Edição nº10 - 03/09/99

Vidas Secas

Profa. Esther Rosado

Graciliano Ramos

  • Pequena Biografia:
  • "Aliás, o mais brasileiro dos livros do senhor Graciliano Ramos é, sem dúvida, a novela Vidas Secas, publicada em 1938." ( Álvaro Lins)

     

    Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, nas Alagoas, em fins de outubro de 1892. Lá, passou sua infância e parte da adolescência, repartindo-se, com a família, entre as cidades de Buíque, Viçosa e Palmeira dos Índios. Primeiro dos quinze filhos, Graciliano foi sempre visto pela família como um sujeito difícil, taciturno e introspectivo.

    Fez os estudos secundários em Maceió, sem, no entanto, cursar nenhuma faculdade. O pai vivia do comércio e o filho mais velho foi aventurar-se: esteve, por breve período, no Rio de Janeiro, onde por , volta de 1914, trabalhou como revisor e redator nos jornais Correio da Manhã e A Tarde.

    Mas , ao saber que três de seus irmãos tinham morrido de febre bubônica, torna ao Nordeste e passa a ser jornalista, fazendo política também. Foi prefeito de palmeira dos Índios entre os anos de 1928 e 30. É dessa época o seu primeiro romance ( Caetés, 1933);

    De 1930 a 1936 vive em Maceió, dirigindo a Imprensa e a Instrução do Estado de Alagoas. E é de março de 36 a janeiro de 1937 que vive os mais difíceis dias de sua vida. Acusado de subversivo e comunista, passa dez meses de prisão em prisão, sem saber do que o acusam, sem sequer ser ouvido em depoimento ou processado.

    Desse tempo terrível, nascerá mais tarde Memórias do Cárcere, um relato que soma a angústia de existir, o medo e a inquietação. Muda-se para o Rio de Janeiro. Seus romances, histórias para crianças e artigos passam a ser reconhecidos como o maior legado literário desde Machado de Assis.

    Em 1945, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro e, em 1952, viajou para a Rússia e países comunistas; o que presenciou nessa peregrinação está contido num outro livro: Viagem(1954).

    Em 1953, morre no Rio, vítima de câncer.

    Suas obras já foram traduzidas para o russo, francês, inglês, alemão. E, em 1964, o romance Vidas Secas ganhou a versão cinematográfica pelas mãos de Nélson Pereira dos Santos.

  • Obras:
  • Romances:

    Caetés ( 1933)

    São Bernardo ( 1938)

    Angústia ( 1936)

    Vidas Secas ( 1938)

     

    Conto:

    Insônia ( 1947)

    Memórias:

    Infância ( 1945)

    Memórias do Cárcere ( 1953)

    Viagem ( 1954)

    Linhas Tortas ( crônicas, 1962)

    Viventes das Alagoas ( 1962)

    Literatura Infantil:

    Histórias de Alexandre ( 1944)

    Dois dedos ( 1945)

    Histórias incompletas ( 1946)

    III. O romance Vidas Secas

    É largamente conhecida a história da carta que Graciliano escreveu, em 1944, a João Condé, para uma coluna que o mesmo mantinha na revista O Cruzeiro, explicando a construção do livro Vidas Secas, da qual retiramos um trecho:

    "... no começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de Sinhá Vitória, meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos..."

    Lembranças.

    Graciliano narra a João Condé que escreveu em primeiro lugar o capítulo "Baleia", o nono, imaginando apenas reduzir seu trabalho àquele pequeno conto, a morte do animal. Depois, pôs-se a narrar "Sinhá Vitória" — o quarto capítulo-, após o que veio "Cadeia", o terceiro.

    Aos poucos, lembranças que vinham da vida, da sua própria, escreveu o restante dos treze capítulos que, aos, poucos, tomaram a forma definitiva de seu único livro cujo tema é o Nordeste e seus problemas, a seca que tange as pessoas para longe, que as transforma em bichos esfomeados e sedentos.

    Lembranças.

     

    1. A estrutura da obra:

    Vidas Secas, como já dissemos, foi escrita em 13 capítulos, numa linguagem "seca e enxuta", tipicamente nordestina, tipicamente de Graciliano Ramos.

    Até certo ponto, os capítulos podem ser lidos separados uns dos outros, como se fossem pequenos contos, destacáveis do corpo da narrativa maior, onde estão enfeixados. No entanto, ligam-se uns aos outros pela temática: uma família de nordestinos, suas dificuldades, desgraças cotidianas.

    Aparentemente, é, daquele autor, o romance mais fácil de ser lido ; tanto se pensa assim que os professores costumam exigi-lo como leitura na quinta ou sexta séries do primeiro grau. No entanto, é engano. É romance difícil, escrito não apenas como protesto para que os políticos, ou os brasileiros em geral, pudessem voltar seus olhos para o drama dos nordestinos, mas, sobretudo, é reflexão. Não a de um narrador típico, opinático, muito freqüente entre os da década de 30; porém, Vidas Secas é um canto de amor ao homem cheio de coragem e teimoso, metonímia da qual se revestem o vaqueiro Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos.

    "(...) A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário."(p. 52)

    "Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos — exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas." ( p. 55)

     

    O foco narrativo do romance é de terceira pessoa, com narrador onisciente, o único romance em terceira pessoa escrito pelo autor. Portanto, fica claro que haverá ali abundância de discursos indiretos livres:

    Observe:

    "Lembrou-se de Seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão, o mais arrasado era Seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: - "Seu Tomás, vossemecê não regula." (p. 57)

    "Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?

    Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?"( p. 58)

    "As contas do patrão eram diferentes, arranjadas a tinta e contra o vaqueiro, mas Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrão queria enganá-lo. Enganava. Que remédio? Fabiano, um desgraçado, um cabra, dormia na ceia e agüentava zinco no lombo. Podia reagir? Não podia. Um cabra. Mas as contas de Sinhá Vitória deviam ser exatas. Pobre de Sinhá Vitória. Não conseguiria nunca estender os ossos numa cama, o único desejo que tinha. Os outros não se deitavam em camas? Receando magoá-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo fosse um sonho. Não poderiam dormir como gente. E agora iam ser comidos pelas arribações."(p. 159)

    Observação: É possível verificar o Discurso Indireto Livre quando não se distinguir entre fala do narrador e fala da personagem. Dada a intimidade que se registra entre ambos, principalmente nesse romance, cujas aproximações são tipicamente psicológicas, a personagem vem à flor do texto, com sua intimidade, pensamentos, sonhos, lembranças.

    Fabiano ganha esta dimensão quando emerge do fundo da narrativa e vem, misturando suas falas com as do narrador, numa espécie de simbiose estranha, mas absolutamente inesquecível.

    Ambos ásperos; no entanto o narrador dá passagem a ele, soberano homem do sertão, nem herói nem tão-somente sertanejo. Mas alma, ser pleno de sabedoria feita de provas e aflições.

    Tempo narrativo:

    O tempo narrativo de Vidas Secas medeia duas secas. A que traz a família para a fazenda e a que a leva para o Sul. No entanto, é preciso observar que o tempo é, no mais das vezes, psicológico.

    Espaço:

    É o sertão do Nordeste, qualquer lugar onde haja seca, descrito com precisão pelo narrador.

    Graciliano: um estilo enxuto e econômico

    Leia o que o crítico Álvaro Lins escreveu sobre Vidas Secas:

    " Aliás, o mais brasileiro dos livros do Sr. Graciliano Ramos é sem dúvida a novela Vidas Secas , publicada em 1938. revelaram-se nesta obra algumas das melhores qualidades do seu autor, ausentes no que escrevera antes. Antes, em S. Bernardo e Angústia, a sua atitude humana era quase simplesmente de sarcasmo e revolta egoísta. Em Vidas Secas, ele se mostra mais humano, sentimental e compreensivo, acompanhando o pobre vaqueiro Fabiano e sua família com uma simpatia e uma compaixão indisfarçáveis. Aliás, não será significativo e explicativo a este respeito que Vidas Secas seja a sua primeira obra de ficção em que a pessoa encarregada de narrar a história não é um personagem, mas o próprio romancista? Não será isto um sinal de que antes deixava os personagens entregues à própria sorte, enquanto agora se identifica com os desgraçados nordestinos de Vidas Secas?

    É uma novidade desta quanto à forma: a narrativa em terceira pessoa, com o autor a movimentar diretamente os seres da sua criação. Contudo, tecnicamente Vidas Secas apresenta dois defeitos consideráveis. Um deles é que a novela, sendo construída em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança. Cada um deles é uma peça autônoma, vivendo por si mesma, com um valor literário tão discutível, aliás, que se poderia escolher qualquer um, conforme o gosto pessoal, para as antologias. O outro defeito é o excesso de introspecção em personagens tão primários e rústicos, estando constituída, quase toda a novela, de monólogos interiores. A inverossimilhança, neste caso, não provém da substância da novela, mas da técnica. Se houvesse maior proporção entre os episódios e monólogos, entre a vida exterior e a interior dos personagens, este problema da ficção teria sido resolvido de maneira mais perfeita. Porque, no mais, nenhuma inverossimilhança, nenhum defeito fundamental será encontrado em Vidas Secas . Tudo o que o romancista, nos monólogos interiores, atribui a Fabiano, sua mulher e seus filhos, são pensamentos e reflexões à altura do que lhes poderia ter ocorrido realmente. Eles pensam, imaginam e sentem que seriam pessoas capazes de pensar, imaginar e sentir. O romancista caiu numa inverossimilhança quanto à técnica de disposição dos monólogos, mas se salvou dessa falha no que diz respeito ao conteúdo deles. Por outro lado, a falta de unidade formal, acima assinalada, não se verifica na parte do assunto. Na substância, a novela apresenta uma perfeita unidade, uma completa harmonia interior. O drama do primeiro capítulo repete-se no último; e tudo o mais que se encontra entre eles constitui uma matéria de ligação entre os dois episódios semelhantes.

    Além de ser o mais humano e comovente dos livros de ficção do Sr. Graciliano Ramos, Vidas Secas é o que contém maior sentimento da terra nordestina, daquela parte que é áspera, dura e cruel, sem deixar de ser amada pelos que a ela estão ligados teluricamente. O que impulsiona os seres desta novela, o que lhes marca a fisionomia e os caracteres, é o fenômeno da seca. No primeiro capítulo, Fabiano e sua família são retirantes, em busca de um novo pedaço de terra. Alojam-se como servidores de uma fazenda e aí vamos conhecê-los através de alguns episódios e muitos monólogos. A cada figura da novela — Fabiano, Vitória, sua mulher, o menino mais velho e o menino mais novo — o romancista dedica um capítulo, que é como que um retrato de caracterização, em que o próprio personagem se apresenta ao leitor. Da família, também faz parte a cachorra Baleia, e o capítulo que lhe é dedicado se acha revestido de uma humanidade talvez maior que a dos seres humanos, sendo esta uma das páginas mais famosas do Sr. Graciliano Ramos. Em Vidas Secas, no entanto, nenhum capítulo me agrada mais do que "Festa", em que, ao poder descritivo e à capacidade de visualização, o ficcionista ajuntou uma sutileza de tons de de notas psicológicas realmente admirável; ou ainda "Inverno", quadro de uma família em noite de frio e miséria. Por fim, também a nova fazenda é atingida pela seca; e Fabiano decide partir, numa outra etapa do seu destino de movimentar-se sempre como um judeu errante em busca de uma nunca atingida terra da promissão. O final do livro é uma retirada, como o princípio fora uma chegada, dentro de uma fatalidade que o romancista sugere ao dizer que eles "dali se afastavam rápidos, como se alguém os tangesse."

    Parece-me que Vidas Secas representa ainda uma evolução na obra do Sr. Graciliano Ramos quanto ao estilo e à qualidade estritamente literária. Em nenhum outro de seus livros encontramos tanta beleza e tanta harmonia na construção verbal. E somente aqui este autor, de espírito tão pouco poético, consegue atingir às vezes um estado de poesia. Foi também em Vidas Secas que o Sr. Graciliano Ramos pela primeira vez se libertou por inteiro de algumas quedas no mau gosto ou na vulgaridade de expressão, com que nos surpreende, tão freqüentemente, em S. Bernardo e até em Angústia. Afinal, se Angústia é a sua maior realização como ficcionista, Vidas Secas é a obra que nos oferece toda a sua medida como escritor, juntamente com Infância. (Álvaro Lins, Prefácio ao livro Vidas Secas, Martins Editora, 1973)

    Romance regionalista da década de 30, mais acertadamente seu nome seria neo-realista ou romance de tensão crítica, uma vez que a abordagem à personagem passa, orbrigatoriamente, pelo meio social em que habita a personagem e, ainda, a maneira como ela faz parte da sociedade onde vive e quais suas relações com ela.

    Mas o ficcionista ultrapassa qualquer uma dessas classificações ocasionais. Fabiano , Sinhá e seus filhos não são apenas seres nordestinos: são muito mais criaturas universais, cidadãos do mundo ali representado metonimicamente. Aparentemente distantes, intocáveis, mal desenhadas como humanos, guardam dentro de si mesmos muito de bicho, muito de gente, muito de ternura, muito de humanidade:

    "A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso , salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.

    - Anda, excomungado.

    O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca parecia-lhe como um fato necessário — e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

    Tinham deixado os caminhos, cheios de espinhos e seixos, faziam horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.

    pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se , agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis."( p.45)

     

    Fabiano é, na verdade, não um herói que a narrativa exige, mas um anti-herói que sua própria alma acolhe. Duro como a própria terra que nunca o acolhe nem abriga, é mesmo o bicho com o qual se designa. A linguagem acompanha isso:

    "Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força."(p. 46)

    E embora seja um branco de olhos claros, compara-se aos animais:

    "Pisou com firmeza o chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar, regalado.

    - Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

    Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se , encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

    Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a , murmurando:

    - Você é um bicho, Fabiano."( p. 53)

    A linguagem, como se vê, é enxuta, econômica de adjetivos, ressecada feito o homem a que nomeia, feita a natureza que o cerca, ao destino cruel que o espreita.

    O romancista é impar: evita propositalmente os diálogos, porque os seres que habitam esse universo são rudes demais para se exprimirem na forma de fala. Eles apenas apontam, indicam com os beijos e resmungam. Usam interjeições, gestos. Pertencem, pois, às suas próprias vidas secas, ao mundo de espinhos e seixos, de mandacarus e arbustos retorcidos. O mundo como impossibilidade. Por isso, na obra podemos observar os temas:

    a marginalização do sertanejo

    a submissão

    a incomunicabilidade com os opressores

    a impotência do homem diante dos desígnios da natureza

    a solidão dos seres

    a miséria física e intelectual

    a revolta interior do injustiçado

    a zoomorfização

    a incapacidade da compreensão do mundo

    a consciência do existir

    Graciliano Ramos valoriza o psiquismo das suas personagens, capta-lhes, sobretudo na figura de Fabiano, as dores e desejos, seus amores e ódios, suas torpezas e vícios humanos, dando-lhes contornos íntimos profundos e firmemente delineados.

    É, entre todos os da sua geração, o mais perfeito e genial e Vidas Secas não é apenas um pequeno romance desmontável, ou uma novela; Vidas Secas é antes um repositório de almas, um universo de criaturas miseráveis e corajosas, ímpares na sua constituição.

    Cada coisa, ser ou fato é expressivo, complexo, e, quando desnudado, traz à tona todo o sofrimento e dor típicos de todos os seres humanos.

    Resumo do texto:

    A presente narrativa inicia-se com um capítulo chamado "Mudança":

    "Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.

    Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça; Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra baleia iam atrás."

    Eis aí os componentes da nossa história: uma família de sertanejos nordestinos que migram à procura de um lugar para ficar, em plena seca.

    Aparecem, de repente, os juazeiros, uma fazenda abandonada. E, assim que lá chegam, começa a chover. Fabiano instala-se com a família na casa, mas aparece o patrão, que quer expulsá-lo. Fabiano apresenta-se como vaqueiro, o patrão entrega-lhe os ferros de marcar gado ( símbolo também, esta passagem, de marcar-se a si mesmo como gado, de deixar marcar-se como um desses animais...)

    Toda a história desenrola-se entre duas secas, a que os tange até ali e a que os levará em direção ao sul.

    Seres animalizados, perdidos dentro de si mesmos, estão agora arranchados na fazenda, que prospera. Enquanto Sinhá Vitória faz contas ( era uma esperta mulher), Fabiano aceita as do patrão e é sempre furtado por ele. Fala pouco, quase nem fala, mais murmura e gestua do que fala.
    Na cidade, um dia, quando vai à feira, é preso pelo soldado amarelo que, a fim de furtá-lo, joga com Fabiano o 31.

    Sinhá e Fabiano criam os meninos e neles já desponta a vontade de ser como o pai: vaqueiros. Há no romance uma personagem não acional: Seu Tomás da bolandeira, ex-patrão de Fabiano, homem bom e educado, que pedia "por favor"e agradecia. Sinhá Vitória sonha uma cama como a de seu Tomás; tal cama, na verdade, tão diferente da cama de vara onde dormiam, é o símbolo do homem não-nômade, o símbolo do que os brancos, com dinheiro, podiam comprar.

    Todo o romance dedica-se a visitar Fabiano pelo lado de dentro, seus pensamentos, frustações e medos nos são revelados. Para isso, o narrador também se vale das descrições:

    "Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio."

    "Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o."(115)

    Pequenas alegrias cercam a família. Até que sobrevém nova seca. Esta, os alcança aos poucos, até que, rendidos, voltem a pensar em ir embora. Fabiano sabe que Sinhá Vitória tem razão: os meninos precisam aprender a ler, deve a família ir para o Sul, em busca de novas possibilidades.

    É o capítulo "Fuga"que fecha a narrativa. Não sabemos para aonde vão, sabemos que irão embora, buscando o lugar no mundo áspero como a paisagem sem chuva.

    Os capítulos, um a um:

    1. Mudança
    2. O leitor vai encontrar uma família de retirantes sendo-lhe apresentada: Fabiano e sua família fogem da seca: Sinhá Vitória carrega o menino mais novo, na cabeça leva o baú de folha de zinco e, em cima dele, o papagaio. O menino mais velho caminha, cansado, e a cachorra Baleia vai à frente, desvendando caminhos.

      Fabiano, de alpercatas e aió atravessado no peito, leve espingarda e apetrechos. Estão há horas caminhando sob o sol, exaustos. têm pra comer apenas uma cuia de farinha, precisam arranjar um lugar para ficar.

      O menino mais velho sucumbe de cansaço, o pai pensa abandoná-lo, mas se apiedado daquele pequeno ser, prosseguem. Tinham comido o papagaio, símbolo da fala e da comunicação:

      "Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.

      Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça e os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal."

      E aparecem os juazeiros, a fazenda abandonada. Sinhá Vitória acomodou os filhos debaixo das árvores, Baleia caçou um preá e o trouxe aos pés dos donos. Num ramo de alecrim, ao fogo aceso, a mulher arranjou o que comer. Baleia parece gente, olhos humanos, responsabilidade de cuidar dos meninos.

      "Aquilo era caça mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares."

      Finalmente, choveu.

      Fabiano pensa em seu Tomás da bolandeira, homem justo e bom, com certeza seu último patrão, antes da seca que os fizera retirar. Seu Tomás havia se retirado também, sabia ler — admirava-se Fabiano -, mas mesmo assim retirara-se. De que adiantara tanto saber?

      Ao buscar água na nascente do rio, olha as estrelas e faz planos, quer a família feliz. Sonha futuro, esse Fabiano.

       

    3. Fabiano
    4. O segundo capítulo é todo dedicado ao desvendamento da personagem Fabiano: o narrador descreve-lhe as feições, os gestos, e, onisciente, penetra a intimidade do sertanejo.

      Branco, ruivo, de olhos azuis, Fabiano é homem embrutecido pela vida. É um vaqueiro, ofício exercido pelos seus antepassados, seguido por ele e que os meninos já começam a apreciar.

      Acha-se um bicho, quando faz uma auto-análise; fuma, está de certa forma contente por ter achado um bom lugar para ficar. Há aqui um flash-back que nos indica como conseguira ficar tomando conta da fazenda:

      "- Um bicho, Fabiano.

      Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.

      Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou os quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra."(p. 54)

      Baleia gosta demais do dono, faz-lhe carinhos lambendo-lhe as mãos, ajuda a recolher o gado, põe em fuga as raposas.

      Fabiano pensa em conversar com Sinhá Vitória sobre a educação dos meninos. Ele acha que Sinhá Vitória, agora ocupada com seus craveiros e panelas de losna já não dá atenção a eles:

      "Agora queria entender-se com Sinhá Vitória a respeito da educação dos pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha." ( p. 57)

      Em "horas de maluqueira"tentava imitar seu Tomás da Bolandeira: "dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo."- p. 58)

      Tinha medo da seca.

    5. Cadeia
    6. Fabiano tinha ido à cidade.

      Pode-se observar que o tempo já havia passado e que Fabiano, mesmo com o patrão a roubá-lo, dispunha de algum dinheiro para as compras. Sinhá Vitória pedira a ele que trouxesse um corte de chita vermelha, querosene, sal, farinha , feijão e rapaduras.

      Fabiano percorre as lojas, escolhe o pano, regateia os preços. Sente-se enganado por seu Inácio, da venda, de quem ele desconfia misturar querosene com água. Bebe cachaça e, animado pelo álcool, pergunta:

      "- Por que é que vossemecê bota água em tudo?

      Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a conversar. O vocabulário dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre se seu Tomás."

      O soldado amarelo, personagem sem nome e assim designada, furta Fabiano no jogo do trinta-e-um, o vaqueiro sai do jogo, desacatando a autoridade e é humilhado e preso:

      "Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o aremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, canbaleou, sentou-se num canto, rosnando:

      • Hum! Hum!

      Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado quem nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir."( p. 69)

      Urrou assustando os presos, incapaz de falar, feito um bicho.

      No dia seguinte colocaram-no na rua, e marchou preocupado para casa. Não tinha podido dormir, pensando na família sem luz e sem sal.

    7. Sinhá Vitória
    8. Se Fabiano desejava saber usar as palavras como os brancos, na hora certa, Sinhá Vitória almeja algo mais simples: uma cama de couro como a de seu Tomás da Bolandeira. Nesse capítulo, ela aparece ocupada em acender o fogo, escorraçando a pobre cachorra Baleia que foi arredada de perto do fogão com um pontapé.

      "Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé —de- turco, e não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinha-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.

      Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido."(p. 77)

      Há uma certa aflição em Sinhá Vitória. O marido dormia, ela pensou em acordá-lo para perguntar se ele havia curado a vaca laranja. Mas resolve fumar seu cachimbo, acocorada. Confusa, pensa em buscar água, ver as panelas. Não sabe mais sobre o que estaria pensando. Lembra-se do papagaio, com pena, mas se recusa a lembrar a vida antiga, de privações. Pensa que Fabiano era ruim.

      E, depois, vendo as folhas da catingueira meio amarelecidas, teme a seca, imagina que Deus não seria tão ruim de permitir aquilo de novo.

      Reprende os filhos por falta do que fazer, reacende o cachimbo. E outra vez se põe a sonhar com a cama de couro, enquanto Fabiano ronca. pensa sobre galinhas, em vendê-las. E retoma o fio de seu sonho: uma cama igual à de seu Tomás da Bolandeira.

    9. O menino mais novo
    10. O menino mais novo gosta de ver o pai montar, admira a habilidade que Fabiano tem de amansar éguas:

      "Ficou assim uma eternidade, cheio de alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente, a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo. Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio, os arreios no braço. Os estribos, soltos na carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das esporas tiniam."(p.86)

      O pai é uma espécie de herói para o menino que, como o irmão, não tem nome. São os "menino mais novo e menino mais velho", representantes de outros tantos meninos nordestinos, com destino traçado pelos antepassados.

      Sinhá Vitória cachimbava no banco, catando lêndeas no filho mais velho. A cachorra Baleia, parte da família, cochilava.

      O menino admirava o pai cada vez mais e , apesar de temê-lo, foi-se chegando devagarinho e tocou-lhe nas perneiras, gibão, esporas e guarda-peito.

      O pai reprendeu-o e ele vai deitar na esteira.

      "Dormiu e sonhou. Um pé-de-vento cobria de poeira a folhagem das imburanas, Sinhá Vitória catava piolhos no filho mais velho, Baleia descansava com a cabeça na pedra de amolar."

      E no dia seguinte, algo esquisito no ar, ele nem sabia o que, foi espiar os rastros da égua que o pai montara. A mãe o repreende, mas ele se põe a observar os apetrechos de que se servia o pai quando montava e uma idéia vara-lhe a cabeça, enquanto se dirige ao chiqueiro: quer montar um bode. Compara-se ao pai, sabe que não é tào forte como ele, que o bode poderia saltar e derrubá-lo.

      Quando o animal põe-se a beber água, monta-o. E se segura em cima dele por alguns instantes. Humilhado, volta a casa, mas já imitando o pai:

      "Retirou-se A humilhação atenuou-se um pouco e morreu. Precisava entrar em casa, jantar, dormir. E precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru.

      Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporar tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento, levantando poeira." (p.91)

       

    11. O menino mais velho
    12. O menino mais velho estranha quando Terta, uma amiga da família, fala em inferno. Aquilo soava esquisito pra ele. Foi à sala, em busca do pai que mediu-lhe o pé numa sola, a fim de fazer uma alpercata para o menino.

      Sem ter como abordar o assunto com o pai, voltou à cozinha e se dependurou na saia da mãe, querendo saber como era o inferno. Sinhá Vitória diz que é quente e cheio de espetos. O menino pergunta se ela já vira o inferno:

      "Aí Sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.

      O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia.

      A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava em ossos, e o torpor que a embalava era doce."

      O único desejo do menino mais velho é um amigo. Baleia e o irmão já não lhe bastam, é preciso ter com quem falar sobre o inferno, piparotes na cabeça, dúvidas.

    13. Inverno
    14. Os medos de Fabiano e de Sinhá Vitória não se concretizaram: é inverno, faz frio e há goteiras lá fora:

      "A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, Sinhá Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiro aos filhos. A cachorra baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinzas.

      Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante.

      Fabiano esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições com a ponta da alpercata."(p. 102)

      Ali, reunidos, eram os mesmos viventes, mas já havia passado todo o perigo da seca, da fome e de partir outra vez. Tentavam conversar:

      "Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.

      Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no escuro a dificuldade era grande."(p.103)

       

      Fabiano estava de bom humor com a chegada do inverno: haveria trabalho, casa e comida. Mas Sinhá Vitória tremia de medo do rio subir demais, invadir a casa, perder o lugar onde morar. Pensava nisso.

      Fabiano esquecia até os desaforos do soldado amarelo e a prisão, esfregava as mãos, satisfeito, gesto que repetia infinitamente. Enquanto isso, o rio subia, estava agora já perto dos juazeiros. As vacas vinham abrigar-se, agora, rente à casa, também medrosas:

      "As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria. Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez Sinhá Vitória adquirisse uma cama de lastro de couro. realmente o jirau de varas onde se espichavam era incômodo."(p. 107)

      Enfim, estavam felizes.

       

    15. Festa
    16. Todos estavam se preparando para ir à festa do Natal na cidade. Fazia um calor enorme e eram três horas da tarde quando, casa fechada, atravessaram o pátio:

      "Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por Sinhá Terta, com chapéu de baeta, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinhá Vitória, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como moças da rua — e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam camisinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e incumbira Sinhá Terta de arranjar farpelas para ele e para os filhos. Sinhá Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certa de que a velha pretendia furtar-lhe os retalhos. Em conseqüência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas."(p.111)

      No caminho, como se não aguentassem os calçados, resolveram arrancá-los. A cachorra Baleia ia junto e logo no fim da tarde estavam chegando à cidade. Pararam no riacho para lavar os pés, empertigaram-se, a custo Fabiano calçou as botinas e , com o auxílio de Sinhá Vitória, abotou colarinho e pôs gravata. A marca dos dedos suados da mulher ficaram registradas ali.

      Sinhá Vitória levava o guarda-chuva com o castão para baixo, à maneira das matutas, incorporado o hábito. Os meninos espiavam tudo com medo:

      "Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os homens iriam brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as barracas? Estavam acostumados a aguentar cascudos e puxões de orelha. Talvez as criaturas desconhecidas não se comportassem como Sinhá Vitória, mas os pequenos retraíam-se, encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de rumores estranhos."(p. 114)

      Entraram na igreja apinhada de gente. Baleia ficou na calçada, esperando. Os meninos viram, pela primeira vez, os pais menores do que julgavam. Menores do que os santos dos altares, por exemplo.

      Fabiano, no meio do povo, estava incomodado. Os pés ardiam, sentia-se rodeado de inimigos:

      "A igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o colarinho furava-lhe o pescoço. E as botinas e o colarinho eram indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, de camisa de algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano. E sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calça e paletós engomados, botinas de elástico, chapéu de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os braços mexiam-se desengonçados."(p. 116)

      Após a novena, convidou a mulher e os filhos para divertirem-se e foi beber numa barraca: cachaça. E "pouco a pouco ficou sem-vergonha."

      Desafiou as pessoas, vendo em cada uma um inimigo. Finalmente, berrou:

      "- Apareça um homem!"

      Praça cheia, ninguém notou a provocação:

      "Cadê o valente? Quem é que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareça um homem."

      Enrolou a língua, bêbado. A saliva grossa, a voz pastosa. Vomitou. Tirou meias, colarinho e gravata. Deitou-se no chão e dormiu. Sinhá Vitória se retorcia, precisando ir ao banheiro. Mas como deixar os meninos e o marido ali?

      Nos sonhos de Fabiano, soldados amarelos e facões terríveis.

    17. Baleia
    18. O romance de Graciliaano Ramos começou por este capítulo, escrito como se fora um conto, advindo de uma lembrança antiga que incluía a morte de um cachorro, os tios e os avós.

      "A cachorra Balei estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

      Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral e metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

      Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. "

      Sinhá Vitória se trancou com os meninos no quarto. Todos sofriam. Baleia era uma pessoa da família. Taparam olhos e ouvidos, os meninos gritavam desesperados.

      Fabiano chamou a cadela, que veio ressabiada, arredia, como se já sabendo de seu destino. Fabiano atirou nela, que, com os quartos traseiros arrasados, foi procurar abrigo sob os juazeiros, numa barroca. Ali , começa a morrer.

      Neste capítulo, o narrador capta o fluxo de pensamento da cachorra Baleia:

      "Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.

      Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

      Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

      Esqueceu-se e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis."(p. 132)

      Passo a passo, o narrador segue a morte de baleia:

      "Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

      baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido.

      (...)

      Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

      Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes."( p. 134)

      Perceba que os diminutivos invadem o capítulo. A descrição é delicada, suave. Baleia é a construção mais "humana"do livro. Suave, delicada, o narrador cuida de mostrar a bondade e a amizade, o carinhok a esperteza e até o senso de responsabilidade através dela.

    19. Contas
    20. O patrão furta Fabiano, engana-o nas contas. O que constrange o vaqueiro, revolta-o. O narrador capta-lhe o fluxo do pensamento: com o avô fora assim, com o pai fora assim e com ele também se repetiria a mesma história?

      Não se conforma, mas é resignado, oprimido pelo patrão que lhe mostra o lugar dos descontentes: a porta de saída.

      "Pouco a pouco, o ferro do proprietário queimava os bichos de fabiano. E quando nào tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.

      Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinhá Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu pelo chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinhá Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.

      Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim, no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!

      O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.

      Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou."(p. 136)

      Sai da casa do patrão fazendo salamaleques, coçando os cotovelos, enroscando a espora na porta.

      Era um branco, mas de branco nada sabia, nem comportar-se ou mesmo usar as palavras. Por isso, pensa é lesado, enganado. E engole o desaforo, jurando vingança.

    21. O soldado amarelo
    22. Fabiano vai atrás da égua e da cria, perdidas na catinga. Cortando palmas espinhosas, embrenhava-se atrás do animal fujão.

      E de facão levantado, no meio do mato, deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, batera nele e o humilhara a frente de todo mundo.

      "Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. menos: durou uma fraçào de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro nào compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se , o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para o outro.

      O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente nào quiser matar um cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. "(p. 144)

      O soldado amarelo tremia de pavor, o que irritou profundamente Fabiano.

      Meteu o facão na bainha, pensando que poderia matá-lo com as unhas se quisesse. lembrou-se que passara uma noite na cadeia. revoltou-se.

      O soldado, encolhido, escondera-se atrás de uma árvore, temendo morrer. pela cabeça de Fabiano passaram humilhações, ódios mesquinhos. Mas, por fim, indica o caminho da cidade ao soldado, tirando-lhe o chapéu: governo é governo...

      "Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo."(p. 152)

       

    23. O mundo coberto de penas
    24. "O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e , como em redor não havia comida, seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado."(p. 153)

      As arribações anunciam, para o sertanejo, uma seca prolongada. Fabiano e Sinhá Vitória sofriam em antecipado, pensando ter que colocar os poucos pertences no baú, as coisas pessoais no aió, e irem embora com os meninos, outra vez.

      Irritado, Fabiano pegou a espingarda e foi para o açude. Queria matar as aves, acabar com elas, com raiva daqueles bichos imprestáveis, que sujavam a água, que bebiam o pouco que restava para o gado.

      Pensa no patrão e no soldado amarelo, na raiva que sentia deles e mata muitas aves. Repentinamente lembra-se da cachorra. Sabia que se ela estivesse lá, correria atrás daqueles bichos, poderia comê-los, que aquilo nem era comida de gente. Pensa na seca:

      "Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim."(p.155)

      Desanimado, sentou-se na ribanceira do rio, carregando a espingarda. deu murros na coxa, desesperou-se. pensa que deveria ter matado o soldado marelo, uma espécie de vingança contra o mundo e as injustiças do mundo : "Os soldados amarelos são uns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele."( p. 157)

      Xinga as aves: pestes, miseráveis ! E pensa na vida que levou até agora. Culpa o mundo por seus desajustes, todos estão contra ele. E ao se lembrar novamente de Baleia fica com medo: e se o fantasma dela estivesse ali? Já estava escurecendo e ele voltou para casa.

      " Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgraças eram muitas. Precisava consultar Sinhá Vitória, combinar a viagem, livrar-se das arribações, explicar-se, convencer-se de que não praticara injustiça matando a cachorra. Necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinhá Vitória pensaria como ele."( p. 160)

    25. Fuga
    26. "No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.

      Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido."(p. 161)

      Tudo está perdido: é e seca, e desta vez irreversível, tangendo de novo, como gado, os homens do sertão. Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos saem de novo procurando outro lugar.

      Mas desta vez, é diferente: sabia que teria que ir para o Sul, levando os meninos:

      "Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se , temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos."(p. 172)

    O romance termina aqui.

    Termina como começa, com a fuga, com a mudança desta família de retirantes.

    Homens rudes, uns brutos.

    Mas homens.

    (Todos os fragmentos foram retirados da Edição de 1973, da Livraria Martins Editora)