Nildo Viana

 Um marxismo vivo

  

Índice :

 

 Breve biografia

 

O Jovem Marx e o Marxismo

 

A Fonte do Poder

 

A Origem da Dominação

 

O Capitalismo de Estado da URSS

 

O que é autogestão?

 

A autogestão como conteúdo do novo ciclo revolucionário

 

Luta de Classes e Universo Cultural

 

 

Apéndice:

 

Manifesto do Movimento Autogestionário

 

 

 

 

 


 

 

 

 

Breve Biografia

 

  O seguinte escrito biográfico foi-nos enviado por Nildo e sua esposa Maria Angélica, a solicitude nossa. Publicamo-lo tal como nos chegou, somentes com algumha emenda -puramente superficial e pontual- de estilo para perfilar mais o texto como narraçom biográfica “objetiva”. Também acrescentamos umha nota sobre Goiânia, procedente dumha carta que nos remeteu o próprio Nildo.

 

 

1. Origens sociais e trajetória

 

  Nildo Viana nasceu em 1965, em Goiânia (estado de Goiás, Brasil) [1]. De família pobre, passou parte da sua vida, infância e parte da juventude, em situação difícil. Morando na periferia de Goiânia, vivendo de subemprego-desemprego, em 1985 aderiu ao partido político mais radical da época, o PT – Partido dos Trabalhadores, justamente por estar procurando o mais radical. No entanto, não efetuou nenhuma participação concreta em tal organização, tendo em vista as suas dificuldades financeiras e a falta de incentivo por parte da organização, que não realizava nem reuniões nem formas de integração de pessoas sem ligações anteriores ou orgânicas com o partido ou que atuavam já em alguma instituição/movimento.

 

  Estudou irregularmente até 1980, sendo que iniciou novamente os estudos nos três anos posteriores, mas teve que abandonar devido à impossibilidade financeira. Em 1987 fez o curso supletivo e eliminou as séries não estudadas e pode prestar vestibular, sendo aprovado em 1988, para o curso de Ciências Sociais, na Universidade Federal de Goiás. Com muitas dificuldades, desde as financeiras, passando pelas de locomoção (02 horas de trajeto casa-universidade), concluiu o curso e depois, para garantir a sobrevivência consegue outros títulos acadêmicos e passa a viver como professor universitário. Após concluir o curso universitário, ficou desempregado por alguns anos, vivendo de subemprego, inclusive devido aos concursos nos quais não foi aprovado por ser incompatível com os cânones acadêmicos vigentes. Após 1996 passa a viver de bolsas e aulas em faculdades particulares e em 1999 passa a ter estabilidade ao entrar para a Universidade Estadual de Goiás, onde permanece até os dias de hoje. Morou em Brasília de 1997-1998. Mudou, assim, de classe social, passando de lumpemproletário para um membro da intelligentsia, embora apenas no que se refere a condição de classe e não a posição política [2].

 

 

2. Prática política

 

  Ao se filiar ao PT em 1985 não efetivou nenhuma prática política no interior deste partido. Participou de grupo de estudos de bairro para discutir a realidade local e questões políticas. Ao ingressar na Universidade (1988), travou contato com militantes de diversos partidos de “esquerda” (PCdoB, PT, CGB, etc. [3]). Passou a atuar nas lutas estudantis junto com os independentes, isto é, os sem ligação partidária, e enfrentar o PCdoB, às vezes com apoio dos demais, às vezes isoladamente, pois a partir de 1990, o PT e CGB/PLP já não tinham mais nenhuma força política própria no movimento estudantil goiano. Nesta mesma época (1989) se junta com outros estudantes e militantes do Movimento Negro e ajuda a formar a Liga Spartacus, agrupamento que atuava sem se apresentar publicamente enquanto coletivo.

 

  O coletivo, que mudou seu nome para Movimento Conselhista (1990), embora sem divulgá-lo publicamente, atuava no movimento estudantil universitário, movimento negro, e no interior do PT, usando a estratégia trotskista do “entrismo”, buscando atrair os setores mais radicais para a luta autogestionária. Atua conjuntamente com as tendências mais à esquerda do PT, inicialmente a TM – Tendência Marxista, leninista-reformista, posteriormente ao PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, também conhecido como “Tendência Brasil Socialista”, de influências autonomistas e de orientação leninista-gramsciana. A colaboração com esta última tendência ocorre também – além das lutas intrapartidárias – na esfera do movimento estudantil a nível nacional, já que a nível local ela não tinha militantes no movimento estudantil universitário. Ocorre um conflito em uma preparação para o Congresso da UNE [4], no qual o texto escrito pelos integrantes do Movimento Conselhista que seria a tese para o referido congresso não foi aceito em um de seus itens – análise da União Soviética, qualificada como Capitalismo de Estado – e isto inviabilizou a divulgação do texto, realizado de forma precária pelo MC, devido às condições financeiras dos seus integrantes.

 

  Pouco depois, o Movimento Conselhista resolve romper com o PT (e, como a tendência Brasil Socialista resolve permanecer, só saindo alguns anos depois, ocorre um afastamento, mas sem animosidades políticas, além das divergências que sempre existiram) e assumir publicamente seu nome e editar sua publicação, a Revista Ruptura (1993). Em 1994, o coletivo recebe novas adesões e passa a possuir hegemonia no movimento estudantil secundarista em Goiânia, além de continuar atuando no movimento estudantil universitário e negro. O coletivo passa a atuar na Região Leste de Goiânia, através do movimento de bairros, junto a estudantes e trabalhadores da região. Um grupo local, UJR – União da Juventude Revolucionária, passa a atuar junto com o Movimento Conselhista, que altera seu nome para Movimento Socialista Libertário, de mais fácil compreensão, e posteriormente se funde com ele. O coletivo continua editando sua revista, lançando panfletos, utilizando boletins e outras estratégias, puxando voto nulo e outras ações. A partir de 1996 passa a abrir contato com várias organizações e indivíduos anarquistas. Realizou trabalhos nas suas esferas de atuação e posteriormente se articulou com indivíduos anarquistas e um grupo anarco-punk surgido na cidade. Posteriormente, o grupo ficou por um longo período desarticulado, aproximadamente quase dois anos, com poucas reuniões e atividades, inclusive em matéria de publicação, embora sem deixar de existir e sem abandonar as ações individuais dos seus membros (uns mais, outros menos, é claro), isto, em parte, devido a alguns terem abandonado o movimento estudantil por ter encerrado seus cursos e mudarem de cidade para fazer cursos de pós-graduação, alguns abandonaram a luta política, outros mudaram de cidade.

 

  A partir de 2000, com seu retorno a Goiânia, feito em 1999, Nildo passa a se juntar aos demais e buscar rearticular o MSL. Novos integrantes aderem ao coletivo e os remanescentes do coletivo que permaneceram passam a retomar algumas atividades, criando uma ação no interior da academia, onde muitos passaram a trabalhar, e em publicações, ações coletivas, contatos nacionais e internacionais. Assim, o coletivo ficou ativo, fazendo campanha por voto nulo, articulando com os coletivos anarquistas da cidade, atuando conjuntamente com o coletivo anarquista União Popular e os membros voluntários do CMI – Centro de Mídia Independente, e participando de reuniões nacionais a nível nacional, bem como realizando contatos via internet. Agora em 2007, novas atividades estão sendo propostas e algumas retomadas, reformulando publicações e site na internet, e novos integrantes aderiram recentemente ao coletivo.

 

 

3. Prática teórica

 

  Antes de entrar na universidade já lia alguns autores, livros introdutórios, sobre sociologia, marxismo, etc. Na Universidade, passou a ser freqüentador assíduo de sebos, onde encontrou obras que tiveram grande influência: O Futuro Pertence ao Socialismo Libertário, de Daniel Guérin; O Medo à Liberdade/Análise do Homem/Psicanálise da Sociedade Contemporânea, Erich Fromm; Manuscritos Econômico-Filosóficos, Karl Marx; Reflexões sobre o Socialismo, de Maurício Tragtenberg; O Movimento Comunista, de Jean Barrot entre outros. Passou por leitura assídua de Marx e Rosa Luxemburgo e, posteriormente, dos Comunistas Conselhistas (Korsch, Pannekoek, Ruhle, Mattick, etc.), através de encomendas de livros de Portugal, já que não eram acessíveis no Brasil. Foi aprofundando a leitura de Marx, dos conselhistas, e de novos autores, tal como Robert Michels, André Gorz, Jean Barrot, João Bernardo, Marcuse, Lúcia Bruno, Fernando Motta, Freud, Bakunin, entre outros. Também leituras negativas foram realizadas: Lênin, Stálin, Trotsky, ideólogos burgueses da sociologia, filosofia, etc. Enquanto estudante, buscou compreender o movimento comunista e sua história, e devido à necessidade de contribuir com a formação das teses e escritos do movimento político que participava, além do movimento estudantil, escreveu alguns textos, e publicou alguns nas revistas da Tendência Brasil Socialista, chamadas Brasil Revolucionário e Teoria & Práxis. Já terminando seus estudos universitários, e o conjunto de leituras derivadas daí, começa a escrever ensaios sobre o materialismo histórico e escreve o artigo O Capitalismo de Estado da URSS, recusado pela revista Brasil Revolucionário e depois publicado na revista Ruptura, número 01, 1993.

 

  Ao encerrar o curso de graduação, se dedica ao mestrado em filosofia e, depois, ao de sociologia, até concluir o doutorado em sociologia, passando por reflexões e temáticas da academia, sempre numa perspectiva crítica, e análise da realidade contemporânea, principalmente das lutas sociais e desenvolvimento capitalista. A crítica da ideologia se torna prática constante. A partir de 1995 trava os primeiros contatos com a literatura situacionista e em 1997 lê a primeira tradução no Brasil de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. Neste mesmo ano publica sua mais importante obra até o momento: A Consciência da História – Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético (Goiânia, Edições Combate, 1997), em pequena tiragem realizada pelo próprio autor. No ano posterior, derivado de discussões acadêmicas e a visível deformação do pensamento de Marx por seus opositores, escreve e publica Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Edições Germinal, 1998; reeditada em 2001 e agora, por editora com distribuição nacional, será relançada este ano). Obra que é, de certa forma, continuação da anterior, já que a primeira é mais livre e pessoal e a segunda é uma análise do pensamento de Marx, que revela que parte das teses básicas já apresentadas na obra anterior já se encontrava neste autor. Escreveu textos para diversas revistas, acadêmicas e políticas, bem como alguns livros voltados mais para a academia, embora numa perspectiva crítica e relacionada com as demais publicações.

 

  Em 2002 publica Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico, uma busca de uma nova síntese entre marxismo e psicanálise; em 2003 publica duas obras produzidas em períodos anteriores: O Que São Partidos Políticos (escrito em 1996) e Estado, Democracia e Cidadania (o primeiro capítulo, sobre estado, foi escrito em 1990; o segundo e o terceiro, sobre democracia e cidadania, respectivamente, escritos em 1997; e o quarto, que aborda a questão dos regimes de acumulação, em 2003). Agora, em 2007, além da reedição de A Consciência da História (Rio de Janeiro, Achiamé) e Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa), está acertando a publicação de O Capitalismo na Era da Acumulação Integral (Rio de Janeiro, Ciência Moderna), Os Valores na Sociedade Moderna (desdobramento de um artigo chamado A Questão dos Valores) e Manifesto Autogestionário (em negociação com editora).

 

 

[Parte só de Nildo:]

 

  Em termos de evolução intelectual, posso dizer que comecei minha visão política numa perspectiva de reformista radical-humanista, antes de entrar para a universidade. Depois, mantendo contato com as obras de Guérin (que trabalha bastante com os textos críticos do Jovem Trotsky e Rosa Luxemburgo em relação ao bolchevismo), fui passando para uma visão trotskista-luxemburguista (mas levando em consideração apenas o jovem Trotsky, anti-bolchevista), e com certa simpatia pelo anarquismo. Depois encontrei referência ao comunismo de conselhos e passei a procurar obras dos conselhistas. No entanto, apenas alguns extratos eram acessíveis, tal como o texto do Ruhle sobre partido (na obra de Denis Authier, A Esquerda Alemã, editada em Portugal). Até que finalmente tive acesso a algumas obras (especialmente Marxismo e Filosofia, de Karl Korsch) e, assim, posso dizer que me tornei um marxista-korschiano, já que a partir de Marx e Korsch fui desenvolvendo minha visão de materialismo histórico e método dialético. As teses de Pannekoek, entre outros, também foram fundamentais para ajudar a pensar um marxismo libertário, conselhista, autogestionário. A obra do bordiguista Jean Barrot foi fundamental para pensar o capitalismo e seu desenvolvimento histórico. O anarquismo (revolucionário) também contribui com a crítica da política, mas com suas limitações em matéria teórica. A psicanálise é uma contribuição fundamental para compreender o indivíduo e os processos sociais de preservação do capitalismo, bem como a questão da cultura dominante.

 

  Sem dúvida, a necessidade de compreender a realidade contemporânea e as lutas atuais (inclusive incluindo as discussões contemporâneas, desde as meras fantasmagorias das ideologias burguesas, quanto as questões sociais e movimentos sociais, tal como a questão racial e feminina, entre outras), trazem a necessidade atualizar a teoria e abordar questões no sentido de pensar em aprofundá-las, desenvolvê-las. Neste sentido, a busca de uma interpretação do capitalismo contemporâneo, ao lado da crítica da política (institucional) e da ciência e das ideologias burguesas, passaram a fazer parte do meu programa de pesquisa. Alguns artigos e livros já ensaiaram esta análise, mas falta muita coisa, aprofundamento em alguns casos, desenvolvimento em outros, pesquisa em outros tantos. As discussões coletivas que temos no interior do grupo e as colaborações com outras pessoas, inclusive de outros estados, contribuem bastante. Algumas teses desenvolvidas são importantes e alguns autores contemporâneos contribuem com a compreensão de aspectos do capitalismo contemporâneo, apesar do obstáculo permanente dos modismos ideológicos e das ideologias burguesas renovadas. Mas a síntese geral que poderia apresentar é que me considero herdeiro do comunismo de conselhos, e um militante teórico buscando atualizar e desenvolver as teorias revolucionárias dos comunistas de conselhos, me inspirando neles e em outros pensadores, especialmente Marx e a psicanálise.

 

Nildo e Maria Angelica

 

nildoviana@terra.com.br

 

 

 


 

 

 

Nildo Viana

O Jovem Marx e o Marxismo

 

Publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 1, num. 2, Out./Dez. de 2004.

 

  O presente texto discute a idéia defendida por muitos pesquisadores que se dizem “marxistas”, segundo a qual haveria uma ruptura entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”, derivando daí a estranha tese de que o “jovem Marx” não era “marxista”. Althusser é o principal arquiteto desta concepção e por isso iremos abordar alguns elementos de sua tese para discutirmos esta questão. Nossa tese é a de que não houve nenhuma ruptura no pensamento de Marx, pois o que houve foi um desenvolvimento, o que implica alterações, continuação e, fundamentalmente, aprofundamento.

 

  A tese que vê uma oposição inconciliável entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro” se baseia em uma análise a-histórica. Na realidade, procura-se analisar o “jovem Marx” à luz do “último Marx”, ou seja, querem ver no “jovem Marx” todas as teorias do “Marx da maturidade” prontas e acabadas. Mas, como elas ainda estão em formação, são taxadas de “não-marxistas”. Entretanto, não é o futuro que explica o passado, mas ao contrário, é o passado que explica o futuro. Um pensamento só pode ser compreendido em sua historicidade.


  A análise que afirma a continuidade do pensamento de Marx não é teleológica, como diz Althusser (1979), mas sim histórica. Ela não diz que no “jovem Marx” já estava presente o “Marx maduro” e nem que o primeiro tinha como finalidade se tornar o segundo. O que esta tese afirma é que o “jovem Marx” já tinha elementos e preocupações, que mais tarde seriam desenvolvidas e aprofundadas pelo “Marx da maturidade”, ou seja, era uma tendência que se efetivou e que a análise depois do processo concretizado revela isto. O “Jovem Marx” não tinha a finalidade de se tornar o “Marx maduro” mas isto aconteceu historicamente. Isto não ocorreu arbitrariamente, pois já havia essa tendência e ela se realizou posteriormente. Se Althusser fosse utilizar seu esquema defeituoso de análise para estudar o desenvolvimento do capitalismo teria que dizer: “existe uma ruptura radical entre o ‘capitalismo concorrencial’ e o ‘capitalismo monopolista’ e, por isso, só o último é capitalismo, assim como só o ‘Marx maduro’ é marxista; dizer o contrário é fazer uma análise teleológica”. Eis a miséria da história.


  A tese da continuidade do pensamento de Marx deve não só se justificar metodologicamente como, também, se fundamentar e se comprovar nos escritos de Marx. Veremos, então, o desenvolvimento do pensamento de Karl Marx e assim demonstrar a continuidade nele presente. O seu pensamento apresentou três fases: a primeira fase, que vai de 1838 a 1844, expressa preocupações humanistas e filosóficas esboçando sua teoria da história e a análise do capitalismo; a segunda fase, que vai de 1845 a 1848, concretiza a sistematização de sua teoria da história; a terceira fase, que vai de 1849 até 1883 (ano de sua morte), elabora mais completamente sua teoria do capitalismo, que é uma teoria da luta de classes na época moderna e da transformação social, ou, segundo Rossana Rossanda, uma “teoria da revolução” (Rossanda, 1989).


  Esta periodização do pensamento de Marx coincide com a de Korsch (1977), que relaciona tal evolução do pensamento de Marx com o desenvolvimento do movimento operário. Concordamos com Korsch no fato de que o marxismo se constitui, efetivamente, a partir da segunda fase, que coincide com uma época de ascensão das lutas operárias, mas no que concerne à terceira fase, temos uma pequena divergência. Sem dúvida, nesta fase há um recuo parcial do movimento operário (mas também uma ascensão no seu final, pois basta lembrar a Comuna de Paris de 1871, acontecimento de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria marxista, o que é reconhecido pelo próprio Marx), o que fez com que Marx se dedicasse ao estudo do modo de produção capitalista, mas isto foi realizado no mesmo espírito do que o existente na fase anterior e significou um aprofundamento da teoria do capitalismo. Iremos retomar isto mais adiante.

 

  Ao analisar a primeira fase de seu pensamento vemos uma preocupação com a “emancipação humana”, que leva a crítica do Estado, da sociedade burguesa e da propriedade privada (Marx, 1980). Mas é a partir da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que Marx esboça os fundamentos de sua teoria da revolução.


  Neste escrito, Marx expõe uma crítica ao humanismo abstrato (como o de Feuerbach), pois o “homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade(Marx, 1978, P. 02) [1]. Portanto, a crítica da “forma sacra da auto-alienação humana” deve ser substituída pela crítica de sua “forma profana”. A crítica da religião e da teologia devem ser substituídas pela crítica do direito e da política.


  A partir dessa premissa Marx elabora de forma embrionária sua teoria da luta de classes. Na Alemanha, segundo Marx, é preciso surgir uma classe que se contraponha à classe dominante de forma radical. Todas as classes que conquistaram o poder implantaram uma nova forma de dominação. Por isso, todas as classes que pretendem se tornar a nova classe dominante, devem apresentar seus interesses particulares como os interesses gerais da sociedade e, assim, aparecer como a classe emancipadora de toda a sociedade. Mas é o proletariado, devido suas “cadeias radicais”, que representa, ao mesmo tempo, os interesses particulares de classe e o interesse geral da sociedade. O proletariado ao se libertar leva à libertação de toda a sociedade, pois ele é a dissolução da sociedade de classes.


  Mas, segundo Marx, toda revolução necessita de um “elemento passivo”, de um “fundamento material”. O elemento ativo da revolução só será eficaz quando expressar o “elemento passivo”. O materialismo histórico-dialético se encontra esboçado neste texto. Quando Marx compara a política alemã com a dos outros países europeus e critica a primeira por apenas “pensar” o que os outros “fizeram”, realiza-se o prelúdio de A Ideologia Alemã. O papel revolucionário do proletariado e a luta de classes já são analisados por Marx. A importância dada ao “fundamento material” (que futuramente será identificado no conceito de modo de produção) e ao elemento ativo (a luta de classes) será retomada nos escritos posteriores formando a base do pensamento marxista [2].

 

  Todo o pensamento posterior de Marx será dedicado a fundamentar as premissas teóricas colocadas acima. O movimento da propriedade privada passa a ser acompanhado e explicado através do conceito de trabalho alienado. Este expressa as relações de produção capitalistas. Segundo Marx:

 

  “Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção, como homens estranhos e hostis; também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e o seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é dele” (Marx, 1983, p. 89).

 

Aí se encontram as relações de produção como realidade não-conceitualizada, isto é, a idéia de relações de produção já está esboçada mas o conceito ainda não aparece. A percepção de determinadas relações sociais existe mas sua conceituação só será efetivada posteriormente.


  Nos Manuscritos de Paris, Marx procura fundamentar sua tese de que o proletariado é a classe revolucionária de nossa época (capitalista) e que sua libertação leva à “emancipação humana em geral”, ou seja, de toda a sociedade. Segundo ele:

 

“Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda humanidade. Pois toda a servidão está enredada na relação do trabalhador com a produção e todos os tipos de servidão são somente modificações ou conseqüência desta relação” (Marx, 1983, p. 100).

 

Esta tese já estava presente na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e seria retomado no Manifesto Comunista, e se tornou um elemento permanente da teoria marxista.

 

  Em seu último “escrito juvenil”, A Sagrada Família, Marx novamente nega o humanismo abstrato e afirma o humanismo concreto:

 

  “A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana”. É, para empregar uma expressão de Hegel, no aviltamento, na revolta contra esse aviltamento, revolta para a qual aquela classe é empurrada pela contradição entre a sua natureza humana e a sua situação de vida, que reside a negação franca, categórica total desta mesma natureza” (Marx, 1979, p. 53).

 

Assim sendo,

 

  “No seio desta contradição, o proprietário privado é pois a parte conservadora, o proletário é a parte destruidora. Do primeiro emana a ação que mantém a contradição, do segundo a ação que a aniquila” (Marx, 1979, p. 53).

 

  A partir daí Marx procura sistematizar sua teoria da história esboçada anteriormente. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels pretendiam acertar contas com sua consciência filosófica anterior. É nesta afirmação que muitos se fundamentam para dizer que houve uma mudança brusca no “jovem Marx” que se transformou no “Marx maduro”. O Marx idealista, humanista e filosófico foi substituído pelo Marx materialista, classista e científico.


  Isto, entretanto, não é verdade. O acerto de contas não significou a passagem do idealismo ao materialismo. Marx já havia notado em seus “escritos juvenis” que:

 

“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas, a teoria é capaz de apoderar-se das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical; ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem” (Marx, 1978, p. 8-9).

 

Portanto, só quando se forma uma unidade entre teoria e necessidades radicais é que a teoria se transforma em poder material. Para o “jovem Marx”:

 

  “As revoluções precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento material. Num povo, a teoria realiza-se somente na medida que é a realização de suas necessidades” (Marx, 1978, p. 9).

 

  Marx afirma que não é suficiente o pensamento estimular sua realização; é preciso que a realidade estimule este pensamento. Portanto, a teoria se torna força material quando é expressão real das necessidades radicais e, com isso, torna a necessidade ainda mais necessária.

 

  Marx não aderiu ao “humanismo abstrato” e não abandonou o “humanismo concreto” e já colocava nos escritos de juventude que a emancipação humana seria resultado da luta de classes com vitória do proletariado. A separação entre o Marx “filosófico” e o Marx “científico” apresentada por Althusser é totalmente destituída de sentido, pois, além de ser um produto de uma concepção positivista, que busca transformar o marxismo em uma ciência, ela ignora que o marxismo significa a superação simultânea tanto da filosofia quanto da ciência, que são formas de pensamento constituídas em sociedades de classes e objetivando reproduzi-las, sendo, pois, formas sistematizadas de falsa consciência. Marx apontava para a superação da filosofia (Korsch, 1977; Viana, 2000) e sua obra, embora nem sempre com clareza, significou uma radical crítica da ciência, e unir marxismo e ciências humanas é, tal como colocou Fougeyrollas, igual ao casamento do fogo com a água.


  Mas, então, qual é esse acerto de contas? Acontece que nos seus escritos juvenis, Marx, fazia, essencialmente, a “crítica das ideologias”. Isto não significa idealismo, pois qualquer materialista pode criticar as ideologias. O que define o caráter idealista ou materialista desta crítica é o ponto de vista em que ela se baseia. Quando Marx disse, que “em política os alemães pensaram o que os outros povos fizeram”, apenas anunciou a concepção materialista da história exposta nos Manuscritos de Paris e na Ideologia Alemã.

 

  É na quarta tese sobre Feuerbach que compreendemos o “acerto de contas” de Marx:

 

  “Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa da duplicação do mundo em religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino autônomo, só pode ser explicado pelo auto-dilaceramento e pela contradição desse fundamento terreno. Este deve, pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto, que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada” (Marx, 1982, p. 12-13).

 

  Portanto, a crítica das ideologias deve ser precedida pela crítica do modo de produção, tal como na Ideologia Alemã. Nos escritos juvenis havia referências à base material, mas superficialmente, com exceção dos Manuscritos. É na Ideologia Alemã que Marx expõe as diversas formas de propriedade em seu desenvolvimento histórico culminando com o capitalismo que abre possibilidade para a realização do comunismo.


  Após a Ideologia Alemã, Marx continua a aprofundar sua teoria da história mas agora em relação direta com sua teoria do modo de produção capitalista. Vê-se isto, em A Miséria da Filosofia, na Carta a Annenkov e no Manifesto Comunista. Em O Manifesto Comunista, Marx retoma sua tese de que o proletariado liberta toda a sociedade:

 

  “Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais sem abolir o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo meio de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada existentes até agora” (Marx e Engels, 1988, p. 86) [3].

 

  Já tendo elaborado sua teoria da história, Marx passa a desenvolver sua teoria do capitalismo, que é um momento de desenvolvimento desta teoria e sua confirmação em um caso concreto. Marx começa seu primeiro escrito desta fase dizendo:

 

  “De vários lados nos criticaram por não termos analisado as relações econômicas que formam a base material da luta de classes e das lutas nacionais nos nossos dias” (Marx, 1987, p. 19).

 

É justamente isso que Marx começa a realizar em sua nova fase: analisar o modo de produção capitalista e as lutas de classes geradas por ele. No entanto, ele faz isso em um período não-revolucionário, tal como Korsch (1977) coloca, o que significa que sua teoria do capitalismo focaliza as lutas espontâneas e cotidianas que formam a essência do modo de produção capitalista, tal como se vê em O Capital. Somente com a ascensão da luta operária, ocorrida no final da década de 70 do século 19, com a Comuna de Paris, é que as lutas revolucionárias voltam ao foco de análise de Marx, embora ele já dedicasse atenção ao processo revolucionário a partir de 1848, em seus escritos sobre as lutas de classes na França.

 

  Portanto, em Trabalho Assalariado e Capital, em O Capital, em Teorias da Mais-Valia, entre outros, Marx procura revelar a base material da revolução de nossa época: o capitalismo. Em As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário, A Guerra Civil na França, entre outros, ele expõe o elemento ativo da revolução: a luta de classes. No primeiro caso, ele analisa as lutas de classes espontâneas, cotidianas; no segundo, as lutas mais radicais e que já apontam para se tornar lutas revolucionárias, o que ocorre no último texto acima citado, que tem uma parte dedicada à análise da Comuna de Paris.


  Em Para a Crítica da Economia Política ele resume sua teoria da história e faz alguns apontamentos sobre o capitalismo. Nos Grundrisse (1857-1858) retoma o desenvolvimento das formas de propriedade [4]. Ainda nos Grundrisse analisa o capitalismo e volta a um tema, que, segundo muitos, foi superado pelo “Marx maduro”: a alienação. A Introdução Geral (1857) é, segundo Althusser, a prova de que Marx abandonou seu humanismo da juventude:

 

“Althusser cita regularmente – e com razão – a Introdução de 1857 como um texto clássico e primoroso do método marxista. Depois tem de enfrentar o caso dos Grundrisse, mas como é possível depreciar um livro que contém uma introdução saudada como magistral? Se Marx abandonou em 1845 toda noção de uma natureza humana alienada, então em 1857 estava irremediavelmente confuso, regredindo a suas preocupações de juventude e escrevendo um manuscrito que é ao mesmo tempo a quintessência da maturidade e um ato de infantilismo teórico” (Harrington, 1977, p. 163) [5].

 

  Nos seus escritos considerados “históricos”, Marx analisa a luta de classes na França e em outros países, mas já como luta de classes em processo de radicalização. No 18 Brumário, Marx coloca novamente que toda revolução precisa de um “elemento passivo” e de um elemento ativo:

 

  “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1986, p. 17).

 

  Os homens fazem sua história em condições determinadas, marcadas por lutas de classes cotidianas, pelo predomínio absoluto da classe dominante, do trabalho morto sobre o trabalho vivo e é sob estas condições que se desenvolvem as lutas de classes. As lutas de classes do presente são realizadas tendo por base as lutas de classes do passado e as cirscunstâncias constituídas por elas.


  Entretanto, não se deve pensar que nos escritos “históricos”, Marx analisava apenas o elemento ativo (luta de classes extra-cotidianas) e nas obras “econômicas” apenas o elemento passivo (luta de classes cotidianas). A ênfase era colocada em um ou em outro, dependendo do escrito, mas não é possível separar um do outro a não ser em nível analítico e mesmo assim esses dois elementos se confundem, pois são partes constituintes e inter-relacionados, que formam a totalidade concreta. Basta ler suas “obras históricas” (Marx, 1986a; Marx, 1986b) ou O Capital (1988) para se notar isso. Segundo Engels:

 

  “Se Barth pensa, pois, que nós negamos toda a reação dos reflexos políticos, etc. do movimento econômico sobre este movimento, ele combate simples moinhos de vento. Que estude o 18 Brumário de Marx, em que quase só se trata do papel particular que as lutas e os acontecimentos políticos desempenham naturalmente nos limites que lhes traça a sua dependência geral das condições econômicas, ou ainda, O Capital, o capítulo, por exemplo, sobre a jornada de trabalho, onde a legislação, que é todavia um ato político, tem uma ação tão profunda, ou o capítulo sobre a história da burguesia” (Engels, 1979, p. 47).

 

  Engels, mais à frente, conclui: “o que falta a todos estes senhores é a dialética”. Apesar disso tudo, Louis Althusser afirma que existe um “corte epistemológico” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”. Para ele, a análise do pensamento de Marx não pode se basear na “história ideológica”, pois as idéias estão ligadas à história real. Althusser afirma:

 

  “É preciso que se nasça um dia em alguma parte, e se comece a pensar e a escrever em um mundo dado. Esse mundo, para o pensador, é imediatamente o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo, o mundo ideológico onde ele nasce para o pensamento” (Althusser, 1979, p. 62).

 

Marx, o pensador, nasceu em um “mundo dado” e este era o “mundo da ideologia alemã” e por isso ele coloca como sua “problemática” a problemática desse “mundo ideológico”. Althusser cai em contradição ao afirmar que não se deve partir apenas da “história ideológica” e que se deve ligá-la à história real e, no fundo, dissolve a dita “história real” na “história ideológica”. A história real de Althusser é a história ideológica da Alemanha e o que ele entende por “história ideológica” é o pensamento de Marx tomado isoladamente. Assim, ele realiza a subsunção do indivíduo Marx ao mundo ideológico alemão, e apresenta uma concepção de história real reduzida à história coletiva da ideologia em determinado país.


  Porque o mundo para o pensador é imediatamente “o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo”? Este é um pensador abstrato inventado por Althusser e não um pensador real que não é só um pensador, mas também um determinado indivíduo com todas as implicações derivadas daí. Entre o pensador e o “mundo dos pensamentos vivos” existe a mediação do processo histórico de vida de tal pensador e este não é apenas o mundo das idéias mas um mundo concreto, múltiplo, marcado pelo conjunto das relações sociais. Logo, a ligação entre eles não é imediata e sim mediada.


  A “história real” ao qual a “história ideológica” de Marx está ligada é a história da “ideologia alemã”. A proposta analítica de Althusser leva a imaginar uma Alemanha dominada pela ideologia e sem nenhuma contradição: a sociedade alemã é uma “sociedade sem história”. Ao negar em Marx uma “história ideológica”, Althusser cria uma “história ideológica” da sociedade alemã. Os pensadores individuais (independentemente da classe, religião, etc.) estão subsumidos à ideologia dominante. A relação de um pensador com a ideologia dominante, ao contrário do que pensa Althusser, não é uma relação de “submissão automática”. Além disso, Althusser cai em contradição, como já dissemos, pois afirma que a análise do pensamento de Marx não pode se basear apenas na “história ideológica”, pois esta está ligada à “história real”, mas o que faz Althusser é ligar o pensamento de Marx à história ideológica alemã, e, ao mesmo tempo, desligar esta da história real (história da sociedade), isto é, autonomiza a ideologia, como se esta tivesse um desenvolvimento autônomo. A ideologia do indivíduo Marx não é autônoma e nem pode ser desligada da história real, mas a ideologia alemã é autônoma e desligada da história real... [6]


  Quando Althusser diz que os jovens hegelianos colocam as idéias européias dentro de sua própria “problemática”, ele revela que estas não se impõem totalmente e automaticamente aos jovens hegelianos. Da mesma forma, a ideologia alemã não se impõe totalmente e automaticamente ao “jovem Marx”, pois ele a coloca, para utilizar expressão de Althusser, dentro de sua própria “problemática”. O que Althusser faz é negar qualquer papel ao processo histórico de vida do “jovem Marx”. Este estaria preso no reino da “ideologia alemã” e só poderia se libertar ao chegar na França. Althusser só não explica porque muitos pensadores alemães foram para a França, mas não se tornaram “marxistas”...


  Mas, agora vejamos os fundamentos políticos-ideológicos, que levam a opor o “jovem Marx” ao “Marx maduro” [7]. Os que privilegiam o “jovem Marx” (da primeira fase) evitam a crítica do modo de produção capitalista aderindo a um “humanismo abstrato” e os que privilegiam o “Marx maduro” (da terceira fase) evitam a crítica humanista (portanto, universal, o que revela o caráter simultaneamente particular e universal da luta proletária) ao capitalismo aderindo a uma concepção economicista do homem (homo economicus).


  A negação da crítica humanista serve para justificar a concepção de socialismo que Marx denominou nos Manuscritos de “comunismo vulgar”. A crítica humanista nega tanto o pseudo-socialismo pequeno-burguês que se baseia na distribuição de propriedade ou de renda, expressando a “inveja universal”, quanto o pseudo-socialismo estatal que se baseia na transformação de todas as pessoas em assalariados submetidos ao capital incorporado na comunidade como “capitalista abstrato” (Marx, 1983). Em outras palavras, a crítica humanista é dos elementos do marxismo que serve para refutar o pseudo-socialismo, tanto o pequeno burguês, presente, por exemplo, nas correntes reformistas (social-democracia), e em propostas específicas como a da reforma agrária, quanto no estatal, expressão dos interesses de classe da burocracia e que se revela no capitalismo de estado seu modelo exemplar (cuja experiência histórica teve na URSS, Leste Europeu, China, Cuba, etc., enquanto formas de manifestação).


  A negação da crítica ao modo de produção capitalista serve para justificar a tese da via pacífica ao socialismo ou que a transição ao socialismo não é realizada através da ação revolucionária do proletariado. A crítica do modo de produção capitalista nega tanto a possibilidade de passagem pacífica ao socialismo quanto a possibilidade da transformação ser realizada pelo conjunto da sociedade.


  É claro que em Marx não existe uma diferença entre a crítica humanista e a crítica ao modo de produção capitalista, mas existe em alguns intérpretes de sua obra que se submetem à divisão capitalista do trabalho intelectual e com isso reproduzem a alienação. Ao separar teoria e prática, razão e valores, etc. cria-se o positivismo “marxista”, ou melhor, o positivismo revisitado em linguagem marxista.


  Assim, os pseudomarxistas que defendem o falso socialismo do capitalismo de estado russo (a antiga URSS) querem abandonar a crítica humanista e até mesmo o papel revolucionário da luta de classes para defender uma metafísica “luta de sistemas” ou de “modos de produção”, compreendendo este último de forma fetichista. Esta é a posição dos stalinistas e althusserianos. Para eles, o marxismo nada tem a ver com luta de classes e sim com luta de sistemas ou modos de produção – o capitalismo de estado (“socialismo real”), por um lado; e o capitalismo privado, por outro (Santos, 1986). Numa entrevista entre Sartre e Pierre Victor, este último coloca que uma afirmação do primeiro lhe lembrava o que Althusser certa vez lhe disse. Sartre, imediatamente, retrucou: “sou muito pouco parecido com Althusser, deve ser um mal-entendido, sabes” (Sartre; Gavi; Victor, 1975, p. 184). A rapidez com que Sartre busca se desvencilhar da comparação com Althusser é não apenas perspicaz e justificada, como necessária, principalmente depois da afirmação de P. Victor: “tinha-lhe dito, um dia, que se éramos comunistas era por causa da felicidade. Respondeu-me [Althusser] em suma: não se deve dizer isso; é para provocar uma mudança no modo de produção...” (Sartre, Gavi; Victor, 1975, p. 184). Assim, o althusserianismo é, com seu estruturalismo anti-humanista, uma cópia do stalinismo, com sua consciência coisificada de acordo com os interesses da burocracia soviética.


  Em resumo, Marx na sua primeira fase se preocupava com a “emancipação humana” e caminhou para a percepção, com o desenvolvimento do seu pensamento, de que isto só seria possível com a revolução proletária. Na segunda fase sistematizou sua teoria da história, sua visão do desenvolvimento histórico da humanidade comandado pela luta de classes e pela tendência histórica da revolução proletária. Na terceira fase, desenvolveu esta teoria e aprofundou sua análise do capitalismo para descobrir a tendência histórica de criação do comunismo através da revolução proletária. O marxismo é uma teoria da alienação (humanismo histórico-concreto), uma teoria da história (materialismo histórico-dialético), uma teoria do capitalismo e da revolução proletária (expressão teórica do movimento operário), sendo estes elementos inseparáveis, constituindo uma totalidade indivisível e que só podem ser analisados e desenvolvidos conjuntamente em sua forma posterior acabada, e a partir daí só é possível enfatizar um aspecto mas sem separá-lo dos demais.

 

  A conclusão final a que chegamos é, portanto, a seguinte: não existe nenhuma “ruptura radical” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”.

 

 

 

Referências Bibliográficas


ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. 2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. 8ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

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SANTOS, Theotônio dos. Forças Produtivas e Relações de Produção. Petrópolis, Vozes, 1986.

SARTRE, J-P.; GAVI, P.; VICTOR, P. Porquê a Revolta? Debates. Lisboa, Sá da Costa, 1975.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Goiânia, Edições Germinal, 1997.

VIANA, Nildo. A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia, Edições Germinal, 2000.

 

 

 


 

 

 

Nildo Viana

A Fonte do Poder


Publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 2, num. 6, Out./Dez. de 2005.

 

Em qualquer sociedade assente sobre a exploração duma classe trabalhadora por uma classe dominante, se trava uma luta permanente, cuja razão é a divisão do produto total do trabalho, ou, noutros termos, o grau de exploração”. Anton Pannekoek

 

  O surgimento das classes sociais ocorre simultaneamente com o aparecimento do estado. Esta simultaneidade, entretanto, não deve nos confundir. A dominação e a exploração surgem juntas mas após o seu surgimento ambas buscam se autonomizar. É através deste processo que se produz a ilusão de que o estado é a fonte do poder. Buscaremos, aqui, explicar como o estado e as classes sociais surgem simultaneamente mas que se processa uma separação entre ambos e que tal separação produz a primazia das lutas de classes sobre o estado.

 

  A fonte do poder é a alienação do trabalho produtivo. O trabalho produtivo é aquele que produz um excedente, ou seja, um rendimento superior ao necessário para a reprodução da força de trabalho. É a existência do trabalho produtivo que possibilita a exploração. É a partir do momento em que a sociedade passa a produzir um excedente é que se torna possível a exploração. Para esta se realizar, entretanto, é necessário surgir uma classe dirigente que executa a dominação no processo de trabalho e assim se apropria do que é produzido.

 

  A instauração da escravidão significou, simultaneamente, a criação de uma classe senhorial (composta pelos senhores de escravos) e de uma classe de escravos e, ainda, do estado (Viana, 2005). A instauração da dominação no processo de trabalho ocorreu concomitantemente com o surgimento da dominação em todas as outras esferas da vida social. Ocorre, porém, que os primeiros senhores de escravos tinham que tomar conta não só do processo de produção como da sociedade em geral (controlar as demais classes sociais existentes, as divisões internas da classe dominante, as ameaças de invasões, etc.) e isto, juntamente com o crescimento populacional (Copans, 1988), provocou uma divisão do trabalho no interior da classe dominante. A partir deste momento a classe dominante passou a se dividir em classe senhorial (responsável pela dominação na produção) e a classe burocrática (responsável pela dominação nas outras esferas da vida social, que, quando necessário, intervém também na esfera da produção).

 

  Isto produziu uma separação entre sociedade civil e estado, entre as classes sociais em luta na sociedade civil e o poder coletivo da classe dominante representado pelo estado que mantinha a ordem, ou seja, garantia a reprodução das relações de produção dominantes. Tal como colocou Engels:

 

  “O estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tão pouco é ‘a realidade da idéia moral’, ou ‘a imagem e a realidade da razão’ como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais é o estado” (Engels, 1988, p. 225).

 

  Desta forma, há não só uma divisão de funções no interior da classe dominante como se realiza uma separação cada vez maior entre estado e sociedade. Esta divisão e separação proporcionaram a supremacia da classe dominante sobre a burocracia e é isto que marca a subordinação (utilizando a palavra no seu sentido marxista, ou seja, significando que há uma relação entre dois termos no qual um é dependente do outro mas não se opõe a ele, pois segue a mesma lógica de desenvolvimento, só que de forma dependente e sempre a posteriori, embora haja contradição nesta relação) do estado em relação à sociedade.

 

  Esta divisão criou a supremacia da classe senhorial sobre a burocracia, sendo que esta se tornou mera classe auxiliar daquela. A razão disto se encontra no fato de que a classe senhorial ao dirigir o processo de produção detinha o controle do excedente e, por conseguinte, controlava o estado. A classe senhorial passou a ser a única classe dominante e a burocracia passou a ser sua classe auxiliar. Sem dúvida, alguns indivíduos provenientes da classe senhorial executavam, ao mesmo tempo, a função de burocrata do estado, mas isto se trata de casos individuais e não de uma situação de classe e isto é comum em quase todos os modos de produção.

 

  A burocracia estatal, por sua vez, se tornou uma classe social que executa trabalho improdutivo com o objetivo de reproduzir o modo de produção dominante. Em troca disso, a classe dominante, a maior beneficiada pela manutenção deste modo de produção, cede uma parte do excedente produzido pela classe produtora (e apropriado por ela) a esta classe auxiliar. Neste sentido, os rendimentos ou os meios de sobrevivência da burocracia, geralmente muito superiores ao da classe produtora, são retirados de uma parcela da exploração de classe ocorrida no processo de produção, embora a classe dominante reserve para si uma maior fatia do bolo. Em todas as sociedades, a burocracia fica com uma parte do excedente produzido pela classe produtora, mas não se trata de exploração direta, pois esta é feita pela classe dominante (que é a proprietária dos meios de produção) e sim uma “exploração indireta”. A exceção ocorre quando a burocracia é, ao mesmo tempo, a classe dominante.

 

  Esta separação entre classe senhorial e burocracia estatal possibilitou a ilusão de que o estado é a fonte do poder. É o estado que possui a função de assegurar a permanência das relações de produção dominantes, ou seja, das relações entre a classe exploradora e explorada no processo de produção e também de todas as outras relações sociais derivadas daí, e, para que isto seja legítimo, ele possui o monopólio do uso da violência física e é apresentado como estando acima das classes sociais. Desta forma, o estado, através da repressão, entre outros meios, busca regularizar as relações de produção e as demais relações sociais.

 

  Tal separação se aprofunda cada vez mais com o desenvolvimento e complexificação tanto do estado quanto da sociedade. A criação de diversas instituições estatais, o desenvolvimento da sociedade civil, o surgimento de novos segmentos sociais, entre outros fatores, são formas de se ampliar a esfera estatal e também da sociedade e isto expressa a tendência de um distanciamento cada vez maior entre estado e sociedade.

 

  Além da repressão, o estado utiliza outros artifícios (que variam dependendo do modo de produção) para manter a ordem, tal como a ideologia, o direito, a intervenção da produção e distribuição (intervenção “econômica”, diriam alguns), etc. Mas é o uso da repressão, através da violência física e de outras formas, que fornece a impressão de que o estado é a fonte do poder.

 

  Os elementos acima citados reforçam esta impressão. Mas o que se vê é que concomitantemente com a produção de instituições estatais que produzem uma descentralização aparente do poder ocorre uma centralização do poder no aparelho de estado. O estado realiza a centralização do poder e, ao mesmo tempo, o dispersa pela sociedade. Neste sentido, o estado é, ao mesmo tempo, centralização e divisão do poder:

 

  “o estado é o centro de uma dupla delegação de poderes, da sociedade para o estado e do estado para postos ou regiões específicas. Estes dois processos vão a par, da mesma forma que a separação dos postos. O estado é também uma divisão do trabalho político e não apenas a sua centralização” (Copans, 1988, p. 119).

 

  O estado, ou seja, a instituição dirigida pela burocracia (estatal) visando a reprodução das relações de produção dominantes, recebe o direito/dever de controlar a sociedade. A classe dominante aceita como sendo legítima a sua existência, pois sabe que ele representa os seus interesses. Mas como a classe explorada aceita a existência desta instituição repressora que existe para reproduzir sua exploração e alienação (expandindo esta para além da esfera da produção)?

 

  Sem dúvida, a repressão é um dos “fatores reais do poder” (para utilizar expressão lassaliana) do estado. O estado possui os meios de repressão (armas, pessoas especializadas, tais como guerreiros, soldados, etc., cujo nome varia de acordo com o modo de produção) e, sempre que é necessário, os utiliza.

 

  Outro elemento importante para manter a ordem e impedir a destruição do estado e da exploração é a ideologia. Esta vem para justificar não só as relações de produção como também o estado. Na ideologia, este é apresentado como sendo “neutro” e acima das classes sociais. Além disso, sem o estado, afirma a ideologia, a convivência social seria impossível, pois o crime, o roubo, a guerra, etc., iriam dilacerar a sociedade. Assim, se justifica e legitima, ao mesmo tempo, o “monopólio do uso legítimo da força” (Weber, 1986). É claro que esta argumentação da dilaceração da sociedade por falta de uma instituição repressiva toma como base a sociedade existente, onde as contradições de classe e o conjunto de conflitos derivado delas, bem como a exploração e a pobreza, criam um alto índice de violência e “delinqüência” (sendo que esta é definida pelas leis da referida sociedade que busca tornar regra as relações sociais existentes, tal como se vê, no capitalismo, no chamado “direito à propriedade”, que é o direito da burguesia se manter proprietária dos meios de produção e o proletariado se manter como não-proprietário.)

 

  Em algumas sociedades, para reforçar a ideologia e legitimar o estado, surge um conjunto de regras formais chamado direito, que busca regularizar, numa série de leis, as relações sociais existentes.

 

  Outros elementos colaboram com a permanência do estado como instituição repressora e, ao mesmo tempo, aceita pela sociedade, ou seja, “legitima”, tal como, por exemplo, o apoio da classe dominante. Porém, é a repressão e a ideologia (bem como sua difusão e popularização) que são os principais elementos que garantem a reprodução desta relação de dominação de classe chamada de estado. Em determinado modo de produção ou em certos momentos históricos deste, existe um predomínio da repressão sobre a ideologia ou o contrário. Mas apesar do predomínio de uma ou de outra, ambas coexistem. Elas não existem sem motivo. O que as tornam necessárias é a luta das classes exploradas, pois estas resistem sempre.

 

  A fonte do poder não é o estado e sim o que lhe dá sustentação. É o modo de produção que é a fonte do poder. A dominação que a classe dominante exerce sobre o processo de produção, ou seja, sobre o processo de trabalho executado pela classe produtora, é que é a fonte do poder.

 

  Isto ocorre pelo simples motivo de que a classe dominante ao dirigir o processo de produção controla  os meios de sobrevivência disponíveis na sociedade e assim coloca todas as demais classes sociais sob sua dependência. A única classe que poderia romper com isto é a classe produtora. Esta, porém, precisaria abolir não só as relações de produção como enfrentar a oposição das classes auxiliares da classe dominante, pois é esta que lhes garante os seus privilégios, entre as quais a  burocracia estatal, ou seja, o próprio estado.

 

  Quais são as razões disto? É a produção e reprodução da vida material que garante a sobrevivência de uma sociedade. Os seres humanos precisam comer, beber, vestir, etc., e para fazer isto precisam manter uma relação com natureza mediada pelo trabalho. Os meios de sobrevivência são adquiridos no processo de trabalho. O trabalho produtivo permite a produção de um excedente que poderá fornecer os meios de sobrevivência aos não-trabalhadores.

 

  A classe dominante controla essa produção e daí extrai mais-trabalho da classe produtora e assim consegue os meios necessários para sua sobrevivência. Ocorre, porém, que a classe dominante precisa sustentar aqueles que irão controlar o estado e reprimir a resistência das demais classes sociais. Por isso, ela sustenta a classe improdutiva que se aquartela no estado, a burocracia. Esta, portanto, existe e se reproduz graças à classe dominante.

 

  A burocracia estatal é dependente da classe dominante e existe para servir aos interesses dela. Sem dúvida, a burocracia estatal busca se autonomizar mas não ultrapassa certos limites. É por isso que o estado possui uma autonomia relativa. Esta autonomia relativa lhe permite, por exemplo, reprimir indivíduos e frações da classe dominante e isto reforça a aparência de autonomia e a ilusão de que ele é a fonte de poder. Paralelamente a isto, ele se legitima e passa a ser considerado “neutro”, “imparcial”, “público”, etc.

 

  Acontece, contudo, que esta ação contrária a indivíduos e frações da classe dominante não é realizada contra o conjunto desta classe, pois, se fosse, significaria solapar o seu próprio meio de sustentação. É por isso que existe uma unidade de interesse entre o estado e a classe dominante mesmo quando esta não o dirige diretamente. A partir disto tudo se conclui que a fonte do poder se encontra na dominação sobre o processo de produção da vida material realizada pela classe dominante.

 

  As teses que afirmam a existência de uma autonomia do estado e se esquecem que esta autonomia é relativa, possuem como principal problema a consideração de que o estado pode servir de ponto de partida para a transformação social. Toda concepção que aponta a conquista do estado como meio de transformação social (tal como o bolchevismo) é uma ideologia da burocracia, pois apenas há uma mudança no pessoal que é responsável pela direção do estado e que cumpre o papel de buscar reproduzir as relações de produção.

 

  Na verdade, a burocracia aquartelada no estado não pode transformar o conjunto das relações sociais e muito menos as relações de produção. Para se fazer isto seria necessário o apoio de uma das duas classes fundamentais que se relacionam no processo de produção: a classe exploradora e a classe explorada. A burocracia estatal não participa das relações de produção e por isso não pode intervir diretamente nelas e desta forma a alteração das relações de produção está fora do seu controle.

 

  Se é o modo de produção a fonte do poder, então o que adianta combater o estado? Podemos dizer que sem alterar as relações de produção de nada adianta conquistar o estado. Este não possui autonomia suficiente para alterar as relações de produção. Entretanto, nenhuma transformação social ocorrerá se se deixar intacto o poder coletivo da classe dominante, ou seja, o estado. Ele é, geralmente, o último obstáculo que todo movimento de transformação social tem que enfrentar para concretizar-se. Mas não se trata de conquistá-lo e sim de destruí-lo, se o objetivo for abolir a sociedade de classes (Marx, 1986).

 

  O modo de produção não só é a fonte do poder como cria um conjunto de relações sociais que lhes são idênticas. Estas relações sociais são formas de regularização tanto do modo de produção quanto de si mesmas. Neste contexto, todas as formas de dominação são derivadas e idênticas à dominação de classe no processo de produção. Desta forma, o modo de produção é a determinação fundamental da totalidade ao qual chamamos sociedade.

 

  Historicamente, a criação da burocracia estatal, como classe auxiliar da classe dominante, é marcada por contradições específicas em cada modo de produção. No capitalismo, a classe dominante, a partir de um certo estágio de desenvolvimento deste modo de produção, cede o domínio do processo de trabalho à burocracia na indústria. Assim, surge a burocracia civil. Com a expansão da divisão social do trabalho e a criação de diversas instituições privadas (principalmente ligadas à democracia representativa, tal como os partidos políticos, entre outras) e estatais há uma burocratização das relações sociais e o surgimento da sociedade civil organizada, que possui a função de realizar uma mediação burocrática entre estado e sociedade (Viana, 2003).

 

  Em outras palavras, com a expansão da divisão social do trabalho, surge um conjunto de instituições estatais e privadas que são dominadas pela burocracia, tal como partidos, igrejas, sindicatos, hospitais, escolas, etc., instituições burocráticas privadas formam a chamada sociedade civil organizada. Neste sentido, há uma burocratização crescente das relações sociais e a burocracia, enquanto classe social, se vê reforçada. Ocorre, porém, que ela é perpassada por suas divisões internas (burocracia estatal x burocracia civil, burocracia do aparelho de estado x burocracia das instituições estatais, etc.). Independentemente disto, a visão aparente que deriva daí é que é o estado o centro do poder e que é conquistando-o que se pode realizar a transformação social.

 

  Desta forma, o poder se reproduz no conjunto das relações sociais. O poder surge na produção e se condensa no estado. Após isto ele se espalha para o conjunto da sociedade. Todas as instituições privadas e estatais se organizam de forma burocrática, estando submetidas as relações dirigentes-dirigidos que perpassa todas as suas camadas constitutivas, isto é, todas as suas instâncias.

  Contudo, o que ocorre é que é no modo de produção que se produz o excedente que sustenta a classe dominante e o conjunto de trabalhadores improdutivos, tal como os burocratas, e é daí que surge a dominação. Neste caso, o que há é uma confusão que executa uma identificação da fonte do poder com a sua reprodução.

 

  Podemos, para esclarecer esta questão, dizer que a fonte do poder é onde o poder surge, sendo que sua origem é, ao mesmo tempo, o seu fundamento. A re-produção do poder é onde este poder fundamental é novamente produzido seguindo a mesma lógica embora com algumas alterações devido a especificidade do local onde ocorre esta reprodução. Em suma, a fonte do poder é onde ele é produzido e a reprodução do poder é onde ele é re-produzido.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

COPANS, J. A Antropologia Política. in: COPANS, J. e outros. Antropologia: Ciência das Sociedades Primitivas? Lisboa. Edições 70. 1988.

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Lisboa, Presença, 1988.

MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo, Global, 1986.

VIANA, N. A Origem da Dominação. Revista Possibilidades, ano  01,  nº 04,  Abr./Jun. de 2005.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.

WEBER, M. Três Tipos de Dominação Legítima. In: COHN, G. (org.). Weber. São Paulo, Ática, 1986.

 


 


 

 

 

Nildo Viana

A Origem da Dominação


Publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 1, num. 4, Abr./Jun. de 2005.

 

  Como surgiu o poder? Esta é uma pergunta que já recebeu muitas respostas. Hoje, esta resposta possui uma versão bastante difundida, que é defendida por diversas pessoas, principalmente ligadas à teoria antropológica. Segundo esta abordagem, a dominação do sexo feminino precedeu a dominação de classe e por conseguinte é aí que reside a origem do poder. A versão marxista apresenta sua tese de que é com o surgimento das classes sociais que aparece o poder.

 

  É daí que surgem as duas visões sobre a opressão da mulher: o marxismo –com raras exceções (influenciadas pela antropologia)–, defende a tese da existência do matriarcado, e as antropólogas “feministas” e os antropólogos em geral, com poucas exceções (sendo que na maioria destas há a influência do marxismo), defendem a tese da subordinação universal da mulher. São duas posições que se apresentam como duas teorias do surgimento do poder. Ambas, entretanto, apresentam problemas, como veremos a seguir. Mas elas deixam claro uma coisa e tal coisa será o ponto de partida do nosso estudo: a questão da origem da dominação da mulher é um elemento na história da humanidade que poderá contribuir com a resposta sobre a questão da origem do poder.

 

  A tese do matriarcado teve como primeiros defensores as figuras de Bachofen e Morgam. Estes dois “precursores da antropologia”, como se costuma dizer, ao analisarem os mitos das sociedades antigas ou então as sociedades indígenas, observaram o considerável poder que as mulheres possuíam diante dos homens. Aperfeiçoando e se baseando no material recolhido por estes dois pesquisadores, Marx e principalmente Engels lançariam a idéia de que existiu um matriarcado antes do surgimento da sociedade de classes e que o aparecimento das classes sociais seria o fator que teria provocado a dominação masculina sobre a mulher. Alguns poucos antropólogos e outros cientistas sociais aceitam ainda hoje, se baseando em novos dados, esta tese.

 

  Entretanto, a partir do surgimento da obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, e, posteriormente, de Claude Lévi-Strauss, Estruturas Elementares do Parentesco, tornou-se comum refutar a idéia de que tenha existido um matriarcado e a se defender a tese de que a subordinação da mulher é universal. Tal idéia ganhou penetração no movimento feminista graças a obra de Beauvoir e na antropologia graças ao livro de Lévi-Strauss. Antropólogos, antropólogas, antropólogas feministas, feministas culturalistas, passaram a fazer parte daqueles que postulam a existência da subordinação universal da mulher. As raras exceções se deviam a influência do marxismo.

 

  Ocorre, porém, que desde a obra de Simone de Beauvoir existe uma ambigüidade não resolvida. Para esta representante do existencialismo, não se nasce mulher, mas torna-se mulher e sempre houve a subordinação da mulher, pois esta é uma “condição natural”. Entretanto, ela pergunta a si mesma sobre o início da subordinação da mulher:

 

mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, se tenha traduzido num conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início” (Beauvoir, 1978, p. 19).

 

Ora, se é universal, então não surgiu, sempre existiu. Neste sentido, a formulação é contraditória. O natural não teve começo, pois a naturalidade de algo vem do desenvolvimento espontâneo. É somente quando o ser humano interfere através da cultura é que se rompe com a natureza. Sendo assim, não há sentido em dizer que é natural e simultaneamente perguntar pelo começo. De onde vem esta ambigüidade?

 

  Ela vem da ambigüidade comum daqueles que são oprimidos e buscam sua libertação, mas não conseguem fazê-lo de forma autônoma. Em outras palavras, devido a esta falta de autonomia os oprimidos utilizam as concepções, linguagem e ideologia dos dominantes para se efetivar uma crítica da dominação, mas tal crítica é limitada justamente pelo motivo de que estes oprimidos não conseguiram se libertar totalmente dos dominantes. Por isto, apenas podem postular uma libertação parcial, utilizando-se de uma concepção parcialmente liberada da ideologia dominante.

 

  A tese da subordinação universal da mulher possui outros defensores nos dias de hoje. Este é o caso de antropólogas que buscam refutar Bachofen. É isto que tentou fazer a antropóloga Joan Bamberger. Segundo ela, Bachofen teria analisado os mitos das sociedades primitivas e uma análise dos mitos pode revelar que quando eles falam de um “governo feminino” é para justificar e demonstrar que tal governo é indesejável e que as mulheres perderam-no por que não sabiam utilizá-lo (Bamberger, 1978). Pois bem, tal tese seria até certo ponto aceitável se ela tivesse analisado os mesmos mitos que Bachofen.

 

  Ocorre, porém, que ela analisou mitos do continente americano e, assim, sua refutação de Bachofen é apenas uma comparação entre dois temas de estudo diferentes. Sociedades e mitos diferentes. Uma análise desmistificadora deveria ter analisado o mesmo tema. Além disso, o fato de que os mitos descritos por Bamberger retratarem um período de “governo feminino” significa que elas tiveram o poder de fato ou então que podem conquistá-lo, pois, caso contrário, qual seria o motivo de se criar tais representações sobre o mal que é o governo feminino? Esta interpretação dos mitos retira o contexto social no qual eles foram produzidos e desconhece o seu caráter simbólico. Na verdade, no mito não se fala de “governo feminino” e o que ele retrata só pode ser compreendido levando-se em conta não só a relação mulheres-homens, mas também todas as demais relações sociais.

 

  Além disso, não se entende como os homens, superiores naturais e universais, segundo este tipo de abordagem, poderiam perder tempo criando fabulosas estórias sobre o “desgoverno feminino”, se as pobres e universalmente subordinadas mulheres não tivessem nenhuma condição de implantar o seu domínio. Aliás, esta postura reflete bem a visão de vítima daqueles oprimidos que não possuem um projeto de libertação. Eternas vítimas da história, da natureza, do dominante.

 

  Na verdade, não se pode provar a existência de uma subordinação universal da mulher. Isto se deve ao fato de que a própria noção de subordinação (tal como muitas outras noções correlatas ou não, tal como “governo”, hierarquia, etc.) apresenta dificuldades quando aplicada às sociedades primitivas ou indígenas. O que é a subordinação? O uso desta palavra, neste caso, tem um sentido claramente não-marxista. Subordinação, Sub-ordem, Hierarquia, Estratificação. Tais são as palavras que vêem para substituir a teoria marxista das classes sociais. A mulher subordinada significa que ela constitui uma sub-ordem. Assim, existem ordens a, b, c, d, e assim por diante, sendo que as primeiras possuem, no que diz respeito às sociedades, mais poder, prestigio, autoridade, ou seja, estão no cume da pirâmide da hierarquia social, da estratificação. Desta forma, se destrói a visão da totalidade e se isola relações (que passam a ser, na ideologia feminista mais recente, de “gêneros”...), criando mais uma ideologia, inversão da realidade.

 

  Neste sentido, existia subordinação da mulher? Bom, seria muito difícil falar em ordens numa sociedade que os próprios antropólogos chamam de “holistas”. Além disso, todas as categorias utilizadas para retratar isto, seriam deslocadas em tais sociedades, pois poder, prestigio, hierarquia, estratificação, etc., são expressões ilusórias das relações sociais em nossa sociedade. Aliás, é o estruturalismo que utiliza a expressão subordinação no estudo das relações de parentesco nas sociedades simples. A concepção estruturalista reproduz uma posição que é hegemônica na concepção positivista: busca criar um modelo para encaixar a realidade. A matemática e a lingüística, podem muito bem falar em subordinação, seja de números ou de orações. A ideologia das ordens vem para justificar a sociedade existente, pois diz que a divisão da sociedade em ordens (ao invés de classes e mesmo quando se utiliza esta expressão é no interior de uma concepção de hierarquia e estratificação) sempre existiu e por isso irá continuar existindo. Podemos dizer que existem, factualmente, ordens, mas na ideologia tais ordens são apresentadas como dados naturais (o que torna possível sua universalização) e a-históricos (logo, universais), pois se omite o seu processo de formação, reprodução, os seus fundamentos sócio-históricos. Assim, existe subordinação na sociedade capitalista, mas sua gênese e reprodução é omitida e só resta os dados naturais, comprovados por fatos transformados em fetiches.

 

  Assim, o que se vê é que são duas posições antagônicas a respeito da “dominação masculina” e que este antagonismo não é resultado da visão das sociedades primitivas ou indígenas e sim das contradições da nossa sociedade, que é onde se produzem as categorias, ideologias, visões de mundo, “métodos”, com os quais se analisa ao outras sociedades. O antagonismo está em nossa sociedade. A tese da subordinação universal da mulher é uma ideologia burguesa e nada mais do que isto. Ela projeta e assim naturaliza e universaliza uma forma de opressão desta sociedade, e assim contribuiu com sua reprodução.

 

  E a tese do matriarcado? Já se disse que ela foi aceita tanto pelos adeptos do socialismo quanto por extremistas de direita (Fromm, 1977). Na verdade, o que se pode perguntar é se é possível ter existido um “governo feminino” numa sociedade simples. É difícil comprovar tal tese, mas independente dos fatos que podem elucidar a questão, é preciso dizer que não se trata de “governo feminino”, pois não há governo em tais sociedades. Trata-se de uma utilização indevida de uma noção que se aplica apenas às sociedades de classes. Neste sentido, nunca houve matriarcado. Mas se observarmos o que disse Engels (1988), veremos que ele utilizou a palavra “matriarcado” apenas 5 vezes, sendo que utilizava de preferência a expressão “direito materno” (considerando mesmo esta expressão, utilizada originalmente por Bachofen, inexata, pois não existia “direito” nas sociedades primitivas, e isto revela que Engels era muito mais cuidadoso do que muitos antropólogos de hoje, que falam, de forma ideológica, sobre “governo” e outras expressões inaplicáveis nas sociedades simples).

 

  O que significava matriarcado na concepção de Engels? Para ele, o matriarcado representava o fato de que a mulher possuía um “prestígio” e uma posição muito superior a que a mulher encontra nos dias de hoje. Significava também que a descendência era definida pela linha materna (Engels, 1988). Portanto, Engels nunca falou de algo como um “governo feminino”, embora por vezes ele colocava a opinião, retirada dos dados que lhe eram disponíveis na época, de que elas detinham a decisão sobre as questões mais importantes das sociedades primitivas. No sentido restrito apresentado por Engels, não há nenhuma prova de que o “matriarcado” não tenha existido.

 

  O problema, entretanto, está não na discussão da existência de um matriarcado ou não e sim na da existência da subordinação universal da mulher ou não. No primeiro caso, temos uma idéia de que o poder sempre existiu, ou seja, que ele é constitutivo do social. Assim, a abolição do poder seria impossível, pois seria anti-social.

 

  Na verdade, como já colocamos anteriormente, a tese da subordinação universal da mulher não tem uma fundamentação convincente. As pesquisas das sociedades simples são feitas com esquemas analíticos deficientes (que são produtos da mentalidade da sociedade contemporânea, capitalista, e, portanto, estão carregados de preconceito étnico) e uma ideologia típica da sociedade existente (expressa pelos métodos utilizados: estruturalismo, funcionalismo, etc.). É bastante difícil para um ser humano criado em nossa sociedade imaginar uma outra sociedade sem hierarquia, sem poder, sem divisão, etc., e significa uma limitação na apreensão da especificidade das demais sociedades. A linguagem, os métodos, as hipóteses, etc., são produzidas na sociedade capitalista contemporânea e são, na verdade, na grande maioria dos casos, uma projeção desta sobre as sociedades simples. Aliás, tal visão se projeta não só sobre as sociedades simples mas até mesmo sobre as “sociedades animais”, onde se vê, entre outras coisas, hierarquia, que passa, assim, a ser considerada universal (Moscovici, 1977).

 

  A idéia da subordinação da mulher é fundamentada na sua situação inferior nas sociedades simples ou então numa nova interpretação dos mitos indígenas. Novos dados colhidos, entretanto, refutam a fundamentação que se baseia na situação inferior da mulher (Sacks, 1980; Moore, 1991). Resta, então, a fundamentação baseada nos mitos. Esta é muito mais questionável, pois os mitos podem ser interpretados de mil e uma maneiras, inclusive sobre formas extremamente arbitrárias e deslocadas da realidade no qual eles são produzidos.

 

  Apresentar uma interpretação diferente sobre os mitos que colocam a mulher numa posição inferior, por exemplo, pode ilustrar a limitação deste tipo de análise e também observar a flexibilidade com que um mito ou qualquer outra representação cultural oferece para sua interpretação. Uma interpretação alternativa é a de que os mitos quando colocam a mulher como perigosa, feiticeira, etc., não expressa a visão da mulher em si e sim algo que ela representa. Isto é perfeitamente aceitável tendo-se em vista que o mito se manifesta sob uma linguagem simbólica. Nas sociedades simples as relações de parentesco são marcadas pela regra da exogamia, onde um homem de um clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã e vice-versa. Assim, ele irá se casar com uma mulher do outro clã. As relações entre os clãs que compõem uma tribo são marcadas pela necessidade de retribuição, tanto de pessoas (casamento) quanto de bens (presentes, alimentos, etc.). Assim, podemos interpretar estes mitos como sendo expressão não da visão da mulher em geral ou de todas as mulheres e sim uma utilização da mulher para simbolizar o outro clã, o que reflete uma oposição entre clãs e não entre homens e mulheres. Aliás, segundo alguns antropólogos, a mãe não se inclui nunca entre as mulheres dos quais se desconfia.

 

  Também seria útil analisar a interpretação de Lévi-Strauss sobre a “troca de mulheres”. Ele diz que, de acordo com as regras de exogamia, são os homens que trocam as mulheres e não vice-versa (Lévi-Strauss, 1982). Ora, tal interpretação pode ser questionada, pois o que garante que são as mulheres que são trocadas e não os homens? O simples fato da mulher ir para o clã do homem não é suficiente para provar isto, pois o que é a troca? Uma troca ocorre quando alguém oferece algo em retribuição à outra coisa, ou seja, X oferece um bracelete em troca de um colar que recebe de Y. Portanto, há aqui uma relação social entre dois indivíduos (X e Y) e uma transação de dois objetos (bracelete e colar). Esta relação ocorre no contexto das regras de exogamia? É muito difícil alguém dizer isto, pois se persiste uma relação social não entre indivíduos e sim entre grupos de indivíduos (clãs), não há entretanto a transação entre dois objetos, pois se o que se troca são as mulheres, elas são trocadas pelo quê?

 

  Sem dúvida, Lévi-Strauss e seus discípulos poderiam dizer que as mulheres são trocadas por outras mulheres, pois um homem ao adquirir uma mulher de um clã aceita doar todas as mulheres do seu clã a outro clã. Os objetos da transação seriam as mulheres. Esta concepção retoma o velho individualismo de nossa sociedade e o projeta sobre as sociedades simples, pois na verdade a troca ocorre entre clãs e não entre indivíduos, ou seja, não são os homens enquanto indivíduos e sim os clãs que realizam a troca. Em outras palavras, se o clã X oferece uma mulher, resta saber o que ele recebe em retribuição. Dizer que é outra mulher só faria sentido se esta relação ocorresse entre apenas dois clãs, o que não ocorre na maioria dos casos, que envolvem 4 ou 8 clãs e as regras de exogamia diz que o clã X deve buscar parceiros no clã Y, mas este deve buscá-los no clã Z e este, por sua vez, no R e (no caso de quatro clãs) este no X. Desta forma, o clã X ofereceu uma mulher para o clã Y não este não lhe retribuiu com nada. Assim, vê-se que não há troca nenhuma. Se deixarmos de lado quem vai residir no clã de quem, poderíamos aplicar este esquema defeituoso de análise para dizer que o que existe é uma troca de homens. Para se utilizar a idéia de troca teria que se dizer que o que se troca é mulheres por homens ou homens por mulheres e neste sentido não há troca de mulheres e sim troca de homens por mulheres ou vice-versa. Mas como esta relação ocorre entre clãs, então o mais correto é se afirmar que não existe troca nesta relação. O que existe é uma relação social e a idéia de troca não passa de um reflexo da mentalidade da sociedade capitalista que se projeta sobre as sociedades indígenas, onde não há troca de mulheres.

 

  Outra resposta é a de que em troca das mulheres se recebe pequenos objetos (facas, por exemplo) ou animais (porco, por exemplo). Mas aí não se poderia falar em troca de mulheres e sim em troca de mulheres por objetos. A troca mercantil é uma troca de coisas que se apresentam como equivalentes (mercadoria por mercadoria, que podem sem dúvida ter valores diferentes). A troca não-mercantil é uma troca que não precisa possuir elementos materiais para se manifestar e não possui a necessidade de retribuição imediata. A questão dos presentes relacionados com os “casamentos” significa não uma troca e sim um sinal de amizade e nada mais do que isso.

 

  Mesmo se houvesse tal troca, deveria-se reconhecer que quem a realiza são os clãs e não os homens e isto significa que não há subordinação das mulheres. O próprio Lévi-Strauss, que fala que são os homens que trocam as mulheres, apresenta afirmações, quando se refere ao pedido de casamento entre os bosquímanos da África do Sul, que refutam tal idéia:

 

Os pais da moça, solicitados por um intermediário, respondem: somos pobres, não podemos nos permitir entregar nossa filha. O pretendente visita então sua futura sogra e diz: vim falar com a senhora; se morrer, eu a enterrarei, se seu marido morrer, eu o enterrarei. A isso se segue imediatamente os presentes” (Lévi-Strauss, 1982, p. 105).

 

  Os itálicos não são de Lévi-Strauss, pois isto significaria reconhecer que se há uma troca de mulheres, o pretendente deveria se dirigir ao pai e não a mãe da pretendida. Isto revela antes de tudo a visão sexista e carregada de preconceito étnico que este antropólogo possui das sociedades simples. Para ele, como é comum em nossa sociedade, o homem é o sujeito e a mulher é o objeto e o primeiro controla o segundo. Visão, portanto, sexista.

 

  Se não há troca de mulheres, então não há necessidade de refutar as teses que buscam explicá-las, tal como a de Godelier, que afirma que a troca de mulheres ocorre pela necessidade dos “indígenas” controlarem as “produtoras de força de trabalho” (Godelier, 1980).

 

  O que resta explicar é a origem da dominação. A origem da dominação masculina não precede a dominação de classes pelo simples fato de que nas sociedades primitivas, assim como nas sociedades indígenas, não existe dominação da mulher. Por isso, a questão a ser respondida não é sobre a origem da dominação da mulher e sim a origem da dominação de classe.

 

  O processo histórico que culminou com a formação das sociedades de classes se caracterizou por ser longo. Não cabe aqui remontar o processo de transição da animalidade para a humanidade, que foi extremamente longa, tal como vários pesquisadores reconhecem (Geertz, 1980; Moscovici, 1977; Leontiev, 1980; Engels, 1980). Mas é necessário colocar em evidencia a existência dessa transição. Sem dúvida, o ser humano foi o resultado de um longo processo histórico, ao contrário do que pensam aqueles que consideram que ele surgiu de repente, em um momento que seria um “ponto crítico”.

 

  A vida animal é uma vida comunitária e não é desprovida de laços entre os seres que compõem uma determinada população animal. A teoria de Mendel segundo a qual a vida animal não deve ser estudada a partir de indivíduos e sim a partir de uma população é extremamente correta. Os macacos de várias espécies (rhesus, chimpanzés, gorilas, etc.) vivem em bandos (Moscovici, 1977). As primeiras sociedades humanas compartilham as mesmas características das populações animais. As sociedades de caçadores-coletores também viviam em bandos (Service, 1971; Moscovici, 1977).

 

  O interessante é descobrir alguma hipótese sobre a origem do poder a partir da transformação da sociedade. Podemos reconhecer que as sociedades de caçadores-coletores eram bastante dependentes dos recursos existentes no meio ambiente. A relação que esta sociedade mantinha com o meio ambiente é fundamental para se compreender as suas relações internas. Isto se deve ao fato de que as sociedades primitivas não possuírem as condições de produzirem seus meios de existência, mas apenas de colher ou caçar o que existe de disponível no meio ambiente.

 

  O desenvolvimento das forças produtivas marca a origem das sociedades de classes. Tal desenvolvimento significou o desenvolvimento da “principal força produtiva”, a força de trabalho. Os seres humanos desenvolveram suas habilidades tanto manuais quanto intelectuais através destas mesmas atividades. Eles também criaram meios exteriores que permitiam-lhes enfrentar os obstáculos do meio ambiente. Tais meios foram armas, técnicas, consciência de aspectos do meio ambiente (tanto do mundo animal quanto vegetal), etc.

 

  Isto já vinha ocorrendo desde a época das sociedades de caçadores-coletores, nas quais se utilizavam armas, tais como arcos e flechas, machados de pedra, etc., e também se desenvolvia a consciência relacionada com o processo da caça, onde se buscava descobrir as formas mais adequadas de encontrar e submeter a caça.

 

  Este desenvolvimento produziu um aumento populacional, pois desta forma cai o índice de mortalidade infantil e aumenta-se a idade média de vida das pessoas, já que há o crescimento da produção, a criação de formas de defesa de outros animais mais eficientes, elevava-se a quantidade de alimentação adquirida, etc. Este crescimento populacional, por sua vez, provocou a criação de diversas regras sociais para controlá-lo. Podemos dizer, que uma das principais características deste tipo de sociedade é a busca incessante do controle sobre o aumento populacional. As regras de exogamia têm como principal objetivo controlar este crescimento. O mesmo acontece com as guerras e é este também o motivo do infanticídio realizado por algumas sociedades primitivas.

 

  O desenvolvimento posterior se caracterizou pela aprendizagem da domesticação dos animais e da agricultura. Daí surge a transição do nomadismo ao sedentarismo. Isto tem várias conseqüências para a sociedade primitiva. Uma delas se encontra no fato de que pela primeira vez se podia falar em propriedade do solo. A agricultura abriu caminho para o domínio sobre territórios e o pastoreio abriu caminho para a propriedade de animais. Entretanto, o aparecimento da propriedade não aparece imediatamente com tal transição. Apenas a sua possibilidade está dada. Cabe lembrar que daí surge a propriedade coletiva. Há assim um crescimento da produção, o que provoca o crescimento populacional. Este crescimento já não era controlado pelas comunidades devido ao fato da produção ter aumentado. Mas aí também se revela um crescimento da divisão do trabalho. Surge a especialização do trabalho. Isto é reforçado com o desenvolvimento da cerâmica e da metalurgia. Pastores, agricultores, ferreiros, etc., componham o novo quadro de divisão do trabalho, que se limitava, na comunidade primitiva, à divisão sexual e etária do trabalho. Também surgem os sacerdotes e como veremos adiante, os guerreiros especializados.

 

  A expansão da divisão social do trabalho não constitui ainda as classes sociais devido ao fato de sua interdependência e a existência de uma unidade social que produzia a cooperação sem haver exploração. A divisão existia mas não produzia classes justamente porque a divisão estava submersa na homogeneidade da comunidade. Entretanto, não só a possibilidade estava dada como a tendência ao surgimento das classes já existia e se manifestava. O crescimento da divisão social do trabalho provocou alterações no conjunto das relações sociais, tal como nas relações de parentesco, nas relações intertribais, no novo papel atribuído às crianças, etc.

 

  O aumento da produção não só proporcionou um crescimento populacional como também possibilitou o surgimento da produção mercantil simples, a troca mercantil simples, o sedentarismo, a expansão territorial, etc. A guerra também se tornou mais intensa. Isto ocorreu devido a diversos motivos, sendo que três se destacavam: a) a utilização de metais como o cobre, que não é encontrado com a mesma facilidade que a pedra e que se encontra principalmente em regiões montanhosas, produziu a necessidade de expedições para tais regiões, o que certamente provocava confrontos entre tribos diferentes (sem dúvida, ao lado das tribos de agricultores e pastores continuavam existindo outras tribos, tanto de caçadores-coletores, quanto de outros tipos que poderíamos chamar de “mistos” ou “intermediários”); b) o aumento populacional que produzia “aldeias-filhas” (Gordon Childe, 1988) e, conseqüentemente, a expansão territorial; e c) o esgotamento do solo pelo seu uso sem utilização de técnicas de restauração, o que tornava necessário a mudança de território.

 

  Esta guerra teve como principal conseqüência a formação de uma casta nova: a casta dos guerreiros. Estes se especializaram na guerra e na proteção de suas aldeias. A produção de um excedente visando a manutenção da comunidade em tempos de entre safra acabou sendo utilizada em parte para sustentar esta casta, que buscava cada vez mais se autonomizar.  Os inimigos eram mortos e a descoberta da possibilidade de “domesticar” os seres humanos abriu caminho para a instituição da escravidão. Podemos colocar a hipótese de que foram os guerreiros que se tornaram os primeiros senhores de escravos e formaram uma união para manter o seu domínio sobre os escravos e posteriormente sobre toda a comunidade. Nasce, assim, a sociedade de classes. Esta união de guerreiros para manter o controle dos escravos e posteriormente de toda sociedade é o que chamamos de estado (que devido ao fetichismo da linguagem sua inicial é escrita geralmente com letra maiúscula e aqui rompemos com tal idolatria). Desta forma, as sociedades de classes e o estado surgem simultaneamente, ou seja, a propriedade privada não antecede a existência do estado e o estado não antecede a existência da propriedade privada e, neste sentido, tanto alguns “anarquistas” quanto alguns “marxistas” estão equivocados. Esta é a origem da dominação, do poder. O estado surge com o surgimento da dominação de classe na produção.

 

  O modo de produção escravista se expande e demonstra o seu potencial econômico subjugando todas as outras formas de produção e o desenvolvimento da troca mercantil simples acabou proporcionando o comércio de escravos e o surgimento de uma nova forma de transformar os homens e mulheres livres em escravos: através da dívida. A moeda, já em uso nesta forma de sociedade, e a troca mercantil simples marcariam um meio adicional de se conseguir escravos, a principal fonte de riquezas do escravismo antigo. 

 

  É assim que surge a sociedade de classes. A opressão da mulher, no verdadeiro sentido do termo e não no sentido fantasioso que se vê em certas concepções, surge a partir daí, embora as relações sociais entre os sexos já tivesse começado a alterar-se durante o período de transição. A mulher livre passava a ter uma posição inferior no interior da unidade de produção e a escravização das mulheres se tornou comum na sociedade escravista. As mulheres foram transformadas, ideologicamente, em seres inferiores e equivalentes aos escravos e estrangeiros, ou seja, possuindo um estatuto social e político inferior. No plano social, o trabalho das mulheres livres não era compensado, pois era revertido para o marido, devido à instauração da monogamia e assim se pode instaurar o processo de herança da propriedade e a opressão da mulher pelo homem.

 

  Em outros lugares, em especial na Ásia, houve uma forma diferente de transição para a sociedade de classes. Trata-se do surgimento não do modo de produção escravista e sim do modo de produção tributário, também chamado de modo de produção asiático. Este se caracterizava pelo surgimento de um grupo de pessoas que controlava as diversas comunidades produtoras através de um poder centralizado e realizava a exploração através da cobrança de tributos justificada pela realização de tarefas coletivas de grande envergadura, tal como a irrigação de terras não aptas para a produção. Aqui também o estado surge junto com as classes sociais. A burocracia tributária domina os aldeões e lhes explora, ou seja, a classe proprietária é ao mesmo tempo a classe dirigente.

 

  No modo de produção escravista, os senhores de escravos dominam estes nas unidades de produção e o controle sobre eles e demais classes e frações de classes é realizado pelo poder coletivo desta classe, o estado. Surge uma divisão no interior da classe dominante entre os que se voltam apenas para a exploração na unidade de produção e aqueles que cuidam da manutenção destas relações, ou seja, se aquartelam no estado. No modo de produção tributário, esta divisão não ocorre e esta é uma das principais diferenças entre estes dois modos de produção. Nesta forma de dominação, marcada pelo conflito entre dominantes e dominados, ou seja, pela luta de classes, surge momentos de crise e de decadência. Abre-se espaço para a formação de novas formas de sociedade. Na Europa ocidental, ocorreu a transição para o modo de produção feudal, o que significou a transição da exploração do escravo pela exploração do servo. Posteriormente, neste mesmo continente, surgiria o modo de produção capitalista, uma nova forma de exploração de classe, marcada pela dominação da classe capitalista sobre a classe operária. Este, com sua tendência expansionista, tomou conta do mundo ou, segundo a expressão de Marx, criou “um mundo a sua imagem”.

 

  Enfim, podemos dizer que a origem do poder significa a origem do estado, das classes sociais, da propriedade privada, etc. Isto tudo significa apenas modos de ver a mesma coisa, são aspectos indissoluvelmente ligados. Neste sentido, o poder, isto é, a relação de dominação, surge com as classes sociais e o seu par inseparável, o estado.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

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Nildo Viana

O Capitalismo de Estado da URSS

 

Publicado originalmente na Revista Ruptura, num. 1, maio de 1993.

 

  Um Lombardo Radice, por exemplo, fala de "Socialismo Despótico"; outros falam de "Socialismo de Estado"; outros, ainda, de "Capitalismo de Estado". Na verdade, tudo depende do ponto de vista. Se considerarmos o ponto de vista do operário, que vende sua força de trabalho, como mercadoria, ao Estado já que é o Estado que gerencia a economia e as empresas -para ele, operário é o mesmo que viver sob o capitalismo. Ingolf Diener 

 

  Quando Marx escreveu O Capital afirmou que partia do ponto de vista do proletariado. Este, segundo a teoria marxista, é o sujeito histórico que abole não só a sociedade burguesa mas a sociedade de classes em geral. O mais desenvolvido modo de produção classista da História - o capitalismo - explora, domina e aliena o proletariado. Este resiste, se levanta e coloca em xeque o capitalismo. Por isso, é o seu ponto de vista que pode revelar as contradições da sociedade burguesa e realizar o que Marx chamou "a crítica desapiedada do existente". Hoje, o marxismo foi apropriado por outras classes (burguesia, burocracia, etc.) para expressar um ponto de vista estranho ao do proletariado. Trata-se, então, de nos reapropriarmos do marxismo como "expressão teórica do movimento operário" (Korsch), inclusive na análise da URSS e Leste Europeu.


  Existem inúmeras interpretações sobre o caráter da sociedade soviética. Além daquelas que defendem o caráter socialista da sociedade soviética (alguns utilizando adjetivos tais como "Socialismo de Estado", "Socialismo de Acumulação",  "Socialismo Burocrático", etc.) existem as que consideram uma "Sociedade de Transição" que deverá caminhar para o socialismo. Aí se enquadra a tese Trotskista do "Estado operário com deformações burocráticas" e a teses ambígua de Rudolf Bahro que qualifica a URSS, de forma indecisa, como um regime "Proto-Socialista".

 

  Há também aquelas que julgam que a URSS não é nem socialista nem capitalista. Trata-se de um modo de produção ou uma sociedade pós-capitalista mas não socialista. Os conceitos são vários: Modo de Produção Tecno-Burocrático, Modo de Produção Corporativista, Modo de Produção Estatal, Economia Estatal Totalitária, Sociedade Militar, etc.

 

  Entretanto, a corrente que conseguiu revelar o verdadeiro caráter da sociedade soviética foi aquela que qualificou como uma nova forma de capitalismo: o Capitalismo de Estado. Já na década de 20 surgem os primeiros teóricos e os grupos que defendem esta tese: Amadeo Bordiga e a esquerda comunista italiana, os comunistas conselhistas e o grupo "Verdade Operária" na URSS.

 

  Para Bordiga, foi a herança do "asiatismo" da Rússia que impossibilitou a formação do capitalismo em sua forma clássica e que gerou o capitalismo de Estado. Este seria uma formação social transitória e especificamente russa. O Modo de Produção Asiático colocou suas intituições à serviço do desenvolvimento capitalista gerando a estatização dos meios de produção. Esta seria uma etapa transitória e temporária que prepararia a implantação do Capitalismo Privado.

 

  Os Comunistas Conselhistas (onde se destacam Korsch, Pannekoek, Gorter, Wagner, Ruhle e Mattick) afirmaram que o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas gerou uma Revolução Jacobina (que também pode ser chamada de "Contra-Revolução Burocrática") e esta caracterizou todas as tarefas econômicas necessárias para a formação do Capitalismo de Estado. O bolchevismo realizou uma Revolução Jacobina (que, em última instância, é uma revolução burguesa) e implantou o capitalismo sob uma nova forma. Pannekoek diz que essa forma de capitalismo "é uma produção organizada onde o Estado é o patrão universal, o senhor do aparelho produtivo. Os trabalhadores são lá tão senhores dos meios de produção como no capitalismo universal. Recebem um salário e são explorados pelo Estado, que é o único capitalista (e de que tamanho!)[1].

 

  O grupo clandestino "Verdade Operária" parte da análise do desenvolvimento do capitalismo mundial para explicar a formação do Capitalismo Estatal da URSS. Segundo este grupo, a burguesia privada não é capaz de ultrapassar os interesses de cada ramo da produção e por isso se torna necessária a crescente ação do Estado sobre a economia realizada pela tecnocracia. Na URSS, houve a fusão da tecnocracia com os capitalistas comerciais do período da NEP (Nova Política Econômica) dando origem a Burguesia de Estado, sendo o partido bolchevique sua principal instituição. Essa nova burguesia criou seu próprio regime econômico: o Capitalismo de Estado.

 

  Na década de 30, o historiador Arthur Rosemberg defenderia, com algumas diferenças, as teses dos Comunistas Conselhistas. Segundo ele, "em suas partes essenciais, o bolchevismo revelou o objetivo que se colocara. Com a ajuda do proletariado, derrubou o Tzarismo e fez a revolução burguesa. Superou a vergonhosa inferioridade russa, levando o país ao nível dos Modernos Estados Burgueses Europeus. Graças à força da classe operária, conseguiu ainda substituir a economia e a forma de sociedade capitalismo privada por uma moderna organização baseada no Capitalismo de Estado[2].

 

  Ainda na década de 30, A. Ciliga defenderia a teoria de que a Rússia vivia sob o Capitalismo de Estado. Para ele, Stálin e Trótski: "...queriam fazer passar o Estado pelo proletariado, a ditadura burocrática sobre o proletariado pela ditadura do proletariado, a vitória do Capitalismo de Estado sobre o Capitalismo Privado e sobre o Socialismo por uma vitória deste último... Já tivemos provas suficientes de que o atual sistema da Rússia preservou todas as características essenciais do Capitalismo: produção de mercadorias, salários, mercados para a troca, dinheiro, lucros, redistribuição parcial dos lucros entre os burocratas, sob a forma de altos salários, privilégios, etc." [3].

 

  Depois destes, vários outros pensadores, militantes e grupos defenderam, de forma diferente, a mesma tese. M. Rubel, baseando-se nos escritos de Marx e Engels sobre a Rússia Czarista, coloca o surgimento do Capitalismo de Estado Russo como provocado pelo atraso econômico do país. As relações de produção dominantes na Rússia impulsionaram o Estado soviético a desenvolver o método capitalista da "acumulação primitiva" e consolidar o Capitalismo de Estado. Outro exemplo é C. Castoriadis, quando ainda se auto-intitulava marxista, que defendia a URSS como um capitalismo burocrático. As relações de produção predominantes na URSS seria uma relação de classe que opunha o proletariado à burocracia, classe que dispõe dos meios de produção e com isso efetua a exploração através do trabalho assalariado. Para ele, o capitalismo burocrático e o capitalismo privado viveriam em um constante conflito que resultaria na vitória de um sobre outro.

 

  O Trotskismo também produziu teóricos e grupos que caracterização a URSS como Capitalismo de Estado: No fim da década de 30, James Burnham e Max Schachtman, da secção americana da IV Internacional; na década de 50, Toni Cliff; na década de 70, o grupo dissidente francês "União Operária". Alguns grupos e teóricos não trotskistas, como o grupo inglês Solidarity, também reconheceram o caráter capitalista da Rússia. Seria impossível aqui uma lista exaustiva daqueles teóricos e grupos que defenderam a teoria do Capitalismo de Estado, tanto por desconhecimento quanto por falta de espaço para realizar tal feito.

 

  Mas, para concluir, devemos expor as teses de três teóricos que, na década de 70, retomaram a concepção do Capitalismo de Estado da URSS. Eles são: o autonomista português João Bernardo, o bordiguista Jean Barrot e o maoísta Charles Bettelheim.

 

  Para Jean Barrot, foi o movimento do capital que gerou o capitalismo russo. Mas, para ele, o Capitalismo de Estado não é, como era para Bordiga, uma fase necessariamente transitória para o capitalismo privado. Segundo Barrot, "a partir de 1914 a potência do capital escapa à burguesia - visto que esta procura, antes de mais nada, controlar o seu progresso, o capital encontra novos agentes capazes de levar a bom termo o seu crescimento. O fenômeno existia já no século XIX (Mehemet Áli), mas alargou-se aqui a todo um conjunto de países subdesenvolvidos ou relativamente atrasados. O mais notável exemplo é, sem dúvida, o da revolução russa. A Rússia tem um proletariado importante pelo seu número e pela sua concentração, mas que se encontra rodeado -cercado- por uma massa camponesa enorme. A burguesia nacional é ali relativamente débil, já que o desenvolvimento econômico foi sobretudo o produto do capital estrangeiro e do Estado. A revolução expropria o primeiro e destrói o segundo. Depois do refluxo do movimento na Europa, o capital é assumido, não por uma "nova" classe -o que suporia novas relações de produção, já não capitalistas mas outras-, mas por uma burguesia cujo papel social é o mesmo, embora com modos de constituição e funcionamento diferentes dos da burguesia clássica: possui os meios de produção por intermédio do Estado -por conseguinte, digamos, a título coletivo, o que não exclui aliás uma autonomia mais ou menos larga das empresas (...). A burguesia de Estado formou-se a partir de antigos militantes operários, de quadros da indústria ou da administração[4].


  Charles Bettelheim reavalia suas análises sobre a URSS, a qual ele definia como uma sociedade socialista, e passa a defini-la como um Capitalismo de Estado. A principal diferença e os demais teóricos do caráter capitalista da Rússia está na explicação da origem do capitalismo russo. Para Bettelheim esta origem se encontra na solução dada à questão da aliança operário camponesa. As contradições no campo e as limitações da política do partido bolchevista reforçaram a tendência do campesinato, principalmente o médio, a exercer uma prática política pequeno-burguesa e este foi o principal elemento que, aliado a outros, provocou o retrocesso da revolução de outubro através da autonomização crescente do Estado que acabou reproduzindo as relações de produção capitalistas [5].


  João Bernardo, por sua vez, afirma que a tecnocracia é uma classe social que pode dar um "novo fôlego" ao capitalismo. O partido bolchevique cumpriu este papel e criou o Capitalismo de Estado russo. Este se diferencia do capitalismo clássico pela forma de realização da lei do valor, lei fundamental do modo de produção capitalismo. No capitalismo privado a lei do valor se realiza nos preços do mercado e no Capitalismo de Estado no jogo dos planos. Daí decorrem diversas outras diferenças como a forma de distribuição da mais-valia e a forma de reprodução dos "Capitalistas de Estado" mas o fundamental do modo de produção capitalistas, a lei do valor, continua existindo e se realizando. J. Bernardo considera que o capitalista monopolista de Estado tende a se transformar em Capitalismo de Estado integral, do tipo soviético. A questão a ser resolvida é: ou o socialismo construído pelo proletariado através da autogestão social ou a barbárie capitalista comandada pela tecnocracia reproduzida como burguesia de Estado [6].

 

  Depois deste breve histórico das teorias de Capitalismo de Estado, passemos para a análise da formação desta teoria. A determinação fundamental que levou ao surgimento do capitalismo de "novo tipo" foi o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. A Rússia era um país pré-capitalista em transição para o capitalismo.

 

  Entretanto, o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas não gera, por si só, o Capitalismo de Estado ou, como dizem alguns, a "burocratização". O atraso da Rússia Czarista forma as condições determinadas nas quais se desenvolveram as lutas de classe. Essas condições dadas colocam as possibilidades históricas que poderão ser concretizadas e que serão definidas através das lutas de classes. A Rússia poderia ter caminhado para o Socialismo, o Capitalismo Privado, o Capitalismo de Estado, etc., pois a História é aberta. isto, contudo, não quer dizer que ela seja arbitrária: No presente se revelam as tendências de desenvolvimento futuro e a tendência que irá prevalecer depende da ação humana expressa na luta de classes.

 

  Marx e Engels já haviam observado que a burguesia não lançaria mais as massas em uma luta revolucionária devido ao medo de que estas se voltassem contra ela. A burguesia se tornou contra-revolucionária a partir da segunda metade do século XIX. Na Rússia atrasada, a burguesia nascente não iria assumir um papel revolucionário e não romperia sua aliança com o Czarismo. Lá o mais provável seria a realização de uma "revolução burguesa sem burguesia". Com o regime czarista em crise e com a pouca possibilidade de implantação do capitalismo privado, divido a debilidade da burguesia russa, restava com tendências principais: o Capitalismo de Estado e o Socialismo.

 

  É neste país em transição para o capitalismo, que contava com aproximadamente 70% da população formada por camponeses e com uma classe operária em formação, que surge o bolchevismo. Lênin, o principal líder e o mais influente teórico bolcheviche, escrevia, em 1902, que o proletariado jogado a si mesmo chegaria no máximo a uma consciência sindical e isto significa ficar nos limites da ideologia burguesa. A consciência de classe seria introjetada "de fora" pelos intelectuais revolucionários do partido de vanguarda [7]. Esta é, claramente, uma ideologia da tecnocracia, pois reproduz a divisão entre dirigentes e dirigidos, entre trabalho intelectual e trabalho manual. O partido sendo a "vanguarda" da classe, então, a conquista do poder estatal por ele passa a ser equivalente à ditadura do proletariado. Em 1902 já estava justificado o Golpe de Estado de outubro de 1917.

 

  O partido substitui  a classe operária como "sujeito revolucionário" e por isso deve ser coerente e eficiente nas suas ações políticas. Para isso ocorrer deve haver centralização, disciplina e unidade de ação. Isso tudo torna o "centralismo democrático" uma necessidade. Neste sentido, ideologia e organização estão unificadas  e se complementam.

 

  O proletariado russo, apesar da ideologia da "nulidade operária" criada por Lênin, cria os sovietes (conselhos operários) na revolução de 1905 e novamente na revolução de fevereiro de 1917 [8]. O próprio Lênin reconheceu a espontaneidade revolucionária do proletariado na revolução de fevereiro: "Em fevereiro de 1917 as massas organizaram os sovietes antes mesmo que algum partido tivesse tido tempo de lançar esta palavra de ordem. O grande gênio criador do povo, temperado pela amarga experiência de 1905, que o tornara consciente, eis o artifície desta forma de poder proletário[9]. Com a revolução de fevereiro se implanta uma dualidade de poderes: de um lado, o poder contra-revolucionário expresso no Estado Czarista, de outro lado, o poder revolucionário expresso nos sovietes.

 

  Os bolcheviques, com o Golpe de Estado de outubro, assumem o poder do Estado e a partir disto a dualidade de poderes começa a se resolver em favor do "Estado burguês mas sem burguesia" de Lênin. Os bolcheviques no poder pregam a "gestão individual das empresas", a implantação do Taylorismo (método tipicamente capitalista de gestão nas fábricas), a militarização dos sindicatos e, além disso, esvaziam os sovietes implantando a ditadura do partido [10].

 

O bolchevismo realiza, através do exército vermelho, a contra-revolução na Ucrânia destruindo a coletivização camponesa lá realizada [11]. Abole as frações dissidentes internas do partido como os "Comunistas de Esquerda", a "Oposição Operária" e os "Centralistas Democráticos" [12]. A insurreição de Kronstadt declarada pelos marinheiros pretendia reestabeler os sovietes, como demonstra o Izsvestia de Kronstadt de 6 de março de 1921: "Nossa causa é justa. Somos pelo poder do sovietes e não dos partidos. Somos pela eleição livre dos representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes falsificados, monopolizados e manipulados pelo partido comunista sempre foram surdos às nossas necessidades e exigências; a única resposta que recebemos foi a bala assassina[13]. O massacre de Kronstadt demonstrou que dessa vez não seria diferente. Com a dominação bolcheviche nascida da fusão do partido com o Estado surge uma camada burocrática que cresce cada vez mais. A burocracia dominante surge de quadros do partido, do Estado Czarista, das indústrias, da pequena burguesia e em menor grau do campesinato e até mesmo da classe operária. A burocracia (Burguesia do Estado) se fortalece e consolida enquanto classe dominante durante o período do "comunismo de guerra" e durante a NEP (Nova Política Econômica). A ascensão de Stálin demonstra essa consolidação. A classe dominante, expressa perfeitamente no stalinismo, encontra a partir de então, dois obstáculos: a burocracia dissidente liderada por Tróstski e o campesinato. A  repressão à "oposição unificada" que vai até os processos de Moscou e a "estatização forçada", que proporcionou a chamada "acumulação socialista primitiva" através da superexploração dos camponeses, removem estes obstáculos [14]. O Capitalismo de Estado passa a predominar na URSS.


  Mas resta saber: o que é o Capitalismo de Estado? Desde Marx sabemos que a definição de um modo de produção se encontra nas relações de produção dominantes em uma sociedade.

 

  As relações de produção capitalistas são aquelas em que a produção de mercadorias e a lei do valor se generalizam ao ponto da própria força de trabalho se tornar uma mercadoria. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Os trabalhadores devem estar separados dos meios de produção e ter como única mercadoria sua força de trabalho. Por isso, eles são obrigados a vender sua força de trabalho ao capital. Este paga em forma de salário o mínimo necessário para sua reprodução. Entretanto, a força de trabalho produz mais do que o necessário para a sua reprodução e este excedente produzido é apropriado pelo capital. O excedente é a mais valia e esta apropriação expressa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo.

 

  Na URSS, os trabalhadores estão separados dos meios de produção e só possuem a sua força de trabalho como mercadoria para vendê-la ao capital. Entretanto, assim como no capitalismo privado, eles só recebem, em forma de salário, o necessário para sua reprodução enquanto força de trabalho e produzem um excedente que é apropriado pelo capital, a mais valia. Como se vê, o fundamental das relações de produção capitalistas estão presentes na URSS.

 

  Contudo, existem algumas diferenças. No capitalismo privado predomina a propriedade privada individual e no Capitalismo de Estado predomina a propriedade privada de uma classe que a gera coletivamente através do Estado. Esta diferença, por sua vez, cria outras diferenças, mas que não colocam em questão o caráter capitalista das relações de produção nas URSS.

 

  Este é o ABC da teoria do Capitalismo de Estado. Os opositores desta teoria colocam dois obstáculos principais, a saber: em primeiro lugar, dizem que a burocracia não é uma classe dominante pois ela não é uma classe proprietária; em segundo lugar, afirmam que não há predomínio da lei do valor na URSS. Aprofundaremos a teoria do Capitalismo de Estado respondendo a estas questões.

 

  Em primeiro lugar, devemos colocar que a burocracia (Burguesia de Estado) é uma classe proprietária. Na URSS a propriedade jurídica é coletiva, mas a propriedade real é privada. Segundo Marx "em cada época histórica, a propriedade desenvolveu-se diferentemente e numa série de relações sociais totalmente distintas. Por isto, definir a propriedade burguesa não é mais do que expor todas as relações sociais da produção burguesa", pois, "pretender dar uma definição da propriedade como uma relação independente, uma categoria à parte, uma idéia abstrata e universal -isto não pode ser mais que uma ilusão de metafísica ou jurisprudência[15]. As relações de propriedade são uma expressão jurídica (e portanto, ideologia) das relações de produção [16]. Portanto, é no conjunto das relações de produção que se determina a existência e a forma de propriedade. O título de propriedade é apenas uma justificativa ideológica que a classe proprietária utiliza para manter o seu controle sobre os meios de produção e a força de trabalho. Não é através do título jurídico que poderemos definir se existe propriedade ou qual sua forma. A definição só pode ser realizada através do conhecimento de quem controla as forças produtivas. Propriedade real e controle da propriedade são inseparáveis. Somente na ideologia, na propriedade jurídica, pode haver a separação entre propriedade e controle.

 

  No capitalismo privado, os proprietários individuais justificam a exploração através do título de propriedade privada. No Capitalismo de Estado, ao contrário, a burocracia justifica a exploração ao declarar que a propriedade dos meios de produção pertencem ao povo mas é dirigido pelo Estado, ou seja, pela burocracia. A expressão jurídica da propriedade burguesa no capitalismo privado se caracteriza por afirmar a sua existência e compromisso justificar o controle sobre as forças produtivas e no Capitalismo de Estado se caracteriza por afirmar sua "inexistência" e é justamente isso que justifica o controle sobre as forças produtivas realizado pelo "coletivismo burocrático". A propriedade real está presente em ambos os casos mas a propriedade jurídica está presente apenas em um. Pois, na URSS, a propriedade pertence ao povo e se pertence a todo mundo quer dizer, no final das contas, que "não pertence" a ninguém.

 

  A existência do controle estatal sobre as forças produtivas realizado pela burocracia demonstra que essa é uma relação de classe e, conseqüentemente, uma relação de exploração. C. Castoriadis demonstrou isso muito bem, embora não tenha demonstrado como observou J. Barrot, que esta exploração é capitalista. Pois todas as relações de classe e de exploração se baseiam neste pressuposto do controle sobre as forças produtivas. Portanto, é preciso demonstrar o caráter especificamente capitalista desta exploração. O que define isso é a forma como se dá a apropriação do mais-trabalho e está se dá, no capitalismo através da extração da mais-valia. Como demonstramos anteriormente, a burocracia extrai mais-trabalho dos produtores diretos em forma de mais-valia, assim como a burguesia privada, e decide o que será feito com o excedente produzido, dentro dos limites impostos pela dinâmica do modo de produção.

 

  Portanto, o essencial é definir se há ou não o predomínio da lei do valor na URSS. A lei do valor só pode existir havendo um alto grau de desenvolvimento da divisão social do trabalho e com isso provocar a separação entre os ramos de produção e entre produtores e consumidores -ou seja, superação da produção de auto-subsistência, o que significa que o produtor deixa de produzir para o seu próprio consumo e passa a produzir para vender o produto no mercado- e com isso criar a necessidade de troca de mercadorias. Isto significa que, para se implantar o modo de produção capitalista, estas condições precisam ser complementadas com a separação entre produtores e meios de produção. Essa separação provoca a necessidade dos produtores de venderem sua força de trabalho em troca de um salário com o qual garantirá sua reprodução. Como a força de trabalho recebe um salário que é inferior ao que foi produzido se cria um excedente, a mais-valia, que é apropriado pelo capital. Isto quer dizer que a força de trabalho é uma mercadoria sui generis, pois só ela produz mais-valor e este ao ser apropriado pelo capital cria sua reprodução ampliada. Para que essa reprodução ampliada de capital se realize é necessário não só a produção de mais-valia mas também a competição entre capitais individuais, pois esta obriga a burguesia a reinvestir cada vez mais em meios de produção. Estas condições e premissas da produção capitalista estão presentes na URSS, onde o desenvolvimento da divisão social do trabalho criou uma ampla separação entre os ramos de produção, entre produtores e consumidores e, finalmente, entre os trabalhadores e meios de produção. Isto, por sua vez, verá o trabalho assalariado, a produção da mais-valia, e conseqüentemente, a acumulação de capital. O único dos elementos acima citados que se poderia argumentar que não existe na URSS é a competição entre capitais individuais, pois lá a propriedade é monopólio do Estado. Mais isto não é correto e demonstraremos isto a seguir.

 

  A reprodução ampliada do capital é impulsionada pelo mercado mundial e pelas relações comerciais e monetárias internas da URSS. Essas relações nunca deixaram de existir: já existia no período do "comunismo de guerra" e se aprofundou com a NEP  (Nova Política Econômica) e esta criou, no seu final, as condições necessárias para sua reprodução na economia estatizada [17]. A "estatização forçada" criou os Kolkhozes (que deveriam ser cooperativas) como um forma de propriedade estatal. O Estado recebe dos Kolkhozes renda da terra em forma de altos impostos. Eles são dirigidos pela burocracia Kolkhoziana que repassa os impostos para o Estado e retira privilégios e rendimentos superiores aos do campesinato. Estes "rendimentos superiores" são justificados pelo "trabalho por rendimento" que calcula as tarefas de acordo com o grupo ao qual se pertence (burocracia, agrônomo, tratorista ou camponês). A burocracias kolkhoziana se inscreve na nomenclatura, ou seja, é nomeada pela burocracia estatal, sendo, portanto, intocável.

 

  Os camponeses possuem, entretanto, suas pequenas parcelas de terrenos individuais atrás de suas casas. Eles se alimentam através do trabalho nestes terrenos e também a maior parte da população urbana apesar de serem apenas 3% das terras cultiváveis. Estes produtos são vendidos pelos camponeses diretamente à população criando uma forma de comércio livre.

 

  As diferenças entre as fazendas estatais (Sovkhozes) e as empresas "ditas" cooperativas (Kolkhozes) são: a) A forma de remuneração nas primeiras é realizada através do salário e nos Kolkhozes através do "trabalho efetuado", embora juridicamente em 1966 a remuneração passasse a ser igual a dos Sovkhozes; b) As parcelas individuais de terra existentes nos Kolkhozes e inexistentes no Sovkhozes; e c) Os Sovkhozes repassam para o Estado o excedente em forma de lucros e os Kolkhozes em forma de impostos.

 

  O chamado "mercado negro" urbano e a reprodução das pequenas propriedades urbanas são outras formas de expressão das relações comerciais e monetárias na URSS. Quando há qualquer troca entre os Sovkhozes e o Estado ou entre os este e os Kolkhozes se manifesta a lei do valor. Quando as unidades de produção (as empresas estatais) trocam meios de produção entre si também atua a lei do valor. Isto é possível porque cada empresa tem "autonomia financeira". As empresas estatais possuem seus fundos próprios; compra e venda e seus meios de produção, matérias-primas, combustíveis, etc.; possuem autonomia para decidir o número de assalariados e a forma de contrata-los e dispensa-los; e se auto-financiam através de suas receitas e do sistema bancário.

 

  Neste sentido, as empresas estatais funcionam como capitais individuais. As trocas entre as "cooperativas", as fazendas estatais, as unidades de produção aliadas com a produção mercantil da pequena propriedade camponesa e urbana  juntamente com o mercado negro demonstram as várias formas de manifestação das relações comerciais e monetárias na URSS.

 

  Essa autonomia das unidades de produção, aliada às demais formas de relações comerciais e monetárias, torna necessário a comparação entre as mercadorias para medir o tempo de trabalho socialmente necessário. A divisão social do trabalho expressa aí cria a necessidade de submissão à lei do valor. Cria-se também, uma competição embora num nível bem inferior em comparação com o capitalismo privado. A dinâmica da acumulação de capital sob o Capitalismo de Estado é impulsionada principalmente pela competição internacional que se realiza no mercado mundial.

 

  A lei do valor e a acumulação de capital "soviéticos" estão submetidos ao mercado mundial. Tanto a produtividade do trabalho, que é necessariamente comparada ao mercado mundial, quanto a decisão na produção nos meios de produção, estão na URSS, devido ao comércio externo, condicionadas pelo mercado mundial. No seu comércio externo, as suas trocas com o COMECON representavam 54% e as trocas com os países imperialistas do Ocidente 31%, enquanto que as efetuadas com os países capitalistas 13%.

 

  O capital internacional também interfere internamente na economia "soviética", pois existem diversas empresas estrangeiras na URSS como a General Motors, Shell, Coca-Cola, Mitsubishi, Krupp, Basf, Control Data, Brown Boveri, Exxon, Union Carbide, etc, etc. Estas empresas atuam na URSS na forma de co-produção industrial. A co-produção industrial se baseia num acordo em que a URSS assume o papel de ceder força de trabalho e instalações enquanto que os países imperialistas do Ocidente fornecem máquinas, técnicas de gestão, licenças, etc. Nestas empresas, a mais-valia é repartida entre a burocracia "soviética" e o capital internacional. Além desse tipo de acordo existem inúmeros outros isto torna necessário a presença de bancos estrangeiros na URSS.

 

  A URSS não só explora os camponeses soviéticos como também avança sobre outros países realizando uma verdadeira expansão imperialista. A fase imperialista do Capitalismo de Estado russo é demonstrada tanto através do "velho imperialismo" (dominação político-militar direta), como ocorreu no Afeganistão, quanto através da exploração dos países do Leste Europeu no comércio internacional. Existe entre a URSS e o Leste Europeu uma "troca desigual" e o exemplo da Hungria deixa isso bem claro: "no caso da Hungria, enquanto esta, de 16 Rublos passou a pagar 36 par tonelada de petróleo importado da URSS, o que significou o aumento de 131% (na verdade, 125% - NSV), os preços das máquinas que ela vendeu à URSS tiveram um aumento de apenas 33%[18]. A URSS se não bastasse isso, implantou no Leste Europeu "empresas mistas" com 50% de capital soviético e 50% de capital nacional. Isso além das empresas que foram cedidas pela Alemanha Oriental como pagamentos de indenização pelas destruições da II Guerra Mundial e se tornaram propriedades soviéticas [19].

 

  A luta de classes na União Soviética depois da II Guerra Mundial revela, após um breve período de "reconstrução nacional" um processo de acirramento crescente. Os problemas sociais como, por exemplo, a crise da agricultura, a questão da habitação, os desperdícios produzidos pela planificação burocrática, se acumulavam e criavam enormes conflitos sociais. A própria classe dominante, principalmente após a morte de Stálin, sempre estava envolvida em lutas inter-burocráticas visando a ascensão ao cume da pirâmide do poder ou então buscando uma repartição mais favorável da  mais-valia. Cabia ao partido "comunista" mediar as lutas inter-burocráticas e através do Estado manter a unidade da classe dominante. A repressão era o meio mais eficiente e utilizado para reproduzir sua dominação, tal como expressa nos campos de concentração (GULAGS) e nos hospitais psiquiátricos, pois, como escreveu um soviético dissidente, a oposição era uma "nova doença mental na URSS" (V. Bukowski). Mas esta repressão contava com o reforço da dominação ideológica realizada pelos aparelhos culturais e educacionais do Estado soviético. Nas instituições educacionais havia o ensino obrigatório do chamado "marxismo"-leninismo, a ideologia oficial do capitalismo estatal russo. Entretanto, estes aparelhos culturais e educacionais também eram garantidos pela repressão, pois não havia liberdade de imprensa e de produção científica, artística e cultura. O monopólio estatal dos meios de produção cultural produziu, conseqüentemente, o "monopólio" da produção cultural.

 

 Toda essa repressão e controle tem como objetivo reproduzir as relações de produção capitalistas na URSS. A resistência operária e camponesa se expressavam, num primeiro momento, como luta de classes na produção. Os camponeses dos kolkhozes, por exemplo, preferiam produzir nas suas parcelas individuais  de terras do que nos kolkhozes e isto provocava uma baixa produtividade do trabalho. A resposta da burocracia era a tentativa de submeter a produção individual à exploração realizada através das trocas comerciais, o que, por sua vez, gerava novos conflitos sociais. Nas fábricas, os operários se encontram submetidos aos métodos tipicamente capitalistas de controle da produção, por exemplo, o sistema Taylor, e por isso apresentam também uma baixa produtividade do trabalho. A burocracia tentou resolver a questão com os "incentivos materiais" (idéia importada da Europa Ocidental) mas, como demonstrou a História, fracassou totalmente. A repressão generalizada na sociedade russa acontecia justamente por causa do descontentamento e resistência crescente das classes exploradas. A burocracia utilizava como "arsenal ideológico" as acusações aos dissidentes de "contra-revolucionárias", "loucos", "agentes do imperialismo", etc., para justificar a repressão. As burocracias das repúblicas "soviéticas" utilizavam-se das tradições nacionalistas, acirradas pela opressão russa, para incentivar mobilizações de trabalhadores como o objetivo de pressionar Moscou para conseguir uma repartição mais favorável da mais-valia.

 

  A resistência operária na produção atinge níveis elevados quanto a sua luta contra o aumento da produtividade e da extração de mais-valia chega ao ponto de apelar para as greves e se exige melhores salários; pois isto significaria uma diminuição na extração de mais-valia por quanto isso não fosse acompanhado pelo aumento da produtividade ou da jornada de trabalho, o que efetivamente não ocorria. A resistência operária fora do local de produção se expressa na formação de sindicatos independentes e de organizações clandestinas de esquerda. A burocracia reage, obviamente, com a repressão crescente e generalizada na sociedade russa.

 

  Assim, a luta de classes na União Soviética apresentava uma onda de "mais-repressão" crescente tanto no campo quanto na cidade. A burocracia estatal buscava centralizar ainda mais os Kolkhozes com medo das tendências auto gestionárias dos camponeses e reprimir todas as formas de organizações não-estatais e manifestações políticas nas cidades com medo da auto-organização da classe operária. No entanto, o descontentamento e a luta dos trabalhadores para transformar suas condições de existência e, conseqüentemente, abolir o capitalismo estatal russo e construir a autogestão social, revelam as contradições da sociedade soviética que mais cedo ou mais tarde provocarão o rompimento com esse "mundo concentracionário".

 

  Antes da crise da URSS e do Leste Europeu criticar o chamado "socialismo real" era sinal de "trotskismo" ou "direitismo". Mas, na realidade, como disse F. Claudin, para a direita e o imperialismo "o que lhes interessa conservar é o equívoco colossal de que aquilo é socialismo. Que argumento melhor para comprometer o ideal socialista diante das classes trabalhadoras e dos intelectuais do Ocidente? Na verdade, quem faz o jogo da direita são aqueles que coincidem com ela em conceber o diploma de socialismo às ditaduras totalitárias do leste[20].

 

 

 


 

 

 

Nildo Viana

O que é autogestão?

 

Publicado na Revista Ruptura, ano 03, num. 04, Jan. 1996.

 

  Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade: no dia do seu enterro. Karl Marx


  A autogestão, para uns, é um “método de gestão de empresas” e, para outros, é uma “forma política” que assume o comunismo, ou seja, a “democracia direta”. A primeira concepção deixa entrever a possibilidade de existir autogestão no interior da sociedade capitalista e a segunda apresenta a idéia de que é possível haver comunismo sem autogestão, já que esta é reduzida a uma mera “forma política” e, sendo assim, não é a essência do comunismo e por isto este poderia utilizar outras “formas políticas”. Entretanto, tal como pretendemos demonstrar no decorrer deste trabalho, estas concepções são equivocadas, pois não conseguem expressar o verdadeiro sentido da autogestão.


  Antes de mais nada, tal como fizeram A. Guillerm e Y. Bourdet [1], é útil distinguir o conceito de autogestão de outras palavras que muitos pensam ter o mesmo significado. Autogestão não possui o mesmo significado que “participação”, “co-gestão”, “controle operário” ou “cooperativismo”. Vejamos o significado destas palavras:


A) PARTICIPAÇÃO: Participação não significa autogestão, pois ela significa participar de algo já existente, ou seja, de uma atividade que possui estrutura e finalidade próprias. Segundo Guillerm e Bourdet, o participante é como um flautista numa orquestra: participa se misturando individualmente à um grupo que lhe é preexistente.

 

B) CO-GESTÃO: A co-gestão é uma tentativa de integrar a criatividade e a iniciativa operária no processo produtivo capitalista (com o objetivo de aumentar a produtividade e, consequentemente, a extração de mais-valor relativo -ou mais-valia relativa) e que permite a participação dos trabalhadores apenas no processo de produção, nos meios e não nos fins. Mas mesmo essa co-gestão nos meios é limitada, pois a definição por outros sobre os fins leva à uma pré-determinação no que se refere ao meios.

 

C) CONTROLE OPERÁRIO: Segundo Guillerm e Bourdet, o controle operário significa um passo adiante em relação à co-gestão, mas ainda não é autogestão, pois o controle operário surge como produto de uma intervenção conflitual que arranca concessões para os trabalhadores, embora se limite a exercer-se sob pontos específicos que não questionam o salariato. Para M. Brinton, a proposta de “controle operário” apresentada por diversos grupos políticos (principalmente leninistas e trotskistas) expressa a vontade de apresentarem-se como mais democráticos e fazem isto buscando nos iludir com a afirmação de que o leninismo sempre defendeu tal proposta. Para ele, o controle operário, ao contrário da autogestão, não significa que a classe operária irá gerir a produção e sim que ela irá “supervisionar”, “inspecionar” ou verificar as decisões tomadas por “instâncias exteriores” ao processo produtivo, tal como o estado ou o partido [2].


D) A COOPERATIVA: Segundo Guillerm e Bourdet, “esquematicamente, pode-se, com efeito, convir que (...), as cooperativas têm ‘vegetado’ sempre sob formas locais, a tal ponto que esta limitação se tornou seu sinal distintivo. Por isso, para designar a generalização dos sistemas de cooperativas, far-se-á mister uma palavra nova. O termo autogestão deve assumir o papel[3]. Acontece que, no interior da sociedade capitalista, as cooperativas não determinam seus fins, pois o mercado e o estado sempre interferem nas finalidades de uma cooperativa e não só nos fins como, em menor grau, também nos meios.


  Em síntese, a participação, o controle operário, a co-gestão e as cooperativas podem existir no interior do modo de produção capitalista e são assimiláveis por ele. O capitalismo envolve todas estas manifestações e as colocam sob sua direção, direta ou indiretamente. Não existem nem podem existir “ilhas de autogestão” cercadas pelo mar do capitalismo. A autogestão só pode existir em locais isolados por um curto período de tempo e em confronto com o capital e desta luta um dos dois vencerá, ocorrendo a destruição da experiência autogestionária ou a generalização da autogestão a nível nacional e posteriormente mundial.


  Podemos dizer também que as definições acima deixam entrever que não existe muita diferença entre todos estes termos, pois todos eles possuem algo em comum: em todas essas formas de “participacionismo” permanece exterior aos trabalhadores a determinação dos fins e uma “co-determinação” no que se refere aos meios. Por conseguinte, o termo co-gestão engloba todos os outros termos e, sendo assim, ele é suficiente para marcar a diferença entre a autogestão e as outras formas de gestão que se dizem “democráticas”.


  Mas o que é a autogestão? Como ela pode surgir e se expandir mundialmente? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que é impossível compreender a autogestão e a possibilidade histórica de sua concretização sem compreendermos o solo onde ela pode brotar, ou seja, o modo de produção capitalista.

 

 

O capital, relação de produção

 

  Todo modo de produção possui uma determinação fundamental que é expressa pelo conceito de relações de produção e que serve de fundamento para todas as outras relações sociais. Marx demonstrou que a relação de produção (determinação fundamental) do feudalismo é a servidão: “em vez do homem independente, encontramos aqui toda a gente dependente, servos e senhores, vassalos e suseranos, laicos e clérigos. Esta dependência caracteriza tanto as relações de produção quanto todas as outras esferas da vida social, às quais serve de fundamento[4]. A relação de produção capitalista expressa o fundamento da sociedade capitalista. O capital não é só “meios de produção” mas é, fundamentalmente, uma relação social, uma relação de produção.


  As relações de produção capitalistas se baseiam na extração de mais-trabalho sob a forma de mais-valor (ou, segundo linguagem corrente, mais-valia). O proprietário dos meios de produção, o capitalista, compra a força de trabalho do produtor e paga por ela o valor necessário para sua reprodução enquanto força de trabalho. A força de trabalho, porém, produz mais do que o necessário para sua reprodução e este valor a mais acrescentado à mercadoria e apropriado pelo capitalista é o que se chama mais-valor.


  No processo de produção do mais-valor há um duplo caráter: de um lado, é um processo de trabalho caracterizado pela exploração e alienação do trabalhador; de outro, é um processo de valorização dos meios de produção. Só a força de trabalho acrescenta valor às mercadorias, pois os meios de produção apenas transmitem seu valor ao produto-mercadoria fabricado.


  A evolução do modo de produção capitalista transforma esta relação. Com o desenvolvimento e acumulação dos meios de produção há a desvalorização da força de trabalho e a valorização dos meios de produção. Os meios de produção foram valorizados pela força de trabalho e por isso se tornam, com o desenvolvimento do capitalismo, um dispêndio cada vez maior para o capitalista.


  Com isso o capitalista investe cada vez mais nos meios de produção e cada vez menos na força de trabalho. Assim, como só a força de trabalho produz mais-valor, surge a tendência para haver a queda da taxa de lucro médio. O aumento de produtividade busca evitar esta queda, já que aumenta a extração de mais-valor relativo. Entretanto, isto cria uma nova tendência à baixa da taxa de lucro médio, pois o aumento do mais-valor relativo significa que a força de trabalho acrescentou mais valor ainda à mercadoria e isto torna mais dispendioso os meios de produção.

  Esta é a tendência declinante da taxa média de lucro. O capitalismo, através de seus agentes, cria também contratendências e busca fazer isto de várias formas, tal como através do aumento da interferência do estado no processo de produção e distribuição ou da expansão do consumo, entre outras.

 

 

Autogestão, relação de produçao

 

  O modo de produção capitalista, como vimos, se caracteriza pelo domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo. Esta relação de dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo através do produção de mais-valor é a determinação fundamental do capitalismo [5]. Torna-se necessário, então, descobrir qual é a determinação fundamental do modo de produção comunista.

 
  A determinação fundamental do modo de produção comunista só pode ser a autogestão. Isto significa, entre outras coisas, que a autogestão não é apenas a “forma política” (democracia direta) do comunismo e nem mero “método de gestão das empresas”. A autogestão é uma relação de produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social. A autogestão inverte a relação entre trabalho morto e trabalho vivo instaurada pelo capitalismo e, assim, instaura o domínio do trabalho vivo sobre o trabalho morto.


  A autogestão significa que os próprios “produtores associados” dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, as classes sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a divisão social do trabalho. Consequentemente, abole-se a divisão entre “economia”, “política”, etc.

 

 

Autogestão e período de transição

 

  Se a autogestão é uma relação de produção, ou seja, a determinação fundamental do modo de produção comunista, e que por isso abole a chamada “lei do valor”, então, qual é o sentido que tem o discurso sobre o “período de transição”? Questionar a necessidade de um “período de transição” entre o capitalismo e o comunismo significa, segundo o pseudomarxismo, desconhecer que a tese da “fase de transição” é uma conquista irrenunciável do “socialismo científico”, que supera todo e qualquer utopismo. Entre o capitalismo e o comunismo existe um período de transição chamado socialismo. Neste período, o estado dirige a economia através de um plano e se mantêm o dinheiro, o trabalho assalariado e até mesmo a “lei do valor”.

 

  Deixando de lado a discussão sobre o sentido da palavra utopia, podemos dizer que, na verdade, “sonho irrealizável” é a idéia de um “período de transição” entre capitalismo e comunismo. A ideologia da transição é contrária ao que o próprio Marx colocou e, por conseguinte, não se pode dizer que tal idéia está presente em Marx e utilizar este “argumento de autoridade” para sustentar tal tese.

 

  O que Marx “realmente disse”? As colocações de Marx sobre a passagem do capitalismo ao comunismo que o pseudomarxismo se utiliza para sustentar tal tese são duas: a) a permanência do trabalho assalariado; b) a existência de um “estado de transição” no socialismo.

 

  Mas, antes de tudo, devemos dizer que Marx não utilizava as noções de “período de transição” e de “socialismo”. Essas noções foram criadas pela tradição bolchevique e similares e foram erigidas ao nível de verdadeiros “conceitos”, que foram reificados e passaram a ser, na ideologia da burocracia, uma etapa necessária na história. O que Marx colocou é que a sociedade comunista, tal como surge do capitalismo, atravessa duas fases, o que significa que são duas fases do comunismo e não que uma delas seja de “passagem” para ele. As colocações de Marx sobre a permanência do trabalho assalariado e a existência de um estado de transição se referem a esta primeira fase do comunismo.


  Entretanto, é necessário colocar que Marx reformulou as suas teses sobre a primeira fase do comunismo. Marx havia colocado que nesta primeira fase deveria haver a “estatizacao dos meios de produção”, e é aí que se pode falar em “estado de transição”. Acontece que, após a experiência da Comuna de Paris, ele reformulou esta tese, tal como demonstra o seu artigo sobre a comuna e os “posfácios” ao Manifesto Comunista [6]. Para Marx, a classe operária não pode se apossar do estado, pois deve destruí-lo e em seu lugar implantar o “autogoverno dos produtores”, ou seja, a autogestão [7]. Tal como fizeram os proletários durante a Comuna, deve-se abolir o exército permanente e a burocracia do estado.

 

  Outra colocação que Marx reformulou é a de que na primeira fase da sociedade comunista todos deveriam receber salários equivalentes ao dos operários, o que pressupõe a permanência do trabalho assalariado, só que funcionando sob outra forma. Posteriormente, ele afirmou que os trabalhadores receberiam bônus comprovando o trabalho executado: "Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade cujas entranhas procede. Congruentemente com isto, nela o produtor individual obtém da sociedade -depois de feitas as devidas deduções- precisamente aquilo que deu. O que o produtor deu à sociedade constitui sua cota individual de trabalho. Assim, por exemplo, a jornada social de trabalho compõe-se da soma das horas de trabalho individual; o tempo individual de trabalho de cada produtor em separado é a parte da jornada social do trabalho com que ele contribui, é sua participação nela. A sociedade entrega-lhe um bônus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar o que trabalhou para o fundo comum), e com este bônus ele retira dos depósitos sociais de meios de consumo e parte equivalente à quantidade de trabalho que deu à sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente” [8].


  Entretanto, o sistema de bônus não é a mesma coisa que o salariato. O salário é pago em papel-moeda (dinheiro), que é um “meio de troca universal” e pode ser, por isso, acumulado e utilizado para comprar meios de consumo e produção e/ou força de trabalho. O bônus proposto por Marx era trocável apenas por meios de consumo e por isso não tem nada a ver com o dinheiro, o trabalho assalariado e a “lei do valor”. Por conseguinte, a primeira fase do comunismo já seria marcada pela abolição do estado, do trabalho assalariado, do dinheiro, etc., e pela instauração da autogestão social ou, segundo a linguagem de Marx, da livre associação dos produtores.


  Marx colocou que o trabalho se generalizaria durante a primeira fase do comunismo, mas sem ligação com o salariato e sim com o sistema de bônus. Nesta fase predomina o princípio “de cada um segundo sua capacidade à cada um segundo seu trabalho”. Na segunda fase predomina o principio “de cada um segundo sua capacidade à cada um segundo suas necessidades”.


  Acontece que estas propostas estão superadas historicamente, pois elas foram produzidas tendo por base o capitalismo da época de Marx, ou seja, do século 19. Com o posterior desenvolvimento das forças produtivas não há mais motivos para a existência do princípio “à cada segundo o seu trabalho” e do sistema de bônus. O desenvolvimento das forças produtivas, na Europa ocidental e nos demais países capitalistas superdesenvolvidos, já atingiu um nível tão elevado que a revolução autogestionária terá que transformá-las para possibilitar a autogestão e sua utilização de acordo com as necessidades humanas. Isto se torna, na atualidade, válido até para os países capitalistas subordinados( “terceiro mundo”). Por conseguinte, não há mais a necessidade de existir “duas fases” no comunismo e a chamada “transição” do capitalismo ao comunismo se realiza no período revolucionário que ao terminar, com a vitória do proletariado, instaura a autogestão social.

 

 

O problema da alienação

 

  A história da humanidade é marcada pelo predomínio da alienação. A alienação é uma relação social que se caracteriza pelo fato do trabalhador não ter controle de seu trabalho e, por conseguinte, ser controlado pelo não-trabalhador que, assim, toma posse do produto do seu trabalho. Desta forma, o trabalhador perde o controle do produto do seu trabalho e do produto deste e cria aquele que irá controlar o seu trabalho e se apropriar de produto dele. Isto ocorreu em todos os modos de produção classistas da história -modo de produção escravista antigo, modo de produção feudal, modo de produção tributário, etc.- e atinge o seu ponto culminante no modo de produção capitalista. O domínio dos não-produtores sobre os produtores na época capitalista coloca a autogestão como tendência histórica de superação da alienação.

 

  A partir da definição de alienação acima exposta vê-se que ela é sinônimo de heterogestão e antônimo de autogestão. Assim se observa que a “ideologia da vanguarda” (Lênin, Kautski) é um elogio da alienação, pois, se o proletariado não dirige o seu processo de libertação e é dirigido por sua “vanguarda”, ele também irá perder o produto de sua atividade revolucionária, ou seja, a sua libertação, e este produto será apropriado pela sua “vanguarda”. A ideologia da vanguarda diz que é através da alienação que se conquista a desalienação. Isto, entretanto, não é verdade, pois o caminho da alienação só pode ocorrer via desalienação, ou seja, somente controlando o seu processo de libertação, através da autogestão de suas lutas, é que o proletariado poderá conquistar sua libertação.

 

 

A autogestão das lutas operárias

 

  O capitalismo surge no interior do feudalismo através do movimento do capital comercial que leva ao predomínio do capital industrial e assim se torna o modo de produção dominante. Se o capitalismo surge “economicamente” no feudalismo, o mesmo não ocorre com o comunismo. O capital, relação de produção capitalista, significa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, das forças produtivas acumuladas sobre a força produtiva ativa, enfim, da classe capitalista sobre a classe operária. O comunismo, ao contrário, se caracteriza pelo domínio do trabalho vivo sobre o trabalho morto e surge não de um “desenvolvimento econômico” e sim da ação revolucionária do proletariado. A sociedade comunista existe potencialmente no interior da sociedade capitalista através da luta operária. A autogestão das lutas operárias é o “embrião” do comunismo. Se o conteúdo do socialismo (ou comunismo) é a autogestão, então é na sua primeira forma de manifestação, na luta operária, que ela se revela como possibilidade histórica. A autogestão das lutas operárias produz, no seu confronto com o capital, os coletivos de autogestão como os conselhos de fábrica, conselhos de bairros, etc., e cria-se, assim, uma “dualidade de poderes”: o poder político burguês, ou seja, o estado capitalista, de um lado, e os coletivos autogeridos, os conselhos revolucionários, de outro. A vitória do proletariado leva à generalização da autogestão e a instauração do modo de produção comunista e a sua derrota significa a reprodução do modo de produção capitalista.


  A autogestão, portanto, é uma relação social que nasce com a autogestão das lutas operárias e se universaliza e invade o conjunto das relações sociais e, assim, decreta a morte do capitalismo e inaugura o modo de produção comunista.

 

 


 

 

Nildo Viana

A autogestão como conteúdo do novo ciclo revolucionário

 

Publicado no Boletim do Movimento Conselhista, Ano 01, num. 03, Dezembro de 1994.

 

  A maioria dos modos de produção pré-capitalistas tinham como uma de suas principais características o localismo. Eles não possuíam um caráter universalizante e expansionista. O capitalismo é o único modo de produção que tem a necessidade de expansão e universalização. Após o capitalismo, “nada será como antes”, pois todas as alternativas históricas a ele deverão se submeter a necessidade de universalização. O capitalismo surge na Europa ocidental, e expande-se a todo o mundo, tornando-se mundial. Qualquer modo de produção que queira substituir o capitalismo também deverá se “mundializar”, pois “ilhas isoladas” logo seriam reintegradas no capitalismo mundial, pela ação do mercado mundial, embora existam outras ações secundárias nesse sentido.

 

  Por conseguinte, a discussão no movimento “dito” socialista sobre o “socialismo num só país” em oposição ao “internacionalismo” é puramente ideológica. O caráter ideológico da primeira posição é bastante evidente: trata-se de uma ideologia do capitalismo de estado nacional russo. A segunda posição é ideológica porque defende o óbvio (o socialismo só pode existir mundialmente) e porque, assim, transforma a sua disputa com a primeira num combate entre “concepções de socialismo”, ou seja, atribui um caráter socialista à URSS e suas ideologias. Aliás, a idéia trotskista de que a “base econômica” da URSS é socialista, é outra face desta ideologia. Stalinismo e trotskismo são irmãos gêmeos.


  O desenvolvimento capitalista torna necessário a sua expansão mundial. Inicia-se o ciclo das revoluções burguesas: Inglaterra, França, etc. Mas logo a burguesia adquire consciência da sua situação trágica: para implantar o domínio do capital terá que expandir as relações de produção capitalistas e lutar pelo poder político contra a classe feudal e para fazer isso terá que criar, e iniciar na luta política, o proletariado, seu filho, que tem o mesmo destino de Édipo. Assim termina o primeiro ciclo das revoluções burguesas, pois a burguesia deixa de ser revolucionária para ser reacionária.


  Mas a expansão e universalização do capitalismo tem que continuar. A burguesia, entretanto, não será mais o sujeito histórico das novas revoluções burguesas, pois ela vive sob o signo do medo do proletariado. Os novos agentes históricos do capital são as classes auxiliares da burguesia, e, ironicamente, o movimento “dito” comunista. Inicia-se o Ciclo das Revoluções Burguesas Tardias: Rússia, China, Brasil, etc. No capitalismo subordinado, são as classes auxiliares que cumprem a missão de transformar o estado oligárquico em estado capitalista moderno (o populismo na América latina) e nos países em transição para o capitalismo são os partidos “comunistas” que executam a tarefa de implantar o capitalismo de estado (as Revoluções Russa, Chinesa, etc.).

 

  Do ponto de vista histórico, o ciclo das revoluções burguesas clássicas durou alguns séculos e terminou no século 19; o ciclo das revoluções burguesas tardias ocorreu no século 20, principalmente na sua primeira metade; o início do século 21 marcará o começo das revoluções anti-capitalistas.


  Existem, no interior do capitalismo, dois modos de produção potenciais: o modo de produção burocrático e o modo de produção comunista. Trataremos do primeiro em outra oportunidade, aqui cabe apenas dizer que sua possibilidade histórica é bastante reduzida. Por conseguinte, o século 21 será marcado pelo ciclo das revoluções proletárias. O conteúdo da revolução proletária é a autogestão. Elas iniciam-se como autogestão das lutas operárias pela própria classe operária e se transformam em autogestão nas fábricas, bairros, etc., organizadas pelos conselhos revolucionários até se generalizarem e se tornar autogestão social, ou seja, autogestão do conjunto das relações sociais.


  A autogestão é incompatível tanto com o mercado quanto com o estado. O mercado pressupõe a autonomia do valor de troca e esta assume a direção do processo de produção. A autogestão na produção só pode existir com a simultânea autogestão na distribuição , caso contrário será, no máximo, uma ”co-gestão”. O estado pressupõe uma centralização do poder e um acamada burocrática que possui um modo de vida próprio que só se reproduz assumindo a direção da sociedade. A autogestão na produção não pode conviver com uma direção burocrática da sociedade. Assim, continuamos no terreno da “co-gestão”.

 

  A revolução proletária não institui a autogestão só na fabrica (mesmo porque dito é impossível, ou seja, não é autogestão) e sim em toda a sociedade. Portanto, a autogestão deve se expandir para o conjunto das relações sociais. Mas não basta abolir o mercado e o estado nos marcos de uma nação, pois o capitalismo é um modo de produção que se mundializou e que, por isso, obriga todas as alternativas a ele(seja o modo de produção burocrático ou o comunista), a se tronar mundial ou retornar ao capitalismo.

 

  Entretanto, assim como no inicio do processo revolucionário em uma nação, a autogestão nas unidades de produção pode conviver antagonicamente com o mercado e o estado, durante certo tempo, a autogestão social pode conviver temporariamente em antagonismo com os países capitalistas. Assim como revolução burguesa, a revolução proletária só pode ser compreendida como um ciclo de revoluções nacionais. A primeira revolução autogestionária reforça a crise do capital (auto-exclusao do mercado nacional), produz entusiasmo e radicalização nos trabalhadores e militantes políticos, reforçando a esquerda revolucionária, abala as ideologias, os valores e a mentalidade burguesas, colocam em evidencia a possibilidade concreta de autogestão, enfim, reforça o processo de deterioração do capitalismo e de ascensão do movimento revolucionário. Concluindo, o ciclo revolucionário do século 21 terá como conteúdo a autogestão e isto significa a abolição da alienação e a instauração de um modo de vida radicalmente diferente. Daqui a seis anos iniciar-se-á o século das revoluções proletárias.

 

 

 


 

 

 

Nildo Viana

Luta de Classes e Universo Cultural 

 

Publicado na Revista Enfrentamento, órgao do Movimento Autogestionário, ano I, nº 1, Fevereiro de 2003.

 

  Certa vez o psicanalista alemão Wilhelm Reich afirmou que a grande questão para a luta pela transformação social e criação de um novo mundo –livre da exploração e alienação e baseado na igualdade e liberdade– é responder por qual motivo os trabalhadores e oprimidos em geral não se rebelam e fazem uma revolução. Por qual motivo uma pessoa faminta não rouba a comida que matará sua fome? Ou seja, a questão, ao contrário da que é colocada normalmente em nossa sociedade, não é explicar porque algumas pessoas famintas roubam e sim por qual motivo outras no mesmo estado não fazem a mesma coisa.

 

Segundo ele:

 

“Se dois homens A e B têm fome, um pode resignar-se, não roubar, mendigar ou ficar esfomeado; o outro pode procurar alimento pelos seus próprios meios. Uma vasta camada do proletariado vive segundo os princípios de B. Chama-se lumpemproletariado. Não partilhamos da admiração romântica pelo mundo dos malfeitores mas é preciso esclarecer o assunto. Qual dos dois tipos de homens acima citados tem mais elementos de consciência de classe? Roubar não é ainda um índice de consciência de classe; mas uma breve análise mostra – mesmo se isto choca o nosso sentido de moral – que o que não se adapta às leis e rouba quando tem fome, exprimindo assim a sua vontade de viver, é possuidor de uma maior capacidade de revolta do que o que se entrega docilmente ao matadouro do capitalismo. Mantemos a tese de que o problema fundamental de uma boa psicologia não é saber porque rouba o esfomeado mas, ao contrário, porque é que não rouba”.[1]

 

Reich acrescenta que roubar não é ainda consciência de classe mas coloca que é um tijolo com a qual, junto com outros tijolos e elementos (vidros, janelas etc.) se constrói uma casa, isto é, é um elemento que permite a formação da consciência de classe. A questão fundamental seria, então, explicar por qual motivo os trabalhadores, oprimidos, descontentes não realizam atos de negação da sociedade existente. Por qual motivo o esfomeado não rouba? Os trabalhadores não tomam conta das fábricas? O desabrigado não toma conta dos lotes baldios ou das grandes propriedades territoriais? São questões que nos remetem ao motivo dos explorados, dominados, oprimidos etc. não terem feito uma revolução, a transformação social radical abolindo a exploração, dominação, opressão. Sem dúvida a resposta é complexa. Podemos falar do aparato repressivo do Estado, o exército e a polícia como fator importante para a não realização da revolução. No entanto, este aparato só entra em ação quando o confronto é aberto, quando todos os outros meios que a classe dominante e o governo utilizam para manter a passividade da população já não funcionam mais. Hoje, apenas uma minoria radical entra em confronto direto com o aparato repressivo do estado capitalista e não por propor a revolução social mas sim por questões pontuais (protestos, manifestações, lutas pela moradia, luta pela terra, ou seja, tijolos que são elementos para construir a casa mas ainda não é a casa).

 

  Existe algo anterior à força repressiva que é um forte obstáculo ao processo revolucionário. Aqui lembramos o filósofo Rousseau. Segundo ele, o que importa, para explicar a origem das desigualdades, é indicar, “no progresso das coisas, o momento em que, o direito sucedendo à violência, a natureza submeteu-se à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios pôde o forte decidir-se a servir ao fraco, e o povo a comprar um repouso imaginário ao preço de uma felicidade real[2].

 

  Portanto, Rousseau explica a origem das desigualdades a partir do momento em que surgiu a supremacia do direito sobre a violência. Isto se encontra de acordo com o que colocamos anteriormente: a força repressiva é sustentáculo da desigualdade, da exploração, da dominação, da opressão, mas só é utilizada no momento em que falham os outros sustentáculos destas relações. Rousseau assim coloca a origem da propriedade privada e, por conseguinte, da desigualdade:

 

 “O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu’, e encontrou pessoas bastantes simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras deste impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém. Entretanto parece que as coisas já haviam chegado ao ponto de não mais poder continuar como estavam; pois essa idéia de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que não puderam nascer senão sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e saber transmiti-los e aumentá-los de geração em geração, antes de se atingir esse último estágio do estado de natureza[3].

 

  Rousseau, apesar de sua contextualização histórica-social deixar muito a desejar, coloca um elemento fundamental para nossa discussão. A questão do consentimento. Ou seja, a repressão estatal só atua quando se rompe o consentimento da população, a força só entra em ação quando as palavras não funcionam mais. Aqui entramos na questão cultural e no papel da cultura para a reprodução da exploração, da desigualdade, da opressão. Por que os explorados, oprimidos, esfomeados, não se rebelam? Basta uma rápida olhada no mundo contemporâneo para ver milhões de indivíduos passando fome ou outros milhões em estado de miséria, milhões de trabalhadores explorados, milhões de desempregados, milhões de indivíduos oprimidos devido à cor da pele, a religião, a etnia etc. A grande questão reside no que foi colocado por Reich: por qual motivo não se rebelam? E Rousseau nos afirma que a origem da desigualdade se encontra na cultura, no consentimento. Sem dúvida, a cultura exerce um papel fundamental na reprodução da sociedade existente e em todos os males gerados por ela. De que forma a cultura contribui com a reprodução do capitalismo? O universo cultural na sociedade capitalista é muito amplo e possui vários aspectos. Iremos destacar os principais:

 

  A) A Axiologia

 

  B) A Ideologia;

 

  C) As Representações Cotidianas Ilusórias.

 

  Iremos discutir cada um destes itens.

 

  A axiologia é uma determinada configuração dos valores dominantes em determinada sociedade [4]. A axiologia na sociedade capitalista moderna aponta para determinados valores, tais como a competição, o culto à autoridade, a luta pela ascensão social e status, o desejo de consumo e posses etc. A sociedade capitalista produz uma estruturação de valores que são inculcados nos indivíduos desde sua infância. A competição é uma parte constitutiva do processo de socialização, tanto familiar quanto escolar. Nós vivemos num mundo competitivo e a competição acaba formando valores introjetados pelos indivíduos. Todos querem “ser o melhor”, o melhor aluno (o que tira “as melhores notas”), o melhor jogador de futebol, o torcedor do melhor time e assim por diante. A competição que se encontra na sociedade (na escola, na busca de posições através de concursos, na disputa por uma vaga na escola ou universidade ou por um emprego no mercado de trabalho), no mundo dos esportes, nas igrejas, nas instituições em geral. A competição é tão grande que se encontra até mesmo nas relações amorosas entre homens e mulheres [5], nas quais os homens competem pelas mulheres (segundo, geralmente, os valores dominantes, que valoram a beleza, em especial) e as mulheres competem pelos homens (também segundo os mesmos valores, o que leva a preferência pelos homens poderosos e ricos). Esta sociedade competitiva irá criar indivíduos competitivos e é por isso que diversos pesquisadores irão colocar a existência de uma “personalidade competidora”, de um “caráter competitivo”. A ascensão social, a riqueza e o status são elementos fundamentais na cultura capitalista contemporânea.

 

  Como isto interfere na formação da mentalidade dos indivíduos explorados e oprimidos? Isto gera, no interior dos grupos sociais oprimidos e das classes exploradas, o individualismo e a competição. Aliás, o mesmo se vê nos grupos políticos – tanto os falsamente de esquerda, tais como os partidos políticos, quanto os que realmente buscam a emancipação humana, embora neste último caso isto ocorra geralmente de forma minimizada. Muitos tentam superar sua situação indesejável de exploração e opressão através de uma solução individual, buscando realizar a ascensão social, adquirir o poder ou riqueza. Aqui temos uma negação de uma situação –de exploração e opressão– simultaneamente com sua reafirmação – a solução individual que reforça os valores burgueses e leva os indivíduos a quererem a conservação da sociedade capitalista na ilusão de que poderão realizar tais valores. Eles também irão incentivar a formação de determinados sentimentos, como os do ciúme e inveja, entre outros, que dificultarão o processo de engajamento na luta pela transformação social.

 

  Os valores são mobilizadores, eles fazem as pessoas agirem, escolherem, decidirem. O aspecto mais importante do universo cultural reside justamente nos valores. E existem, para os indivíduos, valores fundamentais que estão acima na sua escala de valores e estes são mais eficazes do que os outros. Estes valores são constituídos socialmente e reproduzem a sociabilidade existente, capitalista. Tal como colocou Reich:

 

“A existência e as condições de existência dos homens, refletem-se, incrustam-se e reproduzem-se na sua estrutura mental, à qual dão forma. É só através desta estrutura mental que este processo objetivo nos é acessível, que podemos entravá-lo, favorecê-lo ou dominá-lo. Só por intermédio da cabeça do homem, da sua vontade de trabalho, da sua procura da alegria de viver, em resumo, de sua existência psíquica, que nós criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi tudo isto que esqueceram há muito os ‘marxistas’ que degeneraram em economicistas[6].

 

  Esta referência ao marxismo é importante, pois muitos consideram que para Marx as idéias não passavam de mero epifenômeno, de coisa sem importância e influência no curso real dos acontecimentos e das lutas sociais, o que é um equívoco, pois para ele as idéias se transformam em “forças materiais” quando são desenvolvidas pelos explorados e oprimidos. Segundo Marx:

 

“Se alguém acredita possuir 100 táleres (*), se essa não é para ele apenas uma representação arbitrária, subjetiva, se ele acredita nela, então os 100 táleres imaginados têm para ele o mesmo valor que 100 táleres reais. Por exemplo, ele contrairá dívidas em função desse seu dado imaginário, o qual terá uma ação efetiva: foi assim, de resto, que toda a humanidade contraiu dívidas contando com seus deuses”.[7]

 

  A força do imaginário, tal como Marx colocou, é ativa e mobilizadora. Uma idéia é, independentemente de ser verdadeira ou falsa, mobilizadora, ativa. Assim, os valores geram uma visão imaginária de sua realização que mobiliza conservadoramente grande parte da população.

 

  Tendo sua base nos valores dominantes e servindo para reproduzi-los, temos a ideologia. A ideologia surge com a divisão entre trabalho intelectual e manual e se desenvolve em formas cada vez mais complexas. A ideologia na sociedade capitalista se manifesta sob a forma de ciência, filosofia, teologia. Ela é uma sistematização da falsa consciência, ou seja, é um pensamento complexo, sistemático, que dá forma a um conteúdo falso. Daí a valoração da linguagem técnica, do formalismo, da metodologia, da tradição e erudição etc. A filosofia, a ciência e a teologia são as principais formas deste pensamento sistemático e falso. Ora, a ideologia está intimamente ligada à divisão social do trabalho e são os especialistas na produção de idéias, os ideólogos, que irão produzir e reproduzir a ideologia. Os ideólogos irão, na sociedade capitalista, se subdividir em diversas especializações (o economista, o psicólogo, o filósofo, o matemático, o físico, o biólogo) e terão um status social e um reconhecimento de sua capacidade e formação especializada. A sociedade capitalista é marcada por uma crescente especialização e por criação de técnicos e especialistas em quase tudo. E tais especialistas acabam assumindo a forma de autoridade e isto propicia o que podemos denominar “culto à autoridade”. Algumas pessoas se julgam incapazes de tomar decisões sem consultar um especialista (médico, dentista, psicólogo e cada vez mais, arquitetos, agentes de turismo e coisas do gênero).

 

  Os ideólogos, no entanto, estão a serviço do poder. Existem, entre os especialistas (cientistas, filósofos, teólogos), algumas exceções, mas a maioria está a serviço da reprodução do capitalismo, inclusive alguns com discurso supostamente progressista. A razão disto se encontra no fato de que eles constituem classes sociais auxiliares da burguesia, e devido a isto recebem privilégios (salariais, principalmente) de sua posição e devido seu papel de falsificação da realidade social e também na elaboração de técnicas de controle social e amortecimento dos conflitos sociais. Um psiquiatra, por exemplo, que realiza psico-cirurgia ou indica uma droga para evitar a depressão está tão-somente representando os interesses daqueles que fazem a psicocirurgia e da indústria farmacêutica e apresentando um paliativo para um problema psíquico que tem sua origem nas relações sociais e no conjunto de insatisfações gerados por elas. Um psicólogo terapeuta realiza o mesmo papel, ou seja, representa seus próprios interesses –pois recebe dinheiro pelo tratamento terapêutico– e os da classe dominante, ao produzir mais um indivíduo enquadrado e adaptado (bem ou mal...) à sociedade existente. O urbanista que elabora um projeto urbano contribui com a organização do espaço urbano capitalista, um espaço dividido e voltado para a reprodução das relações de exploração e dominação. Em outras palavras, os ideólogos não apenas legitimam a sociedade capitalista como atuam no sentido de reproduzi-la através de sua prática profissional, da criação de técnicas e tecnologias e assim por diante.

 

  Devido ao culto à autoridade e pela desvaloração do saber popular, cria-se nos grupos oprimidos e classes exploradas uma valoração da ideologia e um sentimento de incapacidade de alcançar “tão relevante” saber, que é o científico, filosófico, teológico. Assim, o discurso dos especialistas, dos cientistas e outros ideólogos, assumem a aparência de verdade inquestionável (como muitos dizem ingenuamente: “isto já foi comprovado pela ciência”...). A popularização da ideologia, o que traz sua desfiguração e simplificação, reforça, pois, o conservadorismo da população. As revistas de vulgarização científica, os meios de comunicação de massas (rádio, televisão, jornais, revistas semanais) e o ensino escolar cumprem este papel. Assim, a ideologia, apesar de sua produção estar restrita no círculo dos ideólogos, possui uma eficácia política que é uma força que garante o consentimento e a conservação da sociedade burguesa.

 

  Por fim, temos as representações cotidianas ilusórias, o reino do imaginário popular. O saber popular, chamado pelos ideólogos de “senso comum”, é formado pelo conjunto das representações cotidianas que os indivíduos possuem da natureza e das relações sociais. Estas representações cotidianas, que se expressam no dia-a-dia da população, podem ser falsas ou verdadeiras. Para algumas ideologias, elas são necessariamente e sempre falsas, o que é uma inversão da realidade. As representações cotidianas – que são as representações não apenas produzidas pelos indivíduos das classes exploradas e grupos oprimidos mas por todos indivíduos desta sociedade, inclusive os cientistas que não pensam “cientificamente” sobre tudo e a todo o momento –são predominantemente falsas, especialmente nos setores privilegiados da sociedade. Na realidade concreta, existe nos indivíduos uma mescla de representações cotidianas falsas e verdadeiras, que expressa a contraditoriedade da consciência de classe já discutida por Reich e Gramsci.[8]

 

  As representações cotidianas ilusórias reforçam o imobilismo, os valores dominantes e assim por diante, também servindo para a reprodução do capitalismo. Elas nascem, em primeiro lugar, das próprias relações sociais existentes, que são “naturalizadas” e “universalizadas”. Quem já não ouviu a frase “a desigualdade existirá para sempre”. Ora, as pessoas que nascem numa sociedade caracterizada pela desigualdade, vivem e envelhecem nesta sociedade, tendem a pensar que isto é “natural” e “universal”: assim é, assim sempre será. Tal opinião fica mais forte ainda quando algum cientista vem para afirmar que existe na natureza uma “luta pela sobrevivência”, onde há uma “seleção natural dos mais aptos” e só estes sobrevivem (tal como afirmou Darwin, o ideólogo da evolução) ou então que a fome é produto do crescimento populacional, que cresce em proporção muito maior do que a produção de alimentos (tese do economista Malthus, ideólogo do século 19 que tem adeptos até hoje e inspirador de Darwin). Assim, as representações cotidianas também são mobilizadoras, e as que são ilusórias mobilizam no sentido de conservação da sociedade existente.

 

  No entanto, até agora apenas observamos o papel conservador da cultura na luta de classes. Isto é fundamental para percebermos a força das idéias no processo de conservação da sociedade capitalista e da necessidade de buscar realizar uma intensa luta cultural visando diminuir a eficácia política da cultura burguesa e aumentar a força do projeto revolucionário. As classes exploradas e grupos oprimidos trazem em si um conjunto de idéias, valores, representações que realizam uma crítica da sociedade capitalista. É preciso, pois, reforçar isto. Os grupos políticos revolucionários também produzem um amplo material crítico e revolucionário, bem como alguns intelectuais dissidentes e movimentos sociais. Ora, o que é preciso é reforçar todo este processo de constituição de uma cultura libertária, ampliando-a quantitativamente e qualitativamente, bem como realizar uma articulação entre as diversas produções culturais libertárias. A criação de meios de comunicação alternativos e de intervenção nos meios de comunicação existentes é outra forma de encaminhar esta luta cultural, pois além da produção de uma cultura libertária, é preciso sua divulgação, para proporcionar sua ampliação, produzindo novos produtores.

 

  Assim, a produção cultural libertária deve se expandir e articular e se realizar sob os mais variados meios (jornais, revistas, livros, CDs, apresentações públicas etc.) e sob as mais variadas formas (teatro, música, teoria, etc.). Isto, ao lado da atuação militante nos movimentos sociais e luta pela auto-organização das classes exploradas e grupos oprimidos e da articulação dos movimentos revolucionários, abre espaço para se contribuir com o processo de transformação social, que hoje vem sendo reforçado pela tendência de crise e instabilidade do capitalismo, fornecendo condições sociais de crescimento do descontentamento popular e adesão ao projeto de transformação social. A luta cultural é um ponto fundamental para a luta pela transformação social. A cultura libertária, assim como a cultura burguesa, também é mobilizadora e, portanto, deve ser considerado elemento fundamental da luta revolucionária.

 

 

 


 

 

Apéndice

 

Manifesto do Movimento Autogestionário

 

  O Movimento Autogestionário é um movimento político autogerido que busca ser expressão teórica e política do movimento revolucionário do proletariado. Ele não possui interesses próprios, mas pretende tão-somente ser uma forma de expressão dos interesses de classe  do proletariado. Em períodos históricos não-revolucionários, a classe revolucionária de nossa época, o proletariado, não consegue forjar uma expressão política e teórica autêntica de proporções quantitativas elevadas; nos períodos revolucionários, o proletariado realiza sua autonomização e se liberta dos seus falsos representantes (partidos, ideologias, etc.), passando a autogerir sua luta e começando a construir a autogestão social. O Movimento Autogestionário busca, em um período não-revolucionário, expressar os interesses históricos do proletariado e colaborar com a sua autonomização e assim inaugurar um período de revolução social. 

 

  O capitalismo mundial e o brasileiro caminham para uma rápida deterioração e, embora não devemos subestimar a sua capacidade de prolongar sua vida e adiar suas crises, os próximos anos deverão ser marcados por uma movimentação revolucionária ascendente. O capitalismo realiza um desenvolvimento acelerado das forças produtivas e isto é, ao mesmo tempo, sua maior necessidade e sua principal contradição. O desenvolvimento das forças produtivas aumenta a composição orgânica do capital, ou seja, os gastos com os meios de produção tornam-se cada vez maiores, devido ao valor incorporado neles pela força de trabalho ser cada vez maior. É por isso que nos países capitalistas superdesenvolvidos, com o seu alto grau de desenvolvimento tecnológico, se realiza uma busca incessante de aumento de produtividade, ou seja, de produção de mais-valor relativo. Entretanto, apenas o aumento de produtividade não supera tal contradição, pois a mais-valor relativo produzido também será incorporado nos meios de produção e reforçará, conseqüentemente, a tendência à queda da taxa de lucro médio. 

 

  A solução encontrada pelo capitalismo superdesenvolvido é deslocar os investimentos em meios de produção para os bens de consumo ou para a expansão dos serviços. Após a segunda guerra mundial e a destruição em massa das forças produtivas provocadas por ela, aumentou-se a intervenção do estado na economia, mas esta solução vem sendo suplantada pela expansão da produção de meios de consumo e do setor de serviços dominados pela iniciativa privada. Mas a expansão da produção de meios de consumo cria a necessidade de expansão do mercado consumidor. Busca-se, a partir disto, integrar as populações das economias capitalistas subordinadas no circuito de consumo e aumentar a capacidade consumidora das pessoas, tal como na estratégia de diminuir o tempo de vida útil dos produtos e na produção de bens descartáveis. 

 

  O capitalismo superdesenvolvido negocia com as economias subordinadas produtos da mais alta qualidade tecnológica, incluindo meios de produção, em troca de matérias-primas e meios de produção menos sofisticados, tal como determinado pela divisão internacional do trabalho. Lembrando que a produção de mais-valor relativo é elevadíssima no capitalismo superdesenvolvido, mas que a composição orgânica do capital também acompanha esta elevação, vemos que estes países para se manterem precisam realizar uma transferência de valor dos países subordinados para os países  imperialistas. É no comércio internacional que se dá o grosso da transferência de valor que sustenta as economias imperialistas. As empresas monopolistas transnacionais criadas a partir da necessidade de exportação de capitais são outra fonte de transferência de mais-valor, ao lado da dívida externa, através da remessa de lucros, royalties, etc. 

 

  A exportação de capitais continua sendo uma necessidade do capitalismo contemporâneo devido a monopolização crescente da economia. A acumulação de capital dos grupos monopolistas faz  com que estes ultrapassem os limites das fronteiras nacionais por causa do barateamento dos custos de produção e da integração de um mercado consumidor maior no circuito do consumo.  

 

  As conseqüências disto são múltiplas. A expansão da produção de meios de consumo e dos serviços produz uma burocratização e mercantilização crescente das relações sociais  e isto interfere na luta operária. Por um lado, cria-se uma burocratização das próprias organizações criadas para representar a classe operária e, por outro, cria-se uma mercantilização que favorece a corrupção de indivíduos da classe trabalhadora e integra-os na sociedade capitalista. Por conseguinte, esta expansão produz efeitos não só econômicos, mas também políticos e ideológicos. Além disso, há uma deterioração da qualidade de vida (vista não do ponto de vista da ideologia burguesa, ou seja, levando em consideração o índice de consumo ou o nível de renda, mas sim do ponto de vista do bem estar físico e mental e de uma sociabilidade não-repressiva) provocada por isto e também pela destruição ambiental. Se o movimento operário assume uma posição mais moderada, os  demais movimentos sociais (das mulheres, negro, ecológico, estudantil, etc.) freqüentemente esboçam uma radicalização, expressando a resposta das massas as novas contradições criadas pelo desenvolvimento capitalista. 

 

  Acontece que o capitalismo superdesenvolvido encontra-se no limiar de uma nova grande crise. Esta vem se esboçando e a formação de blocos econômicos é apenas uma resposta a esse despontar da crise. Esta, ao chegar, deve produzir uma nova autonomização da classe operária e abrir espaço para a Revolução Social. A crise do capitalismo de estado russo e a desagregação do bloco do capitalismo estatal também reforça a  tendência de desencadeamento de uma crise mundial e, concomitantemente, de uma revolução mundial. 

 

  O capitalismo brasileiro vem se reproduzindo de forma subordinada ao capitalismo superdesenvolvido. O desenvolvimento subordinado brasileiro convive com um período de rearticulação da divisão internacional do trabalho que irá mudar apenas a forma como ele servirá de apoio ao desenvolvimento capitalista mundial. O Brasil entrou pela via de desenvolvimento capitalista de forma retardatária e por isso se encontrou em desvantagem e atraso em relação aos países que entraram por esta via anteriormente, o capitalismo retardatário brasileiro encontra-se em dependência em relação ao capitalismo superdesenvolvido devido ao seu atraso tecnológico e sua acumulação incipiente de capital. A sua entrada no mercado mundial ocorreu, desde a época do modo de produção escravista colonial, de forma subordinada e em situação desfavorável na divisão internacional do trabalho. A entrada de capital estrangeiro e a aliança da burguesia brasileira com a burguesia monopolista internacional expressa no estado capitalista brasileiro são os meios responsáveis pela transferência de valor do Brasil para o exterior. 

 

  A enorme transferência de mais-valor para o exterior, sob as diversas formas em que isto ocorre, deixa a economia brasileira em uma situação de dificuldades econômicas constantes. Apesar disto, a luta operária  no Brasil não consegue atingir um nível elevado. A péssima situação em que se encontram as classes exploradas no Brasil não foram suficientes para o desencadeamento de uma luta de massas que coloque em xeque o modo de produção capitalista. 

 

  O estado capitalista busca integrar as massas utilizando como principal suporte a democracia burguesa, que é apresentada como o palco onde se desenrola a luta política. A canalização da luta política rumo a democracia burguesa tem como objetivo desviar as classes exploradas da luta política direta para a luta eleitoral realizada por seus “representantes” - corrompidos e integrados na sociedade capitalista -  e reforça, assim, a burocratização e integração das forças políticas na sociedade burguesa. O estado capitalista, juntamente com as outras instituições burguesas, utilizam outros recursos para integrar, corromper e burocratizar as organizações políticas e movimentos sociais.

 

  É nesta situação que devemos encaminhar nossas lutas. As “esquerdas” tradicionais estão integradas na sociedade burguesa e são mais um ponto de apoio para a dominação capitalista. Qual é, nesta situação, o papel do Movimento Autogestionário? Cabe ao Movimento Autogestionário buscar acelerar o processo revolucionário e criar as condições favoráveis para a vitória da classe operária quando explodir uma situação revolucionária. Deve-se, portanto, radicalizar e dar um caráter de classe às lutas políticas na sociedade e, ao mesmo tempo, criar no interior da sociedade capitalista centros de contra-poder que inaugurem uma nova correlação de forças  que em uma situação revolucionária sirvam de ponto de apoio para a luta operária. 

 

  Esses centros de contra-poder devem ser instaurados em todos os lugares onde se expressam a luta de classes (fábricas, escolas, bairros, etc.), o objetivo da formação desses centros de contra-poder é fortalecer a posição da classe operária em relação ao poder do capital e do estado burguês. Outra tarefa é realizar uma luta constante contra a ideologia dominante. A luta cultural na sociedade capitalista contemporânea torna-se cada vez mais importante e, conseqüentemente, a criação de meios alternativos de produção e reprodução das idéias revolucionárias se torna necessária. 

 

  Portanto, a estratégia revolucionária na época atual apresenta como objetivo fundamental o aceleramento do processo revolucionário e a criação de condições favoráveis para a vitória do proletariado com o desencadeamento deste processo. Os meios para se realizar isto é uma intensa luta cultural e a formação de centros de contra-poder no interior da sociedade capitalista. Mas é necessário, além disso, saber articular a estratégia global do movimento operário com as estratégias específicas que devem ser elaboradas para cada um movimento social e local onde se realiza a luta de classes. No atual estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira é necessário elaborar estratégias específicas para o movimento camponês, ecológico, negro, das mulheres, estudantil, os movimentos sociais urbanos, etc., e articulá-las  com o movimento operário e sua estratégia global. 

 

  Estas estratégias específicas e estes movimentos sociais devem se articular com a estratégia global do movimento operário e juntamente com as forças revolucionárias formar um bloco revolucionário. A classe revolucionária de nossa época, o proletariado, juntamente com as classes e frações de classes potencialmente revolucionárias (campesinato, lúmpem-proletariado, etc.), os movimentos sociais(ecológico, negro, das mulheres, estudantil, etc.) e as forças revolucionárias, formam a composição social do bloco revolucionário que se complementa com o projeto político comunista, a autogestão social. Esse bloco revolucionário deve elevar o nível da luta de classes através do enfrentamento com o capital colocando um projeto alternativo de sociedade e radicalizar  as lutas sociais, além de formar centros de contra-poder no interior da sociedade capitalista e com isso reforçar a luta operária.  

 

  Entretanto, deve-se deixar claro qual é a relação que o Movimento Autogestionário deve ter com as instituições burguesas. O estado capitalista é a principal instituição burguesa e é ele que busca regularizar e controlar (através de leis, repressão, burocratização, etc.)todas as outras instituições existentes na sociedade capitalista. A tese da luta pela conquista do poder de estado é contra-revolucionária, pois o estado burguês segue a dinâmica do modo de produção capitalista, além de ser uma organização burocrática criada com o objetivo de sustentar a dominação burguesa. O estado não é um instrumento neutro que pode ser utilizado por qualquer classe para atender interesses diferentes. Ao contrário, ele é uma instituição burguesa  que foi criada para atender os interesses de uma classe  específica, a burguesia, e por isto só pode servir aos interesses dela.  

 

  Ao recordarmos o princípio básico do movimento comunista: “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, recordamos, ao mesmo tempo, que a libertação do proletariado não pode ser realizada por um grupo de golpistas que assumem o poder do estado burguês e doam a emancipação aos trabalhadores. São estes que, na sua luta direta e cotidiana, construirão uma nova sociedade e as instituições correspondentes a esta, a autogestão social. Isto significa que a luta revolucionária do proletariado não é pela conquista do poder do estado e sim pela sua destruição e pela construção da autogestão social.

 

  O estado busca controlar e regularizar todas as outras instituições sociais para dar-lhes um caráter burguês: as associações, os sindicatos, os partidos políticos, as escolas, etc., e também busca legitimar a sociedade capitalista e a si mesmo através da democracia burguesa. A democracia representativa tem como objetivo não só legitimar a dominação burguesa como também busca canalizar todas as lutas políticas e, assim, anular o seu caráter de classe e revolucionário. A contestação e a luta operária é institucionalizada (através da “representação”, embora tal “institucionalização”  seja limitada) e perde seu caráter de classe, legitimando ainda mais a dominação burguesa. 

 

  Portanto, a luta contra o estado capitalista é, ao mesmo tempo, uma luta contra a democracia burguesa. Todos os partidos políticos que elegem a democracia burguesa como palco da luta política assumem um caráter burguês, tal como deixa claro os exemplos históricos. O estado capitalista busca integrar os partidos políticos na sociedade burguesa através das regras da democracia representativa inscritas nas leis burguesas que regularizam o sistema parlamentar, o sistema eleitoral e o sistema partidário. Além das condições legais de participação na democracia burguesa, existem as condições determinadas pelas relações de produção capitalistas que colocam a necessidade de utilização do poder econômico, propaganda de massas, etc. A conjugação destes dois fatores coloca a democracia burguesa como o lugar de disputa de frações da classe dominante que serve apenas para legitimar a dominação burguesa.  

 

  Por conseguinte, a participação ou não-participação na democracia burguesa deve estar subordinada aos interesses históricos do proletariado. Se, em um determinado momento histórico, a participação puder colaborar com a luta direta dos trabalhadores, ela deve ser realizada. Entretanto, como é raro e difícil a democracia burguesa servir para o desencadeamento da luta operária, a posição da esquerda revolucionária deve ser combatê-la. 

 

  Quanto às outras instituições burguesas, elas também devem ser combatidas e algumas (escolas e universidades, por exemplo) devem ser consideradas como palco de luta pela formação de contra-poderes mas sem perder de vista que elas continuarão burguesas, ou seja, a formação de contra-poderes não muda o caráter de classe mas apenas inaugura uma nova correlação de forças no seu interior que destrói sua eficiência e serve de apoio ao combate dos trabalhadores na sociedade burguesa. Isto significa que discordamos da tese reformista que afirma ser possível haver uma “dualidade de poderes” em períodos não-revolucionários. O duplo poder só surge em períodos revolucionários e os contra-poderes formados poderão acelerar o processo revolucionário e com o desenvolvimento de tal processo surgirão poderes alternativos e aí sim surge a dualidade de poderes. A dinâmica das relações de produção capitalistas e a ação do estado burguês impedem a existência de uma dualidade de poderes em períodos não-revolucionários e aderir a tal tese é sucumbir ao reformismo. 

 

  A estratégia global do movimento operário tem como ponto fundamental a luta de classes na produção. É no local de produção que se dá a exploração dos operários e a valorização do capital. É no local de produção que se encontra a fonte do dominação do capital e sua negação. As diversas formas de resistência dos trabalhadores nas unidades de produção contra a exploração e a opressão dos métodos capitalistas de trabalho devem ser reforçadas até atingir o seu ponto máximo de radicalidade: a greve de massas. O desencadeamento da greve de massas deve receber o apoio das forças revolucionárias e de todos os movimentos sociais. A greve de massas deve generalizar-se e tornar-se greve nacional e deve radicalizar-se tornando-se greve de ocupação ativa e assim implementar a autogestão nas fábricas, ou seja, a dualidade de poderes. Neste momento, a guerra civil oculta transforma-se em guerra civil aberta e expande-se a formação dos coletivos de autogestão social, os conselhos de fábricas, conselhos de bairros, etc., e com o desencadeamento deste processo revolucionário coloca-se em prática novas relações sociais que são expressão de uma nova sociedade. O fim da guerra civil aberta ocorre quando se generaliza a autogestão e se destrói o poder burguês expresso no estado capitalista. A greve de ocupação ativa, que instaura a autogestão nas fábricas e empresas, inaugura novas relações de produção e a destruição do estado capitalista e isto significa a superação do principal aparelho de reprodução das relações de produção capitalistas e da contra-revolução.

 

  Portanto, a estratégia global do movimento operário é acirrar as lutas nas fábricas e empresas, enquanto os outros movimentos sociais buscam reforçar suas posições em outros locais de lutas sociais, até desencadear a greve de massas, a autogestão e a formação de conselhos revolucionários.

 

  As tarefas do Movimento Autogestionário e de todos os grupos revolucionários, são, no período revolucionário, as seguintes: 

 

- Defender a autonomização da classe operária e combater a burocratização sob quaisquer circunstâncias;

 

- Incentivar a autogestão e a formação de conselhos revolucionários e combater o estado capitalista e todas as organizações (inclusive os partidos de “esquerda” ou “revolucionários”) burocráticos que queiram dirigi-los;

 

- Lutar pela coletivização e autogestão dos meios de produção, inclusive no campo, combatendo qualquer proposta “distributivista” ou burocrática;

 

- Desencadear uma intensa luta por uma revolução cultural visando colaborar com uma produção cultural coerente com as novas relações sociais, combatendo, portanto, o racismo, o sexismo, etc.

 

- Oferecer apoio ao desencadeamento e vitória do movimento revolucionário em todos os países do mundo.

 

  Com o final do processo revolucionário e com a  implantação da autogestão social, o Movimento Autogestionário se auto-extinguirá e a participação dos seus militantes ocorrerá nos coletivos de autogestão social. 

 

 

MOVIMENTO AUTOGESTIONÁRIO

 

                            Goiânia, 30 de março de 1994.

 

 

 

 



 

 

[1] Goiânia é uma cidade de mais de um milhão de habitantes, e a região da grande Goiânia, possui dois milhões de habitantes. Mas não é uma cidade industrial, ela é a capital do Estado de Goiás, seu centro administrativo e comercial, e não possui um grande número de indústrias. A cidade mais industrializada do Estado é Anápolis, cidade vizinha com uns 400 mil habitantes, que fica entre Goiânia e Brasília. (Nota extraida da carta de Nildo.)

 

[2] Tal como definido no artigo “Exclusão social ou Lumpemproletarização”, Revista Letralivre, lumpemproletariado seria os indivíduos que compõe o exército industrial de reserva.

 

[3] PCdoB: Partido Comunista do Brasil, stalinista-reformista, hegemônico no movimento estudantil em quase todo o país nesta época.

 

     CGB: Coletivo Gregório Bezerra, dissidência do PCB – Partido Comunista Brasileiro, que mudou várias vezes de nome: PLP – Partido da Libertação Proletária; PFS – Partido da Frente Socialista; e depois se uniu com as tendências expulsas ou saídas do PT e formou o PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores – Unificado, hegemonicamente trotskista. Alguns de seus integrantes saíram pouco depois e formaram o MLS – Movimento de Luta Socialista, que, posteriormente, se juntou aos novos dissidentes do PT e alguns do PSTU e formaram o PSOL – Partido Socialismo e Liberdade, reformista à esquerda do PT.

 

[4] UNE: União Nacional dos Estudantes, entidade de “representação” dos estudantes universitários a nível nacional, na época hegemonizada pelo PCdoB.

 

 

[1] É claro que em Marx existe o conceito de natureza humana mas ela não é uma entidade biológica ou metafísica, como para muitos. A natureza humana é condicionada pelas relações sociais e se expressa de forma diferenciada em cada época e sociedade. Ela se manifesta de forma específica no conjunto das relações sociais específicas de cada sociedade. Daí a afirmação de que o homem é um “ser social”. A “essência humana”, para Marx, é a “essência real efetiva” (veja a sexta tese sobre Feuerbach), ou seja, a sua manifestação prática que só se tornará livre com o advento do comunismo. Isto quer dizer que o comunismo não cria um “homem novo”, como se costuma dizer, mas liberta o homem atual de sua alienação fazendo dele um homem livre e, portanto, expressão desalienada da essência humana. Resolve-se, assim, o antagonismo entre homem e sociedade e entre homem e natureza. Desta forma, a natureza humana expressa o conjunto das potencialidades humanas, constituídas no processo histórico-social, e formando um ser omnilateral, que é obliterado pelas sociedades de classes, fundadas na divisão social do trabalho e na especialização. Resumidamente, poderíamos dizer que a natureza humana é a liberdade, em sentido amplo (Marx, 1980b).

 

[2] O modo de produção, nas sociedades de classes, é um modo de relação de classes, o que significa um modo de luta de classes, nas sociedades classistas (Viana, 1997), mas aí se trata das lutas de classes cotidianas e o elemento ativo se refere às lutas revolucionárias, extra-cotidianas, isto é, nos momentos de sua radicalização. O modo de produção é considerado, em suas definições mais simples, como sendo uma "soma" ou "combinação" de relações de produção e forças produtivas. No entanto, esta concepção vê apenas a diferença e não consegue perceber a unidade dos dois conceitos e ao fazê-lo permite supor um desenvolvimento autonomo e independente das forças produtivas, esquecendo-se que elas constituem trabalho humano acumulado e - nas sociedades de classes - controlado pela classe dominante e que não possuem nenhuma autonomia, sendo apenas a forma revestida e aparente da dominação de uma classe sobre outra. Sendo assim, o que constitui e caracteriza um modo de produção são as relações de produção.

 

[3] Cf. Também o prefácio de Engels à edição alemã de 1883.

 

[4] Esta parte tem edição brasileira, cf. MARX (1985).

 

[5] A Introdução Geral de 1857 era parte integrante dos Grundrisse e foi publicada separadamente por Karl Kautsky em 1903 enquanto que os Grundrisse foram publicados pela primeira vez em 1939.

 

[6] Aqui caberia uma outra crítica a Althusser, que é sua confusão em torno do termo ideologia. Em outros escritos, Althusser irá colocar a ideologia como falsa consciência, tal como Marx, mas neste texto ele confunde ideologia com teoria ou visão de mundo.

 

[7] Para se ter uma visão geral de quem são os autores partidários do “jovem Marx” e os partidários do “Marx da maturidade”, além daqueles que defendem a continuidade de seu pensamento, cf.: Mandel (1968); Fromm (1983); Guérin (1969).

 

 

[1] Pannekoek, Anton. A Luta Operária. Coimbra, Centelha, 1977, p. 73.

 

[2] Rosemberg, A. História do Bolchevismo. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1989, p. 275.

 

[3] Cit. por: Jerome, W. & Buick, A. A Natureza da URSS. Porto, Afrontamento, 1977, p. 219.

 

[4] Barrot, Jean. O Movimento Comunista. Lisboa, Etc, 1975, p. 258.

 

[5] Cf. Bettelheim, Charles. A Luta de Classes na União Soviética. vol. 1. 2a. edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

 

[6] Cf. Bernardo, João. Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Porto, Afrontamento, 1975.

 

[7] Cf. Lênin, W. Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1988.

 

[8] Cf. Volin. A Revolução Desconhecida. São Paulo, Global, 1980; Trótsky, Leon. A Revolução de 1905. São Paulo, Global.

 

[9] Cit. por: Medvedev, Roy. Era Inevitável a Revolução Russa? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 49.

 

[10] Cf. Brinton, Maurice. Os Bolcheviques e o Controle Operário. Porto, Afrontamento, 1975.

 

[11] Cf. Machnó, Nestor. A "Revolução" Contra a Revolução. São Paulo, Cortêz, 1988.

 

[12] Cf. Kollontai, Alexandra. A Oposição Operária. 1920-1921. São Paulo, Global, 1980.

 

[13] Cit. por: Arvon, Henri. A Revolta de Kronstadt. São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 43.

 

[14] Geralmente se fala em "coletivazação forçada" mas isto nao é correto, pois "um kolkhoze, ou aquilo que deveria ser uma propriedade coletiva, é um organismo que, pela sua própria natureza difere essencialmente de uma associação cooperativa. Na realidade um kolkhoze é um organismo estatal que tende a transformar os camponeses em operários agrícolas que cumprem suas tarefas por medo de sanções penais" (Mett, Ida. O Camponês Russo Durante e Após a Revolução. Porto, A Regra do Jogo, 1975, p.).

 

[15] Marx, Karl. A Miséria da Filosofia. 2a. edição, São Paulo, Global, 1989, p. 143.

 

[16] "Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De forma de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o as suas últimas consequências" (Marx, K. - Contribuição à Crítica da Economia Política. Segunda Edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 24 - 25).

 

[17] Cf. Bettelheim, Charles. A Luta de Classes na União Soviética. Vol. II. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.

 

[18] Tragtenberg, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. 3a. edição, São Paulo, Moderna, 1989.

 

[19] Cf. Borsi, Emil. Formação das Democracias Populares na Europa. Lisboa, Avante!, 1981.

 

[20] Claudin, Fernando. A Oposição no "Socialismo Real". Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983, p. 287.

 

 

[1] Cf. Guillerm, A. e Bourdet, Y. - Autogestão: Mudança Radical, RJ, Zahar, 1976.

 

[2] Brinton, M. - Os Bolcheviques e o Controle Operário, Porto, Afrontamento, 1975.

 

[3] Guillerm, A. e Bourdet, Y. - Autogestão: Mudança Radical, RJ, Zahar, 1976, págs. 19-20.

 

[4] Cit. por: Poulantzas, Nicos - Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1988.

 

[5] João Bernardo utiliza a expressão “lei fundamental”, mas, como a idéia de lei é questionável do ponto de vista da dialética materialista, utilizamos a expressão hegeliana de determinação fundamental (Bernardo, João - Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista, Porto, Afrontamento, 1975.).

 

[6] Marx, K. e Engels, F. - O Manifesto Comunista; in: Lasky, H. J. (org.) - O Manifesto Comunista de Marx e Engels, 2ª edição, RJ, Zahar, 1978.

 

[7] Marx, K. - A Guerra Civil na França, São Paulo, Global, 1986.

 

[8] Marx, K. - Crítica ao Programa de Gotha; in: Marx, K. e Engels, F. - Obras Escolhidas, 2ª edição, São Paulo, Alfa-Omega, S/D. pág. 213.

 

 

 

[1] Reich, Wilhelm - O Que é a Consciência de Classe?, Lisboa: Textos Exemplares, 1976, p. 23.

 

[2] Rousseau, Jean-Jacques - Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Brasília/São Paulo: Edunb/Ática, 1989, p. 49.

 

[3] Rousseau, J-J - ob. cit., p. 84.

 

[4] Cf. Viana, N. A - Questão dos Valores, Revista Cultura & Liberdade, Ano 02, Número 02, abril de 2002.

 

[5] Sobre isso: Alberoni, F. - O Erotismo, São Paulo: Círculo do Livro.

 

[6] Reich, W. - ob. cit., p. 19.

 

(*) Moeda alemã da época (século 19).

 

[7] Cit. Por: Lukács, George - Ontologia do Ser Social. Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, São Paulo: Lech, 1979, p. 13.

 

[8] Reich, W. - ob. cit.; Gramsci, A. - Concepção Dialética da História; 7ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

 

 

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