Sobre o livro Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira: os Kayapó-Xikrin do rio Cateté, de Lux Boelitz Vidal. São Paulo, HUCITEC/EDUSP, 1977. 268 p.

Resenha publicada com o título "Grupos Jê: mais um livro" no Anuário Antropológico/77, pp. 214-217. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

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Nos últimos vinte anos, os grupos indígenas do comumente chamado Brasil Central, principalmente os da família lingüística Jê, têm recebido acentuada atenção dos pesquisadores. Além dos participantes do Harvard-Central Brazil Research Project, outros estudiosos, individualmente ou organizados em grupos informais, têm contribuído para um maior conhecimento das referidas sociedades.

Infelizmente, a maior parte dos trabalhos desses pesquisadores, geralmente sob a forma de teses de doutoramento, continua inédita, fora do alcance de um grande número de leitores interessados. O uso desses trabalhos nos cursos universitários é penoso, pois quase sempre professores e alunos, quando muito, só contam com uma cópia mimeografada de algumas dessas teses. Poucas delas, se não me engano apenas duas, foram reproduzidas pela Xerox Microfilms.

A preocupação em publicar os resultados dessas investigações parece que tem sido maior por parte dos pesquisadores brasileiros do que dos estrangeiros. Assim, nos últimos dois anos foram editados três livros referentes ao Brasil Central, todos em português: o de Roberto da Matta (Um Mundo Dividido: a Estrutura Social dos Apinayé. Petrópolis Vozes, 1976. 254 p.), que foi objeto de uma resenha no número anterior deste Anuário, bem como de outra no suplemento "Livro" do Jornal do Brasil; o de Renate Brigitte Viertler (As Aldeias Bororo: Alguns Aspectos de sua Organização Social. São Paulo, Coleção Museu Paulista, Série de Etnologia, v. 2, 1976, 295 p.); e o de Lux Boelitz Vidal (Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira: os Kayapó-Xikrin do rio Cateté. São Paulo, HUCITEC/EDUSP, 1977. 268 p.). É sobre este último trabalho que farei aqui algumas observações.

O livro de Lux Vida1 é a impressão, com poucas adaptações, de sua tese de doutoramento, defendida na USP em 1972. Dentre essas adaptações está a inserção do capítulo sobre a vida ritual, que trata principalmente de Me-rêrêmê, objeto de sua tese de mestrado na mesma Universidade.

Do ponto de vista teórico, o livro é despretensioso, ostentando um caráter marcantemente descritivo. A autora começa por indicar como a pesquisa foi realizada, ainda que não fique claro quanto tempo gastou em trabalho de campo. O leitor fica sabendo que o chefe da aldeia foi seu único informante, no que tange a um levantamento mais sistemático dos dados (p. 11). Todavia, a pesquisadora está consciente das limitações e perigos decorrentes de tal situação. Mas, de um modo geral, todos os habitantes da aldeia lhe forneceram informações. Passa a um histórico do grupo, utilizando-se tanto das poucas informações bibliográficas existentes, quanto de possíveis alusões históricas de narrações míticas, no que é auxiliada por desenhos em papel realizados por alguns índios. Em seguida apresenta a terminologia de parentesco e as categorias de idade de maneira esquemática, apenas para facilitar a leitura do que vem. depois.

Bastante interessante é a descrição da organização espacial da aldeia, onde a autora novamente torna a se auxiliar de desenhos feitos pelos Xikrin, para evidenciar as idéias ligadas à projeção da sociedade sobre o terreno. O trabalho nas roças e as expedições de caça são descritos de modo rápido. Ainda que tratadas de modo esquemático, a organização do espaço e as atividades de subsistência mostram que a acentuada separação homens-mulheres, maior ainda no passado, e a nítida distinção entre as categorias de idade constituem elementos a considerar nas relações de trabalho. Há detalhes, entretanto, que fazem falta, como, por exemplo: de que maneira se distribuem os alimentos produzidos pela roça coletiva (p. 78), antes que seja dividida entre as mulheres?

O capítulo III é o mais extenso do livro e também o mais importante. Nele Lux Vidal faz a apresentação da organização social dos Xikrin, tomando como foco as categorias de idade. Não se trata de uma escolha puramente arbitrária, mas baseada na grande importância que as categorias de idade têm no pensamento desses indígenas. Assim, resguardos, amizade formalizada, relações de parentesco, matrimônio, relações entre sexos, transmissões de nomes, sistema político, vão sendo apresentados à medida que a autora discorre sobre as categorias de idade. Desse modo, ela admite, aproveitando uma idéia de Carter quanto aos Timbira (p. 10), que haveria nos Xikrin um maior peso estrutural nas categorias de idade de que nos segmentos residenciais.

No que tange aos ritos, a pesquisadora restringe-se quase à descrição e análise do Me- rêrêmê, que vem a ser uma cerimônia nova. realizada no lugar de outras para as quais não é favorável a atual redução populacional. Faz alusão também a dois ritos de fora incorporados ao patrimônio Xikrin: um Karajá e outro Gorotire. Infelizmente não descreve e nem analisa os ritos abandonados temporária ou definitivamente, embora possua informações sobre pelo menos alguns deles (p. 193). Se o fizesse, o leitor poderia compreender melhor como foi elaborado o Me-rêrêmê.

No capítulo sobre o contato interétnico. Lux Vidal oferece ao leitor muito pouco do que sabe. Por exemplo, poderia ter dito mais sobre a interferência do missionário no sistema político, como deixa entrever nas pp. 79 e 151. Também nada diz sobre a mineradora instalada junto às terras dos Xikrin, com a qual a pesquisadora, trabalhando pelos interesses dos índios, tratou diretamente. A autora dá ao contato um tratamento demasiado local, não situando as terras e a mão-de-obra Xikrin num contexto mais amplo de interesses.

É uma pena que Lux Vidal destine um apêndice equivalente a um quinto do volume para a transcrição pura e simples de mitos Xikrin, sem fazer nenhuma tentativa de análise. Melhor seria dedicar- lhes um outro trabalho. Pessoalmente, até me foi vantajosa a publicação dos mitos, pois vislumbro em um deles uma pista que lança mais luzes sobre certos personagens míticos e rituais dos Krahó, índios Jê do Norte como os Xikrin, que ainda não consegui bem compreender.

Para finalizar, duas observações: a primeira, quanto ao uso do termo "facção" para caracterizar os Xikrin do Cateté (p. 1), sem justificá-lo. Poderia ainda hoje esse grupo ser considerado uma facção, ou só o foi enquanto perdurou o processo de cisão a partir de um grupo maior? A segunda se refere à afirmação de que o índio tem dificuldade em definir a amizade formalizada em português (p. 98). No entanto, na p. 155, um informante faz referência a. seu "comprade". Seria esta a tradução que os índios dão ao termo correspondente a amigo formal, tal como o fazem os Krahó? Se é, qual. a razão dessa escolha? Talvez, fazendo os Xikrin discorrerem sobre as semelhanças entre essas duas relações, a autora pudesse obter importantes informações sobre a amizade formalizada. Mas, na verdade, estou a lhe cobrar uma coisa que eu mesmo não fiz com os Krahó.

Enfim, quem mais tem a lucrar com a publicação do livro de Lux Vidal são os professores e estudantes universitários brasileiros, que pouco a pouco vêem aumentar a literatura etnológica em português a respeito das populações indígenas. Juntamente com os livros de Roberto da Matta e de Renate Viertler, publicados anteriormente, o de Lux Vidal vem constituir um trio cuja utilização em salas de aula pode dar oportunidade a excelente discussão. Embora escritos em estilos diferentes e em distintos graus de profundidade, tratam de grupos que mantiveram no passado uma certa contigüidade espacial, que dispõem provavelmente de uma origem comum (mais evidente no caso de Xikrin e Apinayé) e que parecem combinar de maneiras diversas elementos culturais muito semelhantes: matrilocalidade, oposição centro-periferia, distinção dos nomes pessoais quanto a sua importância ritual e vários outros. Desse modo, problemas levantados ou soluções propostas por um pesquisador quanto a um dos grupos podem levantar novas perguntas com respeito aos outros.

Julio Cezar Melatti

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