Todos dias, a menina iraquiana acordava e olhava da janela de sua casa para ver
se avistava o pai. Ele saiu numa tarde de outubro, há muitos meses, para servir
o ditador. O mundo ameaçava seu país e seu país insistia na sua auto-suficiência,
ainda que seus filhos não tivessem mais alimentos, ainda que não lhe fosse mais
permitida a venda do petróleo abundante em suas terras.
Parece que Deus definitivamente havia se cansado de suas origens. Por um lado,
a carnificina entre judeus e palestinos, de outro, soberanos ditadores que impunham
a miséria às suas populações. Em especial, o homem que alguns até arriscavam dizer
que havia sido citado em centúrias de Nostra Damus.
Para a população civil, pobre e ignorante, a idolatria por um louco não é coisa de
se espantar. O sangue e a alma por uma alucinação. Os ditadores são assim: idealizam
um mundo perfeito para os que estão sob seu guarda-chuva e dizem ser capazes da vitória,
mesmo quando o óbvio mostra o contrário.
Entre ameaças e contra-ameaças, entre ações terroristas e retaliações, um dia,
o mundo ocidental resolveu cumprir suas promessas. Representado pela besta ferida e
pelo seu fiel escudeiro, o Ocidente invadiu a antiga terra das mil e uma noites. Mesmo
com um dedo de poeira do deserto acima do nariz, o ditador insistia em afirmar que estava
próximo da vitória. Os soldados americanos e ingleses, por cada cidade que passavam,
defloravam virgens e matavam os que queriam lutar por seu lugar.
Os filhos do ditador não existem mais, o ditador, mesmo que queira, também não. No
rastro da destruição, a perda da identidade, o roubo, a violação. A menina iraquiana
ainda acorda e olha pela janela de sua casa para ver se seu pai finalmente aparecerá.
Olha para a cáfila, mas só avista ilusões. Mesmo que lhe digam “seu pai está morto”,
ela não deixará repetir o gesto até que um dia lhe mandem cobrir o rosto com um véu
para que possa servir a um homem e a uma religião.