Etimologicamente testamento significa, ato pelo qual alguém, dispõe seu patrimônio para depois de sua morte. Criativo o poeta lega para a história da literatura o seu TEXTAMENTOS (Ed. Rocco), associando o título do seu novo livro de poemas à palavra texto - entrelaçamento; tecido de palavras - que podemos receber como uma importante herança para nós deste momento e para as futuras gerações. Relembro o filme Fahrenheit 451, dirigido por François Truffaut, no qual dizia-se que os livros eram prejudiciais porque levavam o leitor à solidão - mas tolhia o direito de pensar o mundo no qual vivia. Era preciso queimar os livros, como forma de combater os que desejavam sair da ignorância para o esclarecimento. Alguns leitores optaram ser queimados com os livros prediletos, outros fugiram, tornando-se "pessoas-livros" que memorizavam seus textos preferidos para que seus descendentes não perdessem o gosto de ler, e preservassem a riqueza que os escritores deixaram para a humanidade. Há, entretanto, os que resistem contra os empecilhos que um escritor encontra e continua semeando suas palavras na certeza de que elas têm o poder de mudar a vida de quem se permite ser terra para deixar a brotação e a frutificação acontecerem num aprendizado de vida, amor e morte. Assim faz Affonso num texto testemunho crítico de sua realidade e da do leitor. No poema Grécia ele clarifica o que digo: "Fui visitar a Grécia/ e ela não estava lá.//.Estava nos mitos/ no British Museum/ Nova York, Washington/ Louvre, São Petersburgo, Berlim.// Fui visitar a Grécia e tive que inventá-la em mim.//. Õsso nos remetem a Drummond que dizia ser Itabira apenas um retrato na parede. Onde estará a Grécia do poeta, senão na própria imagem que possuía dela? Textamentos nos mostra um Affonso buscador dos mistérios da vida e mais contemplativo, vivenciando suas conclusões intelectuais e comovendo-nos com os significados por ele percebidos. Em O impossível acontece ele diz: "O Messias nasceu de uma virgem// O grande pensador grego nunca escreveu um livro// A nona sinfonia é fruto de um homem surdo.// Na Biblioteca de Babel o leitor era um poeta cego.// E não tinha mãos, o homem que fez/ as mais belas esculturas do meu país.// Como acontece com os da mesma família espiritual, observei a propósito de A poesia possível(1987) , "os sucessores não são epígonos dos anteriores, mas, ao contrário, acrescentam-lhes alguma coisa, expandem o campo de visão, enriquecem a herança, alargam os horizontes mentais, afirmam, em uma palavra, a própria personalidade sem desligar-se de sua posição relativa na série de uma tradição criadora:" Assim. Affonso Romano de Sant'Anna está além de Carlos Drummond de Andrade, "não por meio de marcos materialmente cronológicos, nem em termos de qualidade, pois o raciocínio só tem sentido se admitirmos que, quanto a este último requisito, todos se equivalem e situam-se lado a lado no mesmo plano ou no mesmo nível estético". O autor celebra o envelhecer sem entregar-se à morbidez. Da vida a generosidade no recomeçar. O amor com seu potencial de renovação permanente. Celebra tudo isso com a musicalidade que perpassa em todos os poemas e diz: "(...) escrevo, escrevo, escrevo// E algo se grava e se esclarece/ no ato de escreviver". Se algum louco, portanto, ressurgir das cinzas do Fahrenheit 451, Textamentos, com certeza será poupado porque seu destino é o sucesso e a imortalidade. Neuzamaria Kerner |