Sobre o volume Índios Maxakali: resistência ou morte , de Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella Amorim e Sônia de Almeida Marcato. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.
Resenha publicada com o título "Tríptico Maxakalí" no Anuário Antropológico/82, pp. 344-349, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Fortaleza: Edições UFC, 1984.
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Três retratos da situação dos índios Maxakalí, elaborados por Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella de Amorim e Sônia de Almeida Marcato, foram recentemente reunidos num só volume, sob o título geral Índios Maxakali: resistência ou morte (Belo Horizonte: Interlivros, 1980).
O volume constitui, de certa maneira, uma homenagem ao falecido Marcos Magalhães Rubinger, cuja carreira de professor e pesquisador, na Universidade Federal de Minas Gerais, foi bruscamente interrompida logo no início do Movimento de 1964, que o levou à prisão e ao exílio, o que sem dúvida contribuiu para sua morte prematura em 1975.
Ainda que os três textos tenham todos por tema o contato interétnico, em pouca coisa se sobrepõem e podem ser tomados como complementares, uma vez que lidam com aspectos diferentes das relações entre os Maxakalí e os brancos.
O ensaio de Marcos Rubinger, "Maxakalí, o povo que sobreviveu: estudo de fricção interétnica em Minas Gerais" (p. 9-97), se divide em breves capítulos, cada um precedido de uma epígrafe, e se demora sobretudo na história do contato, privilegiando o estudo da ocupação da área pelas frentes de expansão. Para tornar mais clara a atuação das frentes que operaram diretamente sobre os Maxakalí, Rubinger escolhe contrastá-las com a que ocupou uma área vizinha: compara-as com a frente mineradora que exterminou os índios do alto Jequitinhonha e Pardo, a não ser os que conseguiram escapar para o curso médio do primeiro e para o Mucuri. Infelizmente Rubinger não entra em detalhes sobre as relações que essa frente estabeleceu com os índios, apenas aludindo à escravização dos mesmos, sem dizer em que tipo de trabalho forçado eram aplicados (se na procura de ouro e pedras preciosas, se na produção de alimentos para escravos negros, se nas atividades domésticas etc.), ao abuso sexual sobre as mulheres indígenas (sem falar se vieram ou não a constituir famílias com os invasores), aos massacres e à dizimação por doenças, motivados pela penetração de uma população densa, heterogênea, que reunia aventureiros e fugidos da justiça, a partir do final do século XVIII, e cujo tipo de atividade levou à divisão das propriedades, perdurando na região uma população de faiscadores e garimpeiros que se abastecem com a produção de pequenos sítios dedicados a uma agricultura de subsistência. Porém, a região do médio Jequitinhonha e do Mucuri, onde estavam os Maxakalí, foi penetrada inicialmente, e não por inteiro, por uma frente de extração de poaia, madeiras e peles. Mais tarde, por outra dedicada à criação de gado e à pequena lavoura. Por ser de população pouco densa, permitiu aos índios encontrarem bolsões de refúgio. Assim, os indígenas puderam, de certo modo, controlar o contato, mantendo-se afastados, no que eram favorecidos pela existência de matas, ao contrário da outra área, onde predominavam os descampados. Isso não impediu que os Maxakalí fossem recrutados para combaterem os Botocudos e nem que a chegada de mais e mais ocupantes brancos fosse apertando o cerco. Esse envolvimento teria transformado os Maxakalí, pouco a pouco, de provavelmente caçadores e coletores, talvez com agricultura incipiente, muito móveis, em cultivadores sedentários.
Como os Maxakalí do presente estão em duas glebas vizinhas, porém separadas por ocupações de brancos (mapa da p. 45), isso permite a Rubinger fazer outro contraste, opondo a gleba de Água Boa à de Pradinho, a primeira mais exposta às transformações, embora em ambas os Maxakalí vivam de modo já muito distante das suas tradições. O exame da situação atual feito por Rubinger é muito sumário, uma vez que o ostracismo político em que foi colocado o impediu de realizar uma pesquisa de campo mais longa. Ele esteve junto aos Maxakalí em apenas duas breves etapas de campo, uma em julho de 1962 e outra em janeiro de 1963. No capítulo referente à situação atual (p. 32- 42), Rubinger dedica quase a metade do mesmo a citações de um relatório de Marcelo Moretzsohn de Andrade, que fez pesquisa de campo junto aos Maxakalí em 1956. Rubinger apresenta sobretudo a exploração exerci da por um funcionário do SPI sobre os índios, sem levar adiante o exame do contraste Água Boa/Pradinho. Na verdade, ele não teve a oportunidade de trabalhar com seus próprios dados etnográficos e, por isso, trechos de seu diário de campo estão dispostos como apêndice no fim do ensaio (p. 47-87). São trechos que ele próprio havia selecionado com algum objetivo em vista, pois são datados de La Paz, 1-12-65 (p. 87).
Aquilo que Rubinger não pôde fazer foi realizado por Maria Stella de Amorim, no artigo "Os Maxakalí e os brancos" (p. 98- 117). São dados colhidos em janeiro de 1963, quando acompanhou o primeiro em pesquisa de campo. Ela mostra como o cerco sobre os Maxakalí foi-se fechando cada vez mais, até que ficaram praticamente sem terras, para o que contribuiu a ação de um particular que se insinuou entre os índios, ganhando-lhes a confiança e os enganando. O SPI, instalando em 1940 um posto na região, conseguiu recuperar parte das terras usurpadas aos Maxakalí, não logrando reaver, entretanto, a faixa de terra que separa Água Boa de Pradinho. Como necessitam de produtos industrializados, os Maxakalí procuram os regionais. Não sendo aceitos nas lides com o gado, seja por essa atividade não exigir muita mão-de-obra, seja por desconfiança dos fazendeiros, conseguem serviço na lavoura, porém mediante retribuição monetária muito inferior à concedida aos trabalhadores brancos. Comparecem também aos centros urbanos regionais para vender parte de sua produção agrícola ou artesanato, onde não raro acabam por sucumbir à bebedeira.
Na discussão do processo de assimilação dos Maxakalí, Stella de Amorim nos dá interessantes, mas breves, informações sobre as diferenças entre Água Boa e Pradinho. Ainda que os Maxakalí como um todo ofereçam resistência às influências do mundo de fora, atribuindo grande importância ao uso da língua indígena, não aceitando estranhos sem a recomendação dos amigos do grupo, desestimulando os casamentos interétnicos, mantendo o segredo dos ritos e também de uma associação masculina, tal resistência se apresenta mais rígida em Pradinho do que em Água Boa, onde, aliás, está o posto indígena. Apesar dos habitantes da primeira gleba se consideraram mais índios do que os da segunda, estes últimos não deixam de se tomar como índios e assim são considerados pela população branca, não se tendo consumado, portanto, a assimilação. Stella de Amorim também examina o abuso da cachaça e suas conseqüências como um fator de desorganização do grupo tribal. Numa breve avaliação do papel desempenhado pelo posto do SPI na história recente dos Maxakalí, mostra como a pirâmide demográfica dos mesmos, em 1963, refletia os problemas que então vinham enfrentando e arrola algumas medidas que poderiam ser tomadas para o futuro.
O artigo de Stella de Amorim vem a ser uma outra versão daquele que publicou na Revista do Instituto de Ciências Sociais (vol. 4, n.o 1, Rio de Janeiro: UFRJ, 1967, p. 3-25) sob o título "A situação dos Maxakalí". Possivelmente, a versão incluída no volume aqui resenhado seja a original, pois traz no seu término a data de março de 1963 (p. 114), apesar de poder ter sofrido adaptações, como indica o lapso de chamar Marcos Rubinger de "saudoso" (p. 98), embora ele tenha falecido doze anos depois.
Fecha o volume o trabalho de Sônia de Almeida Marcato, "0 indigenismo oficial e os Maxakalí (séculos XIX e XX)" (p. 119-199). Importante parte do texto é uma apreciação histórica, mas de caráter diferente daquela realizada por Rubinger: enquanto este preferiu examinar as frentes de expansão, Sônia Marcato dá mais atenção aos atos das agências governamentais, missões religiosas inclusive, desde os últimos anos do período colonial, e à sua maneira de ver os índios, especialmente os Maxakalí. Sônia Marcato deixa mais claro o papel das tropas militares, da reunião dos índios em aldeamentos, da catequese, no controle dos indígenas do médio Jequitinhonha, Mucuri e São Mateus, nos três primeiros quartéis do século passado (p. 131-139). Procura também explicitar, através da análise de documentos, com a ação daquelas agências refletiam as orientações governamentais no decorrer do mesmo período (p. 139-148).
Após um breve comentário das medidas tomadas quanto aos Maxakalí durante o período republicano até a criação do posto do SPI em 1940 (p. 148-151), a autora salta para a atuação da FUNAI nos anos de 1967 a 1978, isto é, desde a criação do novo órgão protecionista até a data de seu trabalho de campo junto aos Maxakalí (p. 151-163), em janeiro de 1978 (p. 152). Dessa maneira, o texto de Sônia Marcato se torna complementar ao de Stella de Amorim, que examinou justamente o período de atuação do posto no tempo do SPI. Mostra como a criação da FUNAI intensificou as atividades assistenciais na área, orientada por uma mentalidade empresarial, mantendo abertamente arrendamentos de pastagens, que já vinham sendo feitos pelo SPI, e, mais tarde, implantando projeto agrícola de grande porte, mas sem a participação dos índios e de técnicos competentes na sua elaboração. O problema do abuso da cachaça e dos furtos recebeu uma solução de caráter policial, com a limitação das saídas dos índios, que foram compensadas pela criação de uma mercearia e uma loja dentro da reserva, e com a criação da Guarda Rural Indígena, cujos membros vieram a constituir mais um problema para o posto após sua desativação. Mas parece que, após um ímpeto inicial, a ação da FUNAI se arrefeceu e antigos problemas, aparentemente resolvidos através da coerção, voltaram a aflorar. É digno de nota o esforço de Sônia Marcato em distinguir as relações dos índios com os brancos conforme a situação social destes na área - funcionários do posto, posseiros, moradores dos núcleos urbanos e fazendeiros (p. 158- 162) - mostrando o que pensa cada uma dessas categorias a respeito dos Maxakalí. Apesar de todos os problemas que enfrenta, a população Maxakalí tem aumentado, podendo até futuramente ver-se diante de novo problema: a insuficiência das terras da reserva para abrigar a todos (p. 163-166). Os dados por faixas etárias que Sônia Marcato apresenta para 1976 (p. 164) podem ser colocados numa pirâmide, de modo a compará- la com a que Stella de Amorim preparou com referência a 1963 (p. 115). Aliás, o comentário que a última faz de sua pirâmide (p. 114) também pode ser comparado com o comentário da primeira (p. 165) a respeito da pirâmide de 1973 referente apenas a Pradinho (p. 186). O texto de Sônia Marcato se encerra com sugestões para um projeto de desenvolvimento comunitário (p. 169-172).
Apesar, como dissemos, de os três trabalhos serem complementares, faltou um texto que os integrasse. Está ausente dos trabalhos, também, um maior número de informações interrelacionadas a respeito das instituições tradicionais dos Maxakalí, de que Stella de Amorim (p. 108-110) e Sônia Marcato (p. 166-169) dão alguma notícia. Mas nenhuma das duas pesquisadoras ficou o tempo suficiente no campo para realizar tal tarefa. A reconstituição da totalidade sócio-cultural dos Maxakalí teria sido de fundamental importância para enriquecer a discussão sobre a rigidez ou flexibilidade da sociedade indígena perante o contato, apenas aflorada por Rubinger e por Stella de Amorim (p. 27-29, 44 e 108-109). Mas parece que os Maxakalí têm sido preferidos como objeto de reflexão sobre o contato interétnico e desde longa data, se considerarmos a novela, que mistura realidade e fantasia, escrita por Ferdinand Denis nos começos do século passado e incluída em suas Scenes de la nature sous les tropiques et leur influence sur la poésie, de 1924, recentemente traduzida para o português junto com introdução, notas e apêndice de Jean-Paul Bruyas (Os Maxacalis, São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979). Mas apesar de voltados para o contato, nenhum dos três trabalhos explora as relações intertribais atuais, embora Sônia Marcato faça referência a problemas que envolvem índios Maxakali e representantes de outros grupos tribais que temporariamente foram instalados em sua reserva (p. 153, 155 e 157).
É pena que o aspecto gráfico do volume deixe algo a desejar: a folha de rosto precede a falsa folha de rosto e no verso desta há propaganda; o texto de Stella de Amorim não recebe o mesmo destaque que os outros dois, ficando a parecer um apêndice do de Rubinger; e as fotos que acompanham o de Sônia Marcato estão mal reproduzidas.
Enfim, a leitura desse volume nos evoca uma série de lembranças. Nele há freqüentes referências a um relatório de Marcelo Moretzsohn de Andrade, hoje na carreira diplomática, que fez pesquisa junto aos Maxakalí, quando, salvo engano, aluno de um dos cursos dirigidos por Darcy Ribeiro no Museu do Índio, e que foi nosso professor no curso de graduação, em Petrópolis, onde fazia freqüentes referências a sua experiência de campo. Lembra-nos o irrequieto e criativo Marcos Magalhães Rubinger, nosso colega no Curso de Especialização em Antropologia Cultural, ministrado em 1961 no Museu Nacional por Luiz de Castro Faria e Roberto Cardoso de Oliveira. As reflexões deste último, concernentes à fricção interétnica, orientariam o "Projeto de Pesquisa Maxakalí", de Rubinger, que não teve a oportunidade de realizá-lo até o fim. Maria Stella de Amorim, que também fez o curso do Museu Nacional no ano seguinte, realizou o treinamento de campo exigido pelo curso, acompanhando Rubinger aos Maxakalí. Autores, conceitos, expressões, presentes nos textos de Rubinger e de Stella de Amorim nos trazem de volta alguns dos livros e artigos que então "torrávamos", para usarmos uma palavra da gíria que na época vigorava no Museu Nacional. Em suma, vem-nos à memória um período em que se abriam novos horizontes para a Antropologia no Brasil através dos cursos precursores da pós-graduação. Roberto Cardoso de Oliveira, um dos principais forjadores dessa nova situação, muito apropriadamente é quem prefacia o volume.
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