Cumpri minha missão ate´aqui, e como foi comprida, enorme, cansativa. Dei
de tudo, para todos, quase nada me sobrou, nem o ego ficou. E agora sinto
o frio deste lençol branco, límpido, corpo erguido nesta cama, de todos,
para todos, de outros, quando eu sair.
Quando menor, via no corredor a foto de uma moça pedindo silêncio, morena,
tez clara, avental, uma mãe distante. Quantos anos se passaram. Muitos.
Muitos anos e gentes se passaram e passaram, como eu passarei. Já estou
bem perto deste tal passamento, pois estou aqui, agora. Sou eu à deitar,
é meu filho quem trás o seu para ver os cartazes no corredor. São eles
quem vejo entrando porta adentro, sorriso amarelo, sensação de perda.
Mas não estão chegando, não. Enganei-me novamente. É, sim, o enfermeiro,
esqueci tê-lo chamado. Solícito, acomoda minhas costas, ajeita meu travesseiro
( meu, não, de todos, todos os próximos, de outros, que passarão e dos
passados ). Sorri mais amarelo que meu filho e me toca como se fosse um objeto.
E sou.
Não sou gente, sou algo à medir a temperatura, algo com 37°, com veias
firmes e pressão regulada. Sou o efeito positivo dos remédios. Sou gente
quando ele me chama de vô em sua pequena capacidade de me ver como pessoa,
ser, amigo, parceiro. Mas, fazer o que?! Na verdade, sequer consigo sorrir
menos amarelo que ele.
Quando adolescente, li Quintana, belas poesias. Lembro agora de suas últimas,
feitas no hospital, em seus últimos fios de vida, onde descrevia a frieza...
deste quarto. Não falava do dele, falava do nosso, aliás, de todos, tão iguais,
tão perpétuos.
Há cerca de duas semanas me vi ao espelho, do banheiro, tive forças. Tantos
escritores já haviam me dito sobre ver refletido uma pessoa diferente da interior.
É verdade, lá estava ele, o velho, carcaça pura, puro ossos, puro poço salobre.
Como tal, escuro, frio, sem novidades, imprestável. Não, imprestável, não, sirvo
para garantir o salário do enfermeiro, que tão silente esteve nestes segundos
de tratos.
Partiu para sua cadeira, inerte, também sem vida, diante da tv, onde via a
remontagem do "Vila Sésamo" para rir perante personagens infantis, meus personagens
infantis. Ainda lembro de um deles, Caco. Caco sou eu, agora.