Legião Urbana
História
Aborto Elétrico
BRASÍLIA, meados de 1978. Aos 16 anos, Felipe Lemos, filho de um professor da Universidade de Brasília, voltava de uma estadia na Inglaterra com os pais para morar num conjunto de quatro prédios, com vista para o Lago Norte, apelidado de Colina. Numa noite, uns amigos levaram Fê a uma festa onde a vitrola tocava músicas do Sex Pistols, Ramones e The Clash, as mesmas que Fê Lemos ouvia na Inglaterra. Querendo saber quem era o dono dos discos, Fê foi apresentado a um sujeito estranho, que usava camisa social e andava segurando uma capanga numa mão e um guarda-chuva na outra. Era Renato Russo. Por causa daqueles discos, Renato e Fê Lemos se tornaram amigos. Logo Renato estava enturmado na Colina, onde viria a se formar a maioria das bandas de Brasília. No começo era apenas uma turminha de garotos que gostavam de punk rock e se reunia para ouvir música.
Ainda em 78, Renato conheceu André Pretorius, que andava na cidade festido de punk e era filho de um diplomata da África do Sul. Pretorius e Fê haviam combinado montar uma banda com André Muller, que estava morando na Inglaterra. Mas Renato convidou Pretorius e Fê para formar uma banda. Renato Russo no baixo, Fê Lemos na bateria e André Pretorius na guitarra. O nome Aborto Elétrico veio sem querer. Eles estavam pensando um nome para a banda e Fê Lemos tava com a idéia de alguma coisa com elétrico, aí Pretorius falou : Aborto Elétrico.
Eles ensaiavam na Colina e o primeiro show foi instrumental, num barzinho chamado Só Cana. Foi o primeiro e único show com Pretorius na guitarra. Ele foi para a África do Sul servir ao exército de lá.
Flávio Lemos, irmão de Fê, assumiu o baixo e Renato pegou a guitarra. Os ensaios aconteciam na casa de Flávio e Fê, no Lago Norte.
Ainda em 1980, Pretorius voltou para umas férias em Brasília e participou dos ensaios cruciais para a criação de "Música Urbana", "Que País é Este", "Veraneio Vascaína", "Conexão Amazônica", e "Baader-Meihof Blues", todas músicas que teriam grande impacto na história do rock brasileiro.
Em 1985, André Pretorius morreu de overdose nos Estado Unidos.
Foi apenas em 1981 que o Aborto Elétrico começou a fazer bastante shows. No meio do ano, Ico Ouro-Preto assumiu a guitarra e Renato ficou apenas nos vocais. Renato vivia falando de como seria sua carreira numa banda de rock. O Aborto estava em plena atividade nas festinhas, nos colégios, nos festivais, mas para Renato era pouco. Fê Lemos não tinha nenhuma urgência nisso, mas Renato tinha outros planos. Talvez tenha sido isso um dos motivos do fim do Aborto.
Trovador Solitário
O fim do grupo aconteceu em março de 1982, por causa da música "Química', um dos primeiros clássicos da Legião Urbana. Segundo Renato, Fê disse que a música era horrível e o acusou de ter perdido o jeito de fazer música. Fê e Flávio Lemos foram convidados para entrar no Capital Inicial. Renato saiu do Aborto Elétrico e ficou sendo o "Trovador Solitário", cantava músicas que mais tarde seriam grandes sucessos na Legião Urbana, como Faroeste Caboclo. Mas Renato não queria seguir sozinho, achava que era importante ter uma banda no mundo do rock. Nesse momento Renato formou a Legião Urbana junto com Marcelo Bonfá, mas ainda não eram conhecidos pelo Brasil. Logo depois entrou Eduardo Paraná, que assumiu a guitarra. Paulo Paulista também entrou na banda, tocava teclado, mas saiu logo.
Depois saiu também Paraná e entrou Ico Ouro-Preto, mas a falta de um ritmo fixo de ensaios, além do lendário medo de palco, fez com que ele saísse da Legião Urbana sem ao menos ter se apresentado ao vivo. Na verdade, Ico se demitiu um mês antes da Temporada de Rock Brasiliense, deixando Renato Russo e Marcelo Bonfá na mão. Após várias tentativas de arrumar um guitarrista, aparece das sombras Dado Villa-Lobos, grande amigo e excelente guitarrista. Assim a Legião Urbana está formada.
Surge a Legião ...
Final de 83. Os também brasilienses Paralamas do Sucesso haviam acabado de serem contratados pela gravadora EMI. Durante as gravações do primeiro disco do trio, Cinema Mudo, um fato chamou a atenção de Jorge Davidson, diretor-artístico da EMI entre 83 e 93: "Estava no estúdio com os Paralamas e eles começaram a tocar Química", explica Davidson, que se impressionou com a música e foi falar com o vocalista e guitarrista da banda, Herbert Vianna. "Ele me disse que era de um amigo dele, chamado Renato Manfredini Jr., que morava em Brasília e era tudo que ele - Herbert - gostaria de ser. Isso me impressionou ainda mais, porque eu já achava aquele rapaz ali o máximo e ele estava me dizendo que o outro era mais maravilhoso ainda. A partir daí, me interessei em ouvir a Legião. Recebi uma fita - por meio dos Paralamas também. Era voz e violão, o Renato tocando Eduardo e Mônica, Geração Coca-Cola, entre outras. Aquilo me impressionou terrivelmente! Acabei de ouvir a fita e liguei para Brasília para convidá-lo a vir ao Rio conversar conosco."
"Foi muito rápido, na verdade", afirma Dado. "Entrei para a banda em fevereiro de 83 e a gente fez a primeira demo no Rio no final do mesmo ano. Nesse período o Renato cortou os pulsos numa tentativa fracassada de suicídio - ele cortou os pulsos e correu pra mãe: 'Manhê! Cortei os pulsos!' - e o levaram para o hospital. Ele já queria se ver livre do baixo. Apesar de ser um excelente baixista, ele ficava meio preso por ter que tocar e cantar. Aí, o Bonfá chamou o Negrete (Renato Rocha, gravou os três primeiros discos da Legião)."
Depois disso a EMI chamou eles para fazer uma espécie de demo que iria virar um compacto, mas acabou virando mesmo um LP, o primeiro da Legião, intitulado simplesmente Legião Urbana. O primeiro single, Será, fez grande sucesso no verão de 85 e transformou a Legião na mais nova sensação vinda de Brasília. O disco de estréia vendeu bem, surpreendendo a banda e a própria gravadora.
Mas o sucesso veio mesmo com o segundo disco, o Dois, de 86, que vendeu, na época, quase um milhão de cópias. O sucesso havia chegado para os punks de Brasília.
Em 87, a Legião lançou um terceiro disco, Que País é Este 1978/1987, marcado por releituras da fase punk com o Aborto Elétrico. O álbum aumentou o sucesso da Legião, trazendo todas as devidas consequências.
Em junho de 88, rolou em Brasília, no estádio Mané Garrincha, o show-caos, tido como fatídico por Dado. Além da falta geral de experiência na produção de eventos desse porte, Dado aponta como causa para a catarse do público a mistura altamente explosiva do repertório da banda com a atitude punk de Renato Russo.
A Legião abriu o show com Que País é Este e o público ficou fora de controle. Era punk rock brasileiro. Não era só entretenimento, era entretenimento e provocação, como se o Renato intimasse: "Eu quero respostas de vocês agora, já!" E era muita gente, o Mané Garricha lotado. Não demorou muito, jogaram bombas no palco. As grades de seguranças foram desencaixadas e passavam de mão em mão. Nisso subiu um cara que agarrou o Renato. Dado diz que o cara não ia fazer nada, mas foi assustador! Depois desse show a Legião nunca mais voltou pra Brasília.
Negrete sai fora ...
O disco seguinte, As Quatro Estações, de 89, foi marcado pela saída de Negrete e por uma retomada do caminho iniciado no Dois. Renato disse que eles precisavam fazer coisas mais leves. Daí, vieram Pais e Filhos, Monte Castelo, coisas bem mais espirituais.
Eles começaram a fazer músicas nos estúdios da gravadora, no Rio, e o Negrete tinha ido morar numa fazenda. Ele não aparecia e quem pegava o baixo era o Dado ou o Renato. E as coisas foram assim, até que o Negrete praticamente se auto-ejetou da banda. Marcelo Bonfá diz que se sentiu aliviado: "A gente estava no estúdio, fazendo As Quatro Estações. Ele chegava e ficava tocando pra dentro, sabe? Não saía nota nehuma. Sempre gostei dele, ele é muito legal, mas, musicalmente, a gente não se entendia." A Legião volta então a ser um trio.
Bum !!!
O disco As Quatro Estações, levou a Legião Urbana a estourar de vez. Eles fizeram uma extensa turnê pelo País, com estádios lotados, e tudo sempre correndo na santa paz. Parecia que as coisas estavam na boa, principalmente para Renato, que, resolvera, dois anos antes, em 88, assumir publicamente sua homossexualidade. Mas uma notícia mudou tudo. No final da excursão do As Quatro Estações, o Renato estava num estágio avançado de alcoolismo. Ele achou por bem ser internado numa clínica. Lá, fizeram, entre outros, o teste de HIV. Para a infelicidade de todos, o teste deu positivo. Novamente um diagnóstico médico mudou a vida de Renato e, consequentemente, de toda a Legião. Trabalhar muito, agora, era a maneira que eles encontraram de tentar superar um pouco disso tudo. Na época a banda sumiu de cena, parou de excursionar. A mídia e os fãs começaram a criar suposições sobre o que teria acontecido.
Viagem Progressiva
Em 91, em plena era Collor, longe dos palcos e com tudo "sob controle", a Legião lançou seu quinto álbum, V. Repleto de canções longas, com temas pesados, o disco é um retrato fiel da época. Dado Villa-Lobos comenta o trabalho: "O V é mais viajante que o As Quatro Estações. A gente estava numa viagem meio progressiva, com pop e tal. Ele fala muito sobre drogas. A Montanha Mágica é impressionante, uma das minhas músicas favoritas daquele disco. O Renato estava clean (sem usar drogas ou álcool) nessa época, mas havia passado por uma fase brava. Ele estava reestruturando a pessoa dele. Foi um disco estranho, foi uma época estranha. Parecia que tinha uma nuvem negra em cima da gente, e era o Collor. E foi um disco bem carregado de emoções e percepções daquela época."
Em 92, a Legião gravou o Acústico MTV, fazendo releituras desplugadas para sucessos da banda, além de algumas covers. Mas esse acústico não foi lançado na época. Acabou sendo lançado em 1999, depois de 3 anos do Renato Russo ter morrido.
Ainda em 92, foi lançado o Música p/ Acampamentos, com versões ao vivo e raridades da Legião, como a música inédita A Canção do Senhor da Guerra, e algumas covers como Gimme Shelter e On The Way Home numa versão um pouco diferente da que saiu no Acústico MTV.
Em 93 foi a vez de O Descobrimento do Brasil, sexto álbum com material inédito da banda. Segundo o batéra Marcelo Bonfá, O Descobrimento do Brasil foi uma evolução da Legião, em matéria de sonoridade.
Em 94, Renato lançou seu primeiro disco-solo, The Stonewall Celebration Concert. O álbum, cujo título cita o Stonewall, um evento marco na luta gay, é uma coleção de covers em inglês, como Cathedral Song da Tanita Tikaram e Cherish da Madonna.
Em 95, mais um solo de Renato, Equilíbrio Distante, desta vez uma visita ao universo pop romântico italiano. Tem músicas como Strani Amori e La Solitudine, que já conhecemos na voz da italianinha Laura Pausini.
Em 96, já debilitado pela doença, Renato gravou o que seriam as últimas músicas da Legião. Marcelo Bonfá conta que eles fizeram umas 30 músicas e como Renato ia pouco ao estúdio, ele acabou separando essas músicas em 2 listas e, no final das contas, Renato acabou aprovando essas listas preparadas pelo baterista.
Da primeira lista, resultou o disco A Tempestade Ou O Livro Dos Dias, de 96.
João Augusto, diretos artístico da EMI entre 93 e 97, ficou preocupado quando algumas rádios cariocas começaram a noticiar que Renato havia cometido suicídio. Tranquilizou-se ao ligar para a casa dele e descobrir que estava tudo bem. Sabendo dos boatos, Dado rumou ao apartamento do amigo em Ipanema e foi informado que Renato não comia havia vários dias e se recusava a sair do quarto. Pouco depois, Renato morria em seu apartamento no Rio de Janeiro.
Rafael Borges, empresário da Legião, conta como foi que recebeu a notícia: "O médico dele me ligou à uma hora da manhã dizendo que o Renato estava em estado crítico. Liguei pro Dado e pro Bonfá avisando. A gente já havia feito uma visita e sabia que ele estava na fase terminal, já estava em coma, e quando o médico me ligou, ele tinha acabado de falecer. Quando cheguei, o Dado e o Bonfá já estavam lá. Nós fomos encaminhando as providências práticas que deveriam ser tomadas de acordo com a vontade do Renato."
Em 97, foi lançado o disco da outra lista feita por Bonfá e aprovada por Renato, Uma Outra Estação. Embora a idéia era lançar esse disco com o intervalo que foi lançado, eles não cogitaram lançar depois do Renato ter morrido, mas como ele se foi antes o disco acabou sendo lançado mesmo com Renato já não estando mais aqui.
Ainda em 97, foi lançado O Último Solo, com canções que Renato havia gravado no seus dois discos solos anteriores, mas que acabou não fazendo parte do repertório, com excessão de Lettera, embora sendo numa versão diferente.
Em 98, foi lançado Mais do Mesmo, uma coletânea com 16 sucessos da Legião.
Em 99, foi lançado o Acústico MTV, gravado em 92. Na época eles não pensavam em um disco desse acústico, era só filmar, passar na MTV e pronto! É bem o que eles eram na época. É um registro histórico de tudo que estava rolando. O disco saiu na íntegra, com todos os comentários e também coisas que não passaram no programa, na época, tipo o Renato cantando uma versão de uma música do Menudo, Hoje a Noite Não Tem Luar (Hoy Me Voy Para Mexico), que acabou tocando nas rádios de todo o Brasil. O disco tem 76 minutos e é muito bacana.
Assim termina o ciclo da banda mais cultuada, amada e idolatrada do rock brasileiro, capaz de comover gente das mais diversas camadas sociais e faixas etárias. Nunca houve, nem tampouco haverá, uma banda no cenário do rock brasileiro, como a Legião Urbana. Banda que conquistou o coração de milhares de fãs e esses, por sua vez, não se esquecem das maravilhosas canções que Renato nos deixou... Não só o Renato, mas também Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, além daqueles que fizeram parte do Aborto Elétrico e até do início da própria Legião, e que, de alguma forma, estão presentes nos discos da Legião. As músicas ainda estão aí, para quem quiser ouvir, para quem sabe apreciar.
Se você acha que O Mundo Anda Tão Complicado e não sabe Que País é Este, então saiba que É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, afinal O Sol nasce pra todos, só não sabe quem não quer!!!