Sobre o livro Os Aldeamentos Indígenas na Capitania de Goiás: Sua Importância na Política de Povoamento (1749-1811), de Marivone Matos Chaim. Goiânia : Edição do Departamento Estadual de Cultura, Editora Oriente, 1974, 240 p., ilustr.

Resenha publicada com o título "Aldeamentos em Goiás no Séc. XVIII" em Pesquisa Antropológica n° 3, pp. 5-7, Brasília, 1975.

[Pesquisa Antropológica foi um periódico mimeografado que durou de 1973 a 1983, publicado por Julio Cezar Melatti e pelo falecido Martín Alberto Ibáñez-Novión].

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São muito poucos os trabalhos dedicados ao estudo das relações entre índios e brancos no Brasil, no período colonial ou no imperial. Por isso, é com satisfação que a gente toma conhecimento da publicação de um livro que tem como tema os aldeamentos em Goiás, criados na segunda metade do século XVIII. A Autora trata, pois, dos seguintes aldeamentos:

  1. São Francisco Xavier do Duro (também conhecido como Duro), erigido próximo ao ribeirão de Formiga, em 1751, para nele se recolherem os Xakriabá;
  2. São José do Duro (também conhecido como Formiga), criado em 1755 a duas léguas do anterior, para servir de morada aos Akroá;
  3. São José de Mossâmedes, onde hoje é a cidade de Mossâmedes, iniciado em 1755, e que abrigou índios Akroá, Xavante, Karajá, Javaé, Carijós e Naudez;
  4. Nova Beira, na ilha do Bananal, criado em 1775 para índios Karajá e Javaé;
  5. Maria I, nas margens do rio Fartura, a 11 léguas a sudoeste da antiga capital de Goiás, criado em 1780, para os Kayapó do Sul;
  6. Carretão de Pedro III, erigido em 1788, junto ao rio Carretão, perto de Crixás, para os Xavante.

Os dois primeiros aldeamentos ficavam próximos da fronteira com a Bahia, na área onde hoje se ergue Dianópolis.

O livro é uma tese de História defendida na Universidade de São Paulo. Enquanto no nível da descrição, constitui um trabalho bem feito e fundamentado em inúmeras fontes. Muitos dos documentos utilizados estão arquivados numa instituição de cuja existência talvez poucos até então soubessem: o Serviço de Documentação do Estado de Goiás (SDEGO). O livro ainda brinda o leitor com a transcrição integral, em apêndice (pp. 191-231), do famoso Diretório que regulamentou a situação dos índios, aplicado a todo o Brasil a partir de 1758.

No que tange a outros aspectos, o livro está sujeito a algumas ressalvas. Por exemplo, a Autora nem sempre foi capaz de manter uma distância crítica para com os documentos examinados e acabou se utilizando de termos preconceituosos presentes nos mesmos. Assim, várias vezes (pp. 57, 59; 80, 103) usa o verbo "infestar", ao invés de "habitar", quando os índios são o sujeito da ação. O mesmo acontece com certos adjetivos aplicados aos índios: "cruéis" (p. 62), "mansos" (p. 80), "ferozes" (p. 119). E ainda o uso de palavras como "insulto" (pp. 61, 62), "crime" (p. 128), "superstição" (p. 151) para caracterizar ações de indígenas. Melhor teria sido se a Autora, ao invés de usar indiscriminadamente tais termos, tivesse transformado sua utilização nos documentos em um dos objetos de sua pesquisa.

Talvez a Autora tivesse assim agido se houvesse dado mais atenção a trabalhos antropológicos. É certo que vários trabalhos de antropólogos são citados na sua bibliografia, mas eles não parecem ter sido objeto de urna leitura das mais atentas. Por exemplo, o livro de Nimuendajú, The Apinayé, consta da bibliografia (p. l74), mas mesmo assim a Autora admite que os Apinayé, além de viverem no extremo norte de Goiás, o que é correto, habitam também o alto Xingu (p. 55), o que está errado. A Autora parece aceitar que os antigos Kayapó do Sul eram apenas um ramo distinto de um mesmo povo que ainda hoje é constituído pelos Kayapó do Pará e Mato Grosso (p. 52), o que talvez ainda não se possa comprovar; entretanto, não faz nenhum comentário ao citar documentos que atribuem a antropofagia e a escravidão aos Kayapó do Sul (pp. 56, 57, 107) quando se sabe que tais costumes não existem entre os Kayapó do Pará e Mato Grosso. Enfim, se os livros de antropólogos citados tivessem sido realmente considerados, não teríamos no livro um parágrafo como este: "Comprova-se assim a asserção de J. Semjonov; 'por mais que um país possua riqueza e seja dotado de excelente situação, não progredirá muito, se sua população carecer de cultura e de espírito ativo. O maior de todos os valores econômicos é o homem'. (3) O elemento humano da capitania de Goiás era em grande número representado pelo índio, que deveria ser integrado à civilização ocidental e à cultura portuguesa, para que melhor pudesse progredir nos diferentes aspectos" (pp. 17-18). Esse ver o índio como obstáculo ao progresso reaparece outra vez numa conclusão apressada: partindo do fato de que a população da parte meridional de Goiás era, em 1804, quase duas vezes maior do que a da sua parte setentrional, a Autora conclui que "A maioria de habitantes localizados no sul comprova assim serem os grupos tribais hostis um obstáculo ao povoamento" (p. 154). Ora, a Autora parece se esquecer de que os primeiros povoadores de Goiás entraram pelo sul e daí é que se foram expandindo para o norte (a penetração nordestina no norte só tem início na passagem do século XVIII para o XIX); o sul é que era a região aurífera e, por isso, concentrava um número maior de habitantes; além disso, apesar dos Kayapó do Sul serem considerados dos mais hostis aos civilizados e de terem sido aldeados relativamente tarde (1780), eles não conseguiram impedir o povoamento, pelos civilizados, da parte meridional da capitania.

Não quero dizer, entretanto, que a Autora tenha preconceitos desfavoráveis aos índios; parece-me simplesmente, como disse, que foi contagiada pelos documentos consultados, sobretudo no nível da linguagem. Quem lê o capítulo III, por exemplo, nota um uso bastante lúcido da documentação. Ela aí nos mostra como a política dos aldeamentos é o resultado da conciliação de três tipos de interesses: os da Coroa, preocupada com o povoamento e querendo transformar os índios em cidadãos ativos nessa tarefa; os dos missionários, que desejavam a liberdade dos índios e a sua conversão religiosa; os dos colonos, que desejavam os índios como mão-de-obra.

O livro também constitui uma contribuição muito boa, como repositório de dados, para aqueles que estão engajados em atividades indigenistas e que refletem sobre elas.

Acredito que a Autora dará uma notável contribuição à História e à Antropologia do Brasil se continuar explorando esse filão. Sugiro que ela dê seguimento a esta pesquisa, procurando e examinando a documentação sobre os aldeamentos do Triângulo Mineiro, que apenas cita na nota 30 (p. 81), pois não somente esses aldeamentos inspiraram a criação daqueles examinados no seu livro como também, naquela época, o Triângulo Mineiro fazia parte de Goiás (p. 15). Uma outra tarefa de muita importância será a tentativa de acompanhar as modificações, sob o ponto de vista étnico, da população de alguns desses aldeamentos desde sua fundação até sua situação atual de núcleo urbano civilizado. Apesar de alguns desses aldeamentos se terem extinguido, outros persistiram, ainda que decadentes, transformando-se em arraiais, como Duro, Mossâmedes e Carretão (pp. 154, 157). Isso provavelmente exigiria da Pesquisadora a tentativa de descoberta de documentos no próprio local em que foi erigido cada um desses aldeamentos. Pesquisas como essa nos ajudariam a resolver questões como a seguinte: durante muito tempo se acreditou no Brasil que, apesar de muitas tribos indígenas terem desaparecido no período colonial e imperial, elas desapareceram apenas como sociedades independentes, como culturas, mas seus membros perduraram biologicamente na nova população brasileira através de seus descendentes, frutos da miscigenação. Mais recentemente, talvez a partir dos trabalhos de Darcy Ribeiro, passou-se ao extremo oposto: a maioria dos índios teria desaparecido também biologicamente. Acredito que a pesquisa sobre a transformação dos antigos aldeamentos em núcleos urbanos possa lançar novas luzes sobre o problema e nos mostrar, ainda que grosseiramente, que proporção da antiga população indígena ainda perdura entre nós.

Julio Cezar Melatti

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