Sobre o livro Nomes e Amigos: da Prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê , de Aracy Lopes da Silva. São Paulo: USP-FFLCH, 1986. 340pp. (Antropologia,6)trabalhos de Antropologia.
Resenha publicada com o título "Personagem e Pessoa" no Anuário Antropológico/87. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. pp. 277-286.
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Em boa hora a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo começou a publicar suas dissertações de mestrado e teses de doutorado numa simpática coleção de volumes de pequeno formato e capa branca. Pena que as brochuras não têm costura e soltam suas páginas nas mãos do leitor que submetê-las a um manuseio mais entusiástico. Essa iniciativa editorial nos dá acesso, através de seu sexto volume,à tese de Aracy Lopes da Silva, defendida em 1980, sobre os nomes pessoais e a amizade formalizada entre os Xavantes.
Num livro sobre esse tema, não deixa de ser curioso que a autora se atrapalhe um pouco com suas próprias amizades. Assim, na página destinada à dedicatória, parece oferecer o livro a cinco pessoas: no meio da página, para Túlio e Cecy; no pé da mesma página, para seus pais e para Rubão, in memoriam. Porém, na parte dedicada aos agradecimentos, o trabalho é dedicado ao falecido Xavante Cláudio Aihé'hédi (p. 10), cujo nome, entretanto, não figura na página da dedicatória.
João Batista Borges Pereira, diretor da Faculdade, recebe agradecimento especial por ter tornado possível a inclusão do trabalho na coleção (:11),donde se deduz que é o responsável pela mesma, embora isso não conste na página de créditos competente. Aliás, Borges Pereira sempre procurou ampliar as oportunidades de publicação dos trabalhos de Antropologia. Eu mesmo devo a seus esforços a publicação de dois livros meus, O Messianismo Krahó e Ritos de uma Tribo Timbira (Melatti, 1972 e 1978), o que, aliás, nunca lhe agradeci de público.
Só na página 58 é oferecida uma chave da grafia das palavras xavantes, depois de o leitor ter passado por várias delas no texto. Embora aí se atribua ao dígrafo nh o mesmo valor que tem na grafia do português, em várias ocasiões ao longo do livro a autora faz uso do ñ ao invés daquele. A explicação da vogal representada pelo o tremado também deixa a desejar, uma vez que a convenção correspondente utilizada por Maybury-Lewis (1967: xvii) não está bem reproduzida, e o que ele interpreta como brevidade foi traduzido como não acentuação (Maybury-Lewis, 1984: xi).
Embora ofereça mapas (:33-34 e 41-42) e um Quadro Geral das Reservas Xavante (:50), ao referir-se às aldeias em que realizou pesquisa de campo (:61), não indica as reservas onde estão situadas, o que só é possível ao leitor inferir nos casos em que o nome da reserva — Couto Magalhães —, dos rios que a cortam ou limitam — Paraíso, São Marcos — ou ainda o nome do posto indígena — Paraíso — coincidem com os nomes das aldeias. Mesmo que o leitor recorra ao Apêndice III (:303-307), onde há um levantamento demográfico geral da população Xavante, aí não encontrará todas as aldeias em que a autora esteve.
A divisão dos Xavantes em Orientais e Ocidentais, importante por causa de algumas diferenças, como a presença de metades exogâmicas entre estes, mas não entre aqueles (: 62-63 e 73-74), e porque a pesquisa da autora incidiu sobretudo junto aos segundos, enquanto a de Maybury-Lewis se fez principalmente sobre os primeiros, tem sua localização obscurecida pela redação de uma nota de pé-de-página (: 35, nota 7), onde a distinção dual Orientais/Ocidentais é seguida de uma distribuição tripartida em áreas ordenadas, justamente, no sentido inverso — Xingu/alto rio das Mortes/baixo rio das Mortes — sem uma explícita correspondência termo a termo entre aquela e esta.
Já na página 98, estabelecem-se convenções supérfluas — para mortos e classificatórios — pois não são usadas nos gráficos genealógicos que se seguem (: 98-101). Aliás, a ilustração ficaria mais clara se cada caso fosse representado por um único gráfico, ao invés de partido numa seqüência de dois momentos, o que obriga o leitor a ligá-los mentalmente.
Mas deixemos de lado os detalhes.
O livro pode ser dividido em quatro partes: a) a colocação do problema e informações gerais sobre os Xavantes atuais (Introdução); b) o sistema xavante de atribuição e transmissão de nomes pessoais comparado aos das demais sociedades Jês (Capítulos I, II, III e IV); c) a maneira xavante de fazer companheiros-amigos formais em contraposição às dos outros Jês (Capítulo V); e d) a questão da identidade e da alteridade entre os Jês vista através do prisma xavante. O livro reproduz com tal meticulosidade as regras xavantes referentes a nomes e relações de amizade que seria impossível delas aqui fazer um sumário sem incorrer em detalhamento. Prefiro, portanto, tocar apenas numas poucas questões que mais aguçaram minha atenção.
Embora a autora leve em consideração os trabalhos de todos aqueles que realizaram pesquisa com os Jês, toma como seus interlocutores principais David Maybury-Lewis e Manuela Carneiro da Cunha. Em relação à pesquisa do primeiro, ela exercita mais um esforço de complementação etnográfica do que de crítica da interpretação, sem contudo, evitá-la. As divergências com este pesquisador se referem à ocasião em que o jovem recebe seu primeiro nome (:71-73); à amplitude de aplicação do termo rebzu wa ou danhorebdzu wa (:73-74 e 93), sempre com o cuidado de reparar que Maybury-Lewis freqüentou mais os Xavantes orientais e a autora os Ocidentais; sob o mesmo reparo, critica-o por se ter deixado influenciar pelo modelo masculino xavante ao tratar das categorias de idade das mulheres (:133-134 e 137); prefere considerar como noivado, como uma demonstração pública de compromisso entre duas famílias,o rito que Maybury-Lewis tomou como primeira fase do casamento, uma divergência certamente menor (:135-136); finalmente, se demora na defesa da estruturalidade da fluidez que o mesmo autor tomou como contextual na caracterização da linhagens xavantes (: 167-180). A julgar pelo que diz no "Prefácio à Edição Brasileira" a seu livro, A Sociedade Xavante, Maybury-Lewis (1984: 10-11), não discorda desses reparos etnográficos. Por outro lado, em apoio à interpretação de Maybury-Lewis de que os ideais de solidariedade entre os membros da mesma classe de idade se esmaecem`,a medida que eles se tornam maduros e se envolvem nas disputas faccionais, Aracy Lopes da Silva mostra que a seqüência de nomes masculinos usados ao longo da vida de cada um aproxima-o inicialmente de seus parentes paternos, afasta-o em seguida na direção dos maternos, durante a juventude, quando as atividades junto aos membros de sua classe de idade são importantes, para depois achegá-lo novamente ao paternos (: 88-89).
Já o seu diálogo com Manuela Carneiro da Cunha pode ser resumido em dois pontos principais. O primeiro consiste na adoção da radical distinção que esta assinala entre companheirismo e amizade formal (Carneiro da Cunha, 1978, cap. V), contrariamente ao autor (Nimuendaju, 1946: 100-104) pioneiro na descrição dessas instituições entre os Jês, que incluiu ambas sob o mesmo título de laços de amizade formalizada (: 199-200). Mas, se toma essa importante distinção como ponto de partida, demonstra também que, no caso dos Xavantes, ela não corresponde a instituições separadas, uma vez que um e outro aspecto estão presentes tanto nas relações entre os ĩ-amõ quanto na relação para com o ĩnimiwainhõ (: 184 e 201-203).
Porém, em segundo lugar, faz clara sua discordância com Carneiro da Cunha no que tange privilegiar o amigo formal como expressão por excelência da alteridade. Admite, pelo contrário, que muitos outros laços sociais podem abrigar a manifestação do "outro" (: 247-248).
Concordo plenamente com a autora e acredito que ela poderia ter ido mais longe. De fato, a notável contribuição de Marcel Mauss referente à noção de pessoa foi de certo modo acanhada pelo viés evolucionista que afetava sua argumentação. Por isso considero como um dos pontos altos do trabalho de Manuela Carneiro da Cunha ter ousado considerar a noção de pessoa numa sociedade tribal como a Craô, na qual Mauss não teria esperado encontrar mais do que personagens. Porém, de certa maneira, ela não ultrapassa a demonstração da possibilidade dessa noção a nível psíquico e lógico (Carneiro da Cunha, 1978: 88-94). Fica a dever a indicação explícita da categoria pessoa no pensamento craô, e também a maneira como cada indivíduo constrói socialmente sua pessoa. Talvez Aracy Lopes da Silva pudesse ter ido mais adiante se, com ajuda de dados biográficos, mostrasse como indivíduos xavantes concretos se assumem como pessoas.
Com um exemplo talvez eu me faça melhor entender. Ao redigir O Messianismo Krahó (Melatti, 1972), não me ocorreu explorar o fato de o líder do movimento político-religioso ter o mesmo nome pessoal — Txortxó — do herói de uma narrativa, de caráter mais histórico do que mítico, célebre por sua valentia e por não esquecer, ao contrário de seus companheiros, a obrigação de vingar as humilhações sofridas por uma cruel derrota infligida, através de um convite traiçoeiro, por uma aldeia inimiga (Melatti, 1974: 33-41; Wilbert & Simoneau, 1984: 319-330). Até que ponto o líder messiânico não se identificava com aquele herói, negando-se a esquecer o ataque de fazendeiros de 1940, onde morreram cerca de 26 índios, inclusive parentes seus? Se ele realmente assim se identificava, não se limitava a assumir pertinência a metades, a grupo da praça, amigos formais, papéis rituais, numa simples repetição do personagem encarnado por seu antigo xará, mas também o imitava criativamente, negando-se a esquecer afronta de inimigo muito mais poderoso, valendo-se de recursos bem diferentes. Se ele tinha consciência da interpretação singular que fazia de seu personagem, não estaríamos diante de um exemplo de construção de pessoa? E até que ponto ele podia isso expressar através de uma categoria do pensamento craô?
Certamente, poder-se-á objetar que este não é um exemplo feliz, uma vez que Txortxó objetivava transformar os índios em civilizados, ou seja, assumirem-se como membros da sociedade onde, justamente, teria aflorado, afinal, a noção de pessoa. Seria preciso encontrá-la na operação das instituições tradicionais da sociedade tribal. Talvez Aracy Lopes da Silva pudesse tomar como ponto de partida a inexistência de homens adultos com o mesmo nome pessoal entre os Xavantes, a ponto de o nominador escolher outro nome para si, quando passa o seu para o jovem recém-iniciado. E mais, este último pode escolher dentre os nomes do primeiro aquele que mais lhe agrada, pois os nomes "bonitos", os preferidos, são aqueles que têm uma longa história, pertencentes que foram a homens célebres por seus feitos e bravura (: 80-81). Por conseguinte, o indivíduo não é um mero portador de um nome, uma vez que pode transmiti-lo às gerações vindouras acrescido de suas próprias proezas e façanhas. Mais ainda: após dar um de seus nomes a um jovem, o nominador passa a usar um outro, que pode ter pertencido àquele que, por sua vez, lhe tinha dado nome, ou mesmo pode criar outro, um nome achado em sonho (: 83). Tivesse a autora descrito e analisado alguns exemplos desses sonhos, talvez pudesse ter tornado mais claro como cada Xavante contrói sua pessoa. Finalmente, como o homem Xavante chega ao fim de sua vida tal como começou, isto é, sem nome, sendo-lhe, porém, reconhecidos como "outros nomes" aqueles que usou e doou (: 84-85), isso lhe dá de certa maneira autonomia com relação aos nomes, mostrando que, como ator, tem primazia sobre o personagem, como claramente assegura a autora, antes de citar um elucidativo exemplo: "O nome parece ser, de fato, a expressão concreta de uma identidade pessoal" (: 87). De um modo um tanto provisório estou considerando aqui como construção de pessoa a interpretação individual consciente de um personagem, a ponto de transcendê-lo ou de recriá-lo. Mas isso talvez seja o modo de um ocidental se sentir como pessoa. Certamente, tal noção difere de sociedade para sociedade. No caso dos Xavante, a julgar por outras sociedades indígenas, essa construção deve envolver também o corpo (Viveiros de Castro, 1979). De que modo se perceberia como pessoa alguém — tal como cada indivíduo craô — cujo próprio corpo é ligado aos corpos de seus parentes, de modo que o que afeta um atinge também dos demais? Porém, não é propósito do livro de Aracy Lopes da Silva o exame que questões referentes ao corpo, de modo que dados a respeito delas somente aparecem incidentalmente, como a necessidade de o bebê ganhar uma certa resistência física antes de poder receber um nome (: 67-68).
A atribuição dos nomes femininos segue regras distintas da dos masculinos. A mulher só recebe um nome verdadeiro, um nome de adulto, após o casamento. Qualquer nome feminino é precedido por um de cinco radicais, conforme a categoria de idade masculina que o confere, que significam "macaco" (dado pelos moradores da casa dos solteiros), "periquito" (dado por uma parte dos iniciados), "quero-quero" (dado por outra parte dos iniciados), "guanandi" (dado pelos patrocinadores de iniciação) e "peixe" (dado pelos homens maduros). A autora se sente fascinada por essa distribuição dos nomes segundo esses radicais, correspondentes a quatro nomes de animais e um de vegetal. Através de uma incursão nos ritos Xavantes e Caiapós, ela associa o rito de atribuição de nomes às mulheres ao ciclo do milho, à estação chuvosa e à fertilidade. Mas supõe que somente poderá esclarecer melhor a questão com uma pesquisa etnocientífica (: 165-166), que não está entre os propósitos deste seu livro (: 23 e 26). Confesso que a mim também deixaram seduzido esses radicais dos nomes femininos Xavantes, pois dois deles correspondem aos nomes de uma metade ritual e de um grupo da praça craô: "peixe" (Tebe em Xavante e Tép em Craô) e "periquito" (Rẽ em Xavante e Krẽ em Craô). Por isso, fui conferir se a interpretação que faço dos personagens rituais craôs representados por metades, grupos da praça e papéis associados a nomes pessoais (Melatti, 1978, cap. V e Melatti, 1981) poderiam ajudar na questão Xavante. Concluí que não se pode fazer correspondências diretas, mas a possibilidade de uma relação entre os dois casos não é descartável, a custo de uma série de intermediações e de resultados tão reduzidos que, no momento, não valeria a pena reproduzi-las aqui. Faço referência à minha interpretação dos personagens rituais craôs apenas porque ela põe em destaque as várias possibilidades de comportamento do indivíduo perante o grupo social, que, sem dúvida, tem algo a ver com a noção de pessoa.
Mas, antes mesmo de termos os resultados de uma pesquisa etno-científica, se dispusermos num quadro as categorias de idade masculinas, das mais novas para as mais velhas (excluídas aquelas não envolvidas na transmissão dos nomes femininos), os radicais dos nomes femininos que lhes correspondem, as características distintivas apontadas pelos índios referentes aos animais que significam (: 154 e 165) e as características físicas das mulheres distribuídas segundo esses radicais (: 123), dados colhidos mas não trabalhados pela autora, parece que podemos encontrar, pelo menos, uma certa ordem.
No quadro assim obtido, conforme passamos das categorias de idade mais novas para as mais velhas, os animais e o vegetal que lhes correspondem parecem se dispor no sentido alto-baixo e arbóreo-terrestre-aquático. Não há dados suficientes para se saber se o quero-quero é a ave da família Charadriidae, que nidifica no chão, ou o papagaio-de-peito-roxo (Sick, 1985: 262-264 e 313). Quanto ao guanandi ou landi, trata-se do Callophilum brasiliensis (: 165, nota 8), também conhecido como jacareúba, vegetal de áreas pantanosas ou inundáveis (Rizzini, 1971: 56-57). Os animais também se colocam em um continuum, conforme suas características somáticas, estando num dos polos o de pelos, no outro o sem pelos, e nas posições intermediárias os de penas (e o vegetal, obviamente, de folhas), pondo-se em destaque as penas de uma região do corpo, a testa ou o peito. Finalmente, as mulheres passam de altas a pequenas, sendo as das extremidades gordas e as intermediárias magrinhas (o termo "grande" parece aqui sinônimo de "gorda").
Categorias de idade masculinas | Radicais dos nomes femininos | Características dos animais e vegetal | Características físicas das mulheres |
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moradores da casa dos solteiros | macaco | bicho bacana com cabelo bonito | altas e gordas |
iniciados | periquito | pena vermelha na testa bonita como urucum | altas |
quero-quero | grita bonito, penas cinzentas no peito | pequenas e magrinhas | |
patrocinadores de iniciação | guanandi | com folhas bonitas | pequenas e magrinhas |
maduros | peixe | sem cabelos, couro bonito | gordas, grandes |
Ora, lendo o mito xavante da origem do milho, publicado por Bartolomeu Giaccaria e Adalberto Heide (1975: 61-72), tenho a impressão de que há uma certa correspondência entre o quadro que montei e a disposição das partes e dos assediadores da fabulosa árvore do milho. Assim, no momento em que os homens se reunem para recolher as espigas da árvore, os mais velhos ficam no chão apanhando os grãos que os periquitos já haviam deixado cair, enquanto os mais novos sobem, citando-se explicitamente duas de suas categorias de idade. Considerando-se que quanto menor a idade mais leve o indivíduo, podemos supor que as categorias de idade se disporiam na árvore conforme estão em nosso quadro, ordenadas de cima para baixo da mais jovem para a mais velha.
É certo que os únicos animais frequentadores da árvore citados no mito eram os periquitos e que ela, muito provavelmente, não era um guanandi. Mas, tratando-se de uma árvore fabulosa, por que não admitir que o macaco, que figura no alto do quadro, e do qual se alude à beleza dos cabelos, não corresponde ao cabelo do milho? Que o periquito, o quero-quero e o guanandi, dispostos no meio do quadro, e dos quais se faz referência a certas penas ou à beleza das folhas, não corresponderiam às folhas da árvore, que seriam também as folhas do milho? Já o peixe, da base do quadro, de que se põe em destaque a ausência de cabelos e a beleza do couro, não corresponderia ao tronco da árvore, chamada no mito de "pau trançado", característica acentuada no desenho que acompanha o texto? Aliás, a árvore do milho é um tema muito difundido entre as sociedades indígenas sul-americanas. Numa consulta a Le Cru et le Cuit (Lévi-Strauss, 1964: 173-176), vemo-lo presente entre os Timbiras e os Caiapós, em cujos mitos a árvore está junto a uma corrente d água (M87, M89, M90, M92). Talvez isso explique, no mito xavante, o continuum do macaco ao peixe, passando por um vegetal de área pantanosa ou inundável. Convém lembrar que, no mito Xavante, a árvore do milho está na mata e que as florestas, na região de cerrado,são ciliares, isto é, estreitas e ao longo de cursos d água. é curioso que no mito da sociedade mais próxima dos Xavantes cultural e linguisticamente, a dos Xerentes, os periquitos estejam ausentes, sendo o rato o animal que chama a atenção da mulher — aliás, ocupada junto à água a trançar uma cesta de apanhar peixes — para o milho (M94). O rato está presente também nos dois mitos caiapós (M90 e M92), sendo que num deles os macacos disputam o milho com os periquitos sobre a árvore. Por conseguinte, esses mitos de outras sociedades jês contribuem para aproximar ainda mais o tema da árvore do milho aos radicais que constituem a parte inicial dos nomes pessoais femininos xavantes. Quanto à coluna das características físicas das mulheres, não estaria em relação com o fato de as espigas maiores darem nos galhos superiores, enquanto as menores crescerem nos galhos que saíam do meio do tronco? Esta última suposição é a que mais se aproxima da adivinhação e o único elemento que tenho a seu favor são os brinquedos de criança de uma outra sociedade: as meninas craôs fazem suas bonecas, entre outro material, de sabugos de milho.
Se essas minhas suposições estiverem corretas, elas certamente virão em apoio da autora no que se refere à relação entre os nomes femininos e o ciclo ritual do milho. Mas, se os nomes femininos sempre começam por um desses cinco radicais, que dizer de sua segunda parte, mais individualizante? Parece-me que a autora não oferece dados sobre a escolha desse outro componente, ao contrário dos nomes de menina, menos importantes, que ela diz serem escolhidos segundo suas características pessoais ou sonhados por certos parentes e nunca repetidos (: 120). Por conseguinte, com respeito às mulheres, também teria sido interessante o exame de biografias concretas que mostrassem quais as possibilidades que elas têm de ultrapassar o nível dos personagens e de se assumirem como pessoas. Assim, se, como admite a Autora, o nome masculino pode ser tomado como expressão de conquistas ou aumento de força vital (: 65, 87), o nome feminino, conferido após o casamento e associado ao ciclo ritual do milho, se tem algo a ver com a construção da pessoa, certamente o fará no sentido da realização individual como membro do grupo doméstico. De qualquer modo, tanto para os homens como para as mulheres, a sociedade xavante deve impor limites culturais à transcensão do personagem. Se imitar a coragem dos homens (Giaccaria & Heide, 1975: 62) traz como prêmio à heroína mítica a descoberta da árvore do milho, o abuso do poder criador, em outro mito, pelos dois jovens Pirinai a, é sustado com a morte, como nos mostra a autora (: 222-227).
A própria Aracy Lopes da Silva define seu trabalho como algo situado entre duas posições — que marcam os estudos daqueles que se dedicam às sociedades indígenas sul-americanas — ocupadas, de um lado, pelas explicações ecológicas (como as de Daniel Gross), e, de outro, pelos modelos construídos a partir de ideologias, ligados às noções de corporalidade e pessoa (como os de Anthony Seeger, Roberto da Matta, Viveiros de Castro, Renate Viertler, Manuela Carneiro da Cunha), de tempo e espaço sociais (como o de Joanna Kaplan), ou da guerra (como o de Pierre Clastres). Inclina-se, por sua vez, pela alternativa de realizar uma etnografia sólida, na base da qual possa estudar, como neste seu livro, a maneira de viver certas relações interpessoais ritualizadas, suas funções lógicas e suas implicações concernentes a uma concepção de sociedade (: 262-263). Sem dúvida, a autora desenvolveu um magnífico trabalho segundo a orientação escolhida e acredito que a sugestão que lhe faço, na cômoda posição de crítico, de fazer um uso maior de dados biográficos, pode ser levada a efeito segundo a mesma orientação.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os Mortos e os Outros: uma Análise do Sistema Funerário e da Noção de Pessoa entre os Índios Krahó. São Paulo: HUCITEC.
GIACCARIA, Bartolomeu Adalbrto, HEIDE. 1975. Jerônimo Xavante Conta: Mitos e Lendas. Campo Grande. (Publicações do Museu Regional Dom Bosco, 4).
LÉVI-STRAUSS, Claude. 1964. Le Cru et le Cuit. Paris: Plon. (Mythologiques, 1).
MAYBURY-LEWIS, David. 1967. Akwẽ-Shavante Society. Oxford: Clarendon.
__________. 1984. A Sociedade Xavante. Tradução de Aracy Lopes da Silva. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
MELATTI, Julio Cezar. 1972. O Messianismo Krahó. São Paulo: Herder e EDUSP.
__________. 1974. "Reflexões sobre Algumas Narrativas Krahó". Brasília: UnB-IH-DCS. (Série Antropologia, 8).
__________. 1978. Ritos de uma Tribo Timbira. São Paulo: Ática. (Ensaios, 53).
__________. 1981. "Indivíduo e Grupo: à Procura de uma Classificação dos Personagens Mítico-Rituais Timbiras". Anuário Antropológico/79. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,pp. 99-130.
NIMUENDAJÚ, Curt. 1946. The Eastern Timbira. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. (Univesity of California Publications in American Archaelogy and Ethnology, 41).
RIZZINI, Carlos Toledo. 1971. Plantas do Brasil. Árvores e Madeiras Úteis do Brasil. Manual de Dendrologia Brasileira. São Paulo: Edgard Blucher e EDUSP.
SICK, Helmut. 1985. Ornitologia Brasileira, uma Introdução. 2 vols. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. "A Fabricação do Corpo na Sociedade Xinguana". In "A Construção de Pessoa nas Sociedades Indígenas", org. por Yonne de Freitas Leite. Boletim do Museu Nacional, Nova Série. Antropologia, no. 32. Rio de Janeiro, p. 40-49.
WILBERT, Johannes e Karin, SIMONEAU. 1984. Folk Literature of the Gê Indians. Vol. 2. Los Angeles: University of California. (UCLA Latin American Center Publications, 58).
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