásia, houve uma forma diferente de transição
para a sociedade de classes. Trata-se do surgimento não do modo de produção
escravista e sim do modo de produção tributário, também chamado de modo de
produção asiático. Este se caracterizava pelo surgimento de um grupo de pessoas
que controlava as diversas comunidades produtoras através de um poder centralizado
e realizava a exploração através da cobrança de tributos justificada pela
realização de tarefas coletivas de grande envergadura, tal como a irrigação de
terras não aptas para a produção. Aqui também o estado surge junto com as
classes sociais. A burocracia tributária domina os aldeões e lhes explora, ou
seja, a classe proprietária é ao mesmo tempo a classe dirigente.
No
modo de produção escravista, os senhores de escravos dominam estes nas unidades
de produção e o controle sobre eles e demais classes e frações de classes é
realizado pelo poder coletivo desta classe, o estado. Surge uma divisão no
interior da classe dominante entre os que se voltam apenas para a exploração na
unidade de produção e aqueles que cuidam da manutenção destas relações, ou seja,
se aquartelam no estado. No modo de produção tributário, esta divisão não
ocorre e esta é uma das principais diferenças entre estes dois modos de
produção. Nesta forma de dominação, marcada pelo conflito entre dominantes e
dominados, ou seja, pela luta de classes, surge momentos de crise e de
decadência. Abre-se espaço para a formação de novas formas de sociedade. Na
Europa ocidental, ocorreu a transição para o modo de produção feudal, o que
significou a transição da exploração do escravo pela exploração do servo.
Posteriormente, neste mesmo continente, surgiria o modo de produção
capitalista, uma nova forma de exploração de classe, marcada pela dominação da
classe capitalista sobre a classe operária. Este, com sua tendência
expansionista, tomou conta do mundo ou, segundo a expressão de Marx, criou “um
mundo a sua imagem”.
Enfim,
podemos dizer que a origem do poder significa a origem do estado, das classes
sociais, da propriedade privada, etc. Isto tudo significa apenas modos de ver a
mesma coisa, são aspectos indissoluvelmente ligados. Neste sentido, o poder,
isto é, a relação de dominação, surge com as classes sociais e o seu par
inseparável, o estado.
Referências
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Nildo Viana
O
Capitalismo de Estado da URSS
Publicado
originalmente na Revista Ruptura, num. 1, maio de 1993.
Um
Lombardo Radice, por exemplo, fala de "Socialismo Despótico";
outros falam de "Socialismo de Estado"; outros, ainda, de
"Capitalismo de Estado". Na verdade, tudo depende do ponto de
vista. Se considerarmos o ponto de vista do operário, que vende sua força de
trabalho, como mercadoria, ao Estado já que é o Estado que gerencia a economia
e as empresas -para ele, operário é o mesmo que viver sob o capitalismo. Ingolf
Diener
Quando
Marx escreveu O Capital afirmou que partia do ponto de vista do
proletariado. Este, segundo a teoria marxista, é o sujeito histórico que abole
não só a sociedade burguesa mas a sociedade de classes em geral. O mais
desenvolvido modo de produção classista da História - o capitalismo - explora,
domina e aliena o proletariado. Este resiste, se levanta e coloca em xeque o
capitalismo. Por isso, é o seu ponto de vista que pode revelar as contradições
da sociedade burguesa e realizar o que Marx chamou "a crítica desapiedada
do existente". Hoje, o marxismo foi apropriado por outras classes
(burguesia, burocracia, etc.) para expressar um ponto de vista estranho ao do
proletariado. Trata-se, então, de nos reapropriarmos do marxismo como
"expressão teórica do movimento operário" (Korsch), inclusive na
análise da URSS e Leste Europeu.
Existem inúmeras interpretações sobre o caráter da sociedade soviética.
Além daquelas que defendem o caráter socialista da sociedade soviética (alguns
utilizando adjetivos tais como "Socialismo de Estado", "Socialismo
de Acumulação", "Socialismo Burocrático", etc.)
existem as que consideram uma "Sociedade de Transição" que
deverá caminhar para o socialismo. Aí se enquadra a tese Trotskista do "Estado
operário com deformações burocráticas" e a teses ambígua de Rudolf
Bahro que qualifica a URSS, de forma indecisa, como um regime "Proto-Socialista".
Há
também aquelas que julgam que a URSS não é nem socialista nem capitalista.
Trata-se de um modo de produção ou uma sociedade pós-capitalista mas não
socialista. Os conceitos são vários: Modo de Produção Tecno-Burocrático,
Modo de Produção Corporativista, Modo de Produção Estatal, Economia
Estatal Totalitária, Sociedade Militar, etc.
Entretanto, a corrente que conseguiu revelar o verdadeiro caráter da sociedade
soviética foi aquela que qualificou como uma nova forma de capitalismo: o
Capitalismo de Estado. Já na década de 20 surgem os primeiros teóricos e os
grupos que defendem esta tese: Amadeo Bordiga e a esquerda comunista italiana,
os comunistas conselhistas e o grupo "Verdade Operária" na URSS.
Para
Bordiga, foi a herança do "asiatismo" da Rússia que impossibilitou a
formação do capitalismo em sua forma clássica e que gerou o capitalismo de
Estado. Este seria uma formação social transitória e especificamente russa. O Modo
de Produção Asiático colocou suas intituições à serviço do desenvolvimento
capitalista gerando a estatização dos meios de produção. Esta seria uma etapa
transitória e temporária que prepararia a implantação do Capitalismo Privado.
Os
Comunistas Conselhistas (onde se destacam Korsch, Pannekoek, Gorter, Wagner,
Ruhle e Mattick) afirmaram que o desenvolvimento insuficiente das forças
produtivas gerou uma Revolução Jacobina (que também pode ser chamada de
"Contra-Revolução Burocrática") e esta caracterizou todas as
tarefas econômicas necessárias para a formação do Capitalismo de Estado. O
bolchevismo realizou uma Revolução Jacobina (que, em última instância, é
uma revolução burguesa) e implantou o capitalismo sob uma nova forma. Pannekoek
diz que essa forma de capitalismo "é uma produção organizada onde o
Estado é o patrão universal, o senhor do aparelho produtivo. Os trabalhadores
são lá tão senhores dos meios de produção como no capitalismo universal.
Recebem um salário e são explorados pelo Estado, que é o único capitalista (e
de que tamanho!)" [1].
O
grupo clandestino "Verdade Operária" parte da análise do
desenvolvimento do capitalismo mundial para explicar a formação do Capitalismo
Estatal da URSS. Segundo este grupo, a burguesia privada não é capaz de
ultrapassar os interesses de cada ramo da produção e por isso se torna
necessária a crescente ação do Estado sobre a economia realizada pela
tecnocracia. Na URSS, houve a fusão da tecnocracia com os capitalistas
comerciais do período da NEP (Nova Política Econômica) dando origem a Burguesia
de Estado, sendo o partido bolchevique sua principal instituição. Essa nova
burguesia criou seu próprio regime econômico: o Capitalismo de Estado.
Na
década de 30, o historiador Arthur Rosemberg defenderia, com algumas
diferenças, as teses dos Comunistas Conselhistas. Segundo ele, "em suas
partes essenciais, o bolchevismo revelou o objetivo que se colocara. Com a
ajuda do proletariado, derrubou o Tzarismo e fez a revolução burguesa. Superou
a vergonhosa inferioridade russa, levando o país ao nível dos Modernos Estados
Burgueses Europeus. Graças à força da classe operária, conseguiu ainda
substituir a economia e a forma de sociedade capitalismo privada por uma
moderna organização baseada no Capitalismo de Estado" [2].
Ainda
na década de 30, A. Ciliga defenderia a teoria de que a Rússia vivia sob o
Capitalismo de Estado. Para ele, Stálin e Trótski: "...queriam fazer
passar o Estado pelo proletariado, a ditadura burocrática sobre o proletariado
pela ditadura do proletariado, a vitória do Capitalismo de Estado sobre o
Capitalismo Privado e sobre o Socialismo por uma vitória deste último... Já
tivemos provas suficientes de que o atual sistema da Rússia preservou todas as
características essenciais do Capitalismo: produção de mercadorias, salários,
mercados para a troca, dinheiro, lucros, redistribuição parcial dos lucros
entre os burocratas, sob a forma de altos salários, privilégios, etc." [3].
Depois
destes, vários outros pensadores, militantes e grupos defenderam, de forma
diferente, a mesma tese. M. Rubel, baseando-se nos escritos de Marx e Engels
sobre a Rússia Czarista, coloca o surgimento do Capitalismo de Estado Russo
como provocado pelo atraso econômico do país. As relações de produção
dominantes na Rússia impulsionaram o Estado soviético a desenvolver o método
capitalista da "acumulação primitiva" e consolidar o
Capitalismo de Estado. Outro exemplo é C. Castoriadis, quando ainda se
auto-intitulava marxista, que defendia a URSS como um capitalismo burocrático.
As relações de produção predominantes na URSS seria uma relação de classe que
opunha o proletariado à burocracia, classe que dispõe dos meios de produção e
com isso efetua a exploração através do trabalho assalariado. Para ele, o
capitalismo burocrático e o capitalismo privado viveriam em um constante
conflito que resultaria na vitória de um sobre outro.
O
Trotskismo também produziu teóricos e grupos que caracterização a URSS como
Capitalismo de Estado: No fim da década de 30, James Burnham e Max Schachtman,
da secção americana da IV Internacional; na década de 50, Toni Cliff; na década
de 70, o grupo dissidente francês "União Operária". Alguns grupos e
teóricos não trotskistas, como o grupo inglês Solidarity, também
reconheceram o caráter capitalista da Rússia. Seria impossível aqui uma lista
exaustiva daqueles teóricos e grupos que defenderam a teoria do Capitalismo de
Estado, tanto por desconhecimento quanto por falta de espaço para realizar tal
feito.
Mas,
para concluir, devemos expor as teses de três teóricos que, na década de 70,
retomaram a concepção do Capitalismo de Estado da URSS. Eles são: o autonomista
português João Bernardo, o bordiguista Jean Barrot e o maoísta Charles
Bettelheim.
Para Jean
Barrot, foi o movimento do capital que gerou o capitalismo russo. Mas, para
ele, o Capitalismo de Estado não é, como era para Bordiga, uma fase
necessariamente transitória para o capitalismo privado. Segundo Barrot, "a
partir de 1914 a potência do capital escapa à burguesia - visto que esta
procura, antes de mais nada, controlar o seu progresso, o capital encontra
novos agentes capazes de levar a bom termo o seu crescimento. O fenômeno
existia já no século XIX (Mehemet Áli), mas alargou-se aqui a todo um conjunto
de países subdesenvolvidos ou relativamente atrasados. O mais notável exemplo
é, sem dúvida, o da revolução russa. A Rússia tem um proletariado importante
pelo seu número e pela sua concentração, mas que se encontra rodeado -cercado-
por uma massa camponesa enorme. A burguesia nacional é ali relativamente débil,
já que o desenvolvimento econômico foi sobretudo o produto do capital
estrangeiro e do Estado. A revolução expropria o primeiro e destrói o segundo.
Depois do refluxo do movimento na Europa, o capital é assumido, não por uma
"nova" classe -o que suporia novas relações de produção, já não
capitalistas mas outras-, mas por uma burguesia cujo papel social é o mesmo,
embora com modos de constituição e funcionamento diferentes dos da burguesia
clássica: possui os meios de produção por intermédio do Estado -por
conseguinte, digamos, a título coletivo, o que não exclui aliás uma autonomia
mais ou menos larga das empresas (...). A burguesia de Estado formou-se a
partir de antigos militantes operários, de quadros da indústria ou da
administração" [4].
Charles Bettelheim reavalia suas análises sobre a URSS, a qual ele
definia como uma sociedade socialista, e passa a defini-la como um Capitalismo
de Estado. A principal diferença e os demais teóricos do caráter capitalista da
Rússia está na explicação da origem do capitalismo russo. Para Bettelheim esta
origem se encontra na solução dada à questão da aliança operário camponesa. As
contradições no campo e as limitações da política do partido bolchevista
reforçaram a tendência do campesinato, principalmente o médio, a exercer uma
prática política pequeno-burguesa e este foi o principal elemento que, aliado a
outros, provocou o retrocesso da revolução de outubro através da autonomização
crescente do Estado que acabou reproduzindo as relações de produção
capitalistas [5].
João Bernardo, por sua vez, afirma que a tecnocracia é uma classe
social que pode dar um "novo fôlego" ao capitalismo. O partido
bolchevique cumpriu este papel e criou o Capitalismo de Estado russo. Este se
diferencia do capitalismo clássico pela forma de realização da lei do valor,
lei fundamental do modo de produção capitalismo. No capitalismo privado a lei
do valor se realiza nos preços do mercado e no Capitalismo de Estado no jogo
dos planos. Daí decorrem diversas outras diferenças como a forma de
distribuição da mais-valia e a forma de reprodução dos "Capitalistas de
Estado" mas o fundamental do modo de produção capitalistas, a lei do
valor, continua existindo e se realizando. J. Bernardo considera que o
capitalista monopolista de Estado tende a se transformar em Capitalismo de
Estado integral, do tipo soviético. A questão a ser resolvida é: ou o
socialismo construído pelo proletariado através da autogestão social ou a
barbárie capitalista comandada pela tecnocracia reproduzida como burguesia de
Estado [6].
Depois
deste breve histórico das teorias de Capitalismo de Estado, passemos para a
análise da formação desta teoria. A determinação fundamental que levou ao
surgimento do capitalismo de "novo tipo" foi o desenvolvimento
insuficiente das forças produtivas. A Rússia era um país pré-capitalista em
transição para o capitalismo.
Entretanto, o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas não gera, por
si só, o Capitalismo de Estado ou, como dizem alguns, a
"burocratização". O atraso da Rússia Czarista forma as condições
determinadas nas quais se desenvolveram as lutas de classe. Essas condições
dadas colocam as possibilidades históricas que poderão ser concretizadas e que
serão definidas através das lutas de classes. A Rússia poderia ter caminhado
para o Socialismo, o Capitalismo Privado, o Capitalismo de Estado, etc., pois a
História é aberta. isto, contudo, não quer dizer que ela seja arbitrária: No
presente se revelam as tendências de desenvolvimento futuro e a tendência que
irá prevalecer depende da ação humana expressa na luta de classes.
Marx e
Engels já haviam observado que a burguesia não lançaria mais as massas em uma
luta revolucionária devido ao medo de que estas se voltassem contra ela. A
burguesia se tornou contra-revolucionária a partir da segunda metade do século
XIX. Na Rússia atrasada, a burguesia nascente não iria assumir um papel
revolucionário e não romperia sua aliança com o Czarismo. Lá o mais provável
seria a realização de uma "revolução burguesa sem burguesia". Com o
regime czarista em crise e com a pouca possibilidade de implantação do
capitalismo privado, divido a debilidade da burguesia russa, restava com
tendências principais: o Capitalismo de Estado e o Socialismo.
É
neste país em transição para o capitalismo, que contava com aproximadamente 70%
da população formada por camponeses e com uma classe operária em formação, que
surge o bolchevismo. Lênin, o principal líder e o mais influente teórico
bolcheviche, escrevia, em 1902, que o proletariado jogado a si mesmo chegaria
no máximo a uma consciência sindical e isto significa ficar nos limites da
ideologia burguesa. A consciência de classe seria introjetada "de
fora" pelos intelectuais revolucionários do partido de vanguarda [7].
Esta é, claramente, uma ideologia da tecnocracia, pois reproduz a divisão entre
dirigentes e dirigidos, entre trabalho intelectual e trabalho manual. O partido
sendo a "vanguarda" da classe, então, a conquista do poder estatal
por ele passa a ser equivalente à ditadura do proletariado. Em 1902 já estava
justificado o Golpe de Estado de outubro de 1917.
O
partido substitui a classe operária como "sujeito
revolucionário" e por isso deve ser coerente e eficiente nas suas ações
políticas. Para isso ocorrer deve haver centralização, disciplina e unidade de
ação. Isso tudo torna o "centralismo democrático" uma
necessidade. Neste sentido, ideologia e organização estão unificadas e se
complementam.
O
proletariado russo, apesar da ideologia da "nulidade operária" criada
por Lênin, cria os sovietes (conselhos operários) na revolução de 1905 e
novamente na revolução de fevereiro de 1917 [8]. O próprio Lênin
reconheceu a espontaneidade revolucionária do proletariado na revolução de
fevereiro: "Em fevereiro de 1917 as massas organizaram os sovietes
antes mesmo que algum partido tivesse tido tempo de lançar esta palavra de
ordem. O grande gênio criador do povo, temperado pela amarga experiência de
1905, que o tornara consciente, eis o artifície desta forma de poder proletário" [9].
Com a revolução de fevereiro se implanta uma dualidade de poderes: de um lado,
o poder contra-revolucionário expresso no Estado Czarista, de outro lado, o
poder revolucionário expresso nos sovietes.
Os bolcheviques,
com o Golpe de Estado de outubro, assumem o poder do Estado e a partir disto a
dualidade de poderes começa a se resolver em favor do "Estado burguês
mas sem burguesia" de Lênin. Os bolcheviques no poder pregam a
"gestão individual das empresas", a implantação do Taylorismo (método
tipicamente capitalista de gestão nas fábricas), a militarização dos sindicatos
e, além disso, esvaziam os sovietes implantando a ditadura do partido [10].
O bolchevismo
realiza, através do exército vermelho, a contra-revolução na Ucrânia destruindo
a coletivização camponesa lá realizada [11]. Abole as frações
dissidentes internas do partido como os "Comunistas de Esquerda", a
"Oposição Operária" e os "Centralistas Democráticos" [12].
A insurreição de Kronstadt declarada pelos marinheiros pretendia reestabeler os
sovietes, como demonstra o Izsvestia de Kronstadt de 6 de março de 1921: "Nossa
causa é justa. Somos pelo poder do sovietes e não dos partidos. Somos pela
eleição livre dos representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes
falsificados, monopolizados e manipulados pelo partido comunista sempre foram
surdos às nossas necessidades e exigências; a única resposta que recebemos foi
a bala assassina" [13]. O massacre de Kronstadt
demonstrou que dessa vez não seria diferente. Com a dominação bolcheviche
nascida da fusão do partido com o Estado surge uma camada burocrática que cresce
cada vez mais. A burocracia dominante surge de quadros do partido, do Estado
Czarista, das indústrias, da pequena burguesia e em menor grau do campesinato e
até mesmo da classe operária. A burocracia (Burguesia do Estado) se
fortalece e consolida enquanto classe dominante durante o período do
"comunismo de guerra" e durante a NEP (Nova Política Econômica). A
ascensão de Stálin demonstra essa consolidação. A classe dominante, expressa
perfeitamente no stalinismo, encontra a partir de então, dois obstáculos: a
burocracia dissidente liderada por Tróstski e o campesinato. A repressão
à "oposição unificada" que vai até os processos de Moscou e a
"estatização forçada", que proporcionou a chamada "acumulação
socialista primitiva" através da superexploração dos camponeses,
removem estes obstáculos [14]. O Capitalismo de Estado
passa a predominar na URSS.
Mas resta saber: o que é o Capitalismo de Estado? Desde Marx sabemos que
a definição de um modo de produção se encontra nas relações de produção
dominantes em uma sociedade.
As
relações de produção capitalistas são aquelas em que a produção de mercadorias
e a lei do valor se generalizam ao ponto da própria força de trabalho se tornar
uma mercadoria. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para sua produção. Os trabalhadores devem estar
separados dos meios de produção e ter como única mercadoria sua força de
trabalho. Por isso, eles são obrigados a vender sua força de trabalho ao
capital. Este paga em forma de salário o mínimo necessário para sua reprodução.
Entretanto, a força de trabalho produz mais do que o necessário para a sua
reprodução e este excedente produzido é apropriado pelo capital. O excedente é
a mais valia e esta apropriação expressa o domínio do trabalho morto sobre o
trabalho vivo.
Na
URSS, os trabalhadores estão separados dos meios de produção e só possuem a sua
força de trabalho como mercadoria para vendê-la ao capital. Entretanto, assim
como no capitalismo privado, eles só recebem, em forma de salário, o necessário
para sua reprodução enquanto força de trabalho e produzem um excedente que é
apropriado pelo capital, a mais valia. Como se vê, o fundamental das relações
de produção capitalistas estão presentes na URSS.
Contudo, existem algumas diferenças. No capitalismo privado predomina a
propriedade privada individual e no Capitalismo de Estado predomina a
propriedade privada de uma classe que a gera coletivamente através do Estado. Esta
diferença, por sua vez, cria outras diferenças, mas que não colocam em questão
o caráter capitalista das relações de produção nas URSS.
Este é
o ABC da teoria do Capitalismo de Estado. Os opositores desta teoria colocam
dois obstáculos principais, a saber: em primeiro lugar, dizem que a burocracia
não é uma classe dominante pois ela não é uma classe proprietária; em segundo
lugar, afirmam que não há predomínio da lei do valor na URSS. Aprofundaremos a
teoria do Capitalismo de Estado respondendo a estas questões.
Em
primeiro lugar, devemos colocar que a burocracia (Burguesia de Estado) é
uma classe proprietária. Na URSS a propriedade jurídica é coletiva, mas a
propriedade real é privada. Segundo Marx "em cada época histórica, a
propriedade desenvolveu-se diferentemente e numa série de relações sociais
totalmente distintas. Por isto, definir a propriedade burguesa não é mais do
que expor todas as relações sociais da produção burguesa", pois,
"pretender dar uma definição da propriedade como uma relação
independente, uma categoria à parte, uma idéia abstrata e universal -isto não
pode ser mais que uma ilusão de metafísica ou jurisprudência" [15].
As relações de propriedade são uma expressão jurídica (e portanto, ideologia)
das relações de produção [16]. Portanto, é no conjunto
das relações de produção que se determina a existência e a forma de
propriedade. O título de propriedade é apenas uma justificativa ideológica que
a classe proprietária utiliza para manter o seu controle sobre os meios de
produção e a força de trabalho. Não é através do título jurídico que poderemos
definir se existe propriedade ou qual sua forma. A definição só pode ser
realizada através do conhecimento de quem controla as forças produtivas.
Propriedade real e controle da propriedade são inseparáveis. Somente na
ideologia, na propriedade jurídica, pode haver a separação entre propriedade e controle.
No
capitalismo privado, os proprietários individuais justificam a exploração
através do título de propriedade privada. No Capitalismo de Estado, ao
contrário, a burocracia justifica a exploração ao declarar que a propriedade
dos meios de produção pertencem ao povo mas é dirigido pelo Estado, ou seja,
pela burocracia. A expressão jurídica da propriedade burguesa no capitalismo
privado se caracteriza por afirmar a sua existência e compromisso justificar o
controle sobre as forças produtivas e no Capitalismo de Estado se caracteriza
por afirmar sua "inexistência" e é justamente isso que justifica o
controle sobre as forças produtivas realizado pelo "coletivismo
burocrático". A propriedade real está presente em ambos os casos mas a
propriedade jurídica está presente apenas em um. Pois, na URSS, a propriedade
pertence ao povo e se pertence a todo mundo quer dizer, no final das contas,
que "não pertence" a ninguém.
A
existência do controle estatal sobre as forças produtivas realizado pela
burocracia demonstra que essa é uma relação de classe e, conseqüentemente, uma
relação de exploração. C. Castoriadis demonstrou isso muito bem, embora não
tenha demonstrado como observou J. Barrot, que esta exploração é capitalista.
Pois todas as relações de classe e de exploração se baseiam neste pressuposto
do controle sobre as forças produtivas. Portanto, é preciso demonstrar o
caráter especificamente capitalista desta exploração. O que define isso é a
forma como se dá a apropriação do mais-trabalho e está se dá, no capitalismo
através da extração da mais-valia. Como demonstramos anteriormente, a
burocracia extrai mais-trabalho dos produtores diretos em forma de mais-valia,
assim como a burguesia privada, e decide o que será feito com o excedente
produzido, dentro dos limites impostos pela dinâmica do modo de produção.
Portanto, o essencial é definir se há ou não o predomínio da lei do valor na
URSS. A lei do valor só pode existir havendo um alto grau de desenvolvimento da
divisão social do trabalho e com isso provocar a separação entre os ramos de
produção e entre produtores e consumidores -ou seja, superação da produção de
auto-subsistência, o que significa que o produtor deixa de produzir para o seu
próprio consumo e passa a produzir para vender o produto no mercado- e com isso
criar a necessidade de troca de mercadorias. Isto significa que, para se
implantar o modo de produção capitalista, estas condições precisam ser
complementadas com a separação entre produtores e meios de produção. Essa
separação provoca a necessidade dos produtores de venderem sua força de
trabalho em troca de um salário com o qual garantirá sua reprodução. Como a
força de trabalho recebe um salário que é inferior ao que foi produzido se cria
um excedente, a mais-valia, que é apropriado pelo capital. Isto quer dizer que
a força de trabalho é uma mercadoria sui generis, pois só ela produz
mais-valor e este ao ser apropriado pelo capital cria sua reprodução ampliada.
Para que essa reprodução ampliada de capital se realize é necessário não só a
produção de mais-valia mas também a competição entre capitais individuais, pois
esta obriga a burguesia a reinvestir cada vez mais em meios de produção. Estas
condições e premissas da produção capitalista estão presentes na URSS, onde o
desenvolvimento da divisão social do trabalho criou uma ampla separação entre
os ramos de produção, entre produtores e consumidores e, finalmente, entre os
trabalhadores e meios de produção. Isto, por sua vez, verá o trabalho
assalariado, a produção da mais-valia, e conseqüentemente, a acumulação de
capital. O único dos elementos acima citados que se poderia argumentar que não
existe na URSS é a competição entre capitais individuais, pois lá a propriedade
é monopólio do Estado. Mais isto não é correto e demonstraremos isto a seguir.
A
reprodução ampliada do capital é impulsionada pelo mercado mundial e pelas
relações comerciais e monetárias internas da URSS. Essas relações nunca
deixaram de existir: já existia no período do "comunismo de guerra"
e se aprofundou com a NEP (Nova Política Econômica) e esta criou, no seu
final, as condições necessárias para sua reprodução na economia
estatizada [17]. A
"estatização forçada" criou os Kolkhozes (que deveriam ser
cooperativas) como um forma de propriedade estatal. O Estado recebe dos Kolkhozes
renda da terra em forma de altos impostos. Eles são dirigidos pela burocracia
Kolkhoziana que repassa os impostos para o Estado e retira privilégios e
rendimentos superiores aos do campesinato. Estes "rendimentos
superiores" são justificados pelo "trabalho por rendimento" que
calcula as tarefas de acordo com o grupo ao qual se pertence (burocracia,
agrônomo, tratorista ou camponês). A burocracias kolkhoziana se inscreve na
nomenclatura, ou seja, é nomeada pela burocracia estatal, sendo, portanto,
intocável.
Os
camponeses possuem, entretanto, suas pequenas parcelas de terrenos individuais
atrás de suas casas. Eles se alimentam através do trabalho nestes terrenos e
também a maior parte da população urbana apesar de serem apenas 3% das terras
cultiváveis. Estes produtos são vendidos pelos camponeses diretamente à
população criando uma forma de comércio livre.
As
diferenças entre as fazendas estatais (Sovkhozes) e as empresas
"ditas" cooperativas (Kolkhozes) são: a) A forma de
remuneração nas primeiras é realizada através do salário e nos Kolkhozes
através do "trabalho efetuado", embora juridicamente em 1966 a
remuneração passasse a ser igual a dos Sovkhozes; b) As parcelas individuais de
terra existentes nos Kolkhozes e inexistentes no Sovkhozes; e c) Os Sovkhozes
repassam para o Estado o excedente em forma de lucros e os Kolkhozes em forma
de impostos.
O
chamado "mercado negro" urbano e a reprodução das pequenas
propriedades urbanas são outras formas de expressão das relações comerciais e
monetárias na URSS. Quando há qualquer troca entre os Sovkhozes e o Estado ou
entre os este e os Kolkhozes se manifesta a lei do valor. Quando as unidades de
produção (as empresas estatais) trocam meios de produção entre si também atua a
lei do valor. Isto é possível porque cada empresa tem "autonomia
financeira". As empresas estatais possuem seus fundos próprios; compra
e venda e seus meios de produção, matérias-primas, combustíveis, etc.; possuem
autonomia para decidir o número de assalariados e a forma de contrata-los e
dispensa-los; e se auto-financiam através de suas receitas e do sistema
bancário.
Neste
sentido, as empresas estatais funcionam como capitais individuais. As trocas
entre as "cooperativas", as fazendas estatais, as unidades de
produção aliadas com a produção mercantil da pequena propriedade camponesa e
urbana juntamente com o mercado negro demonstram as várias formas de
manifestação das relações comerciais e monetárias na URSS.
Essa
autonomia das unidades de produção, aliada às demais formas de relações
comerciais e monetárias, torna necessário a comparação entre as mercadorias
para medir o tempo de trabalho socialmente necessário. A divisão social do
trabalho expressa aí cria a necessidade de submissão à lei do valor. Cria-se
também, uma competição embora num nível bem inferior em comparação com o
capitalismo privado. A dinâmica da acumulação de capital sob o Capitalismo de
Estado é impulsionada principalmente pela competição internacional que se
realiza no mercado mundial.
A lei
do valor e a acumulação de capital "soviéticos" estão submetidos
ao mercado mundial. Tanto a produtividade do trabalho, que é necessariamente
comparada ao mercado mundial, quanto a decisão na produção nos meios de
produção, estão na URSS, devido ao comércio externo, condicionadas pelo mercado
mundial. No seu comércio externo, as suas trocas com o COMECON representavam
54% e as trocas com os países imperialistas do Ocidente 31%, enquanto que as
efetuadas com os países capitalistas 13%.
O
capital internacional também interfere internamente na economia
"soviética", pois existem diversas empresas estrangeiras na URSS como
a General Motors, Shell, Coca-Cola, Mitsubishi, Krupp, Basf, Control Data,
Brown Boveri, Exxon, Union Carbide, etc, etc. Estas empresas atuam na URSS na
forma de co-produção industrial. A co-produção industrial se baseia num acordo
em que a URSS assume o papel de ceder força de trabalho e instalações enquanto
que os países imperialistas do Ocidente fornecem máquinas, técnicas de gestão,
licenças, etc. Nestas empresas, a mais-valia é repartida entre a burocracia
"soviética" e o capital internacional. Além desse tipo de acordo
existem inúmeros outros isto torna necessário a presença de bancos estrangeiros
na URSS.
A URSS
não só explora os camponeses soviéticos como também avança sobre outros países
realizando uma verdadeira expansão imperialista. A fase imperialista do
Capitalismo de Estado russo é demonstrada tanto através do "velho
imperialismo" (dominação político-militar direta), como ocorreu no
Afeganistão, quanto através da exploração dos países do Leste Europeu no
comércio internacional. Existe entre a URSS e o Leste Europeu uma "troca
desigual" e o exemplo da Hungria deixa isso bem claro: "no caso da
Hungria, enquanto esta, de 16 Rublos passou a pagar 36 par tonelada de petróleo
importado da URSS, o que significou o aumento de 131% (na verdade, 125% - NSV),
os preços das máquinas que ela vendeu à URSS tiveram um aumento de apenas 33%" [18].
A URSS se não bastasse isso, implantou no Leste Europeu "empresas
mistas" com 50% de capital soviético e 50% de capital nacional. Isso além
das empresas que foram cedidas pela Alemanha Oriental como pagamentos de
indenização pelas destruições da II Guerra Mundial e se tornaram propriedades
soviéticas [19].
A luta
de classes na União Soviética depois da II Guerra Mundial revela, após um breve
período de "reconstrução nacional" um processo de acirramento
crescente. Os problemas sociais como, por exemplo, a crise da agricultura, a
questão da habitação, os desperdícios produzidos pela planificação burocrática,
se acumulavam e criavam enormes conflitos sociais. A própria classe dominante, principalmente
após a morte de Stálin, sempre estava envolvida em lutas inter-burocráticas
visando a ascensão ao cume da pirâmide do poder ou então buscando uma
repartição mais favorável da mais-valia. Cabia ao partido
"comunista" mediar as lutas inter-burocráticas e através do Estado
manter a unidade da classe dominante. A repressão era o meio mais eficiente e
utilizado para reproduzir sua dominação, tal como expressa nos campos de
concentração (GULAGS) e nos hospitais psiquiátricos, pois, como escreveu um soviético
dissidente, a oposição era uma "nova doença mental na URSS"
(V. Bukowski). Mas esta repressão contava com o reforço da dominação ideológica
realizada pelos aparelhos culturais e educacionais do Estado soviético. Nas
instituições educacionais havia o ensino obrigatório do chamado
"marxismo"-leninismo, a ideologia oficial do capitalismo estatal
russo. Entretanto, estes aparelhos culturais e educacionais também eram
garantidos pela repressão, pois não havia liberdade de imprensa e de produção
científica, artística e cultura. O monopólio estatal dos meios de produção
cultural produziu, conseqüentemente, o "monopólio" da produção
cultural.
Toda
essa repressão e controle tem como objetivo reproduzir as relações de produção
capitalistas na URSS. A resistência operária e camponesa se expressavam, num
primeiro momento, como luta de classes na produção. Os camponeses dos kolkhozes,
por exemplo, preferiam produzir nas suas parcelas individuais de terras
do que nos kolkhozes e isto provocava uma baixa produtividade do
trabalho. A resposta da burocracia era a tentativa de submeter a produção
individual à exploração realizada através das trocas comerciais, o que, por sua
vez, gerava novos conflitos sociais. Nas fábricas, os operários se encontram
submetidos aos métodos tipicamente capitalistas de controle da produção, por
exemplo, o sistema Taylor, e por isso apresentam também uma baixa produtividade
do trabalho. A burocracia tentou resolver a questão com os "incentivos
materiais" (idéia importada da Europa Ocidental) mas, como demonstrou a
História, fracassou totalmente. A repressão generalizada na sociedade russa
acontecia justamente por causa do descontentamento e resistência crescente das
classes exploradas. A burocracia utilizava como "arsenal ideológico"
as acusações aos dissidentes de "contra-revolucionárias",
"loucos", "agentes do imperialismo", etc., para justificar
a repressão. As burocracias das repúblicas "soviéticas" utilizavam-se
das tradições nacionalistas, acirradas pela opressão russa, para incentivar
mobilizações de trabalhadores como o objetivo de pressionar Moscou para
conseguir uma repartição mais favorável da mais-valia.
A
resistência operária na produção atinge níveis elevados quanto a sua luta
contra o aumento da produtividade e da extração de mais-valia chega ao ponto de
apelar para as greves e se exige melhores salários; pois isto significaria uma
diminuição na extração de mais-valia por quanto isso não fosse acompanhado pelo
aumento da produtividade ou da jornada de trabalho, o que efetivamente não
ocorria. A resistência operária fora do local de produção se expressa na
formação de sindicatos independentes e de organizações clandestinas de
esquerda. A burocracia reage, obviamente, com a repressão crescente e
generalizada na sociedade russa.
Assim,
a luta de classes na União Soviética apresentava uma onda de "mais-repressão"
crescente tanto no campo quanto na cidade. A burocracia estatal buscava
centralizar ainda mais os Kolkhozes com medo das tendências auto
gestionárias dos camponeses e reprimir todas as formas de organizações
não-estatais e manifestações políticas nas cidades com medo da auto-organização
da classe operária. No entanto, o descontentamento e a luta dos trabalhadores
para transformar suas condições de existência e, conseqüentemente, abolir o
capitalismo estatal russo e construir a autogestão social, revelam as
contradições da sociedade soviética que mais cedo ou mais tarde provocarão o
rompimento com esse "mundo concentracionário".
Antes
da crise da URSS e do Leste Europeu criticar o chamado "socialismo
real" era sinal de "trotskismo" ou "direitismo". Mas,
na realidade, como disse F. Claudin, para a direita e o imperialismo "o
que lhes interessa conservar é o equívoco colossal de que aquilo é socialismo.
Que argumento melhor para comprometer o ideal socialista diante das classes
trabalhadoras e dos intelectuais do Ocidente? Na verdade, quem faz o jogo da
direita são aqueles que coincidem com ela em conceber o diploma de socialismo
às ditaduras totalitárias do leste" [20].
Nildo Viana
O que
é autogestão?
Publicado
na Revista Ruptura, ano 03, num. 04, Jan. 1996.
Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade:
no dia do seu enterro. Karl Marx
A autogestão, para uns, é um “método de gestão de empresas”
e, para outros, é uma “forma política” que assume o comunismo, ou seja,
a “democracia direta”. A primeira concepção deixa entrever a
possibilidade de existir autogestão no interior da sociedade capitalista e a
segunda apresenta a idéia de que é possível haver comunismo sem autogestão, já
que esta é reduzida a uma mera “forma política” e, sendo assim, não é a
essência do comunismo e por isto este poderia utilizar outras “formas
políticas”. Entretanto, tal como pretendemos demonstrar no decorrer deste
trabalho, estas concepções são equivocadas, pois não conseguem expressar o
verdadeiro sentido da autogestão.
Antes de mais nada, tal como fizeram A. Guillerm e Y. Bourdet [1],
é útil distinguir o conceito de autogestão de outras palavras que muitos pensam
ter o mesmo significado. Autogestão não possui o mesmo significado que “participação”,
“co-gestão”, “controle operário” ou “cooperativismo”.
Vejamos o significado destas palavras:
A) PARTICIPAÇÃO: Participação não significa autogestão, pois ela significa
participar de algo já existente, ou seja, de uma atividade que possui estrutura
e finalidade próprias. Segundo Guillerm e Bourdet, o participante é como um
flautista numa orquestra: participa se misturando individualmente à um grupo
que lhe é preexistente.
B) CO-GESTÃO:
A co-gestão é uma tentativa de integrar a criatividade e a iniciativa operária
no processo produtivo capitalista (com o objetivo de aumentar a produtividade
e, consequentemente, a extração de mais-valor relativo -ou mais-valia relativa)
e que permite a participação dos trabalhadores apenas no processo de produção,
nos meios e não nos fins. Mas mesmo essa co-gestão nos meios é limitada, pois a
definição por outros sobre os fins leva à uma pré-determinação no que se refere
ao meios.
C) CONTROLE
OPERÁRIO: Segundo Guillerm e Bourdet, o controle operário significa um passo
adiante em relação à co-gestão, mas ainda não é autogestão, pois o controle
operário surge como produto de uma intervenção conflitual que arranca
concessões para os trabalhadores, embora se limite a exercer-se sob pontos
específicos que não questionam o salariato. Para M. Brinton, a proposta de
“controle operário” apresentada por diversos grupos políticos (principalmente
leninistas e trotskistas) expressa a vontade de apresentarem-se como mais
democráticos e fazem isto buscando nos iludir com a afirmação de que o
leninismo sempre defendeu tal proposta. Para ele, o controle operário, ao
contrário da autogestão, não significa que a classe operária irá gerir a
produção e sim que ela irá “supervisionar”, “inspecionar” ou verificar as
decisões tomadas por “instâncias exteriores” ao processo produtivo, tal como o
estado ou o partido [2].
D) A COOPERATIVA: Segundo Guillerm e Bourdet, “esquematicamente, pode-se,
com efeito, convir que (...), as cooperativas têm ‘vegetado’ sempre sob formas
locais, a tal ponto que esta limitação se tornou seu sinal distintivo. Por
isso, para designar a generalização dos sistemas de cooperativas, far-se-á
mister uma palavra nova. O termo autogestão deve assumir o papel” [3].
Acontece que, no interior da sociedade capitalista, as cooperativas não
determinam seus fins, pois o mercado e o estado sempre interferem nas
finalidades de uma cooperativa e não só nos fins como, em menor grau, também
nos meios.
Em síntese, a participação, o controle operário, a co-gestão e as
cooperativas podem existir no interior do modo de produção capitalista e são
assimiláveis por ele. O capitalismo envolve todas estas manifestações e as
colocam sob sua direção, direta ou indiretamente. Não existem nem podem existir
“ilhas de autogestão” cercadas pelo mar do capitalismo. A autogestão só
pode existir em locais isolados por um curto período de tempo e em confronto
com o capital e desta luta um dos dois vencerá, ocorrendo a destruição da experiência
autogestionária ou a generalização da autogestão a nível nacional e
posteriormente mundial.
Podemos dizer também que as definições acima deixam entrever que não
existe muita diferença entre todos estes termos, pois todos eles possuem algo
em comum: em todas essas formas de “participacionismo” permanece exterior aos
trabalhadores a determinação dos fins e uma “co-determinação” no que se refere
aos meios. Por conseguinte, o termo co-gestão engloba todos os outros termos e,
sendo assim, ele é suficiente para marcar a diferença entre a autogestão e as
outras formas de gestão que se dizem “democráticas”.
Mas o que é a autogestão? Como ela pode surgir e se expandir
mundialmente? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que é impossível
compreender a autogestão e a possibilidade histórica de sua concretização sem
compreendermos o solo onde ela pode brotar, ou seja, o modo de produção
capitalista.
O capital, relação de
produção
Todo
modo de produção possui uma determinação fundamental que é expressa pelo
conceito de relações de produção e que serve de fundamento para todas as outras
relações sociais. Marx demonstrou que a relação de produção (determinação
fundamental) do feudalismo é a servidão: “em vez do homem independente,
encontramos aqui toda a gente dependente, servos e senhores, vassalos e
suseranos, laicos e clérigos. Esta dependência caracteriza tanto as relações de
produção quanto todas as outras esferas da vida social, às quais serve de
fundamento” [4].
A relação de produção capitalista expressa o fundamento da sociedade
capitalista. O capital não é só “meios de produção” mas é, fundamentalmente,
uma relação social, uma relação de produção.
As relações de produção capitalistas se baseiam na extração de
mais-trabalho sob a forma de mais-valor (ou, segundo linguagem corrente,
mais-valia). O proprietário dos meios de produção, o capitalista, compra a
força de trabalho do produtor e paga por ela o valor necessário para sua
reprodução enquanto força de trabalho. A força de trabalho, porém, produz mais
do que o necessário para sua reprodução e este valor a mais acrescentado à
mercadoria e apropriado pelo capitalista é o que se chama mais-valor.
No processo de produção do mais-valor há um duplo caráter: de um lado, é
um processo de trabalho caracterizado pela exploração e alienação do
trabalhador; de outro, é um processo de valorização dos meios de produção. Só a
força de trabalho acrescenta valor às mercadorias, pois os meios de produção
apenas transmitem seu valor ao produto-mercadoria fabricado.
A evolução do modo de produção capitalista transforma esta relação. Com
o desenvolvimento e acumulação dos meios de produção há a desvalorização da força
de trabalho e a valorização dos meios de produção. Os meios de produção foram
valorizados pela força de trabalho e por isso se tornam, com o desenvolvimento
do capitalismo, um dispêndio cada vez maior para o capitalista.
Com isso o capitalista investe cada vez mais nos meios de produção e
cada vez menos na força de trabalho. Assim, como só a força de trabalho produz
mais-valor, surge a tendência para haver a queda da taxa de lucro médio. O
aumento de produtividade busca evitar esta queda, já que aumenta a extração de
mais-valor relativo. Entretanto, isto cria uma nova tendência à baixa da taxa
de lucro médio, pois o aumento do mais-valor relativo significa que a força de
trabalho acrescentou mais valor ainda à mercadoria e isto torna mais dispendioso
os meios de produção.
Esta é
a tendência declinante da taxa média de lucro. O capitalismo, através de seus
agentes, cria também contratendências e busca fazer isto de várias formas, tal
como através do aumento da interferência do estado no processo de produção e
distribuição ou da expansão do consumo, entre outras.
Autogestão, relação de
produçao
O modo
de produção capitalista, como vimos, se caracteriza pelo domínio do trabalho
morto sobre o trabalho vivo. Esta relação de dominação do trabalho morto sobre
o trabalho vivo através do produção de mais-valor é a determinação fundamental
do capitalismo [5].
Torna-se necessário, então, descobrir qual é a determinação fundamental do modo
de produção comunista.
A determinação fundamental do modo de produção comunista só pode ser a
autogestão. Isto significa, entre outras coisas, que a autogestão não é apenas
a “forma política” (democracia direta) do comunismo e nem mero “método
de gestão das empresas”. A autogestão é uma relação de produção que se
generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social. A
autogestão inverte a relação entre trabalho morto e trabalho vivo instaurada
pelo capitalismo e, assim, instaura o domínio do trabalho vivo sobre o trabalho
morto.
A autogestão significa que os próprios “produtores associados” dirigem
sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, as classes
sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a divisão social do
trabalho. Consequentemente, abole-se a divisão entre “economia”, “política”,
etc.
Autogestão e período
de transição
Se a
autogestão é uma relação de produção, ou seja, a determinação fundamental do modo
de produção comunista, e que por isso abole a chamada “lei do valor”, então,
qual é o sentido que tem o discurso sobre o “período de transição”? Questionar
a necessidade de um “período de transição” entre o capitalismo e o comunismo
significa, segundo o pseudomarxismo, desconhecer que a tese da “fase de
transição” é uma conquista irrenunciável do “socialismo científico”, que supera
todo e qualquer utopismo. Entre o capitalismo e o comunismo existe um período
de transição chamado socialismo. Neste período, o estado dirige a economia
através de um plano e se mantêm o dinheiro, o trabalho assalariado e até mesmo
a “lei do valor”.
Deixando de lado a discussão sobre o sentido da palavra utopia, podemos dizer
que, na verdade, “sonho irrealizável” é a idéia de um “período de transição”
entre capitalismo e comunismo. A ideologia da transição é contrária ao que o
próprio Marx colocou e, por conseguinte, não se pode dizer que tal idéia está
presente em Marx e utilizar este “argumento de autoridade” para sustentar tal
tese.
O que
Marx “realmente disse”? As colocações de Marx sobre a passagem do capitalismo
ao comunismo que o pseudomarxismo se utiliza para sustentar tal tese são duas:
a) a permanência do trabalho assalariado; b) a existência de um “estado de transição”
no socialismo.
Mas,
antes de tudo, devemos dizer que Marx não utilizava as noções de “período de
transição” e de “socialismo”. Essas noções foram criadas pela tradição
bolchevique e similares e foram erigidas ao nível de verdadeiros “conceitos”,
que foram reificados e passaram a ser, na ideologia da burocracia, uma etapa
necessária na história. O que Marx colocou é que a sociedade comunista, tal
como surge do capitalismo, atravessa duas fases, o que significa que são duas
fases do comunismo e não que uma delas seja de “passagem” para ele. As
colocações de Marx sobre a permanência do trabalho assalariado e a existência
de um estado de transição se referem a esta primeira fase do comunismo.
Entretanto, é necessário colocar que Marx reformulou as suas teses sobre
a primeira fase do comunismo. Marx havia colocado que nesta primeira fase
deveria haver a “estatizacao dos meios de produção”, e é aí que se pode falar
em “estado de transição”. Acontece que, após a experiência da Comuna de Paris, ele
reformulou esta tese, tal como demonstra o seu artigo sobre a comuna e os
“posfácios” ao Manifesto Comunista [6]. Para Marx, a classe
operária não pode se apossar do estado, pois deve destruí-lo e em seu lugar
implantar o “autogoverno dos produtores”, ou seja, a autogestão [7].
Tal como fizeram os proletários durante a Comuna, deve-se abolir o exército
permanente e a burocracia do estado.
Outra colocação
que Marx reformulou é a de que na primeira fase da sociedade comunista todos
deveriam receber salários equivalentes ao dos operários, o que pressupõe a
permanência do trabalho assalariado, só que funcionando sob outra forma.
Posteriormente, ele afirmou que os trabalhadores receberiam bônus comprovando o
trabalho executado: "Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista
que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair
precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos
os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha
sociedade cujas entranhas procede. Congruentemente com isto, nela o produtor
individual obtém da sociedade -depois de feitas as devidas deduções- precisamente
aquilo que deu. O que o produtor deu à sociedade constitui sua cota individual
de trabalho. Assim, por exemplo, a jornada social de trabalho compõe-se da soma
das horas de trabalho individual; o tempo individual de trabalho de cada
produtor em separado é a parte da jornada social do trabalho com que ele
contribui, é sua participação nela. A sociedade entrega-lhe um bônus
consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar
o que trabalhou para o fundo comum), e com este bônus ele retira dos depósitos
sociais de meios de consumo e parte equivalente à quantidade de trabalho que
deu à sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente” [8].
Entretanto, o sistema de bônus não é a mesma coisa que o salariato. O
salário é pago em papel-moeda (dinheiro), que é um “meio de troca universal” e
pode ser, por isso, acumulado e utilizado para comprar meios de consumo e
produção e/ou força de trabalho. O bônus proposto por Marx era trocável apenas
por meios de consumo e por isso não tem nada a ver com o dinheiro, o trabalho
assalariado e a “lei do valor”. Por conseguinte, a primeira fase do comunismo
já seria marcada pela abolição do estado, do trabalho assalariado, do dinheiro,
etc., e pela instauração da autogestão social ou, segundo a linguagem de Marx,
da livre associação dos produtores.
Marx colocou que o trabalho se generalizaria durante a primeira fase do
comunismo, mas sem ligação com o salariato e sim com o sistema de bônus. Nesta
fase predomina o princípio “de cada um segundo sua capacidade à cada um segundo
seu trabalho”. Na segunda fase predomina o principio “de cada um segundo sua
capacidade à cada um segundo suas necessidades”.
Acontece que estas propostas estão superadas historicamente, pois elas
foram produzidas tendo por base o capitalismo da época de Marx, ou seja, do
século 19. Com o posterior desenvolvimento das forças produtivas não há mais
motivos para a existência do princípio “à cada segundo o seu trabalho” e
do sistema de bônus. O desenvolvimento das forças produtivas, na Europa
ocidental e nos demais países capitalistas superdesenvolvidos, já atingiu um
nível tão elevado que a revolução autogestionária terá que transformá-las para
possibilitar a autogestão e sua utilização de acordo com as necessidades
humanas. Isto se torna, na atualidade, válido até para os países capitalistas
subordinados( “terceiro mundo”). Por conseguinte, não há mais a necessidade de
existir “duas fases” no comunismo e a chamada “transição” do capitalismo ao
comunismo se realiza no período revolucionário que ao terminar, com a vitória
do proletariado, instaura a autogestão social.
O problema da
alienação
A
história da humanidade é marcada pelo predomínio da alienação. A alienação é
uma relação social que se caracteriza pelo fato do trabalhador não ter controle
de seu trabalho e, por conseguinte, ser controlado pelo não-trabalhador que,
assim, toma posse do produto do seu trabalho. Desta forma, o trabalhador perde
o controle do produto do seu trabalho e do produto deste e cria aquele que irá
controlar o seu trabalho e se apropriar de produto dele. Isto ocorreu em todos
os modos de produção classistas da história -modo de produção escravista
antigo, modo de produção feudal, modo de produção tributário, etc.- e atinge o
seu ponto culminante no modo de produção capitalista. O domínio dos
não-produtores sobre os produtores na época capitalista coloca a autogestão
como tendência histórica de superação da alienação.
A
partir da definição de alienação acima exposta vê-se que ela é sinônimo de
heterogestão e antônimo de autogestão. Assim se observa que a “ideologia da
vanguarda” (Lênin, Kautski) é um elogio da alienação, pois, se o
proletariado não dirige o seu processo de libertação e é dirigido por sua “vanguarda”,
ele também irá perder o produto de sua atividade revolucionária, ou seja, a sua
libertação, e este produto será apropriado pela sua “vanguarda”. A
ideologia da vanguarda diz que é através da alienação que se conquista a desalienação.
Isto, entretanto, não é verdade, pois o caminho da alienação só pode ocorrer
via desalienação, ou seja, somente controlando o seu processo de libertação,
através da autogestão de suas lutas, é que o proletariado poderá conquistar sua
libertação.
A autogestão das lutas
operárias
O
capitalismo surge no interior do feudalismo através do movimento do capital
comercial que leva ao predomínio do capital industrial e assim se torna o modo
de produção dominante. Se o capitalismo surge “economicamente” no feudalismo, o
mesmo não ocorre com o comunismo. O capital, relação de produção capitalista,
significa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, das forças
produtivas acumuladas sobre a força produtiva ativa, enfim, da classe
capitalista sobre a classe operária. O comunismo, ao contrário, se caracteriza
pelo domínio do trabalho vivo sobre o trabalho morto e surge não de um
“desenvolvimento econômico” e sim da ação revolucionária do proletariado. A
sociedade comunista existe potencialmente no interior da sociedade capitalista
através da luta operária. A autogestão das lutas operárias é o “embrião” do
comunismo. Se o conteúdo do socialismo (ou comunismo) é a autogestão, então é
na sua primeira forma de manifestação, na luta operária, que ela se revela como
possibilidade histórica. A autogestão das lutas operárias produz, no seu
confronto com o capital, os coletivos de autogestão como os conselhos de
fábrica, conselhos de bairros, etc., e cria-se, assim, uma “dualidade de
poderes”: o poder político burguês, ou seja, o estado capitalista, de um lado,
e os coletivos autogeridos, os conselhos revolucionários, de outro. A vitória
do proletariado leva à generalização da autogestão e a instauração do modo de
produção comunista e a sua derrota significa a reprodução do modo de produção
capitalista.
A autogestão, portanto, é uma relação social que nasce com a
autogestão das lutas operárias e se universaliza e invade o conjunto das
relações sociais e, assim, decreta a morte do capitalismo e inaugura o modo de
produção comunista.
Nildo Viana
A autogestão como conteúdo do novo ciclo revolucionário
Publicado
no Boletim do Movimento Conselhista, Ano 01, num. 03, Dezembro de 1994.
A maioria
dos modos de produção pré-capitalistas tinham como uma de suas principais
características o localismo. Eles não possuíam um caráter universalizante e
expansionista. O capitalismo é o único modo de produção que tem a necessidade
de expansão e universalização. Após o capitalismo, “nada será como antes”,
pois todas as alternativas históricas a ele deverão se submeter a necessidade
de universalização. O capitalismo surge na Europa ocidental, e expande-se a
todo o mundo, tornando-se mundial. Qualquer modo de produção que queira
substituir o capitalismo também deverá se “mundializar”, pois “ilhas
isoladas” logo seriam reintegradas no capitalismo mundial, pela ação do
mercado mundial, embora existam outras ações secundárias nesse sentido.
Por
conseguinte, a discussão no movimento “dito” socialista sobre o “socialismo
num só país” em oposição ao “internacionalismo” é puramente
ideológica. O caráter ideológico da primeira posição é bastante evidente:
trata-se de uma ideologia do capitalismo de estado nacional russo. A segunda
posição é ideológica porque defende o óbvio (o socialismo só pode existir
mundialmente) e porque, assim, transforma a sua disputa com a primeira num
combate entre “concepções de socialismo”, ou seja, atribui um caráter
socialista à URSS e suas ideologias. Aliás, a idéia trotskista de que a “base
econômica” da URSS é socialista, é outra face desta ideologia. Stalinismo e
trotskismo são irmãos gêmeos.
O desenvolvimento capitalista torna necessário a sua expansão mundial.
Inicia-se o ciclo das revoluções burguesas: Inglaterra, França, etc. Mas logo a
burguesia adquire consciência da sua situação trágica: para implantar o domínio
do capital terá que expandir as relações de produção capitalistas e lutar pelo
poder político contra a classe feudal e para fazer isso terá que criar, e
iniciar na luta política, o proletariado, seu filho, que tem o mesmo destino de
Édipo. Assim termina o primeiro ciclo das revoluções burguesas, pois a
burguesia deixa de ser revolucionária para ser reacionária.
Mas a expansão e universalização do capitalismo tem que continuar. A
burguesia, entretanto, não será mais o sujeito histórico das novas revoluções
burguesas, pois ela vive sob o signo do medo do proletariado. Os novos agentes
históricos do capital são as classes auxiliares da burguesia, e, ironicamente,
o movimento “dito” comunista. Inicia-se o Ciclo das Revoluções Burguesas
Tardias: Rússia, China, Brasil, etc. No capitalismo subordinado, são as
classes auxiliares que cumprem a missão de transformar o estado oligárquico em
estado capitalista moderno (o populismo na América latina) e nos países em
transição para o capitalismo são os partidos “comunistas” que executam a tarefa
de implantar o capitalismo de estado (as Revoluções Russa, Chinesa, etc.).
Do ponto
de vista histórico, o ciclo das revoluções burguesas clássicas durou alguns
séculos e terminou no século 19; o ciclo das revoluções burguesas tardias
ocorreu no século 20, principalmente na sua primeira metade; o início do século
21 marcará o começo das revoluções anti-capitalistas.
Existem, no interior do capitalismo, dois modos de produção potenciais:
o modo de produção burocrático e o modo de produção comunista. Trataremos do
primeiro em outra oportunidade, aqui cabe apenas dizer que sua possibilidade
histórica é bastante reduzida. Por conseguinte, o século 21 será marcado pelo
ciclo das revoluções proletárias. O conteúdo da revolução proletária é a
autogestão. Elas iniciam-se como autogestão das lutas operárias pela própria
classe operária e se transformam em autogestão nas fábricas, bairros, etc.,
organizadas pelos conselhos revolucionários até se generalizarem e se tornar
autogestão social, ou seja, autogestão do conjunto das relações sociais.
A autogestão é incompatível tanto com o mercado quanto com o estado. O
mercado pressupõe a autonomia do valor de troca e esta assume a direção do
processo de produção. A autogestão na produção só pode existir com a simultânea
autogestão na distribuição , caso contrário será, no máximo, uma ”co-gestão”. O
estado pressupõe uma centralização do poder e um acamada burocrática que possui
um modo de vida próprio que só se reproduz assumindo a direção da sociedade. A
autogestão na produção não pode conviver com uma direção burocrática da
sociedade. Assim, continuamos no terreno da “co-gestão”.
A
revolução proletária não institui a autogestão só na fabrica (mesmo porque dito
é impossível, ou seja, não é autogestão) e sim em toda a sociedade. Portanto, a
autogestão deve se expandir para o conjunto das relações sociais. Mas não basta
abolir o mercado e o estado nos marcos de uma nação, pois o capitalismo é um
modo de produção que se mundializou e que, por isso, obriga todas as
alternativas a ele(seja o modo de produção burocrático ou o comunista), a se
tronar mundial ou retornar ao capitalismo.
Entretanto, assim como no inicio do processo revolucionário em uma nação, a
autogestão nas unidades de produção pode conviver antagonicamente com o mercado
e o estado, durante certo tempo, a autogestão social pode conviver
temporariamente em antagonismo com os países capitalistas. Assim como revolução
burguesa, a revolução proletária só pode ser compreendida como um ciclo de
revoluções nacionais. A primeira revolução autogestionária reforça a crise do
capital (auto-exclusao do mercado nacional), produz entusiasmo e radicalização
nos trabalhadores e militantes políticos, reforçando a esquerda revolucionária,
abala as ideologias, os valores e a mentalidade burguesas, colocam em evidencia
a possibilidade concreta de autogestão, enfim, reforça o processo de
deterioração do capitalismo e de ascensão do movimento revolucionário.
Concluindo, o ciclo revolucionário do século 21 terá como conteúdo a autogestão
e isto significa a abolição da alienação e a instauração de um modo de vida
radicalmente diferente. Daqui a seis anos iniciar-se-á o século das revoluções
proletárias.
Nildo Viana
Luta
de Classes e Universo Cultural
Publicado
na Revista Enfrentamento, órgao do Movimento Autogestionário, ano I, nº 1,
Fevereiro de 2003.
Certa
vez o psicanalista alemão Wilhelm Reich afirmou que a grande questão para a
luta pela transformação social e criação de um novo mundo –livre da exploração
e alienação e baseado na igualdade e liberdade– é responder por qual motivo os
trabalhadores e oprimidos em geral não se rebelam e fazem uma revolução. Por
qual motivo uma pessoa faminta não rouba a comida que matará sua fome? Ou seja,
a questão, ao contrário da que é colocada normalmente em nossa sociedade, não é
explicar porque algumas pessoas famintas roubam e sim por qual motivo outras no
mesmo estado não fazem a mesma coisa.
Segundo ele:
“Se
dois homens A e B têm fome, um pode resignar-se, não roubar, mendigar ou ficar
esfomeado; o outro pode procurar alimento pelos seus próprios meios. Uma vasta
camada do proletariado vive segundo os princípios de B. Chama-se
lumpemproletariado. Não partilhamos da admiração romântica pelo mundo dos
malfeitores mas é preciso esclarecer o assunto. Qual dos dois tipos de homens
acima citados tem mais elementos de consciência de classe? Roubar não é ainda
um índice de consciência de classe; mas uma breve análise mostra – mesmo se
isto choca o nosso sentido de moral – que o que não se adapta às leis e rouba
quando tem fome, exprimindo assim a sua vontade de viver, é possuidor de uma
maior capacidade de revolta do que o que se entrega docilmente ao matadouro do
capitalismo. Mantemos a tese de que o problema fundamental de uma boa
psicologia não é saber porque rouba o esfomeado mas, ao contrário, porque é que
não rouba”.[1]
Reich
acrescenta que roubar não é ainda consciência de classe mas coloca que é um
tijolo com a qual, junto com outros tijolos e elementos (vidros, janelas etc.)
se constrói uma casa, isto é, é um elemento que permite a formação da
consciência de classe. A questão fundamental seria, então, explicar por qual
motivo os trabalhadores, oprimidos, descontentes não realizam atos de negação
da sociedade existente. Por qual motivo o esfomeado não rouba? Os trabalhadores
não tomam conta das fábricas? O desabrigado não toma conta dos lotes baldios ou
das grandes propriedades territoriais? São questões que nos remetem ao motivo
dos explorados, dominados, oprimidos etc. não terem feito uma revolução, a
transformação social radical abolindo a exploração, dominação, opressão. Sem
dúvida a resposta é complexa. Podemos falar do aparato repressivo do Estado, o
exército e a polícia como fator importante para a não realização da revolução.
No entanto, este aparato só entra em ação quando o confronto é aberto, quando
todos os outros meios que a classe dominante e o governo utilizam para manter a
passividade da população já não funcionam mais. Hoje, apenas uma minoria
radical entra em confronto direto com o aparato repressivo do estado
capitalista e não por propor a revolução social mas sim por questões pontuais
(protestos, manifestações, lutas pela moradia, luta pela terra, ou seja,
tijolos que são elementos para construir a casa mas ainda não é a casa).
Existe
algo anterior à força repressiva que é um forte obstáculo ao processo
revolucionário. Aqui lembramos o filósofo Rousseau. Segundo ele, o que importa,
para explicar a origem das desigualdades, é indicar, “no progresso das
coisas, o momento em que, o direito sucedendo à violência, a natureza
submeteu-se à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios pôde o forte
decidir-se a servir ao fraco, e o povo a comprar um repouso imaginário ao preço
de uma felicidade real” [2].
Portanto, Rousseau explica a origem das desigualdades a partir do momento em
que surgiu a supremacia do direito sobre a violência. Isto se encontra de
acordo com o que colocamos anteriormente: a força repressiva é sustentáculo da
desigualdade, da exploração, da dominação, da opressão, mas só é utilizada no
momento em que falham os outros sustentáculos destas relações. Rousseau assim
coloca a origem da propriedade privada e, por conseguinte, da desigualdade:
“O
primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu’, e
encontrou pessoas bastantes simples para acreditar nele, foi o verdadeiro
fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e
horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas
ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras
deste impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a
todos, e que a terra não é de ninguém. Entretanto parece que as coisas já
haviam chegado ao ponto de não mais poder continuar como estavam; pois essa
idéia de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que não puderam
nascer senão sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano.
Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e saber
transmiti-los e aumentá-los de geração em geração, antes de se atingir esse
último estágio do estado de natureza” [3].
Rousseau,
apesar de sua contextualização histórica-social deixar muito a desejar, coloca
um elemento fundamental para nossa discussão. A questão do consentimento.
Ou seja, a repressão estatal só atua quando se rompe o consentimento da
população, a força só entra em ação quando as palavras não funcionam mais. Aqui
entramos na questão cultural e no papel da cultura para a reprodução da
exploração, da desigualdade, da opressão. Por que os explorados, oprimidos,
esfomeados, não se rebelam? Basta uma rápida olhada no mundo contemporâneo para
ver milhões de indivíduos passando fome ou outros milhões em estado de miséria,
milhões de trabalhadores explorados, milhões de desempregados, milhões de
indivíduos oprimidos devido à cor da pele, a religião, a etnia etc. A grande
questão reside no que foi colocado por Reich: por qual motivo não se rebelam? E
Rousseau nos afirma que a origem da desigualdade se encontra na cultura, no
consentimento. Sem dúvida, a cultura exerce um papel fundamental na reprodução
da sociedade existente e em todos os males gerados por ela. De que forma a
cultura contribui com a reprodução do capitalismo? O universo cultural na
sociedade capitalista é muito amplo e possui vários aspectos. Iremos destacar
os principais:
A) A
Axiologia
B) A Ideologia;
C) As
Representações Cotidianas Ilusórias.
Iremos
discutir cada um destes itens.
A axiologia
é uma determinada configuração dos valores dominantes em determinada sociedade [4].
A axiologia na sociedade capitalista moderna aponta para determinados
valores, tais como a competição, o culto à autoridade, a luta pela ascensão
social e status, o desejo de consumo e posses etc. A sociedade capitalista
produz uma estruturação de valores que são inculcados nos indivíduos desde sua
infância. A competição é uma parte constitutiva do processo de socialização,
tanto familiar quanto escolar. Nós vivemos num mundo competitivo e a competição
acaba formando valores introjetados pelos indivíduos. Todos querem “ser o
melhor”, o melhor aluno (o que tira “as melhores notas”), o melhor jogador de
futebol, o torcedor do melhor time e assim por diante. A competição que se
encontra na sociedade (na escola, na busca de posições através de concursos, na
disputa por uma vaga na escola ou universidade ou por um emprego no mercado de
trabalho), no mundo dos esportes, nas igrejas, nas instituições em geral. A
competição é tão grande que se encontra até mesmo nas relações amorosas entre
homens e mulheres [5],
nas quais os homens competem pelas mulheres (segundo, geralmente, os valores
dominantes, que valoram a beleza, em especial) e as mulheres competem pelos
homens (também segundo os mesmos valores, o que leva a preferência pelos homens
poderosos e ricos). Esta sociedade competitiva irá criar indivíduos
competitivos e é por isso que diversos pesquisadores irão colocar a existência
de uma “personalidade competidora”, de um “caráter competitivo”. A ascensão
social, a riqueza e o status são elementos fundamentais na cultura capitalista
contemporânea.
Como
isto interfere na formação da mentalidade dos indivíduos explorados e
oprimidos? Isto gera, no interior dos grupos sociais oprimidos e das classes
exploradas, o individualismo e a competição. Aliás, o mesmo se vê nos grupos
políticos – tanto os falsamente de esquerda, tais como os partidos políticos,
quanto os que realmente buscam a emancipação humana, embora neste último caso
isto ocorra geralmente de forma minimizada. Muitos tentam superar sua situação
indesejável de exploração e opressão através de uma solução individual,
buscando realizar a ascensão social, adquirir o poder ou riqueza. Aqui temos
uma negação de uma situação –de exploração e opressão– simultaneamente com sua
reafirmação – a solução individual que reforça os valores burgueses e leva os
indivíduos a quererem a conservação da sociedade capitalista na ilusão de que
poderão realizar tais valores. Eles também irão incentivar a formação de
determinados sentimentos, como os do ciúme e inveja, entre outros, que
dificultarão o processo de engajamento na luta pela transformação social.
Os
valores são mobilizadores, eles fazem as pessoas agirem, escolherem, decidirem.
O aspecto mais importante do universo cultural reside justamente nos valores. E
existem, para os indivíduos, valores fundamentais que estão acima na sua escala
de valores e estes são mais eficazes do que os outros. Estes valores são
constituídos socialmente e reproduzem a sociabilidade existente, capitalista.
Tal como colocou Reich:
“A
existência e as condições de existência dos homens, refletem-se, incrustam-se e
reproduzem-se na sua estrutura mental, à qual dão forma. É só através desta
estrutura mental que este processo objetivo nos é acessível, que podemos
entravá-lo, favorecê-lo ou dominá-lo. Só por intermédio da cabeça do homem, da
sua vontade de trabalho, da sua procura da alegria de viver, em resumo, de sua
existência psíquica, que nós criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi
tudo isto que esqueceram há muito os ‘marxistas’ que degeneraram em
economicistas” [6].
Esta
referência ao marxismo é importante, pois muitos consideram que para Marx as idéias
não passavam de mero epifenômeno, de coisa sem importância e influência no
curso real dos acontecimentos e das lutas sociais, o que é um equívoco, pois
para ele as idéias se transformam em “forças materiais” quando são
desenvolvidas pelos explorados e oprimidos. Segundo Marx:
“Se
alguém acredita possuir 100 táleres (*), se essa não é para
ele apenas uma representação arbitrária, subjetiva, se ele acredita nela, então
os 100 táleres imaginados têm para ele o mesmo valor que 100 táleres reais. Por
exemplo, ele contrairá dívidas em função desse seu dado imaginário, o qual terá
uma ação efetiva: foi assim, de resto, que toda a humanidade contraiu dívidas
contando com seus deuses”.[7]
A
força do imaginário, tal como Marx colocou, é ativa e mobilizadora. Uma idéia
é, independentemente de ser verdadeira ou falsa, mobilizadora, ativa. Assim, os
valores geram uma visão imaginária de sua realização que mobiliza
conservadoramente grande parte da população.
Tendo
sua base nos valores dominantes e servindo para reproduzi-los, temos a ideologia.
A ideologia surge com a divisão entre trabalho intelectual e manual e se
desenvolve em formas cada vez mais complexas. A ideologia na sociedade capitalista
se manifesta sob a forma de ciência, filosofia, teologia. Ela é uma
sistematização da falsa consciência, ou seja, é um pensamento complexo,
sistemático, que dá forma a um conteúdo falso. Daí a valoração da linguagem
técnica, do formalismo, da metodologia, da tradição e erudição etc. A
filosofia, a ciência e a teologia são as principais formas deste pensamento
sistemático e falso. Ora, a ideologia está intimamente ligada à divisão social
do trabalho e são os especialistas na produção de idéias, os ideólogos, que
irão produzir e reproduzir a ideologia. Os ideólogos irão, na sociedade
capitalista, se subdividir em diversas especializações (o economista, o
psicólogo, o filósofo, o matemático, o físico, o biólogo) e terão um status
social e um reconhecimento de sua capacidade e formação especializada. A
sociedade capitalista é marcada por uma crescente especialização e por criação
de técnicos e especialistas em quase tudo. E tais especialistas acabam
assumindo a forma de autoridade e isto propicia o que podemos denominar “culto
à autoridade”. Algumas pessoas se julgam incapazes de tomar decisões sem
consultar um especialista (médico, dentista, psicólogo e cada vez mais,
arquitetos, agentes de turismo e coisas do gênero).
Os
ideólogos, no entanto, estão a serviço do poder. Existem, entre os
especialistas (cientistas, filósofos, teólogos), algumas exceções, mas a
maioria está a serviço da reprodução do capitalismo, inclusive alguns com
discurso supostamente progressista. A razão disto se encontra no fato de que
eles constituem classes sociais auxiliares da burguesia, e devido a isto
recebem privilégios (salariais, principalmente) de sua posição e devido seu
papel de falsificação da realidade social e também na elaboração de técnicas de
controle social e amortecimento dos conflitos sociais. Um psiquiatra, por
exemplo, que realiza psico-cirurgia ou indica uma droga para evitar a depressão
está tão-somente representando os interesses daqueles que fazem a psicocirurgia
e da indústria farmacêutica e apresentando um paliativo para um problema
psíquico que tem sua origem nas relações sociais e no conjunto de insatisfações
gerados por elas. Um psicólogo terapeuta realiza o mesmo papel, ou seja,
representa seus próprios interesses –pois recebe dinheiro pelo tratamento
terapêutico– e os da classe dominante, ao produzir mais um indivíduo enquadrado
e adaptado (bem ou mal...) à sociedade existente. O urbanista que elabora um
projeto urbano contribui com a organização do espaço urbano capitalista, um
espaço dividido e voltado para a reprodução das relações de exploração e
dominação. Em outras palavras, os ideólogos não apenas legitimam a sociedade
capitalista como atuam no sentido de reproduzi-la através de sua prática
profissional, da criação de técnicas e tecnologias e assim por diante.
Devido
ao culto à autoridade e pela desvaloração do saber popular, cria-se nos grupos
oprimidos e classes exploradas uma valoração da ideologia e um sentimento de incapacidade
de alcançar “tão relevante” saber, que é o científico, filosófico, teológico.
Assim, o discurso dos especialistas, dos cientistas e outros ideólogos, assumem
a aparência de verdade inquestionável (como muitos dizem ingenuamente: “isto já
foi comprovado pela ciência”...). A popularização da ideologia, o que traz sua
desfiguração e simplificação, reforça, pois, o conservadorismo da população. As
revistas de vulgarização científica, os meios de comunicação de massas (rádio,
televisão, jornais, revistas semanais) e o ensino escolar cumprem este papel.
Assim, a ideologia, apesar de sua produção estar restrita no círculo dos
ideólogos, possui uma eficácia política que é uma força que garante o
consentimento e a conservação da sociedade burguesa.
Por
fim, temos as representações cotidianas ilusórias, o reino do imaginário
popular. O saber popular, chamado pelos ideólogos de “senso comum”, é formado
pelo conjunto das representações cotidianas que os indivíduos possuem da
natureza e das relações sociais. Estas representações cotidianas, que se
expressam no dia-a-dia da população, podem ser falsas ou verdadeiras. Para
algumas ideologias, elas são necessariamente e sempre falsas, o que é uma
inversão da realidade. As representações cotidianas – que são as representações
não apenas produzidas pelos indivíduos das classes exploradas e grupos
oprimidos mas por todos indivíduos desta sociedade, inclusive os cientistas que
não pensam “cientificamente” sobre tudo e a todo o momento –são
predominantemente falsas, especialmente nos setores privilegiados da sociedade.
Na realidade concreta, existe nos indivíduos uma mescla de representações
cotidianas falsas e verdadeiras, que expressa a contraditoriedade da
consciência de classe já discutida por Reich e Gramsci.[8]
As representações
cotidianas ilusórias reforçam o imobilismo, os valores dominantes e assim
por diante, também servindo para a reprodução do capitalismo. Elas nascem, em primeiro
lugar, das próprias relações sociais existentes, que são “naturalizadas” e
“universalizadas”. Quem já não ouviu a frase “a desigualdade existirá para
sempre”. Ora, as pessoas que nascem numa sociedade caracterizada pela
desigualdade, vivem e envelhecem nesta sociedade, tendem a pensar que isto é
“natural” e “universal”: assim é, assim sempre será. Tal opinião fica mais
forte ainda quando algum cientista vem para afirmar que existe na natureza uma
“luta pela sobrevivência”, onde há uma “seleção natural dos mais aptos” e só
estes sobrevivem (tal como afirmou Darwin, o ideólogo da evolução) ou então que
a fome é produto do crescimento populacional, que cresce em proporção muito
maior do que a produção de alimentos (tese do economista Malthus, ideólogo do
século 19 que tem adeptos até hoje e inspirador de Darwin). Assim, as
representações cotidianas também são mobilizadoras, e as que são ilusórias
mobilizam no sentido de conservação da sociedade existente.
No
entanto, até agora apenas observamos o papel conservador da cultura na
luta de classes. Isto é fundamental para percebermos a força das idéias no
processo de conservação da sociedade capitalista e da necessidade de buscar
realizar uma intensa luta cultural visando diminuir a eficácia política da cultura
burguesa e aumentar a força do projeto revolucionário. As classes exploradas e
grupos oprimidos trazem em si um conjunto de idéias, valores, representações
que realizam uma crítica da sociedade capitalista. É preciso, pois, reforçar
isto. Os grupos políticos revolucionários também produzem um amplo material
crítico e revolucionário, bem como alguns intelectuais dissidentes e movimentos
sociais. Ora, o que é preciso é reforçar todo este processo de constituição de
uma cultura libertária, ampliando-a quantitativamente e
qualitativamente, bem como realizar uma articulação entre as diversas produções
culturais libertárias. A criação de meios de comunicação alternativos e de
intervenção nos meios de comunicação existentes é outra forma de encaminhar esta
luta cultural, pois além da produção de uma cultura libertária, é preciso sua
divulgação, para proporcionar sua ampliação, produzindo novos produtores.
Assim,
a produção cultural libertária deve se expandir e articular e se realizar sob
os mais variados meios (jornais, revistas, livros, CDs, apresentações públicas
etc.) e sob as mais variadas formas (teatro, música, teoria, etc.). Isto, ao
lado da atuação militante nos movimentos sociais e luta pela auto-organização
das classes exploradas e grupos oprimidos e da articulação dos movimentos
revolucionários, abre espaço para se contribuir com o processo de transformação
social, que hoje vem sendo reforçado pela tendência de crise e instabilidade do
capitalismo, fornecendo condições sociais de crescimento do descontentamento
popular e adesão ao projeto de transformação social. A luta cultural é um ponto
fundamental para a luta pela transformação social. A cultura libertária,
assim como a cultura burguesa, também é mobilizadora e, portanto, deve ser
considerado elemento fundamental da luta revolucionária.
Apéndice
Manifesto
do Movimento Autogestionário
O
Movimento Autogestionário é um movimento político autogerido que busca ser
expressão teórica e política do movimento revolucionário do proletariado. Ele
não possui interesses próprios, mas pretende tão-somente ser uma forma de
expressão dos interesses de classe do proletariado. Em períodos
históricos não-revolucionários, a classe revolucionária de nossa época, o
proletariado, não consegue forjar uma expressão política e teórica autêntica de
proporções quantitativas elevadas; nos períodos revolucionários, o proletariado
realiza sua autonomização e se liberta dos seus falsos representantes
(partidos, ideologias, etc.), passando a autogerir sua luta e começando a
construir a autogestão social. O Movimento Autogestionário busca, em um período
não-revolucionário, expressar os interesses históricos do proletariado e
colaborar com a sua autonomização e assim inaugurar um período de revolução
social.
O
capitalismo mundial e o brasileiro caminham para uma rápida deterioração e,
embora não devemos subestimar a sua capacidade de prolongar sua vida e adiar
suas crises, os próximos anos deverão ser marcados por uma movimentação
revolucionária ascendente. O capitalismo realiza um desenvolvimento acelerado
das forças produtivas e isto é, ao mesmo tempo, sua maior necessidade e sua
principal contradição. O desenvolvimento das forças produtivas aumenta a
composição orgânica do capital, ou seja, os gastos com os meios de produção
tornam-se cada vez maiores, devido ao valor incorporado neles pela força de
trabalho ser cada vez maior. É por isso que nos países capitalistas
superdesenvolvidos, com o seu alto grau de desenvolvimento tecnológico, se
realiza uma busca incessante de aumento de produtividade, ou seja, de produção
de mais-valor relativo. Entretanto, apenas o aumento de produtividade não
supera tal contradição, pois a mais-valor relativo produzido também será
incorporado nos meios de produção e reforçará, conseqüentemente, a tendência à
queda da taxa de lucro médio.
A
solução encontrada pelo capitalismo superdesenvolvido é deslocar os
investimentos em meios de produção para os bens de consumo ou para a expansão
dos serviços. Após a segunda guerra mundial e a destruição em massa das forças
produtivas provocadas por ela, aumentou-se a intervenção do estado na economia,
mas esta solução vem sendo suplantada pela expansão da produção de meios de
consumo e do setor de serviços dominados pela iniciativa privada. Mas a
expansão da produção de meios de consumo cria a necessidade de expansão do
mercado consumidor. Busca-se, a partir disto, integrar as populações das
economias capitalistas subordinadas no circuito de consumo e aumentar a
capacidade consumidora das pessoas, tal como na estratégia de diminuir o tempo
de vida útil dos produtos e na produção de bens descartáveis.
O
capitalismo superdesenvolvido negocia com as economias subordinadas produtos da
mais alta qualidade tecnológica, incluindo meios de produção, em troca de
matérias-primas e meios de produção menos sofisticados, tal como determinado
pela divisão internacional do trabalho. Lembrando que a produção de mais-valor
relativo é elevadíssima no capitalismo superdesenvolvido, mas que a composição
orgânica do capital também acompanha esta elevação, vemos que estes países para
se manterem precisam realizar uma transferência de valor dos países
subordinados para os países imperialistas. É no comércio internacional
que se dá o grosso da transferência de valor que sustenta as economias
imperialistas. As empresas monopolistas transnacionais criadas a partir da
necessidade de exportação de capitais são outra fonte de transferência de
mais-valor, ao lado da dívida externa, através da remessa de lucros, royalties,
etc.
A exportação de capitais continua sendo uma
necessidade do capitalismo contemporâneo devido a monopolização crescente da
economia. A acumulação de capital dos grupos monopolistas faz com que
estes ultrapassem os limites das fronteiras nacionais por causa do barateamento
dos custos de produção e da integração de um mercado consumidor maior no
circuito do consumo.
As
conseqüências disto são múltiplas. A expansão da produção de meios de consumo e
dos serviços produz uma burocratização e mercantilização crescente das relações
sociais e isto interfere na luta operária. Por um lado, cria-se uma
burocratização das próprias organizações criadas para representar a classe
operária e, por outro, cria-se uma mercantilização que favorece a corrupção de
indivíduos da classe trabalhadora e integra-os na sociedade capitalista. Por
conseguinte, esta expansão produz efeitos não só econômicos, mas também
políticos e ideológicos. Além disso, há uma deterioração da qualidade de vida (vista
não do ponto de vista da ideologia burguesa, ou seja, levando em consideração o
índice de consumo ou o nível de renda, mas sim do ponto de vista do bem estar
físico e mental e de uma sociabilidade não-repressiva) provocada por isto e
também pela destruição ambiental. Se o movimento operário assume uma posição
mais moderada, os demais movimentos sociais (das mulheres, negro,
ecológico, estudantil, etc.) freqüentemente esboçam uma radicalização,
expressando a resposta das massas as novas contradições criadas pelo
desenvolvimento capitalista.
Acontece que o capitalismo superdesenvolvido encontra-se no limiar de uma nova
grande crise. Esta vem se esboçando e a formação de blocos econômicos é apenas uma
resposta a esse despontar da crise. Esta, ao chegar, deve produzir uma nova
autonomização da classe operária e abrir espaço para a Revolução Social. A
crise do capitalismo de estado russo e a desagregação do bloco do capitalismo
estatal também reforça a tendência de desencadeamento de uma crise
mundial e, concomitantemente, de uma revolução mundial.
O
capitalismo brasileiro vem se reproduzindo de forma subordinada ao capitalismo
superdesenvolvido. O desenvolvimento subordinado brasileiro convive com um
período de rearticulação da divisão internacional do trabalho que irá mudar
apenas a forma como ele servirá de apoio ao desenvolvimento capitalista
mundial. O Brasil entrou pela via de desenvolvimento capitalista de forma
retardatária e por isso se encontrou em desvantagem e atraso em relação aos
países que entraram por esta via anteriormente, o capitalismo retardatário
brasileiro encontra-se em dependência em relação ao capitalismo
superdesenvolvido devido ao seu atraso tecnológico e sua acumulação incipiente
de capital. A sua entrada no mercado mundial ocorreu, desde a época do modo de
produção escravista colonial, de forma subordinada e em situação desfavorável
na divisão internacional do trabalho. A entrada de capital estrangeiro e a
aliança da burguesia brasileira com a burguesia monopolista internacional
expressa no estado capitalista brasileiro são os meios responsáveis pela
transferência de valor do Brasil para o exterior.
A
enorme transferência de mais-valor para o exterior, sob as diversas formas em
que isto ocorre, deixa a economia brasileira em uma situação de dificuldades
econômicas constantes. Apesar disto, a luta operária no Brasil não
consegue atingir um nível elevado. A péssima situação em que se encontram as
classes exploradas no Brasil não foram suficientes para o desencadeamento de
uma luta de massas que coloque em xeque o modo de produção capitalista.
O
estado capitalista busca integrar as massas utilizando como principal suporte a
democracia burguesa, que é apresentada como o palco onde se desenrola a luta
política. A canalização da luta política rumo a democracia burguesa tem como
objetivo desviar as classes exploradas da luta política direta para a luta
eleitoral realizada por seus “representantes” - corrompidos e integrados na
sociedade capitalista - e reforça, assim, a burocratização e integração
das forças políticas na sociedade burguesa. O estado capitalista, juntamente
com as outras instituições burguesas, utilizam outros recursos para integrar,
corromper e burocratizar as organizações políticas e movimentos sociais.
É
nesta situação que devemos encaminhar nossas lutas. As “esquerdas” tradicionais
estão integradas na sociedade burguesa e são mais um ponto de apoio para a
dominação capitalista. Qual é, nesta situação, o papel do Movimento
Autogestionário? Cabe ao Movimento Autogestionário buscar acelerar o processo
revolucionário e criar as condições favoráveis para a vitória da classe
operária quando explodir uma situação revolucionária. Deve-se, portanto, radicalizar
e dar um caráter de classe às lutas políticas na sociedade e, ao mesmo tempo,
criar no interior da sociedade capitalista centros de contra-poder que
inaugurem uma nova correlação de forças que em uma situação
revolucionária sirvam de ponto de apoio para a luta operária.
Esses
centros de contra-poder devem ser instaurados em todos os lugares onde se
expressam a luta de classes (fábricas, escolas, bairros, etc.), o objetivo da
formação desses centros de contra-poder é fortalecer a posição da classe
operária em relação ao poder do capital e do estado burguês. Outra tarefa é
realizar uma luta constante contra a ideologia dominante. A luta cultural na
sociedade capitalista contemporânea torna-se cada vez mais importante e,
conseqüentemente, a criação de meios alternativos de produção e reprodução das
idéias revolucionárias se torna necessária.
Portanto, a estratégia revolucionária na época atual apresenta como objetivo
fundamental o aceleramento do processo revolucionário e a criação de condições
favoráveis para a vitória do proletariado com o desencadeamento deste processo.
Os meios para se realizar isto é uma intensa luta cultural e a formação de
centros de contra-poder no interior da sociedade capitalista. Mas é necessário,
além disso, saber articular a estratégia global do movimento operário com as
estratégias específicas que devem ser elaboradas para cada um movimento social
e local onde se realiza a luta de classes. No atual estágio de desenvolvimento
da sociedade brasileira é necessário elaborar estratégias específicas para o
movimento camponês, ecológico, negro, das mulheres, estudantil, os movimentos
sociais urbanos, etc., e articulá-las com o movimento operário e sua
estratégia global.
Estas
estratégias específicas e estes movimentos sociais devem se articular com a
estratégia global do movimento operário e juntamente com as forças
revolucionárias formar um bloco revolucionário. A classe revolucionária de
nossa época, o proletariado, juntamente com as classes e frações de classes potencialmente
revolucionárias (campesinato, lúmpem-proletariado, etc.), os movimentos
sociais(ecológico, negro, das mulheres, estudantil, etc.) e as forças
revolucionárias, formam a composição social do bloco revolucionário que se
complementa com o projeto político comunista, a autogestão social. Esse bloco
revolucionário deve elevar o nível da luta de classes através do enfrentamento
com o capital colocando um projeto alternativo de sociedade e radicalizar
as lutas sociais, além de formar centros de contra-poder no interior da
sociedade capitalista e com isso reforçar a luta operária.
Entretanto, deve-se deixar claro qual é a relação que o Movimento
Autogestionário deve ter com as instituições burguesas. O estado capitalista é
a principal instituição burguesa e é ele que busca regularizar e controlar
(através de leis, repressão, burocratização, etc.)todas as outras instituições
existentes na sociedade capitalista. A tese da luta pela conquista do poder de
estado é contra-revolucionária, pois o estado burguês segue a dinâmica do modo
de produção capitalista, além de ser uma organização burocrática criada com o
objetivo de sustentar a dominação burguesa. O estado não é um instrumento
neutro que pode ser utilizado por qualquer classe para atender interesses
diferentes. Ao contrário, ele é uma instituição burguesa que foi criada
para atender os interesses de uma classe específica, a burguesia, e por
isto só pode servir aos interesses dela.
Ao
recordarmos o princípio básico do movimento comunista: “a emancipação dos
trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, recordamos, ao mesmo
tempo, que a libertação do proletariado não pode ser realizada por um grupo de
golpistas que assumem o poder do estado burguês e doam a emancipação aos
trabalhadores. São estes que, na sua luta direta e cotidiana, construirão uma
nova sociedade e as instituições correspondentes a esta, a autogestão social.
Isto significa que a luta revolucionária do proletariado não é pela conquista
do poder do estado e sim pela sua destruição e pela construção da autogestão
social.
O
estado busca controlar e regularizar todas as outras instituições sociais para
dar-lhes um caráter burguês: as associações, os sindicatos, os partidos
políticos, as escolas, etc., e também busca legitimar a sociedade capitalista e
a si mesmo através da democracia burguesa. A democracia representativa tem como
objetivo não só legitimar a dominação burguesa como também busca canalizar
todas as lutas políticas e, assim, anular o seu caráter de classe e revolucionário.
A contestação e a luta operária é institucionalizada (através da
“representação”, embora tal “institucionalização” seja limitada) e perde
seu caráter de classe, legitimando ainda mais a dominação burguesa.
Portanto, a luta contra o estado capitalista é, ao mesmo tempo, uma luta contra
a democracia burguesa. Todos os partidos políticos que elegem a democracia
burguesa como palco da luta política assumem um caráter burguês, tal como deixa
claro os exemplos históricos. O estado capitalista busca integrar os partidos
políticos na sociedade burguesa através das regras da democracia representativa
inscritas nas leis burguesas que regularizam o sistema parlamentar, o sistema
eleitoral e o sistema partidário. Além das condições legais de participação na
democracia burguesa, existem as condições determinadas pelas relações de
produção capitalistas que colocam a necessidade de utilização do poder
econômico, propaganda de massas, etc. A conjugação destes dois fatores coloca a
democracia burguesa como o lugar de disputa de frações da classe dominante que
serve apenas para legitimar a dominação burguesa.
Por
conseguinte, a participação ou não-participação na democracia burguesa deve estar
subordinada aos interesses históricos do proletariado. Se, em um determinado
momento histórico, a participação puder colaborar com a luta direta dos
trabalhadores, ela deve ser realizada. Entretanto, como é raro e difícil a
democracia burguesa servir para o desencadeamento da luta operária, a posição
da esquerda revolucionária deve ser combatê-la.
Quanto
às outras instituições burguesas, elas também devem ser combatidas e algumas
(escolas e universidades, por exemplo) devem ser consideradas como palco de
luta pela formação de contra-poderes mas sem perder de vista que elas
continuarão burguesas, ou seja, a formação de contra-poderes não muda o caráter
de classe mas apenas inaugura uma nova correlação de forças no seu interior que
destrói sua eficiência e serve de apoio ao combate dos trabalhadores na
sociedade burguesa. Isto significa que discordamos da tese reformista que
afirma ser possível haver uma “dualidade de poderes” em períodos
não-revolucionários. O duplo poder só surge em períodos revolucionários e os
contra-poderes formados poderão acelerar o processo revolucionário e com o
desenvolvimento de tal processo surgirão poderes alternativos e aí sim surge a
dualidade de poderes. A dinâmica das relações de produção capitalistas e a ação
do estado burguês impedem a existência de uma dualidade de poderes em períodos
não-revolucionários e aderir a tal tese é sucumbir ao reformismo.
A
estratégia global do movimento operário tem como ponto fundamental a luta de
classes na produção. É no local de produção que se dá a exploração dos
operários e a valorização do capital. É no local de produção que se encontra a
fonte do dominação do capital e sua negação. As diversas formas de resistência
dos trabalhadores nas unidades de produção contra a exploração e a opressão dos
métodos capitalistas de trabalho devem ser reforçadas até atingir o seu ponto
máximo de radicalidade: a greve de massas. O desencadeamento da greve de massas
deve receber o apoio das forças revolucionárias e de todos os movimentos sociais.
A greve de massas deve generalizar-se e tornar-se greve nacional e deve
radicalizar-se tornando-se greve de ocupação ativa e assim implementar a
autogestão nas fábricas, ou seja, a dualidade de poderes. Neste momento, a
guerra civil oculta transforma-se em guerra civil aberta e expande-se a
formação dos coletivos de autogestão social, os conselhos de fábricas,
conselhos de bairros, etc., e com o desencadeamento deste processo
revolucionário coloca-se em prática novas relações sociais que são expressão de
uma nova sociedade. O fim da guerra civil aberta ocorre quando se generaliza a
autogestão e se destrói o poder burguês expresso no estado capitalista. A greve
de ocupação ativa, que instaura a autogestão nas fábricas e empresas, inaugura
novas relações de produção e a destruição do estado capitalista e isto
significa a superação do principal aparelho de reprodução das relações de
produção capitalistas e da contra-revolução.
Portanto, a estratégia global do movimento operário é acirrar as lutas nas fábricas
e empresas, enquanto os outros movimentos sociais buscam reforçar suas posições
em outros locais de lutas sociais, até desencadear a greve de massas, a
autogestão e a formação de conselhos revolucionários.
As
tarefas do Movimento Autogestionário e de todos os grupos revolucionários, são,
no período revolucionário, as seguintes:
- Defender a
autonomização da classe operária e combater a burocratização sob quaisquer
circunstâncias;
- Incentivar
a autogestão e a formação de conselhos revolucionários e combater o estado
capitalista e todas as organizações (inclusive os partidos de “esquerda” ou
“revolucionários”) burocráticos que queiram dirigi-los;
- Lutar pela
coletivização e autogestão dos meios de produção, inclusive no campo,
combatendo qualquer proposta “distributivista” ou burocrática;
- Desencadear
uma intensa luta por uma revolução cultural visando colaborar com uma produção
cultural coerente com as novas relações sociais, combatendo, portanto, o
racismo, o sexismo, etc.
- Oferecer
apoio ao desencadeamento e vitória do movimento revolucionário em todos os
países do mundo.
Com o
final do processo revolucionário e com a implantação da autogestão
social, o Movimento Autogestionário se auto-extinguirá e a participação dos
seus militantes ocorrerá nos coletivos de autogestão social.
MOVIMENTO
AUTOGESTIONÁRIO
Goiânia, 30 de março de 1994.
[1] Goiânia é uma cidade de mais de um milhão de habitantes, e a região da
grande Goiânia, possui dois milhões de habitantes. Mas não é uma cidade
industrial, ela é a capital do Estado de Goiás, seu centro administrativo e
comercial, e não possui um grande número de indústrias. A cidade mais
industrializada do Estado é Anápolis, cidade vizinha com uns 400 mil
habitantes, que fica entre Goiânia e Brasília. (Nota
extraida da carta de Nildo.)
[2] Tal
como definido no artigo “Exclusão social ou Lumpemproletarização”,
Revista Letralivre, lumpemproletariado seria os indivíduos que compõe o
exército industrial de reserva.
[3] PCdoB: Partido Comunista do Brasil, stalinista-reformista, hegemônico no movimento estudantil em quase
todo o país nesta época.
CGB: Coletivo Gregório Bezerra, dissidência
do PCB – Partido Comunista Brasileiro, que mudou várias vezes de nome: PLP – Partido
da Libertação Proletária; PFS – Partido da Frente Socialista; e depois se uniu
com as tendências expulsas ou saídas do PT e formou o PSTU – Partido Socialista
dos Trabalhadores – Unificado, hegemonicamente trotskista. Alguns de seus
integrantes saíram pouco depois e formaram o MLS – Movimento de Luta
Socialista, que, posteriormente, se juntou aos novos dissidentes do PT e alguns
do PSTU e formaram o PSOL – Partido Socialismo e Liberdade, reformista à
esquerda do PT.
[4] UNE: União Nacional dos Estudantes,
entidade de “representação” dos estudantes universitários a nível nacional, na
época hegemonizada pelo PCdoB.
[1] É claro que em Marx existe o conceito de
natureza humana mas ela não é uma entidade biológica ou metafísica, como para
muitos. A natureza humana é condicionada pelas relações sociais e se expressa
de forma diferenciada em cada época e sociedade. Ela se manifesta de forma
específica no conjunto das relações sociais específicas de cada sociedade. Daí
a afirmação de que o homem é um “ser social”. A “essência humana”, para Marx, é
a “essência real efetiva” (veja a sexta tese sobre Feuerbach), ou seja, a sua
manifestação prática que só se tornará livre com o advento do comunismo. Isto
quer dizer que o comunismo não cria um “homem novo”, como se costuma dizer, mas
liberta o homem atual de sua alienação fazendo dele um homem livre e, portanto,
expressão desalienada da essência humana. Resolve-se, assim, o antagonismo entre
homem e sociedade e entre homem e natureza. Desta forma, a natureza humana
expressa o conjunto das potencialidades humanas, constituídas no processo
histórico-social, e formando um ser omnilateral, que é obliterado pelas
sociedades de classes, fundadas na divisão social do trabalho e na
especialização. Resumidamente, poderíamos dizer que a natureza humana é a
liberdade, em sentido amplo (Marx, 1980b).
[2] O modo de produção, nas sociedades de classes, é
um modo de relação de classes, o que significa um modo de luta de classes, nas
sociedades classistas (Viana, 1997), mas aí se
trata das lutas de classes cotidianas e o elemento ativo se refere às lutas
revolucionárias, extra-cotidianas, isto é, nos momentos de sua radicalização. O
modo de produção é considerado, em suas definições mais simples, como sendo uma
"soma" ou "combinação" de relações de produção e forças
produtivas. No entanto, esta concepção vê apenas a diferença e não consegue
perceber a unidade dos dois conceitos e ao fazê-lo permite supor um
desenvolvimento autonomo e independente das forças produtivas, esquecendo-se
que elas constituem trabalho humano acumulado e - nas sociedades de classes -
controlado pela classe dominante e que não possuem nenhuma autonomia, sendo
apenas a forma revestida e aparente da dominação de uma classe sobre outra.
Sendo assim, o que constitui e caracteriza um modo de produção são as relações
de produção.
[3] Cf. Também o prefácio de Engels à edição
alemã de 1883.
[4] Esta parte tem edição brasileira, cf. MARX
(1985).
[5] A Introdução Geral de 1857 era parte
integrante dos Grundrisse e foi publicada separadamente por Karl Kautsky
em 1903 enquanto que os Grundrisse foram publicados pela primeira vez em
1939.
[6] Aqui
caberia uma outra crítica a Althusser, que é sua confusão em torno do termo
ideologia. Em outros escritos, Althusser irá colocar a ideologia como falsa
consciência, tal como Marx, mas neste texto ele confunde ideologia com teoria
ou visão de mundo.
[7] Para
se ter uma visão geral de quem são os autores partidários do “jovem Marx” e os
partidários do “Marx da maturidade”, além daqueles que defendem a continuidade
de seu pensamento, cf.: Mandel (1968); Fromm (1983); Guérin (1969).
[1]
Pannekoek, Anton. A Luta Operária. Coimbra, Centelha, 1977, p. 73.
[2]
Rosemberg, A. História do Bolchevismo. Belo Horizonte, Oficina de
Livros, 1989, p. 275.
[3] Cit.
por: Jerome, W. & Buick, A. A Natureza da URSS. Porto, Afrontamento,
1977, p. 219.
[4]
Barrot, Jean. O Movimento Comunista. Lisboa, Etc, 1975, p. 258.
[5] Cf.
Bettelheim, Charles. A Luta de Classes na União Soviética. vol. 1. 2a.
edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
[6] Cf.
Bernardo, João. Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Porto,
Afrontamento, 1975.
[7] Cf.
Lênin, W. Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1988.
[8] Cf.
Volin. A Revolução Desconhecida. São Paulo, Global, 1980; Trótsky, Leon.
A Revolução de 1905. São Paulo, Global.
[9] Cit. por: Medvedev, Roy. Era Inevitável a Revolução Russa? Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 49.
[10] Cf.
Brinton, Maurice. Os Bolcheviques e o Controle Operário. Porto,
Afrontamento, 1975.
[11] Cf.
Machnó, Nestor. A "Revolução" Contra a Revolução. São Paulo,
Cortêz, 1988.
[12] Cf.
Kollontai, Alexandra. A Oposição Operária. 1920-1921. São Paulo, Global,
1980.
[13] Cit.
por: Arvon, Henri. A Revolta de Kronstadt. São Paulo, Brasiliense, 1984,
p. 43.
[14]
Geralmente se fala em "coletivazação forçada" mas isto nao é
correto, pois "um kolkhoze, ou aquilo que deveria ser uma propriedade
coletiva, é um organismo que, pela sua própria natureza difere essencialmente
de uma associação cooperativa. Na realidade um kolkhoze é um organismo estatal
que tende a transformar os camponeses em operários agrícolas que cumprem suas
tarefas por medo de sanções penais" (Mett, Ida. O Camponês Russo
Durante e Após a Revolução. Porto, A Regra do Jogo, 1975, p.).
[15] Marx,
Karl. A Miséria da Filosofia. 2a. edição, São Paulo, Global, 1989, p.
143.
[16]
"Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o
que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das
quais se tinham movido até então. De forma de desenvolvimento das forças
produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época
de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é
necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se pode comprovar
de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e
as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em
resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste
conflito, levando-o as suas últimas consequências" (Marx, K. - Contribuição
à Crítica da Economia Política. Segunda Edição, São Paulo, Martins Fontes,
1983, p. 24 - 25).
[17] Cf.
Bettelheim, Charles. A Luta de Classes na União Soviética. Vol. II. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
[18]
Tragtenberg, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. 3a. edição, São
Paulo, Moderna, 1989.
[19] Cf.
Borsi, Emil. Formação das Democracias Populares na Europa. Lisboa,
Avante!, 1981.
[1] Cf.
Guillerm, A. e Bourdet, Y. - Autogestão: Mudança Radical, RJ, Zahar,
1976.
[2]
Brinton, M. - Os Bolcheviques e o Controle Operário, Porto,
Afrontamento, 1975.
[3]
Guillerm, A. e Bourdet, Y. - Autogestão: Mudança Radical, RJ, Zahar, 1976,
págs. 19-20.
[4] Cit.
por: Poulantzas, Nicos - Poder Político e Classes Sociais, São Paulo,
Martins Fontes, 1988.
[5] João
Bernardo utiliza a expressão “lei fundamental”, mas, como a idéia de lei
é questionável do ponto de vista da dialética materialista, utilizamos a
expressão hegeliana de determinação fundamental (Bernardo, João - Para Uma
Teoria do Modo de Produção Comunista, Porto, Afrontamento, 1975.).
[6] Marx,
K. e Engels, F. - O Manifesto Comunista; in: Lasky, H. J. (org.) - O
Manifesto Comunista de Marx e Engels, 2ª edição, RJ, Zahar, 1978.
[7] Marx,
K. - A Guerra Civil na França, São Paulo, Global, 1986.
[8] Marx,
K. - Crítica ao Programa de Gotha; in: Marx, K. e Engels, F. - Obras
Escolhidas, 2ª edição, São Paulo, Alfa-Omega, S/D. pág. 213.
[1] Reich, Wilhelm - O Que é a Consciência de Classe?, Lisboa: Textos
Exemplares, 1976, p. 23.
[2] Rousseau, Jean-Jacques - Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens, Brasília/São Paulo: Edunb/Ática, 1989, p. 49.
[3] Rousseau, J-J - ob. cit., p. 84.
[4] Cf. Viana, N. A - Questão dos Valores, Revista Cultura & Liberdade, Ano 02, Número 02,
abril de 2002.
[5] Sobre isso: Alberoni, F.
- O Erotismo, São Paulo: Círculo do
Livro.
[6] Reich, W. - ob. cit., p. 19.
(*) Moeda alemã da época (século 19).
[7] Cit. Por: Lukács,
George - Ontologia do Ser Social. Os Princípios Ontológicos
Fundamentais de Marx, São Paulo: Lech,
1979, p. 13.
[8] Reich, W. - ob.
cit.; Gramsci, A. - Concepção
Dialética da História; 7ª ed., Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.