Sete anos após a publicação do livro de poesia "O lado esquerdo do meu peito", Affonso Romano de Sant'Anna reaparece no mercado com novos poemas, a que intitulou "Textamentos" (Rocco, 1999). O título, que cruza "texto" com "testamento", não pretende insinuar qualquer despedida, ainda mais porque o escritor continua crescendo em plena saúde e maturidade literária. Muito menos acena para uma distribuição ou doação dos bens de sua herança poética ou histórica, ainda mais porque, nos livros anteriores, Sant'Anna se configura como poeta de seus diferentes tempos, quer pela diversidade de dicções, ritmos e deslocamentos das palavras na folha impressa, em poemas longos, quer pelos rentáveis experimentalismos da melhor poesia da segunda metade do XX. Em acordo com os novos tempos, privilegiando nesse livro os poemas curtos - muitos deles de caráter melancólico (sem medo da palavra) - Affonso Romano dialoga de algum modo, inconsciente e tematicamente, com as baladas do poeta francés do século XV François Villon, em seus livros "Pequeno Testamento" e "Grande Testamento". Villon, o poeta de denúncia das vaidades humanas, melancólico avant-la-lettre, eternizado na "Balada das Damas do Tempo de Outrora", ao tomar o vocábulo "testamento" em sentido literal registrou sua herança poética pela designação nominal dos herdeiros. Nesse sentido, distancia-se de Sant'Anna. Por outro lado, a eterna procura expressa no famoso verso Onde estão as neves de antanho? condiz com a procura do poeta mineiro, enquanto sustentação temático-formal de sua arte poética, estampada no segundo poema do livro: "Por isto procuro procuro procuro / (........) O que procuro não sei. Mas sei / que essa procura / me organiza o sofrimento". E o que procuraria o poeta? Creio que aprender/entender o prisma exagonal de seu estar no mundo. Acrescente-se que Affonso jamais aderiu a modismos passageiros, nunca confundiu poesia com espetáculos áudio-voco-visuais que sempre mascararam incapacidades do melhor fazer poético, e passou ao largo da tão decantada poesia por ela mesma, desideologizada tanto quanto queria a última ditadura militar. … bem verdade que em Textamentos encontramos diluídos alguns dos temas que retornam obsessivamente nos livros anteriores, tais como o corpo e o ofício do poeta (Canto e Palavra, 1965; Poesia sobre Poesia, 1975); o eruditismo político de visibilidade histórica e nacional ("A Grande Fala do Indio Guarani", 1978; "Que País é Este?, 1980 e "Política e Paixão", 1984); a morte e certa religiosidade profana ("A Catedral de Colônia", 1985) e aprendizagens de viver em "O Lado Esquerdo do Meu Peito", 1992. Entretanto, nesse cruzar, que também não deixa de ser uma encruzilhada, vejo a palavra " testamento" na acepção de "aliança", de "pacto" entre os textos que compiem o volume e a tradição da melhor poesia européia e brasileira, a partir do citado Villon. Assim, o prisma exagonal de argila, em que se inscrevem os Anais do rei Senaquerib (sec. VII a C.), que ilustra a capa do volume, metaforiza também os seis temas nele dominantes, em refrações pactuais múltiplas: Beleza, Amor, Morte, Procura, Viagem e Poesia. Esses temas se inscrevem, por sua vez, em composições curtas ou curtíssimas, elaboradas com imagens muitas vezes furtivas, incompatíveis entre si, clicadas como se integrassem micro-cenas do videoclipe, a super-arte comunicacional da pós-modernidade: "o cão, a borboleta e eu"(...) "olho a lagoa em frente, cruzo os braços / e começo a levitar"( ...) "Tuas pernas dissolvem-se na neblina"; (...) "duas pérolas brotaram de teus olhos / no mar da cama"(...) "na neblina passei a ser / apenas / uma das pedras que o luar reverberava". Ocorre-me uma analogia entre esses "Textamentos" e uma frase de Italo Calvino em "As Cidades Invisíveis". O contexto: o veneziano Marco Pólo descreve para o Grande Khan as cidades que visitara. Revelava-lhe todos os seus segredos, o que fazia de Marco o interlocutor preferido do Khan. Diz Calvino (que cito de memória): "A bem da verdade, sempre que o viajante falava de alguma cidade, estava falando de sua cidade, dos segredos de Veneza". Em "Textamentos", no poema "Veneza" o poeta ama sua mulher, num segredo de ambos, o qual lhes dá um certo sabor de glória. Assim, a poesia de Affonso: ao tematizar qualquer assunto, o poeta est· tematizando a prÛpria arte poÈtica, arte que È palavra e música, arte que é "Sedução Mortal" (título de um dos poemas), que é o Amor e a Morte. Daí os poemas "A Letra e a Morte", em que o livro (este?) que lança, enquanto um amigo é enterrado, é um - "mausoléu de palavras vivas - / celebrando o amor e a morte", e "O que Sei dos Etruscos", em que diz ser a poesia aquilo que resta da morte. A aliança entre os temas e a própria poesia se clarifica em muitas composições, a partir do poema de abertura, que dá título ao livro, quando a personagem se refere à descoberta de modos de se expressar, à satisfação de ver palavras íntimas transformarem-se em palavras públicas. E a sucessividade de pactos continua: ao falar da morte, a viva fera que o poeta diz não se cansar de estudar, evoca Fernando Pessoa e Manuel Bandeira e um concerto de Mozart. Aliás, esses dois poetas dialogam obsessivamente com esse livro de Sant'Anna, talvez por terem sido eles os que, em língua portuguesa, mais perlaboraram a precariedade da condição humana. Em "Textamentos", há poemas inspirados em viagens, à It·lia e a Israel, pactuados com a beleza da arte, da natureza envolvendo o mundo antigo que se faz poesia, pois esta " o que nos espreita / pela fresta dos dias". Evocando Virgílio em Mântova, sua terra natal, vê a lua como única ligação com ele, além da poesia. Assim é "Textamentos": alianças, pactos intertextuais. Entretanto, a marca de ferro e fogo dessa poesia iluminada pela maior qualidade, atualidade e síntese expressiva, poesia que o leitor enfrentará sem medo - porque a morte se representa para muitos como o Anjo Exterminador do Futuro - é a celebração do amor: sua eterna aprendizagem, suas lições inconsúteis, suas surpreendentes revelações e atemporalidades. … ele o lado frontal do exágono, é o prisma que se reflete em cada poema, em cada verso, em cada imagem. Alguns acharão estranho que um poeta erudito, cerebrino, ex-professor universitário de Literatura e que transita pelas mais modernas teorias literárias faça desse livro, no crepúsculo de um milênio tão desamorizado, um objeto de culto ao Amor. Ao Amor da mulher, da arte, da poesia, da história, do Outro. Com certeza, nossa maioria pensará: é muito bom saber que, mesmo em se poetando também a Morte, ainda se poete a Vida, ou seja, o Amor - seus confortos e desconfortos. Letícia Mallard- Professora Titular de Literatura Brasileira, UFMG |