Análise do filme "Rasgando a carne", de Danis Tanovic
(Rosângela Scheithauer)
Quem começou a guerra? Foram vocês, grita Ciki, o iugoslavo bosna a Nino, serbo.
Em sua voz não há sombra de dúvida, como não há naquela de seu inimigo que também
grita: Vocês começaram a guerra!
No filme de Danis Tanovic não há um lugar superior, uma razão jurídica ou moral
que responda aquela pergunta. Há somente a voz muda e solitária na boca de um
fuzil que repetidamente é apontada contra o outro, aquele sim tem "razão". De
certo modo chega a ser até sarcástica essa "No man`s Land" (Bosnia, Eslovênia,
Itália, França, Bélgica e Grã Bretanha). Se fosse apenas irônico se limitaria
a mostrar a guerra tal qual mostram seus ideólogos, porém revertendo a apologia
em julgamento. Se por outro lado fosse grotesco, como de fato foi, deformaria
e ridicularizaria certas situações.
O filme "Rasgando a carne", de Tanovic (como
sugere o étimo grego do latim sarcasmo), é essencialmente sarcástico e não apenas
no sentido figurativo. Por um lado, afunda a lama de uma mágoa radical no corpo
de lugares comuns e da certeza com a qual somos habituados a pensar na guerra.
Po outro lado é a carne em sentido pleno e material no qual tanto cenário quanto
regia nos fazem sentir na pele os sofrimentos da guerra até chegarmos à aflição.
O centro narrativo do "No man`s Land" é uma briga em um espaço limitado entre
outras duas brigas onde os combatentes se afrontam no ódio. Trata-se, portanto,
de um espaço residual negativo: não é bosna nem servo. Do ponto de vista da
aparência política é um espaço inexistente. Nenhuma bandeira lhe dá um sentido
e justamente por isso na sua cavidade se faz evidente o trabalho da morte. Em
outras brigas pode-se dar tantos outros nomes à morte, todos grandes como :
heroismo, história, futuro. Indivíduos que, distantes de slogans e entusiamos,
permitem que seus olhos e ouvidos unam-se mais livremente para ver e sentir
o medo. Respeitando sua potência, ambos inimigos estão igualmente em posição
de chequemate. São dois medos opostos, porém semelhantes, que se descobrem um
ao lado do outro na terra de ninguém.
Com evidente surpresa Ciki e Nino pouco
a pouco começam a enxergar o verdadeiro sentido da guerra. Por outro lado,
ambos se assemelham como seres humanos. Aquilo que um faz ou diz o outro também
faz. Para eles há uma só escolha: ou aceitam que são dois indivíduos em pleno
sentido, cada um reconhecendo o outro pelo mesmo motivo que desejam ser reconhecidos
ou fecham-se um
ao outro, não se permitindo ver ou sentir como indivíduos e sim como monstros
e inimigos. Ciki e Nino não estão sozinhos nesta terra de ninguém. Junto a eles
existe um terceiro indivíduo cuja situação é bem mais particular que a deles.
Trata-se de Cera, deitado sobre uma mina pronta para explodir, livre apenas
pelo seu peso. Nesta situação o checkmate é ainda mais evidente, mais físico.
Apesar de ser bosna como Nino, Cera não pode permitir-se de dividir até o fim
os entusiasmos nacionalistas. Está demasiadamente exposto à morte para para
extingüir o medo com o álibi do ódio. Cera aprofunda-se cada vez mais ao nada,
ao tormento e à dilaceração de sua própria carne. Ciki e Nino não superam o
ódio e se dão um ao outro a morte, ouvindo-se somente a voz de cada um defendendo
sua própria razão. Ainda vivo, mas de fato já morto, o companheiro deles permancece
só extendido sobre a mina. Do alto e focalizando o campo, a máquina filmadora
o enquadra em uma cena comovente de horror infinito. Fica conosco somente a
"voz" da filmadora. A pergunta a qual se pode responder com todo direito e razão
não é quem iniciou a guerra, mas de quem agora é a vez de morrer.
Não recomendo o filme a quem não tem nervos!
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