Sobre o livro Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia , de Carlos Fausto. São Paulo: EDUSP, 2001. 587 p. (com ilustrações, inclusive 50 fotos).

Resenha publicada com o título "A necessária relação com o inimigo" em Ciência Hoje, vol. 30, n° 178, pp. 80-81. Rio de Janeiro: SBPC, 2001.

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Quem se aventura a enfrentar as quase seis centenas de páginas desse volume de grande formato não se arrepende e, ao findar a leitura, sente-se bastante gratificado. O texto, nem sempre fácil, é no entanto bem escrito e prende a atenção, pois tem muito a dizer sobre uma série de questões cuja mera alusão mal cabe aqui.

Trata-se, antes de mais nada, de uma etnografia dos paracanãs, indígenas falantes de uma língua tupi-guarani que vivem entre os rios Tocantins, na altura da atual represa de Tucuruí, e o Xingu. Resulta de cerca de dezesseis meses de pesquisa de campo, distribuídos entre 1988 e 1995.

O cotejamento de fontes documentais produzidas por missionários e exploradores dos períodos colonial e imperial, e dos relatórios e diários de funcionários do SPI e da FUNAI, do período republicano, de um lado, com depoimentos dos paracanãs mais velhos relativos a acontecimentos vividos por eles ou por seus pais, de outro, trouxe para Carlos Fausto, e para nós seus leitores, resultados surpreendentes. Foi-lhe possível reconstituir a história paracanã desde o final do século XIX até os dias de hoje. Um conflito ocorrido por volta de 1890 cindiu-os em dois grupos: o oriental se manteve junto aos afluentes da margem esquerda do Tocantins, enquanto o ocidental tomou como base de saída e retorno de seus bandos as vizinhanças do rio Pacajá, que corre para o norte, a um terço da distância que separa aquele do Xingu. Tinham a seu dispor uma região previamente esvaziada de sua população indígena pelas incursões escravagistas do período colonial.

Além de se tornarem inimigos, os dois grupos tomaram orientações socioculturais divergentes. Os ocidentais aumentaram seus períodos dedicados a excursões de coleta, caça e guerra, vivendo em acampamentos e chegando finalmente ao abandono da agricultura. Os orientais mantiveram-se num só assentamento, que se deslocava quando necessário, com suas três partes bem definidas: a casa comunal, o pátio de reuniões e a roça. Se os ocidentais ampliaram suas possibilidades matrimoniais com mulheres tomadas à força de outros grupos indígenas, dos orientais inclusive, estes, por sua vez, diminuíram o déficit de esposas com a segmentação interna, dando origem a metades exogâmicas patrilineares.

Há entre nós a tendência a atribuir às instituições sociais indígenas uma idade imemorial, talvez porque as etnografias geralmente se restringem a retratá-las na época correspondente à visita do pesquisador. Por isso nos causa bastante surpresa saber que tamanhas diferenças surgiram entre os paracanãs orientais e ocidentais num período não maior que um século.

Entretanto, algo de muito mais profundo se mantém constante nos dois grupos: a necessária relação com o inimigo. Não se trata de um inimigo externo e temporário, como acontece nas modernas relações internacionais. Mas de um inimigo multifacetado e sem o qual não é possível existir. Dele não somente se tira a vida, se tomam as mulheres e se saqueiam a roça e a casa, mas também se obtêm, por intermédio dos sonhos, a cura e cânticos. Por isso não pode ser nem totalmente indiferenciado nem completamente aniquilado, pois dele é que se retiram os itens para a construção da pessoa paracanã. Alvo dessa "predação familiarizante", o inimigo é como que um xerimbabo, animal de estimação criado nas aldeias indígenas, mas do qual se podem tirar as penas para os adornos, ou com o qual os antigos tupinambás comparavam o prisioneiro, cuja morte ritual no pátio lhes produzia grande rendimento simbólico.

Ao longo do livro, cada tópico sociocultural paracanã é oportunidade para Fausto estender seu exame aos grupos tupis-guaranis vizinhos, aos tupis geográfica ou lingüisticamente mais afastados e até aos não-tupis. Essa constante comparação o conduz à distinção entre dois regimes sociocosmológicos indígenas. Em um deles, o centrífugo, a produção social da pessoa dependeria da aquisição contínua de potência captada no exterior da sociedade, tal como acontece com os paracanãs e demais tupis, os jívaros, os araras, os ianomâmis. No outro, o centrípeto, de que são exemplos os sistemas jês, bororo, alto-xinguano ou do alto rio Negro, a pessoa seria constituída pela transmissão interna de capacidades e riquezas simbólicas.

O livro é versão modificada de tese de doutorado defendida no Museu Nacional, merecidamente premiada no IV Concurso de Teses da Associação Brasileira de Antropologia e Fundação Ford em 1997.

Julio Cezar Melatti

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