Sobre os livros
How Real People Ought to Live — The Cashinahua of
Eastern Peru, de Kenneth Kensinger. Prospect Heights (Illinois):
Waveland Press, 1995. 305 pp.
e
La Griffe des Aieux — Marquage du Corps et
Démarquages Ethniques chez les Matis d'Amazonie, de Philippe
Erikson. Paris: Peeters/Centre National de la Recherche
Scientifique/SELAF nº 358, 1996. 370 pp.
Resenha publicada com o título "Duas etnografias, dois estilos" no Anuário Antropológico/96, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. pp.197-206.
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Um sugestivo artigo de Alcida Ramos (1987) mostra como diferentes autores — no caso, Napoleon Chagnon, Jacques Lizot e Bruce Albert — conduzidos por orientações teóricas distintas, mas também por suas idiossincrasias, podem oferecer imagens etnográficas bastante divergentes de um mesmo povo — no caso, os ianomâmis. Lembrei-me desse artigo ao fazer a leitura de dois livros recentemente publicados, um por Kenneth Kensinger e outro por Philippe Erikson, que, apesar de tratarem de grupos similares quanto à lingua e à cultura, diferem entre si profundamente.
Kensinger reuniu e adaptou, num volume de 25 capítulos, artigos seus já publicados, ou pelo menos lidos em congressos, desde 1973, referentes aos índios caxinauas do Peru. Já o livro de Erikson é basicamente sua tese de doutorado em Nanterre sobre os índios matis. Esses dois grupos indígenas falantes de línguas da família pano, do sudoeste da Amazônia, têm ambos representantes, os matis de modo exclusivo, no Brasil. [Ver nota] As diferenças começam pelas pesquisas de campo em que se apóiam as duas etnografias. Kensinger (: 1) passou 84 meses (ou seja, sete anos) entre os caxinauas do Peru (na área embutida no grande entalhe cuneiforme do mapa do Acre, onde o rio Purus entra no Brasil), entre 1955 e 1968, inicialmente como missionário- pesquisador do Summer Institute of Linguistics, tendo voltado a visitá-los por mais três meses, 25 anos depois, em 1993-1994. Erikson (: 24-25) passou 12 meses junto aos matis, no curso médio do rio Ituí, no sudoeste do Estado do Amazonas, em 1985-1986; uma outra etapa de pesquisa programada para mais alguns meses, em 1988, foi logo interrompida por sua expulsão pela FUNAI. A instalação do projeto Calha Norte teria dado pretexto para a interdição de sua pesquisa. Erikson (: 25) não deixa de reparar o contraste entre a presteza com que um barco foi fretado para retirá-lo da área indígena e a notada ausência de qualquer pressa em levar socorro médico aos índios em perigo de morte, pois, pouco antes de sua pesquisa, moléstias contagiosas haviam matado 48 matis (Melatti 1983), um terço de sua população.
Ainda quanto ao trabalho de campo, Erikson dedica seu primeiro capítulo para falar das circunstâncias de sua realização. Kensinger, apesar da longa duração, é mais parcimonioso em dizer algo do seu e de si. Ele também dedica seu capítulo inicial à apresentação de seus primeiros ensaios para aprender a língua e através dela familiarizar-se com a cultura dos caxinauas; entretanto, esse texto deixa transparecer mais um objetivo didático do que a intenção de situar-se na pesquisa. Não deixa nem mesmo claro se o seu trabalho inicial era exclusivamente de lingüística. É mais para o final do volume que ele revela um ou outro detalhe mais pessoal, do capítulo 18 ao 20. Neste último o leitor vem a saber que ele interrompeu por mais de uma vez seu trabalho entre os caxinauas para cursar antropologia, numa época em que começava a pôr em dúvida o caráter satânico da atividade do herborista indígena (Kensinger 1995: 227), mas não diz exatamente quando deixou a atividade missionária para dedicar-se exclusiva- mente à pesquisa etnográfica. Tal como Erikson, Kensinger (: 229) começou seu trabalho junto a uma população reduzida, pois quatro anos antes de sua chegada os caxinauas foram dizimados por uma epidemia que se seguiu à visita de um antropólogo brasileiro (ou seja, a epidemia teria grassado do Brasil para o Peru).
A própria apresentação gráfica dos volumes deixa transparecer duas posturas perante a pesquisa e sua divulgação, de um lado a tranqüila simplicidade do velho Kensinger e de outro a sôfrega diligência do jovem Erikson. Este inicia cada capítulo obrigatoriamente com uma ou duas epígrafes; seu livro, no formato de 16x24 cm, ultrapassando de um centímetro o de Kensinger tanto na largura como na altura, está impresso em papel mais espesso, semi-brilhante, e tem suas três partes separadas por dois cadernos de magníficas fotos batidas pelo autor; além de disso, o volume traz gravuras tomadas de livros de cronistas relativas a outros grupos panos, desenhos feitos a partir de fotos já publicadas, sem falar dos gráficos e esquemas. Já no volume de Kensinger, geralmente cada capítulo termina com um resumo, cujo título traz as palavras "sumário", "conclusão" e/ou "discussão"; traz também gráficos ilustrativos e, o que mais cativa, apresenta várias páginas em que justapõe duas fotos de uma mesma pessoa tomadas com pelo menos 25 anos de diferença, permitindo ao leitor comparar não somente a transformação física do fotografado, mas também as modificações no ambiente cultural, como vestes, objetos, construções.
Dir-se-ia que os dois trabalhos se desenvolvem em espaços e tempos distintos. No que tange a espaço, nota-se, de um lado, a concentração quase exclusiva de Kensinger sobre o mundo caxinaua, a ponto de sair dele apenas uma vez, para ensaiar uma comparação, no capítulo 13, sobre a terminologia de parentesco e organização social pano; mesmo assim, além dos quadros finais, só dedica duas páginas à comparação propriamente dita; nas demais fica com os caxinauas. Erikson, por outro lado, procura com afinco situar os matis sobre o fundo cultural dos panos, mostrando grande conhecimento de uma extensa bibliografia sobre os indígenas desse conjunto etnolingüístico. Isso não quer dizer que Kensinger a desconheça, pelo contrário: o primeiro levantamento bibliográfico pano com que entrei em contato no início da década de Oitenta estava sendo organizado por ele. Além disso, cultiva um interesse geral pelos temas relativos aos índios da América do Sul, como demonstra o seminário que atér recentemente promovia todos os anos no Bennington College, em Vermont, no início de agosto, quando, durante três dias, numa grande sala de estar, umas duas dezenas de pessoas, dentre etnólogos, arqueólogos, lingüistas, enfim, aqueles que desejavam comparecer, apresentavam e discutiam de modo bastante informal seus trabalhos, num ambiente de extrema simpatia.
Eu diria que alguns capítulos de Kensinger têm a delicadeza de iluminuras, nos quais ele traça com mão firme, dentro da moldura das regras sociais, o espaço de movimentação deixado aos indivíduos. Tocou-me de modo especial o capítulo 4, onde através do exame de dois incidentes, mostra como os participantes de rituais devem se controlar para que motivos pessoais não se apoderem da expressão dos atos simbólicos, no caso a agressão ritual entre pessoas de sexos opostos. De modo semelhante, no capítulo 15, também através da análise de dois casos, ilustra como uma comunidade caxinaua pode corrigir o comportamento anti-social de um de seus membros, colocando-o no ostracismo, isto é, agindo como se ele não existisse.
Erikson, por sua vez, demonstra seu interesse por um espaço mais amplo, oferecendo, logo em seu segundo capítulo, um panorama dos grupos panos, do sudoeste da Amazônia, localizados no Brasil, Peru e Bolívia, desde os mais conhecidos até aqueles com que se tem menos contato, sobre os quais as informações, por isso mesmo, são extremamente precárias. Por exemplo, um dos grupos que inclui entre os panos são os caripunas de Rondônia, que mais recentemente têm sido arrolados com os tupis-guaranis. Com base em critérios lingüísticos, distribui os grupos panos em oito sub- conjuntos. Num deles, para o qual reserva o nome maioruna, inclui os panos mais setentrionais: os matis do Ituí, os matsés do Javari, os corubos da confluência Ituí-Itacoaí, os culinas-panos do Curuçá, os mangeromas (mangeronas, majurunas) do Solimões, e, à espera de averiguação, os maiás do rio Quixito (afluente do Itacoaí), os arredios do rio São José (afluente do Itacoaí), do rio Jandiatuba e do rio Jutaí. Obviamente, a julgar pelo número de grupos pouco conhecidos arrolados, o sub-conjunto dos maiorunas constitui uma tentativa preliminar. Em seguida, no terceiro capítulo, Erikson se apega a todo e qualquer detalhe lingüístico ou etnográfico que evoque alguma semelhança com os maiorunas mais conhecidos, que são os matis e os matsés, de modo confirmar a existência desse sub-conjunto ao longo do tempo, desde o período colonial, sem explicitar claramente que características distinguiriam os panos setentrionais dos demais. Uma delas, a barba, figura no exemplo mais extremado desse seu esforço, que é a citação tirada a um relatório de um funcionário da FUNAI, referente a índios desconhecidos do igarapé Choa, um afluente do alto Itacoaí, segundo o qual "os canamaris que já os encontraram na floresta os descrevem como índios muito claros e cuja barba desce até o peito" (Erikson 1996: 62). Ora, longe de querer negar o valor social e simbólico da barba para os matis, convincentemente demonstrado por Erikson em capítulos posteriores, vale reparar o acesso bastante indireto que teve a esse dado, somado à predisposição dos regionais a verem índios barbudos (Coutinho Junior 1993). O interesse de Erikson pelo conjunto pano torna-se ainda mais evidente pela nova pesquisa que iniciou mais recentemente sobre os chacobos da Bolívia.
Se para Erikson, em suma, os matis são antes de tudo panos, para Kensinger o único conjunto interposto entre os caxinauas e a humanidade é, quiçá, o dos indígenas da Amazônia, abstratamente aludidos quando comenta a tese da carência de proteínas, ou talvez nem esse, como ilustra outra questão trazida ao fórum caxinaua, a da dominância masculina, que diz mais respeito à civilização ocidental.
Além de espaços diferentes, nossos etnólogos como que se movem também em tempos distintos, sobretudo no trato dos grupos de descendência, da residência, do parentesco e do casamento. Kensinger se mantém no tempo cíclico interno do sistema tipo kariera, ordenador da estrutura social caxinaua. Já Erikson, trabalhando sobre o fundo cultural geral dos panos e tolhido pelo déficit demográfico dos matis, coloca-se no tempo irreversível, mas onde as transformações históricas se fazem conduzidas pelas linhas de clivagem da estrutura. Começa no capítulo 5 pela procura do que teria restado de possíveis metades patrilineares matis, tomando como ponto de referência as metades matsés (propondo um nova tradução para o nome de uma delas, de modo a revelarem uma oposição mais consistente, jaguar/fermento ao invés de jaguar/verme) e mostrando que a recusa em integrar plenamente os descendentes de estrangeiros introduzidos em seu meio há muitas décadas vem a satisfazer uma necessidade simbólica. O dualismo tsasibo/ayakobo, que aí põe em evidência, vai se tornar pano de fundo de toda a análise simbólica que desenvolve ao longo do livro. Além disso, no capítulo 7, Erikson tem de lidar com o casamento oblíquo, que seria uma solução recente altamente conflitante com o sistema matis, também de tipo kariera, apesar da ausência de metades e de seções matrimoniais, mas expresso de modo firme na onomástica. Com a feliz expressão "incesto preferencial", ele mostra como o casamento avuncular tem seu precedente na intimidade gerada pelas atribuições do tio materno, de alargar gradualmente com os dedos a vagina da sobrinha, preparando-a para desposar seu filho. Para o casamento com a irmã do pai, ainda mais impróprio, por atentar contra as tendências patrilineares, postula como explicação a simetria com o avuncular; lança mão também da analogia com os matsés, pela tendência do captor introduzir a mulher raptada em sua casa, tal como filha, e ao mesmo tempo casar com ela. Além disso, o fato de os captores serem muito mais velhos do que elas e morrerem mais cedo não raro levava estas mulheres a se casarem com um filho do falecido marido. Assim, se no caso do casamento avuncular o pai se antecipa ao filho, aqui o filho segue o pai.
As poucas referências que Kensinger faz aos nomes pessoais caxinauas, estão sempre vinculadas às caracterização das seções, em cujo interior se faz sua transmissão. Erikson dedica seu oitavo capítulo inteiramente aos nomes, para concluir (: 169) que eles induzem conjuntos a que pouco falta para seções, que entre os matis não são explicitamente reconhecidas.
O grupo local é tratado em Kensinger em termos de expectativas ideais: qual a composição que os caxinauas consideram correta, ou pelo menos aceitável? Deve ter dois homens focais, casados com irmãs um do outro, esperando-se que seus filhos também venham a trocar irmãs, e assim pelas gerações sucessivas, de modo que as metades e as quatro seções estejam representadas. No seu décimo capítulo, Kensinger ilustra a discussão com o exemplo de três aldeias do rio Curanja. A julgar por elas, os grupos locais caxinauas reúnem um certo número de grupos domésticos, cada qual a ocupar uma construção cujo aspecto lembra mais a casa de um civilizado regional. No capítulo 14, diz que, de modo ideal, a aldeia é social, econômica e politicamente autônoma. Consiste numa única casa que, de acordo com a população, pode se desdobrar em duas ou, como acontece atualmente, até em mais. Os homens focais já não são os cabeças do grupo doméstico, mas líderes de suas respectivas metades, apoiados por parentes dispersos por diferentes casas (: 176-177). Kensinger não apresenta em seu volume uma descrição dessas construções, como seus habitantes se distribuem em seu espaço interno e dele fazem uso. Mas nesse mesmo capítulo, através da análise de dois exemplos da disputa de chefia, deixa claro como os arranjos de casamentos, que reordenam o controle das áreas de caça e daquelas próprias ao cultivo de roças, atraindo ou deixando partir dissidentes, são recursos a que lançam mão os líderes para sustentarem sua posição.
Erikson, por sua vez, estimulado pela presença da maloca tradicional matis, quase que faz o oposto: no seu nono capítulo, dedica-se à descrição material da maloca matis, relaciona sua ocupação com o simbolismo das oposições entre masculino e feminino, parentes e afins, mais velhos e mais novos, montante e jusante, trocano e pilão, além de opor o uso e atitudes com respeito à maloca tradicional e às construções copiadas dos sertanejos regionais. Mostra uma importante implicação política na construção da maloca, uma vez que seu dono é aquele que tomou a iniciativa de construí-la e lidera aqueles que escolheram viver nela. Mas não apresenta a distribuição dos moradores numa maloca concreta. Talvez esta falta se deva à ausência de um bom exemplo, uma vez que os matis apresentavam durante sua visita um déficit populacional significativo.
Enfim, Kensinger (: 102, 140, 291) parece mais interessado no resgate do êmico, com as classificações explícitas, aluno que foi de Goodenough, e influenciado por Pike, com sua conhecida ascendência sobre o Summer Institute of Linguistics. O balizamento das ações concretas por marcos ideais parece dar a tônica de todo o seu livro, o que fica mais evidente a partir do capítulo 7, onde Kensinger mostra como diferentes domínios léxicos podem ser divididos em duas grandes categorias qualificadas por quatro morfemas, dois dos quais significam "real" (real, verdadeiro, conhecido, atual, primário) e os outros dois "irreal" (irreal, falso, desconhecido, não-familiar, hipotético, secundário). Kensinger só conseguiu apanhar sua correta aplicação quando percebeu que a oposição "real"/"irreal" pode ser tomada segundo três polaridades distintas, expressas pelos termos kuin1/kuinman1, kuin2/bemakia2 e kayabi3/bemakia3, aos quais acrescentou os índices numéricos para melhor indicá-las, pois um mesmo morfema varia sua significação ao passar de uma polaridade para outra. A polaridade 1, de caráter ideal, tende a ser usada quando um tópico é discutido em termos abstratos. A polaridade 2, de caráter existencial, é preferida nas situações em que o informante está pessoalmente envolvido. A polaridade 3, de caráter pragmático, predomina nas discussões de casos concretos que o comentador observa de fora. Aplicadas no mesmo capítulo como ilustração no domínio dos animais comestíveis e não-comestíveis e na classificação de parentes, essas polaridades vão retornar em vários outros capítulos: no oitavo, sobre classificação das relações de "siblings"; no nono, onde eleva a quatro o número de polaridades, sobre as regras de casamento; no décimo, sobre tempo e espaço sociais; no undécimo, sobre pessoa e "self"; no décimo sexto, sobre tabus alimentares. O entendimento dessas polaridades sem dúvida foi facilitado a Kensinger, pelo seu profundo conhecimento da língua caxinaua.
A partir da pergunta "Por que os caxinauas usam penas?", feita aos seus informantes, Kensinger ordena o capítulo 24 conforme as respostas que eles lhe deram: porque as penas estão disponíveis, porque elas são bonitas e porque são úteis. Ou seja, toda a sua elaboração se faz com base nos motivos conscientes apresentados pelos índios. Erikson, atento à tradição estruturalista francesa, dá aos adornos corporais um tratamento completamente diferente, como ilustram os capítulos (do 10 ao 17) que constituem a terceira parte ("Preparo do corpo, amargor e ornamentos dos ancestrais") do seu livro. Aqui é o autor quem faz as correspondências simbólicas entre itens diversos e com freqüência vai à etnografia de outros grupos panos à procura de subsídios. É bem verdade que as duas sociedades indígenas, tal como seus etnólogos, também se afastam uma da outra, mas aí quanto à matéria-prima e a forma da ornamentação corporal. A simples observação das fotos mostra que os caxinauas são exímios na plumária, aplicada sobretudo à cabeça, e executam elaboradas pinturas de corpo. Os matis, por outro lado, usam de conchas, madeiras e espinhos em profusão, introduzidos em inúmeros orifícios feitos no rosto. De plumária, só as duas grandes penas de arara da máscara dos Mariwin. A simbologia da ornamêntica (termo cunhado por Mauss, que ele resgata) matis é examinada em íntima inteiração com a construção do corpo, numa problemática cara aos etnólogos brasileiros, que são freqüentemente citados, ao contrário de Kensinger, que pouco apela para os trabalhos de pesquisadores sul-americanos.
Mesmo a problemática da construção social do corpo não aproxima os dois autores, como seria à primeira vista de esperar diante do 22º capítulo ("O corpo sabe — Perspectivas caxinauas do conhecimento") de Kensinger, um dos textos mais fascinantes do seu volume. Descreve a cena de um líder a narrar um mito após uma refeição e focaliza a atenção, comentários e reações dos ouvintes a cada detalhe. É a história do encontro de um tapir, que em nada pensava a não ser em sexo, com uma jabota à qual propõe relações sexuais. Aceito o convite, o tapir, que nunca tinha copulado com semelhante ser, pergunta-lhe onde deve introduzir o pênis. A jabota lhe oferece a boca. Quando ele está prestes a alcançar o orgasmo, ela trinca-lhe os dentes, decepando o pênis. O tapir morre. Dentre os ouvintes, um pai se dirige à criança que está sentada entre suas pernas e comenta: "Meu filho, isso é o que acontece quando todo o seu conhecimento está nos seus testículos." Intrigado com esse comentário, Kensinger começa a indagar sobre a parte do corpo em que fica localizado o conhecimento e chega a um resultado surpreendente: diferentes tipos de conhecimento têm suas sedes em distintas partes do corpo. O saber associado ao trabalho físico, tanto masculino como feminino, está localizado nas mãos; o relacionado ao mundo natural, como os hábitos dos animais, o sol, o vento, tem sede na pele; o da verdadeira natureza das pessoas e das coisas está nos olhos; o conhecimento social, nas orelhas; o da mortalidade e imortalidade, da força vital, nos órgãos genitais (donde se vê que o tapir não era sábio nem mesmo quanto a este setor); o das emoções, no fígado. Mas Kensinger não conseguiu respostas unânimes sobre o locus do pensamento: no coração, no fígado, no corpo de um modo geral, mas nunca no cérebro. Vinte cinco anos depois, ao revisitar os caxinauas, cérebro e coração tinham sido erigidos em sedes de conhecimentos específicos. No cérebro agora estava o conhecimento da leitura, da escrita, da instrução escolar. No coração, o conhecimento do cristianismo.
É um texto sedutor, pelas semelhanças etnográficas que evoca e pelas questões que suscita. Por um lado, a distribuição do conhecimento pelas partes do corpo lembra a construção heteróclita dos espíritos das doenças nos cânticos de cura marubos (Montagner 1996), lembra também as diferentes sedes das almas no corpo conforme os marubos (Montagner 1996) e os matis (Erikson 1996). A reserva de duas partes do corpo para os conhecimentos provenientes dos civilizados, além da sua inclusão na categoria tapin, distinta daquela em que estão incluídas as formas de conhecimento mais antigas, una, lembra separação de ambientes nos grupos locais marubos e matis: a maloca para as atividades tradicionais e as construções sobre pilotis para as atividades relacionadas aos civilizados.
Entretanto, soa estranho que duas partes do corpo, como o cérebro e o coração, tenham ficado à espera do contato com os brancos para serem preenchidas. Entre outros índios panos o coração é uma sede importante: segundo Erikson (: 242), os matis percebem o coração como sede da "inteligência/alma"; também os marubos o tomam como lugar de habitação de uma das almas principais (Montagner 1996).
Intrigante também é a falta de atribuição pelos caxinauas de um conhecimento à boca, quando Erikson inicia sua terceira parte justamente com a importante oposição entre o doce- salgado (não há distinção entre um e outro para os matis) e o amargo-ácido, o caráter feminino do primeiro e masculino do segundo, a importância do primeiro para as atividades de caça e xamânicas, a acumulação de uma força chamada sho em decorrência da evitação dos alimentos doces-salgados e consumo das substâncias amargas-ácidas, a periculosidade do sho para os outros e para seu próprio portador, a atribuição da dizimação de sua população por doença originada no contato com os brancos por um excesso de sho e o abandono da procura dessa força, a suposição de que o abandono do xamanismo e plantas a eles relacionadas, como o tabaco, antes do contato com os civilizados se deva a surtos epidêmicos mais antigos. Como se fosse para acentuar a divergência, Erikson intitula esse capítulo "Sapiência e sapidologia".
Tampouco se pode associar a conhecimento cutâneo da natureza às perfurações no rosto dos matis (ou mesmo a elaborada pintura corporal caxinaua). Embora Erikson seja de opinião que os bastões de madeira, de espinhos de palmeira, de concha nelas introduzidos não marcam os órgãos segundo sua importância social do mesmo modo que Seeger admitiu para os batoques labiais e auriculares suiás, considera os enfiados em torno da boca como antecessores da esperada pilosidade natural, símbolo da plenitude social, de que são paradigma os personagens rituais Mariwin.
Em suma, é vã a expectativa de uma convergência de resultados dos trabalhos de Kensinger e Erikson. É como se dois sapadores, tendo começado a escavação de um túnel cada qual por uma extremidade, tenham passado um pelo outro sem se encontrarem.
COUTINHO JUNIOR, Walter Alves. 1993. Brancos e Barbudos da Amazônia: Os Mayoruna na História. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB-IH-Departamento de Antropologia.
MELATTI, Julio Cezar. 1983. "Os Índios Esquecidos do Javari". Jornal de Brasília, 27-8-83. p. 15
MONTAGNER, Delvair. 1996. A Morada das Almas — Representações das Doenças e das Terapêuticas entre os Marúbo. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. 132 pp.
RAMOS, Alcida. 1987. "Reflecting on the Yanomami: Ethnographic Images and the Pursuit of the Exotic". Cultural Anthropology 2 (2): 284-304.
Nota: Na verdade, há mais um livro recente sobre índios panos que vivem no Brasil. É o de Delvair Montagner (1996) sobre os marubos. Mas não tenho a devida isenção para comentá-lo, por ser ex-marido e ex-colega de pesquisa de campo da autora. Voltar ao texto
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