Capítulo 25

Mamoré–Guaporé

Julio Cezar Melatti

Mapa da área Língua e população
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Índios da América do Sul
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"Página do Melatti"

A área de que aqui vamos tratar constitui apenas uma pequena parte daquela que Galvão traçou com o nome de Guaporé. Podemos nela distinguir dois setores. Um inclui os índios que vivem junto aos afluentes da margem direita do rio Guaporé, quase todos falantes de línguas integrantes de pequenas famílias do tronco tupi. Denise Maldi (1991: 210-211) chamou a este setor de "complexo cultural do marico", porque todos os índios do mesmo, inclusive os isolados da Reserva Biológica do Guaporé, usam bolsas de vários tamanhos, chamadas de "marico", de fibras de tucum, feitas com pontos miúdos ou médios, que não se encontram em outras áreas. Infelizmente o trabalho desta autora não apresenta uma foto ou desenho do marico. O outro setor inclui os rios que correm para o Mamoré, junto aos quais vivem os uáris e os oro uin, da família lingüística txapacura; do outro lado do rio, em terrritório boliviano, na confluência do Mamoré com o Guaporé, está um outro povo txapacura, os morés.

O setor do Guaporé

Apesar de o rio Guaporé ter começado a ser explorado no início do século XVIII, o grande impacto que os índios da área sofreram foi a partir do "boom" da borracha, na passagem do século XIX para o XX. Em 1948, quando Franz Caspar visitou pela primeira vez a região, os tuparis eram, dos índios então conhecidos, os que ainda mantinham uma certa autonomia com relação aos seringais, estando os demais trabalhando neles e bastante dizimados pelas moléstias introduzidas pelo contato. Os próprios tuparis, no intervalo entre a primeira e a segunda visita de Caspar, poucos anos depois, sofreram pesada perda populacional, caindo de cerca de 200 para 66 pessoas, devido a uma epidemia de sarampo e a outras moléstias (Mindlin 1993: 15-16).

Os tuparis continuam a ser os únicos índios da área a disporem de uma substancial etnografia publicada. Infelizmente, só foi traduzido para o português o livro de viagem de Caspar (1958); o outro (1975), mais etnográfico, continua em alemão. A coletânea de mitos tuparis publicada por Betty Mindlin (1993), além das próprias narrativas, traz mais um atrativo que é a possibilidade de comparar fotos de Caspar, tomadas em 1948 e 1955, que republica, com a fotos de Lucia Mindlin Loeb, tiradas nos anos oitenta, sendo que alguns tuparis estão retratados tanto nas fotos mais antigas como nas mais recentes.

Os tuparis, faz meio século

Para visitar os tuparis em 1948, Franz Caspar teve de subir ao longo do rio Branco, um afluente do Guaporé em cujo curso ficava o barracão sede do seringal São Luís, pertencente a um antigo funcionário do Serviço de Proteção aos Índios, que vivia em Guajará-Mirim (: 58) e que era também chefe de polícia do alto Guaporé (: 219). Sua descrição e um croquis (1958: 6) mostram que entre a sede do seringal e as malocas tuparis havia algumas malocas jabutis e uma aricapu. Por outro caminho que passava mais ao largo do rio e que Caspar não percorreu, havia malocas macurapes e uaiorós. Uma das primeiras habitações que se encontrava depois de abandonar a sede do seringal rio acima era a casa de André, filho de um macurape com mulher jabuti. Ele tinha matado o administrador do seringal e sua família, bem como seus capangas, devido aos maltratos e vexames que impunha aos índios e outros seringueiros, uma vez que sobre todos exercia um poder discricionário, num regime de terror (: 41, 58-64). O gerente assassinado, que era boliviano, foi substituído por um alemão, de modos mais brandos, que foi quem o suíço Caspar encontrou. Perto da sede também morava um dos últimos aruás, grupo já então considerado quase desaparecido (: 50). Enfim, os membros desses grupos indígenas estavam intimamente envolvidos nas atividades do seringal (: 37, 43, 54), comunicando-se entre si com ajuda da língua dos macurapes, que todos entendiam um pouco (: 37, 50).

O local em que viviam os tuparis tinha duas malocas, de tamanhos diferentes, cada qual com seu chefe. Eram construções circulares, com um poste central, em torno do qual se dispunham os potes com bebida fermentada. Na periferia, junto à parede ficavam os alojamentos das famílias (: 83-86).

A primeira visita de Caspar foi no período do estio, tempo da derrubada, queimada e plantio. Por insistência do líder principal, o pesquisador teve de cooperar no trabalho agrícola (: 90-97). Os principais vegetais cultivados eram o milho, o aipim (macaxeira), o inhame, o cará (: 149, 180) e, objeto de uma especial preferência dos índios, o amendoim (: 76, 110-112, 151). Vale notar que a grande árvore, esteio do mundo, que em várias mitologias indígenas é produtora de milho, na mitologia tupari é a árvore do amendoim (Mindlin 1993: 48-57). Além do cuidado com suas roças individuais, os homens colaboravam na roça do chefe de sua maloca, o que possibilitava a este convidá-los para festins que duravam sempre três dias (Caspar 1958: 129). O chefe se sentia com mais obrigação ainda que os demais de cuidar da roça (: 199).

Apesar de atribuírem maior importância à agricultura, sem dúvida consideravam a atividade de caça como mais prazerosa (: 130). Os tuparis não eram todos igualmente hábeis nessa atividade (: 144-145). Ao longo do livro de Caspar se percebe que os animais abatidos com mais freqüência eram macacos. Animais de porte maior eram raros; os grandes bandos de porcos-queixadas tinham desaparecido (: 129).

Mas era freqüente o consumo de larvas, torradas, mal assadas, ou até cruas, hábito que os tuparis partilhavam com outros indígenas e até com não-índios da região (: 67, 87, 95). Consumiam também os favos e larvas das colmeias silvestres, e o mel misturado com água (: 95, 209). Das cinzas da palmeira aricuri (ouricuri, butiá) obtinham um sal, que, além de tempero, servia como remédio (: 151). Para a pesca nos ribeirões, durante o estio, usavam de um cipó venenoso (: 190), certamente o timbó. Caspar conta de uma cobra, uma cascavel que lhe foi servida, alimento proibido aos pajés e aos adultos com filhos, mas que, por outro lado, não parecia proibida aos garotos, que partilharam da refeição (: 116-117).

Os tuparis evitavam beber água pura (: 144). O normal era tomar bebida feita de milho, aipim, ou inhame, fresca ou fermentada, tanto nas festas freqüentes como nos dias comuns. A bebida era feita pelas mulheres, colocada em grandes potes. O homem que fornecia o milho ou tubérculo para a elaboração da bebida punha à disposição de cada companheiro um pote da mesma. Cada qual tirava a bebida de seu pote com uma cuia e oferecia aos demais. Bebia-se muito, aceitavam-se todas as cuias que se ofereciam. Era preciso vomitar para poder continuar a beber (: 98). As mulheres também faziam suas festas, onde a bebida era oferecida entre elas, em primeiro lugar (: 121, 138). As meninas imitavam essas festas, com pequenos potes de vinho fresco de palmeira, oferecendo-o umas às outras (: 123).

Somente ao terminar sua primeira visita, ao descer o Guaporé, Caspar veio a saber, de um tupari que morava longe das malocas, que eles eram o resultado da união de pequenos grupos (: 223-224). O relato dessa primeira visita pouco oferece sobre a organização social. Não diz como era a composição das duas malocas dos tuparis, como era a rede de parentesco dentro e entre as malocas e qual o grau de autonomia de uma em relação à outra. Havia casamentos entre os moradores da mesma maloca? Entre as duas ocorria certamente, pois a mulher separada de um chefe tinha voltado para a maloca do outro, de quem era prima (: 135, 155). Diz o autor que o pretendente a uma mulher oferecia artefatos ao pai dela e, se jovem, ia morar com o sogro (: 200-201). Mas o que é morar com o sogro? Passar de uma maloca para a outra? Deslocar-se de um nicho para outro dentro da mesma maloca? Ou ambos os movimentos são possíveis? Havia a possibilidade de casamento com vizinhos dos tuparis, embora os exemplos disponíveis sejam de frustração dessas uniões: uma mulher tupari renunciou a seu marido aricapu, desgostosa com alguns detalhes anatômicos (: 202); um uaioró não conseguiu casar-se com mulher tupari porque nenhum pai consentiu em se separar da filha (: 194-195). Quem sabe se este casamento seria feito se o uaioró se dispusesse a morar entre os tuparis? Afinal, parecia haver uma forte razão para os pai quererem as filhas junto a si: a agressão à esposa, espancando-a, batendo nela com a espada de madeira e até atirando-lhe flechas, era freqüente entre os tuparis, sobretudo quando o homem se embriagava, mas, nos casos referidos (: 118, 122, 135, 137, 159, 166, 202), só há dois de que se sabe que as mulheres agredidas não tinham pai ou irmãos (: 135, 142).

O livro de viagens oferece um pouco mais sobre a religião, magia e rituais. Mostra como o pajé cuida de um doente, com as técnicas de passar algo de seu corpo para o do paciente e de sugar e cuspir o mal (:75); como preside a aspiração de rapé, com ajuda de tubos inaladores (: 105-107); como faz oferenda de carne de macaco assada a seres sobrenaturais (: 108); como faz magia para adiar a chuva que ameaça cair no tempo da queimada (: 133-134); como retira algo como que a força de uma árvore derrubada e a passa para o corpo de uma criança (: 150-151), após presidir o rito que lhe permite comer pela primeira vez larvas de palmeira (: 124-128).

Outros ritos foram descritos por Caspar, como a reclusão por alguns meses da jovem que está se transformando em mulher feita, quando não come nem carne e nem peixe, e somente toma bebidas não fermentadas. No final da reclusão, sob a direção de um pajé, a jovem jejua, enquanto se faz uma caçada. Só volta a se alimentar quando as mulheres lhe arrancam os cabelos da cabeça (: 201), um ato que lembra o rito de um povo que vive numa área bem distante: a festa da moça-nova dos índios ticunas (área do Alto Amazonas).

Por sua vez, os meninos, após a colheita do amendoim, oferecem ramos de palmeiras aos homens adultos para que com eles os açoitem (: 113), um ato que também evoca um rito de outro povo distante, os matis (da área Juruá-Ucayali). Aliás, meninos e homens adultos disputam um jogo em que a bola de borracha, feita por eles próprios, é golpeada com a cabeça, não podendo usar as mãos, os pés, ou deixá-la cair. A técnica de confecção dessa bola (mostrada na foto ao lado da p. 192) parece ser a mesma daquela de índios muito distantes, os timbiras, especialmente os apinajés (da área Tocantins-Xingu).

O pajé também preside ao rito a que comparecem os espíritos dos mortos, aos quais são oferecidos presentes e alimentos e depois de cuja retirada os vivos comem a respiração dos espíritos (: 182-185). Cada um desses espíritos que comparece a essa cerimônia constitui a metamorfose das meninas dos olhos de cada tupari que morre.  Ao chegar ao reino dos mortos, um casal de vermes lhe devora as vísceras. O líder da maloca dos mortos lhe pinga nos olhos suco de pimenta, o que lhe permite ver onde está. Também têm de ter relações sexuais com um do casal de seres sobrenaturais que lá estão. Depois disso, suas relações sexuais se fazem de modo diferente dos vivos, reproduzindo-se pelo sopro de um punhado de folhas sobre o ventre das mulheres. Dormem de pé, não derrubam nem cultivam a floresta, sua bebida de amendoim não é fermentada. Cantam e dançam. O mamão lhes cura as doenças bem como transforma os velhos em moços. Mas existe uma segunda alma que nasce dentro do coração que se expande no corpo sepultado. Esta alma, através de sessões de rapé, é puxada por um pajé, que lhe modela o rosto e os membros. Depois de receber comida e bebida, é solta nos ares. Mas as almas que se originam nos corações dos pajés e de suas mulheres permanecem no interior da maloca. Comem e bem daquilo que os vivos preparam para si mesmos e lhes engendram os sonhos (: 195-196). Estas almas é que dão origem ao feto que será introduzido no ventre das mulheres vivas, fazendo-as grávidas, embora aqui Caspar, ou seu tradutor, não seja claro (: 214-215).

Um interessante rito dos tupari era a retirada do alento de pessoas ou objetos dos quais a pessoa estava se separando, alento este que ela neles tinha introduzido durante o tempo de sua relação com eles. Isso ocorria nas despedidas e nas vendas de artefatos (: 217).

Os tuparis faziam referência aos "Kuairu" (: 45, 69, 154, 175-176), um grupo indígena pouco numeroso que viveria a sudeste, a cinco dias de caminhada, mestre da música de sopro e canto, que nunca teria tido contato com os brancos. Os tuparis guardavam deles uma flauta de quatro chaves, mas não sabiam mais tocá-la, apenas as flautas simples de taboca. Os velhos tuparis também lembravam dos cânticos dos "Kuairu" e ainda os entoavam. Suas relações tinham sido muito amigáveis. Caspar chegou mesmo a conhecer uma velha tupari que fora casada com um líder "Kuairu". Uma desavença fez com que os dois grupos não mais se visitassem e acabassem por perder o contato. Caspar supunha que muito provavelmente a expansão dos seringais teria absorvido os "Kuairu"" como trabalhadores ou então provocado sua extinção.

Falavam também dos "Hamno" (: 100, 138, 177-178, 203-206, 216), inimigos que viveriam a nordeste, a três dias de viagem, de modo que as picadas de caça dos tuparis tocavam as deles. Embora nenhum dos tuparis declarasse ter visto um "Hamno" na sua vida, durante a visita de Caspar correu um boato da presença deles nas vizinhanças, indicada por pegadas, armas quebradas e até pela audição de suas vozes, o que lhes causou muita apreensão. O costume atribuído aos "Hamno" de levarem as cabeças de suas vítimas para comerem nas suas refeições parece constituir a interpretação dos tuparis — eles próprios possivelmente praticantes de alguma forma de antropofagia no passado (: 181) — da caça de cabeças que outrora faziam os índios da Amazônia Centro-Meridional, não com objetivo alimentar, mas com outros fins rituais.

Outros povos afastados (: 174-176) de que falavam os tuparis, a julgar pelas características que lhes atribuiam, seriam mais mitológicos.

Os tuparis e seus vizinhos, hoje

Não parece haver nenhum trabalho etnográfico de fôlego sobre os índios do Guaporé nos dias de hoje. Talvez já seja impossível estudar separadamente as culturas da maior parte deles. A maioria se concentra em duas reservas indígenas de pequena superfície, muito provavelmente num único ou poucos grupos locais, em que se concentram várias etnias cujos representantes casam uns com os outros. Talvez a eles se aplique, não uma etnografia de aldeia, mas sim de posto indígena, algo de que no Brasil existem muito poucos exemplos.
Várias etnias em
duas terras indígenas
Note-se no quadro anexo como quase as mesmas etnias estão presentes nas duas terras indígenas, uma denominada Rio Branco, no rio de mesmo nome, e outra, Guaporé, junto à foz do rio deste nome, bem distantes entre si, ainda que algumas não estejam exclusivamente nelas. Os macurapes, por exemplo, estão presentes em outros lugares: na reserva Rio Mequens eles estão junto com os saquirapes, uns dos grupos também chamados de mequens. Dos dois grupos que se aproximam no igarapé Omerê, um é de língua canoê.

De seu passado esses grupos ainda guardam o consumo festivo de bebidas fermentadas em que cada qual se alterna como hóspede e anfitrião e o xamanismo, em que agem conjuntamente representantes de etnias distintas, aspirando o rapé, que além de tabaco, contém pó de angico (Maldi 1991: 267).

O setor do Mamoré

Conhecidos até recentemente como pacaás-novos, os uáris constituem tema de um significativo número de trabalhos recentes, originalmente apresentados como teses de doutorado — Mason (1977), Graeve (1977), Conklin (1989), Vilaça (2006), Leite (2004) — ou dissertações de mestrado — Maldi Meirelles (1986), Vilaça (1992). Desses autores, as etnólogas Aparecida Vilaça e Beth Conklin sustentam uma pesquisa continuada, com sucessivos retornos ao campo.

No seu livro Quem Somos Nós, Aparecida Vilaça (2006) examina a aproximação entre os uáris e os brancos, no século XX, sobretudo na sua segunda metade, à luz das noções sóciocosmológicas e valores dos primeiros. Os depoimentos dos uáris mais velhos que presenciaram esses acontecimentos, ou que ouviram seus pais relatá-los, são apreciados à luz dessas noções e valores, postos em evidência pela observação e convívio da pesquisadora, que se apóia também na análise de três ritos e três mitos.

Uári (wari’), que significa “nós”, “ser humano”, “gente” (p. 55), é o nome que vem sendo aplicado, de preferência a pacaás novos, ao conjunto de grupos autônomos, localizados (antes da criação dos postos indígenas), de tendência endogâmica, que se visitam a convite para a realização de ritos. Seus nomes são precedidos por uma partícula coletivizadora, oro, traduzível como “povo” ou “grupo” (p. 55): OroNao, OroEo, OroMon, OroWaram, OroWaramXijein, OroJowin, OroKaoOroWaji. Consideram-se uns aos outros como “estrangeiros”. Esta noção é o termo médio de uma escala que tem num dos polos os “consangüíneos” e no outro os “inimigos” (p. 499).

consangüíneos <—> conterrâneos <—> estrangeiros <—> inimigos

Com os conterrâneos se fazem os casamentos; com os estrangeiros, as festas ou ritos; com os inimigos, nem uma coisa nem outra, somente a guerra. Trata-se de uma escala de graus de afinidade em que cada termo corresponde a uma posição e não uma essência, com a possibilidade de deslocamento de um para outro. O estrangeiro com quem se casa pode tornar-se pela mudança de residência, o convívio íntimo, um conterrâneo, um parente; enquanto que o parente que se afasta pode tornar-se um estrangeiro, se ainda comparece a festas ou convida para elas, ou mesmo um inimigo, se perde todo o contato. Foi o que aconteceu com parte do grupo OroNao que, tendo se estabelecido ao sul do rio Pacaás Novos (afluente do Mamoré), deixando os demais grupos ao norte do mesmo, perdeu o contato com eles quando os brancos penetraram neste rio e nele se estabeleceram, bloqueando-lhes a passagem. Tornaram-se inimigos para os demais até que o contato pacífico com os brancos se consolidou. Mesmo assim constituiram um grupo distinto dos demais OroNao, tornando-se conhecidos como OroNao dos Brancos, aliás os primeiros a estabelecerem relações amistosas com os brancos.

As festas — Tamara, Huroroin’ e Hwitop’ — se assemelham no tratamento agressivo dado aos convidados ou visitantes, criticando-lhes o desempenho nos cânticos ou oferecendo-lhes continuamente grande quantidade de bebida, que têm de beber até vomitar, chegando à exaustão e ao demaio. Distinguem-se em outros aspectos: quanto à época de realização, necessidade da presença de mulheres entre os convidados, vegetais de que são feitas as bebidas e seu grau de fermentação, grau de proximidade sócio-espacial entre anfitriões e convidados, quanto aos instrumentos sonoros utilizados.

Mas essas relações não se fazem apenas com os humanos vivos. Os mortos também podem se convidar para um Tamara, e o fazem sob a forma de porcos queixadas, recebidos pelos xamãs, e oferecendo-se no final como caça (p. 117). Isso reforça a interpretação de que em todas essas festas os convidados fazem as vezes das presas.

Aos inimigos se faz a guerra, não em choques armados que envolvam tropas numerosas, mas ataques de surpresa a um ou poucos indivíduos. Dos indivíduos abatidos se levam partes do corpo para a aldeia dos vitoriosos. Os matadores não consomem a carne dos abatidos, pois têm de passar por um período de reclusão, quando consomem enormes quantidades de bebida feita de milho. Acredita-se que a espírito-sangue do inimigo entra no corpo do matador, o que lhe traz benefícios e também perigo. O matador engorda, deixa os cabelos crescerem. Após o período de reclusão, pode manter relações sexuais, o que lhe estava proibido, engordando a mulher, inclusive no sentido de engravidá-la (pp. 179-185). Tal como os estrangeiros, os inimigos são indispensáveis para dar sentido à vida dos uáris.

A pressão dos brancos desde os tempos da borracha e a gradativa invasão de seus territórios, as de inúmeros indivíduos nos choques armados e, depois da aceitação do contato pacífico, as mortes por moléstias, fizeram com que diferentes grupos uáris que se consideravam inimigos abandonassem as hostilidades, sem deixar de se tomarem como estrangeiros. Apenas os brancos restaram como inimigos e assim continuam a ser considerados mesmo após o estabelecimento do convívio pacífico com estes. Mas tal como com os antigos inimigos indígenas, os uáris se recusam a aliar-se matrimonialmente com eles. Os uáris teriam hoje, para com os brancos, conforme sugere a pesquisadora, uma relação semelhante à dos xamãs para com os animais. Assim como o xamã tem um corpo humano e outro animal, transitando de um para outro, mantendo até uma promessa matrimonial com noivas animais que o aguardam para efetivar seu casamento após sua morte, os uáris também são ao mesmo tempo uáris e brancos (pp. 503-504). Uma solução como esta se apóia no perspectivismo, orientação cosmológica que tem sido reconhecida em vários povos indígenas, segundo a qual homens e animais partilham todos da mesma natureza humana, ainda que se ponham em diferentes posições e distintos envoltórios, couros, vestes ou filtros dos quais interpretam o meio que os cerca de modo diverso. É possível mudar de posição e de envoltório. No caso dos uáris, são humanos (wari’) não somente eles próprios, mas também todos os estrangeiros e inimigos, e ainda alguns animais, ou melhor todos os seres que têm o que se pode chamar de espírito.

Os primeiros contatos com os uáris, nos meados do século XX, foram cercados de sensacionalismo por causa do costume do endo-canibalismo, ou seja, de comer os próprios parentes. Diferentemente do costume dos índios da família pano, que comiam os ossos calcinados dos parentes, os uáris comiam a carne, constituindo-se numa exceção à tendência, apontada por Pierre Clastres, de ser o exo-canibalismo voltado para o consumo da carne dos inimigos, mortos com esse propósi­to, e o endo-canibalismo o consumo dos ossos dos parentes. Os uáris comiam a carne tanto dos parentes como dos inimigos, mas o faziam de modo diferente. Hoje, tanto um quanto outro são costumes abandonados. Os dois tipos de canibalismo uári foram examinados em livro anterior da Aparecida Vilaça (1992). No caso do endo-canibalismo se proíbia aos parentes próximos, pelo menos os consubstanciais, de participarem da refeição funerária, sendo para tanto convidados os distantes, entre os quais se recrutam os afins efetivos. Também não se podia demonstrar prazer em praticar esse ato; deixando-se por isso que a carne do morto começasse a processo de decomposição antes de cozê-la. A carne era consumida lentamente e aos pedacinhos. Também Beth Conklin (2001) tem um livro sobre o endo-canibalismo uári, que examina sobretudo os sentimentos envolvidos neste ato, exacerbados com a abolição do mesmo, após a consolidação do contato amistoso com os brancos.

Também desperta interesse entre os etnólogos a terminologia uári de parentesco, que é de tipo crow. As terminologias de aspecto oblíquo (crow, omaha e suas variações) atravessam o mapa da Améri­ca do Sul numa linha não-contínua, no sentido nordeste-sudoeste, desde os timbiras do Maranhão, passando pelos caiapós do Pará, até Rondônia e Bolívia. Tal terminologia, que já foi tomada como uma transição entre as estruturas elementares e as complexas do paren­tesco, nem sempre apóiam a explicação clássica de estarem associadas à presença de grupos unilineares de descendência. Aparecida Vilaça (1995) dedicou um artigo ao exame do sistema de parentesco dos uáris.

Vale ainda assinalar que, tal como acontece com outros grupos, apesar das mudanças, muito das antigas relações se mantêm. Assim, apesar da concentração da população pacaá-nova em torno de alguns postos, os casamentos continuam a se fazer dentro ou entre grupos regionais próximos.

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VOORT, Hein van der. "Kwaza". Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental.
http://www.socioambiental.org.

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