Edição nº2 - 14/05/99

Morte e Vida Severina
Texto integral
(João Cabral de Mello Neto)

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR 
QUEM É E A QUE VAI 

- O meu nome é Severino, 

como não tenho outro de pia. 

Como há muitos Severinos, 

que é santo de romaria, 

deram então de me chamar 

Severino de Maria; 

como há muitos Severinos 

com mães chamadas Maria, 

fiquei sendo o da Maria 

do finado Zacarias. 

Mais isso ainda diz pouco: 

há muitos na freguesia, 

por causa de um coronel 

que se chamou Zacarias 

e que foi o mais antigo 

senhor desta sesmaria. 

Como então dizer quem falo 

ora a Vossas Senhorias? 

Vejamos: é o Severino 

da Maria do Zacarias, 

lá da serra da Costela, 

limites da Paraíba. 

Mas isso ainda diz pouco: 

se ao menos mais cinco havia 

com nome de Severino 

filhos de tantas Marias 

mulheres de outros tantos, 

já finados, Zacarias, 

vivendo na mesma serra 

magra e ossuda em que eu vivia. 

Somos muitos Severinos 

iguais em tudo na vida: 

na mesma cabeça grande 

que a custo é que se equilibra, 

no mesmo ventre crescido 

sobre as mesmas pernas finas 

e iguais também porque o sangue, 

que usamos tem pouca tinta. 

E se somos Severinos 

iguais em tudo na vida, 

morremos de morte igual, 

mesma morte severina: 

que é a morte de que se morre 

de velhice antes dos trinta, 

de emboscada antes dos vinte 

de fome um pouco por dia 

(de fraqueza e de doença 

é que a morte severina 

ataca em qualquer idade, 

e até gente não nascida). 

Somos muitos Severinos 

iguais em tudo e na sina: 

a de abrandar estas pedras 

suando-se muito em cima, 

a de tentar despertar 

terra sempre mais extinta, 

a de querer arrancar 

alguns roçado da cinza. 

Mas, para que me conheçam 

melhor Vossas Senhorias 

e melhor possam seguir 

a história de minha vida, 

passo a ser o Severino 

que em vossa presença emigra. 

ENCONTRA DOIS HOMENS 
CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA 
REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS
ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI 
EU QUEM MATEI NÃO!" 

A quem estais carregando, 

irmãos das almas, 

embrulhado nessa rede? 

dizei que eu saiba. 

A um defunto de nada, 

irmão das almas, 

que há muitas horas viaja 

à sua morada. 

E sabeis quem era ele, 

irmãos das almas, 

sabeis como ele se chama 

ou se chamava? 

Severino Lavrador, 

irmão das almas, 

Severino Lavrador, 

mas já não lavra. 

- E de onde que o estais trazendo, 

irmãos das almas, 

onde foi que começou 

vossa jornada? 

- Onde a Caatinga é mais seca, 

irmão das almas, 

onde uma terra que não dá 

nem planta brava. 

- E foi morrida essa morte, 

irmãos das almas, 

essa foi morte morrida 

ou foi matada? 

- Até que não foi morrida, 

irmão das almas, 

esta foi morte matada, 

numa emboscada. 

- E o que guardava a emboscada, 

irmão das almas 

e com que foi que o mataram, 

com faca ou bala? 

- Este foi morto de bala, 

irmão das almas, 

mas garantido é de bala, 

mais longe vara. 

- E quem foi que o emboscou, 

irmãos das almas, 

quem contra ele soltou 

essa ave-bala? 

- Ali é difícil dizer, 

irmão das almas, 

sempre há uma bala voando 

desocupada. 

- E o que havia ele feito 

irmãos das almas, 

e o que havia ele feito 

contra a tal pássara? 

- Ter um hectare de terra, 

irmão das almas, 

de pedra e areia lavada 

que cultivava. 

- Mas que roças que ele tinha, 

irmãos das almas 

que podia ele plantar 

na pedra avara? 

- Nos magros lábios de areia, 

irmão das almas, 

os intervalos das pedras, 

plantava palha. 

- E era grande sua lavoura, 

irmãos das almas, 

lavoura de muitas covas, 

tão cobiçada? 

- Tinha somente dez quadras, 

irmão das almas, 

todas nos ombros da serra, 

nenhuma várzea. 

- Mas então por que o mataram, 

irmãos das almas, 

mas então por que o mataram 

com espingarda? 

- Queria mais espalhar-se, 

irmão das almas, 

queria voar mais livre 

essa ave-bala. 

- E agora o que passará, 

irmãos das almas, 

o que é que acontecerá 

contra a espingarda? 

- Mais campo tem para soltar, 

irmão das almas, 

tem mais onde fazer voar 

as filhas-bala. 

- E onde o levais a enterrar, 

irmãos das almas, 

com a semente do chumbo 

que tem guardada? 

- Ao cemitério de Torres, 

irmão das almas, 

que hoje se diz Toritama, 

de madrugada. 

- E poderei ajudar, 

irmãos das almas? 

vou passar por Toritama, 

é minha estrada. 

- Bem que poderá ajudar, 

irmão das almas, 

é irmão das almas quem ouve 

nossa chamada. 

- E um de nós pode voltar, 

irmão das almas, 

pode voltar daqui mesmo 

para sua casa. 

- Vou eu que a viagem é longa, 

irmãos das almas, 

é muito longa a viagem 

e a serra é alta. 

- Mais sorte tem o defunto 

irmãos das almas, 

pois já não fará na volta 

a caminhada. 

- Toritama não cai longe, 

irmãos das almas, 

seremos no campo santo 

de madrugada. 

- Partamos enquanto é noite 

irmãos das almas, 

que é o melhor lençol dos mortos 

noite fechada. 

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE 
EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO 
CAPIBARIBE, 

- Antes de sair de casa 

aprendi a ladainha 

das vilas que vou passar 

na minha longa descida. 

Sei que há muitas vilas grandes, 

cidades que elas são ditas; 

sei que há simples arruados, 

sei que há vilas pequeninas, 

todas formando um rosário 

cujas contas fossem vilas, 

de que a estrada fosse a linha. 

Devo rezar tal rosário 

até o mar onde termina, 

saltando de conta em conta, 

passando de vila em vila. 

Vejo agora: não é fácil 

seguir essa ladainha; 

entre uma conta e outra conta, 

entre uma e outra ave-maria, 

há certas paragens brancas, 

de planta e bicho vazias, 

vazias até de donos, 

e onde o pé se descaminha. 

Não desejo emaranhar 

o fio de minha linha 

nem que se enrede no pêlo 

hirsuto desta caatinga. 

Pensei que seguindo o rio 

eu jamais me perderia: 

ele é o caminho mais certo, 

de todos o melhor guia. 

Mas como segui-lo agora 

que interrompeu a descida? 

Vejo que o Capibaribe, 

como os rios lá de cima, 

é tão pobre que nem sempre 

pode cumprir sua sina 

e no verão também corta, 

com pernas que não caminham. 

Tenho que saber agora 

qual a verdadeira via 

entre essas que escancaradas 

frente a mim se multiplicam. 

Mas não vejo almas aqui, 

nem almas mortas nem vivas; 

ouço somente à distância 

o que parece cantoria. 

Será novena de santo, 

será algum mês-de-Maria; 

quem sabe até se uma festa 

ou uma dança não seria? 

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA 
ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA 
UM DEFUNTO, ENQUANTO
UM HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI 
PARODIANDO A PALAVRAS DOS 
CANTADORES 

- Finado Severino, 

quando passares em Jordão 

e o demônios te atalharem 

perguntando o que é que levas... 

- Dize que levas cera, 

capuz e cordão 

mais a Virgem da Conceição. 

- Finado Severino, etc... 

- Dize que levas somente 

coisas de não: 

fome, sede, privação. 

- Finado Severino, etc... 

- Dize que coisas de não, 

ocas, leves: 

como o caixão, que ainda deves. 

- Uma excelência 

dizendo que a hora é hora. 

- Ajunta os carregadores 

que o corpo quer ir embora. 

- Duas excelências... 

-...dizendo é a hora da plantação. 

- Ajunta os carreadores... 

-...que a terra vai colher a mão. 

CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE 
PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS 
INSTANTES E PROCURAR
TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA. 

- Desde que estou retirando 

só a morte vejo ativa, 

só a morte deparei 

e às vezes até festiva; 

só a morte tem encontrado 

quem pensava encontrar vida, 

e o pouco que não foi morte 

foi de vida severina 

(aquela vida que é menos 

vivida que defendida, 

e é ainda mais severina 

para o homem que retira). 

Penso agora: mas por que 

parar aqui eu não podia 

e como Capibaribe 

interromper minha linha? 

ao menos até que as águas 

de uma próxima invernia 

me levem direto ao mar 

ao refazer sua rotina? 

Na verdade, por uns tempos, 

parar aqui eu bem podia 

e retomar a viagem 

quando vencesse a fadiga. 

Ou será que aqui cortando 

agora minha descida 

já não poderei seguir 

nunca mais em minha vida? 

(será que a água destes poços 

é toda aqui consumida 

pelas roças, pelos bichos, 

pelo sol com suas línguas? 

será que quando chegar 

o rio da nova invernia 

um resto de água no antigo 

sobrará nos poços ainda?) 

Mas isso depois verei: 

tempo há para que decida; 

primeiro é preciso achar 

um trabalho de que viva. 

Vejo uma mulher na janela, 

ali, que se não é rica, 

parece remediada 

ou dona de sua vida: 

vou saber se de trabalho 

poderá me dar notícia. 

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE 
DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE 
QUEM SE SABERÁ 

- Muito bom dia, senhora, 

que nessa janela está; 

sabe dizer se é possível 

algum trabalho encontrar? 

- Trabalho aqui nunca falta 

a quem sabe trabalhar; 

o que fazia o compadre 

na sua terra de lá? 

- Pois fui sempre lavrador, 

lavrador de terra má; 

não há espécie de terra 

que eu não possa cultivar. 

- Isso aqui de nada adianta, 

pouco existe o que lavrar; 

mas diga-me, retirante, 

o que mais fazia por lá? 

- Também lá na minha terra 

de terra mesmo pouco há; 

mas até a calva da pedra 

sinto-me capaz de arar. 

- Também de pouco adianta, 

nem pedra há aqui que amassar; 

diga-me ainda, compadre, 

que mais fazias por lá? 

- Conheço todas as roças 

que nesta chã podem dar; 

o algodão, a mamona, 

a pita, o milho, o caroá. 

- Esses roçados o banco 

já não quer financiar; 

mas diga-me, retirante, 

o que mais fazia lá? 

- Melhor do que eu ninguém 

sei combater, quiçá, 

tanta planta de rapina 

que tenho visto por cá. 

- Essas plantas de rapina 

são tudo o que a terra dá; 

diga-me ainda, compadre 

que mais fazia por lá? 

- Tirei mandioca de chãs 

que o vento vive a esfolar 

e de outras escalavras 

pela seca faca solar. 

- Isto aqui não é Vitória 

nem é Glória do Goitá; 

e além da terra, me diga, 

que mais sabe trabalhar? 

- Sei também tratar de gado, 

entre urtigas pastorear; 

gado de comer do chão 

ou de comer ramas no ar. 

- Aqui não é Surubim 

nem Limoeiro, oxalá! 

mas diga-me, retirante, 

que mais fazia por lá? 

- Em qualquer das cinco tachas 

de um bangüê sei cozinhar; 

sei cuidar de uma moenda, 

de uma casa de purgar. 

- Com a vinda das usinas 

há poucos engenhos já; 

nada mais o retirante 

aprendeu a fazer lá? 

- Ali ninguém aprendeu 

outro ofício, ou aprenderá; 

mas o sol, de sol a sol, 

bem se aprende a suportar. 

- Mas isso então será tudo 

em que sabe trabalhar? 

vamos, diga, retirante, 

outras coisas saberá. 

- Deseja mesmo saber 

o que eu fazia por lá? 

comer quando havia o quê 

e, havendo ou não, trabalhar. 

- Essa vida por aqui 

é coisa familiar; 

mas diga-me retirante, 

sabe benditos rezar? 

sabe cantar excelências, 

defuntos encomendar? 

sabe tirar ladainhas, 

sabe mortos enterrar? 

- Já velei muitos defuntos, 

na serra é coisa vulgar; 

mas nunca aprendi as rezas, 

sei somente acompanhar. 

- Pois se o compadre soubesse 

rezar ou mesmo cantar, 

trabalhávamos a meias, 

que a freguesia bem dá. 

- Agora se me permite 

minha vez de perguntar: 

como senhora, comadre, 

pode manter o seu lar? 

- Vou explicar rapidamente, 

logo compreenderá: 

como aqui a morte é tanta, 

vivo de a morte ajudar. 

- E ainda se me permite 

que volte a perguntar: 

é aqui uma profissão 

trabalho tão singular? 

- É, sim, uma profissão, 

e a melhor de quantas há: 

sou de toda a região 

rezadora titular. 

- E ainda se me permite 

mais outra vez indagar: 

é boa essa profissão 

em que a comadre ora está? 

- De um raio de muitas léguas 

vem gente aqui me chamar; 

a verdade é que não pude 

queixar-me ainda de azar. 

- E se pela última vez 

me permite perguntar: 

não existe outro trabalho 

para mim nesse lugar? 

- Como aqui a morte é tanta, 

só é possível trabalhar 

nessas profissões que fazem 

da morte ofício ou bazar. 

Imagine que outra gente 

de profissão similar, 

farmacêuticos, coveiros, 

doutor de anel no anular, 

remando contra a corrente 

da gente que baixa ao mar, 

retirantes às avessas, 

sobem do mar para cá. 

Só os roçados da morte 

compensam aqui cultivar, 

e cultivá-los é fácil: 

simples questão de plantar; 

não se precisa de limpa, 

de adubar nem de regar; 

as estiagens e as pragas 

fazemos mais prosperar; 

e dão lucro imediato; 

nem é preciso esperar 

pela colheita: recebe-se 

na hora mesma de semear 

O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, 
QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM 
INTERROMPER A VIAGEM. 

- Bem me diziam que a terra 

se faz mais branda e macia 

quando mais do litoral 

a viagem se aproxima. 

Agora afinal cheguei 

nesta terra que diziam. 

Como ela é uma terra doce 

para os pés e para a vista. 

Os rios que correm aqui 

têm água vitalícia. 

Cacimbas por todo lado; 

cavando o chão, água mina. 

Vejo agora que é verdade 

o que pensei ser mentira 

Quem sabe se nesta terra 

não plantarei minha sina? 

Não tenho medo de terra 

(cavei pedra toda a vida), 

e para quem lutou a braço 

contra a piçarra da Caatinga 

será fácil amansar 

esta aqui, tão feminina. 

Mas não avisto ninguém, 

só folhas de cana fina; 

somente ali à distância 

aquele bueiro de usina; 

somente naquela várzea 

um bangüê velho em ruína. 

Por onde andará a gente 

que tantas canas cultiva? 

Feriando: que nesta terra 

tão fácil, tão doce e rica, 

não é preciso trabalhar 

todas as horas do dia, 

os dias todos do mês, 

os meses todos da vida. 

Decerto a gente daqui 

jamais envelhece aos trinta 

nem sabe da morte em vida, 

vida em morte, severina; 

e aquele cemitério ali, 

branco de verde colina, 

decerto pouco funciona 

e poucas covas aninha. 

ASSISTE AO ENTERRO DE UM 
TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE 
DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE
O LEVARAM AO CEMITÉRIO 

- Essa cova em que estás, 

com palmos medida, 

é a cota menor 

que tiraste em vida. 

- É de bom tamanho, 

nem largo nem fundo, 

é a parte que te cabe 

neste latifúndio. 

- Não é cova grande. 

é cova medida, 

é a terra que querias 

ver dividida. 

- É uma cova grande 

para teu pouco defunto, 

mas estarás mais ancho 

que estavas no mundo. 

- É uma cova grande 

para teu defunto parco, 

porém mais que no mundo 

te sentirás largo. 

- É uma cova grande 

para tua carne pouca, 

mas a terra dada 

não se abre a boca. 

- Viverás, e para sempre 

na terra que aqui aforas: 

e terás enfim tua roça. 

- Aí ficarás para sempre, 

livre do sol e da chuva, 

criando tuas saúvas. 

- Agora trabalharás 

só para ti, não a meias, 

como antes em terra alheia. 

- Trabalharás uma terra 

da qual, além de senhor, 

serás homem de eito e trator. 

- Trabalhando nessa terra, 

tu sozinho tudo empreitas: 

serás semente, adubo, colheita. 

- Trabalharás numa terra 

que também te abriga e te veste: 

embora com o brim do Nordeste. 

- Será de terra 

tua derradeira camisa: 

te veste, como nunca em vida. 

- Será de terra 

a tua melhor camisa: 

te veste e ninguém cobiça. 

- Terás de terra 

completo agora o teu fato: 

e pela primeira vez, sapato. 

- Como és homem, 

a terra te dará chapéu: 

fosses mulher, xale ou véu. 

- Tua roupa melhor 

será de terra e não de fazenda: 

não se rasga nem se remenda. 

- Tua roupa melhor 

e te ficará bem cingida: 

como roupa feita à medida. 

- Esse chão te é bem conhecido 

(bebeu teu suor vendido). 

- Esse chão te é bem conhecido 

(bebeu o moço antigo) 

- Esse chão te é bem conhecido 

(bebeu tua força de marido). 

- Desse chão és bem conhecido 

(através de parentes e amigos). 

- Desse chão és bem conhecido 

(vive com tua mulher, teus filhos) 

- Desse chão és bem conhecido 

(te espera de recém-nascido). 

- Não tens mais força contigo: 

deixa-te semear ao comprido. 

- Já não levas semente viva: 

teu corpo é a própria maniva. 

- Não levas rebolo de cana: 

és o rebolo, e não de caiana. 

- Não levas semente na mão: 

és agora o próprio grão. 

- Já não tens força na perna: 

deixa-te semear na coveta. 

- Já não tens força na mão: 

deixa-te semear no leirão. 

- Dentro da rede não vinha nada, 

só tua espiga debulhada. 

- Dentro da rede vinha tudo, 

só tua espiga no sabugo. 

- Dentro da rede coisa vasqueira, 

só a maçaroca banguela. 

- Dentro da rede coisa pouca, 

tua vida que deu sem soca. 

- Na mão direita um rosário, 

milho negro e ressecado. 

- Na mão direita somente 

o rosário, seca semente. 

- Na mão direita, de cinza, 

o rosário, semente maninha, 

- Na mão direita o rosário, 

semente inerte e sem salto. 

- Despido vieste no caixão, 

despido também se enterra o grão. 

- De tanto te despiu a privação 

que escapou de teu peito à viração. 

- Tanta coisa despiste em vida 

que fugiu de teu peito a brisa. 

- E agora, se abre o chão e te abriga, 

lençol que não tiveste em vida. 

- Se abre o chão e te fecha, 

dando-te agora cama e coberta. 

- Se abre o chão e te envolve, 

como mulher com que se dorme. 

O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS 
PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO 
RECIFE 

- Nunca esperei muita coisa, 

digo a Vossas Senhorias. 

O que me fez retirar 

não foi a grande cobiça; 

o que apenas busquei 

foi defender minha vida 

de tal velhice que chega 

antes de se inteirar trinta; 

se na serra vivi vinte, 

se alcancei lá tal medida, 

o que pensei, retirando, 

foi estendê-la um pouco ainda. 

Mas não senti diferença 

entre o Agreste e a Caatinga, 

e entre a Caatinga e aqui a Mata 

a diferença é a mais mínima. 

Está apenas em que a terra 

é por aqui mais macia; 

está apenas no pavio, 

ou melhor, na lamparina: 

pois é igual o querosene 

que em toda parte ilumina, 

e quer nesta terra gorda 

quer na serra, de caliça, 

a vida arde sempre com 

a mesma chama mortiça. 

Agora é que compreendo 

por que em paragens tão ricas 

o rio não corta em poços 

como ele faz na Caatinga: 

vive a fugir dos remansos 

a que a paisagem o convida, 

com medo de se deter, 

grande que seja a fadiga. 

Sim, o melhor é apressar 

o fim desta ladainha, 

o fim do rosário de nomes 

que a linha do rio enfia; 

é chegar logo ao Recife, 

derradeira ave-maria 

do rosário, derradeira 

invocação da ladainha, 

Recife, onde o rio some 

e esta minha viagem se fina. 

CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE 
SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE 
UM MURO ALTO E CAIADO E
OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA 
DE DOIS COVEIROS 

- O dia hoje está difícil; 

não sei onde vamos parar. 

Deviam dar um aumento, 

ao menos aos deste setor de cá. 

As avenidas do centro são melhores, 

mas são para os protegidos: 

há sempre menos trabalho 

e gorjetas pelo serviço; 

e é mais numeroso o pessoal 

(toma mais tempo enterrar os ricos). 

- pois eu me daria por contente 

se me mandassem para cá. 

Se trabalhasses no de Casa Amarela 

não estarias a reclamar. 

De trabalhar no de Santo Amaro 

deve alegrar-se o colega 

porque parece que a gente 

que se enterra no de Casa Amarela 

está decidida a mudar-se 

toda para debaixo da terra. 

- É que o colega ainda não viu 

o movimento: não é o que se vê. 

Fique-se por aí um momento 

e não tardarão a aparecer 

os defuntos que ainda hoje 

vão chegar (ou partir, não sei). 

As avenidas do centro, 

onde se enterram os ricos, 

são como o porto do mar; 

não é muito ali o serviço: 

no máximo um transatlântico 

chega ali cada dia, 

com muita pompa, protocolo, 

e ainda mais cenografia. 

Mas este setor de cá 

é como a estação dos trens: 

diversas vezes por dia 

chega o comboio de alguém. 

- Mas se teu setor é comparado 

à estação central dos trens, 

o que dizer de Casa Amarela 

onde não para o vaivém? 

Pode ser uma estação 

mas não estação de trem: 

será parada de ônibus, 

com filas de mais de cem. 

- Então por que não pedes, 

já que és de carreira, e antigo, 

que te mandem para Santo Amaro 

se achas mais leve o serviço? 

Não creio que te mandassem 

para as belas avenidas 

onde estão os endereços 

e o bairro da gente fina: 

isto é, para o bairro dos usineiros, 

dos políticos, dos banqueiros, 

e no tempo antigo, dos bangüezeiros 

(hoje estes se enterram em carneiros); 

bairro também dos industriais, 

dos membros das associações patronais 

e dos que foram mais horizontais 

nas profissões liberais. 

Difícil é que consigas 

aquele bairro, logo de saída. 

- Só pedi que me mandasse 

para as urbanizações discretas, 

com seus quarteirões apertados, 

com suas cômodas de pedra. 

- Esse é o bairro dos funcionários, 

inclusive extranumerários, 

contratados e mensalistas 

(menos os tarefeiros e diaristas). 

Para lá vão os jornalistas, 

os escritores, os artistas; 

ali vão também os bancários, 

as altas patentes dos comerciários, 

os lojistas, os boticários, 

os localizados aeroviários 

e os de profissões liberais 

que não se libertaram jamais. 

- Também um bairro dessa gente 

temos no de Casa Amarela: 

cada um em seu escaninho, 

cada um em sua gaveta, 

com o nome aberto na lousa 

quase sempre em letras pretas. 

Raras as letras douradas, 

raras também as gorjetas. 

- Gorjetas aqui, também, 

só dá mesmo a gente rica, 

em cujo bairro não se pode 

trabalhar em mangas de camisa; 

onde se exige quepe 

e farda engomada e limpa. 

- Mas não foi pelas gorjetas, não, 

que vim pedir remoção: 

é porque tem menos trabalho 

que quero vir para Santo Amaro; 

aqui ao menos há mais gente 

para atender a freguesia, 

para botar a caixa cheia 

dentro da caixa vazia. 

- E que disse o Administrador, 

se é que te deu ouvido? 

- Que quando apareça a ocasião 

atenderá meu pedido. 

- E do senhor Administrador 

isso foi tudo que arrancaste? 

- No de Casa Amarela me deixou 

mas me mudou de arrabalde. 

- E onde vais trabalhar agora, 

qual o subúrbio que te cabe? 

- Passo para o dos industriários, 

que também é o dos ferroviários, 

de todos os rodoviários 

e praças-de-pré dos comerciários. 

- Passas para o dos operários, 

deixas o dos pobres vários; 

melhor: não são tão contagiosos 

e são muito menos numerosos. 

- É, deixo o subúrbio dos indigentes 

onde se enterra toda essa gente 

que o rio afoga na preamar 

e sufoca na baixa-mar. 

- É a gente sem instituto, 

gente de braços devolutos; 

são os que jamais usam luto 

e se enterram sem salvo-conduto. 

- É a gente dos enterros gratuitos 

e dos defuntos ininterruptos. 

- É a gente retirante 

que vem do Sertão de longe. 

- Desenrolam todo o barbante 

e chegam aqui na jante. 

- E que então, ao chegar, 

não tem mais o que esperar. 

- Não podem continuar 

pois têm pela frente o mar. 

- Não têm onde trabalhar 

e muito menos onde morar. 

- E da maneira em que está 

não vão ter onde se enterrar. 

- Eu também, antigamente, 

fui do subúrbio dos indigentes, 

e uma coisa notei 

que jamais entenderei: 

essa gente do Sertão 

que desce para o litoral, sem razão, 

fica vivendo no meio da lama, 

comendo os siris que apanha; 

pois bem: quando sua morte chega, 

temos que enterrá-los em terra seca. 

- Na verdade, seria mais rápido 

e também muito mais barato 

que os sacudissem de qualquer ponte 

dentro do rio e da morte. 

- O rio daria a mortalha e até um macio 
caixão de água; 

e também o acompanhamento 

que levaria com passo lento 

o defunto ao enterro final 

a ser feito no mar de sal. 

- E não precisava dinheiro, 

e não precisava coveiro, 

e não precisava oração 

e não precisava inscrição. 

- Mas o que se vê não é isso: 

é sempre nosso serviço 

crescendo mais cada dia; 

morre gente que nem vivia. 

- E esse povo de lá de riba 

de Pernambuco, da Paraíba, 

que vem buscar no Recife 

poder morrer de velhice, 

encontra só, aqui chegando, 

cemitério esperando. 

- Não é viagem o que fazem 

vindo por essas caatingas, vargens; 

aí está o seu erro: 

vêm é seguindo seu próprio enterro 

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS 
CAIS DO CAPIBARIBE 

- Nunca esperei muita coisa, 

é preciso que eu repita. 

Sabia que no rosário 

de cidade e de vilas, 

e mesmo aqui no Recife 

ao acabar minha descida, 

não seria diferente 

a vida de cada dia: 

que sempre pás e enxadas 

foices de corte e capina, 

ferros de cova, estrovengas 

o meu braço esperariam. 

Mas que se este não mudasse 

seu uso de toda vida, 

esperei, devo dizer, 

que ao menos aumentaria 

na quartinha, a água pouca, 

dentro da cuia, a farinha, 

o algodãozinho da camisa, 

ao meu aluguel com a vida. 

E chegando, aprendo que, 

nessa viagem que eu fazia, 

sem saber desde o Sertão, 

meu próprio enterro eu seguia. 

Só que devo ter chegado 

adiantado de uns dias; 

o enterro espera na porta: 

o morto ainda está com vida. 

A solução é apressar 

a morte a que se decida 

e pedir a este rio, 

que vem também lá de cima, 

que me faça aquele enterro 

que o coveiro descrevia: 

caixão macio de lama, 

mortalha macia e líquida, 

coroas de baronesa 

junto com flores de aninga, 

e aquele acompanhamento 

de água que sempre desfila 

(que o rio, aqui no Recife, 

não seca, vai toda a vida). 

APROXIMA-SE DO RETIRANTE O 
MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE 
EXISTEM ENTRE O CAIS E A
ÁGUA DO RIO 

- Seu José, mestre carpina, 

que habita este lamaçal, 

sabes me dizer se o rio 

a esta altura dá vau? 

sabes me dizer se é funda 

esta água grossa e carnal? 

- Severino, retirante, 

jamais o cruzei a nado; 

quando a maré está cheia 

vejo passar muitos barcos, 

barcaças, alvarengas, 

muitas de grande calado. 

- Seu José, mestre carpina, 

para cobrir corpo de homem 

não é preciso muito água: 

basta que chega o abdome, 

basta que tenha fundura 

igual à de sua fome. 

- Severino, retirante 

pois não sei o que lhe conte; 

sempre que cruzo este rio 

costumo tomar a ponte; 

quanto ao vazio do estômago, 

se cruza quando se come. 

- Seu José, mestre carpina, 

e quando ponte não há? 

quando os vazios da fome 

não se tem com que cruzar? 

quando esses rios sem água 

são grandes braços de mar? 

- Severino, retirante, 

o meu amigo é bem moço; 

sei que a miséria é mar largo, 

não é como qualquer poço: 

mas sei que para cruzá-la 

vale bem qualquer esforço. 

- Seu José, mestre carpina, 

e quando é fundo o perau? 

quando a força que morreu 

nem tem onde se enterrar, 

por que ao puxão das águas 

não é melhor se entregar? 

- Severino, retirante, 

o mar de nossa conversa 

precisa ser combatido, 

sempre, de qualquer maneira, 

porque senão ele alarga 

e devasta a terra inteira. 

- Seu José, mestre carpina, 

e em que nos faz diferença 

que como frieira se alastre, 

ou como rio na cheia, 

se acabamos naufragados 

num braço do mar miséria? 

- Severino, retirante, 

muita diferença faz 

entre lutar com as mãos 

e abandoná-las para trás, 

porque ao menos esse mar 

não pode adiantar-se mais. 

- Seu José, mestre carpina, 

e que diferença faz 

que esse oceano vazio 

cresça ou não seus cabedais 

se nenhuma ponte mesmo 

é de vencê-lo capaz? 

- Seu José, mestre carpina, 

que lhe pergunte permita: 

há muito no lamaçal 

apodrece a sua vida? 

e a vida que tem vivido 

foi sempre comprada à vista? 

- Severino, retirante, 

sou de Nazaré da Mata, 

mas tanto lá como aqui 

jamais me fiaram nada: 

a vida de cada dia 

cada dia hei de comprá-la. 

- Seu José, mestre carpina, 

e que interesse, me diga, 

há nessa vida a retalho 

que é cada dia adquirida? 

espera poder um dia 

comprá-la em grandes partidas? 

- Severino, retirante, 

não sei bem o que lhe diga: 

não é que espere comprar 

em grosso tais partidas, 

mas o que compro a retalho 

é, de qualquer forma, vida. 

- Seu José, mestre carpina, 

que diferença faria 

se em vez de continuar 

tomasse a melhor saída: 

a de saltar, numa noite, 

fora da ponte e da vida? 

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU 
O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE 
VERÁ 

- Compadre José, compadre, 

que na relva estais deitado: 

conversais e não sabeis 

que vosso filho é chegado? 

Estais aí conversando 

em vossa prosa entretida: 

não sabeis que vosso filho 

saltou para dentro da vida? 

Saltou para dento da vida 

ao dar o primeiro grito; 

e estais aí conversando; 

pois sabeis que ele é nascido. 

APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA 
DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS 
CIGANAS, ETC 

- Todo o céu e a terra 

lhe cantam louvor. 

Foi por ele que a maré 

esta noite não baixou. 

- Foi por ele que a maré 

fez parar o seu motor: 

a lama ficou coberta 

e o mau-cheiro não voou. 

- E a alfazema do sargaço, 

ácida, desinfetante, 

veio varrer nossas ruas 

enviada do mar distante. 

- E a língua seca de esponja 

que tem o vento terral 

veio enxugar a umidade 

do encharcado lamaçal. 

- Todo o céu e a terra 

lhe cantam louvor 

e cada casa se torna 

num mocambo sedutor. 

- Cada casebre se torna 

no mocambo modelar 

que tanto celebram os 

sociólogos do lugar. 

- E a banda de maruins 

que toda noite se ouvia 

por causa dele, esta noite, 

creio que não irradia. 

- E este rio de água, cega, 

ou baça, de comer terra, 

que jamais espelha o céu, 

hoje enfeitou-se de estrelas. 

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS 
TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-
NASCIDO 

- Minha pobreza tal é 

que não trago presente grande: 

trago para a mãe caranguejos 

pescados por esses mangues; 

mamando leite de lama 

conservará nosso sangue. 

- Minha pobreza tal é 

que coisa alguma posso ofertar: 

somente o leite que tenho 

para meu filho amamentar; 

aqui todos são irmãos, 

de leite, de lama, de ar. 

- Minha pobreza tal é 

que não tenho presente melhor: 

trago este papel de jornal 

para lhe servir de cobertor; 

cobrindo-se assim de letras 

vai um dia ser doutor. 

- Minha pobreza tal é 

que não tenho presente caro: 

como não posso trazer 

um olho d'água de Lagoa do Cerro, 

trago aqui água de Olinda, 

água da bica do Rosário. 

- Minha pobreza tal é 

que grande coisa não trago: 

trago este canário da terra 

que canta sorrindo e de estalo. 

- Minha pobreza tal é 

que minha oferta não é rica: 

trago daquela bolacha d'água 

que só em Paudalho se fabrica. 

- Minha pobreza tal é 

que melhor presente não tem: 

dou este boneco de barro 

de Severino de Tracunhaém. 

- Minha pobreza tal é 

que pouco tenho o que dar: 

dou da pitu que o pintor Monteiro 

fabricava em Gravatá. 

- Trago abacaxi de Goiana 

e de todo o Estado rolete de cana. 

- Eis ostras chegadas agora, 

apanhadas no cais da Aurora. 

- Eis tamarindos da Jaqueira 

e jaca da Tamarineira. 

- Mangabas do Cajueiro 

e cajus da Mangabeira. 

- Peixe pescado no Passarinho, 

carne de boi dos Peixinhos. 

- Siris apanhados no lamaçal 

que já no avesso da rua Imperial. 

- Mangas compradas nos quintais ricos 

do Espinheiro e dos Aflitos. 

- Goiamuns dados pela gente pobre 

da Avenida Sul e da Avenida Norte. 

FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM 
APARECIDO COM OS VIZINHOS 

- Atenção peço, senhores, 

para esta breve leitura: 

somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. 

Vou dizer todas as coisas 

que desde já posso ver 

na vida desse menino 

acabado de nascer: 

aprenderá a engatinhar 

por aí, com aratus, 

aprenderá a caminhar 

na lama, como goiamuns, 

e a correr o ensinarão 

os anfíbios caranguejos, 

pelo que será anfíbio 

como a gente daqui mesmo. 

Cedo aprenderá a caçar: 

primeiro, com as galinhas, 

que é catando pelo chão 

tudo o que cheira a comida; 

depois, aprenderá com 

outras espécies de bichos: 

com os porcos nos monturos, 

com os cachorros no lixo. 

Vejo-o, uns anos mais tarde, 

na ilha do Maruim, 

vestido negro de lama, 

voltar de pescar siris; 

e vejo-o, ainda maior, 

pelo imenso lamarão 

fazendo dos dedos iscas 

para pescar camarão. 

- Atenção peço, senhores, 

também para minha leitura: 

também venho dos Egitos, 

vou completar a figura. 

Outras coisas que estou vendo 

é necessário que eu diga: 

não ficará a pescar 

de jereré toda a vida. 

Minha amiga se esqueceu 

de dizer todas as linhas; 

não pensem que a vida dele 

há de ser sempre daninha. 

Enxergo daqui a planura 

que é a vida do homem de ofício, 

bem mais sadia que os mangues, 

tenha embora precipícios. 

Não o vejo dentro dos mangues, 

vejo-o dentro de uma fábrica: 

se está negro não é lama, 

é graxa de sua máquina, 

coisa mais limpa que a lama 

do pescador de maré 

que vemos aqui vestido 

de lama da cara ao pé. 

E mais: para que não pensem 

que em sua vida tudo é triste, 

vejo coisa que o trabalho 

talvez até lhe conquiste: 

que é mudar-se destes mangues 

daqui do Capibaribe 

para um mocambo melhor 

nos mangues do Beberibe. 

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS 
QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC 

- De sua formosura 

já venho dizer: 

é um menino magro, 

de muito peso não é, 

mas tem o peso de homem, 

de obra de ventre de mulher. 

- De sua formosura 

deixai-me que diga: 

é uma criança pálida, 

é uma criança franzina, 

mas tem a marca de homem, 

marca de humana oficina. 

- Sua formosura 

deixai-me que cante: 

é um menino guenzo 

como todos os desses mangues, 

mas a máquina de homem 

já bate nele, incessante. 

- Sua formosura 

eis aqui descrita: 

é uma criança pequena, 

enclenque e setemesinha, 

mas as mãos que criam coisas 

nas suas já se adivinha. 

- De sua formosura 

deixai-me que diga: 

é belo como o coqueiro 

que vence a areia marinha. 

- De sua formosura 

deixai-me que diga: 

belo como o avelós 

contra o Agreste de cinza. 

- De sua formosura 

deixai-me que diga: 

belo como a palmatória 

na caatinga sem saliva. 

- De sua formosura 

deixai-me que diga: 

é tão belo como um sim 

numa sala negativa. 

- É tão belo como a soca 

que o canavial multiplica. 

- Belo porque é uma porta 

abrindo-se em mais saídas. 

- Belo como a última onda 

que o fim do mar sempre adia. 

- É tão belo como as ondas 

em sua adição infinita. 

- Belo porque tem do novo 

a surpresa e a alegria. 

- Belo como a coisa nova 

na prateleira até então vazia. 

- Como qualquer coisa nova 

inaugurando o seu dia. 

- Ou como o caderno novo 

quando a gente o principia. 

- E belo porque o novo 

todo o velho contagia. 

- Belo porque corrompe 

com sangue novo a anemia. 

- Infecciona a miséria 

com vida nova e sadia. 

- Com oásis, o deserto, 

com ventos, a calmaria. 

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE 
QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR 
PARTE DE NADA 

- Severino, retirante, 

deixe agora que lhe diga: 

eu não sei bem a resposta 

da pergunta que fazia, 

se não vale mais saltar 

fora da ponte e da vida; 

nem conheço essa resposta, 

se quer mesmo que lhe diga 

é difícil defender, 

só com palavras, a vida, 

ainda mais quando ela é 

esta que vê, severina 

mas se responder não pude 

à pergunta que fazia, 

ela, a vida, a respondeu 

com sua presença viva. 

E não há melhor resposta 

que o espetáculo da vida: 

vê-la desfiar seu fio, 

que também se chama vida, 

ver a fábrica que ela mesma, 

teimosamente, se fabrica, 

vê-la brotar como há pouco 

em nova vida explodida; 

mesmo quando é assim pequena 

a explosão, como a ocorrida; 

como a de há pouco, franzina; 

mesmo quando é a explosão 

de uma vida severina.