Sobre o livro Comendo como gente: formas do canibalismo Wari', de Aparecida Vilaça. Rio de Janeiro: Editora UFRJ e ANPOCS, 1992. 363 p.

Resenha publicada em Ciência Hoje, vol. 16, nº 91, pp. 8-9, junho de 1993.

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Premiada como a melhor dissertação de mestrado em ciências sociais de 1989 pela Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), e por isso publicada com seu apoio, acaba de sair sob a forma de livro a tese de Aparecida Vilaça, uma das cinco realizadas sobre os índios pacaás novos, do Estado de Rondônia. As quatro outras são a de Alan Mason, apresentada em 1977 na Universidade da Califórnia; a de Bernard van Graeve, no mesmo ano, na Universidade de Toronto; a de Denise Maldi Meireles, em 1986, na Universidade de Brasília; e a de Beth Conklin, em 1989, na Universidade da Califórnia.

É uma produção considerável sobre uma mesma sociedade, se levarmos em conta que vive numa área pouco freqüentada por etnólogos, a ponto de não se dispor de nenhum trabalho recente de fôlego sobre o outro grupo que, junto com os pacaás novos, faz parte da família lingüística txapacura: os itenes ou morés, da Bolívia. E nem sobre os vizinhos, igualmente na Bolívia, da família tacana, por alguns tomados como constituintes de uma só unidade lingüística junto com os txapacuras: os araonas, os cavinenhas, os reiesanos, os tacanas e os esse-ejas (sobre estes últimos há o trabalho de Mnislav Zeleny). Isso nos faz indagar do porquê dessa especial atenção.

Se a antropofagia não fizesse parte de seus ritos funerários, teriam os pacaás novos sido alvo do mesmo interesse? Mas se essa fosse a razão, por que o livro de Aparecida Vilaça é o primeiro que dirige o foco diretamente para o seu canibalismo? É certo que podemos encontrar outras razões para o interesse nos pacaás novos, como, por exemplo, no fato de se localizarem numa área geográfica que constitui uma ponte entre as sociedades indígenas amazônicas e as do Brasil Central, ou na presença de vários aspectos de sistemas sócio-ideológicos amazônicos. Isso foi acentuado por Eduardo Viveiros de Castro em sua "Apresentação" do livro, que, aliás, vale por uma ótima resenha, uma vez que, como orientador da dissertação e diretor do projeto geral do qual ela é um dos resultados parciais, localiza com clareza a pesquisa de Aparecida Vilaça no entrecruzamento das questões que atualmente suscitam as sociedades indígenas sul-americanas.

Mas, poderíamos supor também que os pacaás novos, ao mesmo tempo que seduzem pela antropofagia, frustram e desviam a atenção dos pesquisadores para outros temas, por a terem abandonado após o contato com a sociedade brasileira. Porém, Aparecida Vilaça, seguindo a trilha aberta por Eduardo Viveiros de Castro em Araweté: os deuses canibais, mostra que é possível considerar o canibalismo, mesmo naquelas situações em que não há acordo intersubjetivo e/ou intercultural sobre a ocorrência de ingestão de partes do corpo humano.

Como realizei pesquisa de campo entre indígenas localizados em dois pontos bem afastados um do outro — os craôs, timbiras (da família lingüística jê) do norte do Estado do Tocantins, e os marubos (da família pano), do sudoeste do Estado do Amazonas — o livro de Aparecida Vilaça me desperta grande interesse por mostrar aspectos que os pacaás novos partilham com essas sociedades, uma a oriente e outra a ocidente. Assim, tal como os craôs, os pacaás novos se utilizam de uma terminologia de parentesco de feição "crow-omaha", como acontece com outras várias sociedades indígenas distribuídas numa faixa que se estende do Maranhão a Rondônia, prolongando-se pela Bolívia. Acredito que continua sendo um problema compreender a razão da presença desse mesmo tipo de terminologia em sociedades tão diferentes. Porém, como previne Aparecida Vilaça em sua "Introdução", as questões relativas ao parentesco não são objeto de seu livro. Mesmo assim, ela discute alguns itens relativos ao tema, e apresenta extensas genealogias em apêndice, o que poderia ter sido reservado para outro trabalho.

Por sua vez, o exame das categorias wari' e karawa, envolvidas no exercício do canibalismo, sem dúvida evoca questões levantadas em pesquisas realizadas no Brasil Central, como a distinção entre "nós" e "outros", explorada no estudo dos xavantes por David Maybury-Lewis, e nas outras pesquisas atinentes ou subseqüentes ao projeto de estudo comparativo das organizações sociais indígenas do Brasil Central, dirigido por ele, como professor de Harvard, e por Roberto Cardoso de Oliveira, então do Museu Nacional. O termo "parentes consubstanciais" ou "consubstancialidade", freqüentemente usado pela Autora, evoca diretamente o "parentesco de substância", de Roberto Da Matta, cuja pesquisa sobre os apinajés fazia parte, tal como a minha sobre os craôs, do referido projeto. A distinção entre parentes próximos e distantes, analisada de modo exemplar por Roberto Da Matta no caso apinajé, a Autora mostra ser fundamental na discussão do canibalismo pacaá novo, uma vez que se proíbe aos próximos, pelo menos os consubstanciais, de participarem da refeição funerária, para a qual são convidados os distantes, aqueles entre os quais se recrutam os afins efetivos.

Já os três ritos pacaás novos cuidadosamente descritos e analisados — tamara, hüroroin' e hwitop' — me remetem para oeste, para os marubos, cujos ritos de recepção de visitantes partilham alguns detalhes com aqueles apresentados por Aparecida Vilaça: limpeza do caminho por onde chegarão os convidados, recepção no caminho com oferecimento de alimentos, destruição da cobertura da casa pelos visitantes, apropriação de artefatos pelos anfitriões.

O convite à comparação se reforça quando percebo que o mito pacaá novo de Pinom, relacionado ao canibalismo, contém motivos presentes em três mitos marubos. Um deles é o da velha Shoma Wetsa — que comia gente, mas não como gente — a propósito do qual já tive a oportunidade de publicar um artigo nesta revista (Ciência Hoje n° 53, 1989, págs. 56-61). Outro é o mito do sovina que detinha a semente do milho, cuja versão marubo não está divulgada, mas conhecido através de trabalhos publicados sobre outros índios panos. Finalmente, o cipó que pende do céu (Pinom) lembra o mito marubo, também não publicado, do homem que morreu, mas voltou ao mundo dos vivos, para buscar a esposa que chorava por ele e o filho, subindo um de cada vez a uma camada celeste por um fio de algodão, que foi cortado quando subia por ele uma outra esposa que o desprezava.

Os marubos, tal como outros grupos da mesma família lingüística — a pano —, também praticaram a antropofagia funerária. E vale notar que os panos menos conhecidos vivem relativamente próximos dos pacaás novos: os chácobos, os pacauaras, da Bolívia, e os caxararis, do Brasil.

Um último reparo que faria é quanto ao uso do termo "devorar". A Autora descreve muito bem as diferentes maneiras de comer dos pacaás novos conforme se trate de um parente — assado em início de decomposição, desfiado em pedacinhos, levados à boca com ajuda de palitos, com desgosto e parcimônia —, um inimigo — a carne mordida com raiva ainda presa aos ossos —, ou um animal — em pedaços maiores apanhados diretamente com as mãos. Embora o primeiro sentido de "devorar", conforme o dicionário que tenho à mão, seja "comer com sofreguidão", ela aplica o termo de modo, à primeira vista, indiferente, até mesmo quando alude à ingestão da carne de um parente. Mas Autora parece ter dado ao termo um sentido especial, que não explicitou para os leitores. Ficou-me a idéia de que "devorar" é comer o que é humano: nunca os parentes consubstanciais, que seria comer a si mesmo; sim os parentes distantes, os afins efetivos, embora designados no convite com termos cognáticos e comidos sem mostras de prazer; sem dúvida os inimigos; nunca os animais, uma vez que práticas xamânicas se exercem no sentido de desumanizá-los antes do consumo, caso algum deles seja identificado com um parente já falecido. Tal como o casamento, o canibalismo se exerce no trecho intermediário de um continuum: nem muito perto e nem longe demais.

Não raro se "devora", numa metáfora do sentido vulgar, um livro que há muito se espera. Mas esta também não é a maneira adequada de consumar a leitura do livro de Aparecida Vilaça. Um bom livro se lê devagar e a ele se retorna várias vezes, e a cada vez se descobre algo ainda não percebido. Por isso, esses comentários, que decorrem de uma primeira leitura, constituem apenas uma notícia e não um exame da contribuição que tem a dar para a discussão de um dos principais complexos de questões relativos às sociedades indígenas de nosso continente.

Julio Cezar Melatti

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