AS LIÇÕES DO ALEIJADINHO
Waldemar de Almeida Barbosa
Essa perseverança no trabalho, apesar de suas deficiências físicas, essa tenacidade e quase obstinação do grande artista em realizar seus trabalhos, lutando com tamanhas dificuldades, foi, indubitavelmente, a maior das lições que nos deixou o Aleijadinho
Vianna Moog viu, no pouco que se conhece da vida do Aleijadinho. Lições que constituem legítimas mensagens pedagógicas, que o artista legou aos brasileiros. O fato de O Aleijadinho empregar, na execução dos "Profetas de Congonhas," assim como na de diversos trabalhos de ornamentação, a pedra-sabão, assinala uma lição de iniciativa e técnica, "numa completa adequação à realidade brasileira."
Comentando essa lição apontada por Vianna Moog, Germain Bazin afirma que o Aleijadinho foi "o grande mestre dos brasileiros." Ao desistir do mármore, que não tínhamos, para trabalhar em pedra-sabão, que possuíamos em abundância, deu o artista aos brasileiros essa grande lição de adaptação à realidade brasileira. Germain Bazin frisa bem que o Aleijadinho foi o primeiro artista a realizar escultura em pedrão-sabão, "que não era praticada antes dele."
Outra lição do Aleijadinho, que Vianna Moog aponta, reside no trabalho de equipe. Realmente, nos recibos que se conhecem, assinados por Antônio Francisco Lisboa, em Congonhas, o artista costumava declarar: "Eu e os mais oficiais que comigo trabalham..." ou então, como no recibo seguinte: "Recebi do Irmão Vicente trezentas e cinqüenta e cinco oitavas e três quartos e seis vinténs de ouro procedidas da fatura das imagens dos "Passos do Senhor" que vencemos eu e os mais oficiais neste presente ano..."
No ajuste estabelecido com a Irmandade do Carmo, de Sabará, em 25 de novembro de 1780 de 1780, ficou fixado o salário do Aleijadinho em duzentos mil reais por ano; e dos seus oficiais, ficou assim fixado: José Soares, 60 oitavas por ano; Tomás Velasco, também 60 oitavas por ano; José Roiz, 12 vinténs por dia; Joaquim J. da Silva, também 12 vinténs por dia. O interessante, no ajuste, é ter ficado constando que os aprendizes trabalhariam gratuitamente.
Não tivesse o artista preparado seus discípulos, incutindo-lhes o hábito do trabalho, numa época em que proliferavam os chamados "vadios," classe constituída de negros e mulatos forros, que amarguraram a administração do Conde de Valadares (1763-1773), de D. Rodrigo José de Menezes (1780-1783) e de Luís da Cunha Menezes (1783-1788), e certamente não teríamos hoje o maravilhoso conjunto barroco de Congonhas.
É conveniente lembrar que os negros e mulatos forros, além de alguns poucos homens, constituíam, na escala social, a última categoria de homens livres, na Capitania, a dos chamados "vadios", "a exceção de pequenos números de brancos", eram todos "mulatos, cabras, mestiços, e negros forros". Tão numerosos eram (formavam dezenas de milhares) e tão díspares os seus comportamentos, que longe estavam de constituir uma classe homogênea; entre os "vadios" encontravam-se desordeiros, escandalosos, brigões, ladrões, etc., isso talvez resultasse de um desequilíbrio emocional, resultante da própria insegurança, do marginalismo dos mestiços em geral. Os mulatos e negros forros que se recusavam a trabalhar, alegavam que, sendo livres, se igualariam aos escravos, se trabalhassem. Um grande número de vadios era constituído de gente desocupada, mas pacífica, que gostava da boa música, tocava seus instrumentos e cantava; era gente benquista e sempre bem recebida em qualquer meio, mas aonde quer que chegassem, eram bem recebidos e o prato de comida lhes estava garantido. Explica-se, desta forma, porque muitas determinações governamentais, algumas bem severas, com relação aos vadios, tinham esbarrado na oposição dos fazendeiros que protegiam os vadios, que lhes proporcionavam horas de sua alegria, depois dos afanosos trabalhos do dia.
Eram tão numerosos os vadios, que deles se ocuparam as Primeiras Constituições do Arcebispo da Bahia, espécie de vade-mecum adotado no Brasil inteiro. No art. 154, assim eram definidos os vadios: "São aqueles que, deixando totalmente de fato e no ânimo o lugar de sua origem, andam de uma parte para outra parte e em nenhum lugar têm Domicílio permanente."
Havia, entretanto, os negros e mulatos forros que trabalhavam, em número reduzido, é claro; eram exceções à regra geral. E o Aleijadinho, mulato, era uma dessas exceções; livre, desde o batismo, foi o exemplo constante de dedicação ao trabalho sério, trabalho construtivo, trabalho que, hoje, constitui motivo de orgulho para Minas Gerais.
Entretanto, a maior das lições que o Aleijadinho deixou aos brasileiros foi, sem dúvida, a de ter perseverado nos seus trabalhos, mesmo depois de atacado por misteriosa enfermidade, mesmo aleijado, mesmo como deficiente físico. Qualquer outro, ante a situação em que se viu, de ter que ser transportado para o local de trabalho, de ter para trabalhar, que se adaptasse "os ferros e o macete às mãos imperfeitas." Teria naturalmente desistido e apelado para otura forma de vida mais fácil, à custa da caridade pública, o que era tão comum. Mais: "tinha um certo aparelho de couro, ou madeira, continuamente aplicado aos joelhos e, neste estado, admirava-se a coragem e agilidade com que ousava subir pelas escadas de carpinteiros."
Essa perseverança no trabalho, apesar de suas deficiências físicas, essa tenacidade e quase obstinação do grande artista em realizar seus trabalhos, lutando com tamanhas dificuldades, foi, indubitavelmente, a maior da lições que nos deixou o Aleijadinho. "O artista alcandorou-se," escreveu Aires da Mata Machado Filho, "ainda com o peso nas asas. Nada o esmoreceu, nem a humildade de sua origem, nem o aleijão justamente nas mãos, com que trabalhava. Revelou possuir vontade bem temperada. Enfrentou as dificuldades, esmagou-as, viveu em estado agônico para superar..." Esta pertinácia, esta tenacidade, esta perseverança no trabalho caracterizam justamente o gênio, o homem fora da média comum dos homens da época.
O Aleijadinho adoeceu em 1777, afirma com segurança seu biógrafo, Rodrigo Bretas. Tinha, então, o artista, 39 anos de idade. Justamente em 1777, consta o pagamento de meia oitava de ouro a dois pretos que carregaram o artista, para que pudesse rever o risco (traço) da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões de Vila Rica.
Ora, se morreu em 1814, concluímos que, por 37 anos, o Aleijadinho carregou a sua sina, trabalhando continuamente, nas condições mais desfavoráveis. E como a doença foi gradativamente minando-lhe o organismo, segue-se que, em 1796, quando deu início, em Congonhas, aos trabalhos das imagens dos "Passos", seu estado deveria exigir um esforço quase sobre-humano para executar suas obras-primas.
Verdadeiro
precursor do movimento internacional pela recuperação e readpatação dos aleijados à
vida social, "precursor também dos aparelhos de prótese, ele mesmo inventou os
instrumentos que lhe completam as mãos e as joelheiras que lhe possibilitem mover-se de
um lugar para outro."
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Waldemar de Almeida Barbosa, in "O Aleijadinho de Vila Rica", Editora Itatiaia
Limitada, Belo Horizonte/Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 77/80.
(Publicado nO Aleijadinho nº 17, de 08 de agosto de 1998).