With a Little Tenderness

O RUGIDO DO DEMÔNIO

 

 

 

O DESPERTAR

 

 

O demônio estremece e ruge partindo em pedaços o silêncio do quarto.

Uma mão que se move trêmula e cambaleante consegue encontrar a trava e afoga o rugido ... mas o silêncio já estava partido e os sonhos de que não se lembrava, mas também não desejava lembrar fugiram pela janela entreaberta.

Um corpo que resmunga, caminha e vai observar no espelho a imagem de sua alma, amassada pelo vazio.

Fazer a barba. Sim, fazer a barba. Escovar os dentes. Sim, escovar os dentes.

Agora o banho. Lava a alma? Não ! Não lava por dentro ... às vezes nem por fora.

Sapatos e cinto cor de vinho. Calças, meias e camisa bege, blazer castor e gravata de seda vinho com traços castanhos claros.

Pendura no chão do closet o pijama, vai para a sala chutando para os cantos as almofadas indianas que ainda não haviam acordado. Joga fora o resto de uma garrafa de Bourgogne tinto e lava a única taça de cristal, cristal refinado.

A mão abre a porta e o corpo atravessa a porta.

Carro, ah! O carro. Sempre impassível, esperando . De primeira para segunda, terceira, quarta e quinta vai se refreando ou libertando. Luz vermelha para, verde segue. De luz em luz vai machucando o espaço.

Liga o rádio e fica sabendo que o governo disse que os juros e a inflação irão baixar, que em uma porção de lugares está chovendo e que em outra porção de lugares não está.

De luz em luz, de notícias em notícias o escritório se aproxima. É interessante, e ele nota, que o escritório é que se aproxima e não ele do escritório. Afinal, porque se aproximaria ele do escritório?

"Bom dia", diz Maria, sem erguer os olhos, a boca não conseguindo abrir.

"Não, está chuviscando", responde ele, com um sorriso nos lábios e fitando as pernas de Maria, finas e manchadas.

 

 

 

O ESCRITÓRIO

 

 

Sala aconchegante, com todos os móveis em vinhático, tapetes orientais sobre o carpete, plantas bem cuidadas pela Maria, algumas pinturas e objetos antigos, bibelôs, cuidadosamente desarrumados.

Tirou o blazer e sentou-se à mesa, interfonando para Maria trazer os documentos para assinar. Assinou cheques, contratos, duplicatas, requisições, faturas pro-forma e mais o que fosse susceptível de ser assinado. (Ainda bem que eu existo. O que seria do mundo se esses papéis não fossem assinados ...)

(Droga, o desjejum esqueceu-se de mim e eu esqueci os cigarros)

"Maria, por favor, peça para alguém buscar no paraguaio um pacote de Dunhill e também iogurte natural e algumas frutas. Ponha na geladeira. Os cigarros não !"

Abriu o maço lentamente e tirou um cigarro. Acariciou-o, cheirou-o, esfregou-o pelos lábios fechados e guardou no maço. (Por quê será que não fazem cigarros com vitaminas e sais minerais?

Na mesa uma folha de papel, um lápis e uma mão apática. O papel assustado, o lápis na mão. A mão não encontrando nenhum desenho.

"Maria, por favor, traga dois iogurtes, uma maçã e um pouco de uvas."

A mesma mão a não encontrar o mesmo desenho. A folha de papel dormia. O lápis bocejava.

(O que estou fazendo aqui? O que vim fazer aqui? Ah, sim! Vim assinar os papéis. Mas já assinei todos !)

"Maria, já vou. Por favor anote os recados. Até segunda !"

Maria não respondeu nada, talvez por não querer que a segunda feira viesse, ou por temer o fim de semana.

(Sexta feira, os restaurantes lotados... fila de espera ... serviço falho ... comer logo , pois há pessoas impacientes esperando ... não poder fumar um cigarro sossegado após o jantar ... melhor ... o que seria melhor ... um Medoc de boa safra com alguns queijos ... é, é isso aí!)

Compradas as iguarias, luz após luz, parando e seguindo foi se aproximando de casa, ou melhor, a casa se aproximando dele, pois não sabia se é para casa que queria ir, como pela manhã, que não sabia se é para o escritório que desejava rumar.

 

 

 

O APARTAMENTO

 

A mesma mão abriu a mesma porta e o mesmo corpo voltou a seu casulo, ao mesmo casulo, que não podia mexer-se. Tirou o blazer e a gravata. Lavar o rosto. Abrir o vinho e servir os queijos e torradas.

Na sala, o aparelho de som calado, o sofá pedindo carinho e as almofadas implorando aconchego. Satisfez o aparelho de som com a Patética, de Tchaikowsky, o sofá e as almofadas com seu calor.

A taça de cristal era perfeita, límpida e pura. Virgem mesmo tendo sido usada. O Bordeaux era como rubis vivos, emoldurados pelas catedrais de glicerina, sinais do bom vinho. O cigarro sendo degustado. O pensamento, sem pensar adentrando o tempo e o espaço.

Reparou coisas que nunca havia reparado. A espessura do tapete tunisino, as bandejas de prata, o relógio Ansonia antiquíssimo, as armas antigas agarradas à parede, a coleção de escaravelhos egípcios cuidadosamente arrumada ... e aquela janela. Aquela janela que nunca se lembrava de ter aberto. O que teria para mostrar?

O pensamento cada vez mais sutil ... o corpo cada vez mais descansado ... o vinho começando a fazer confidências ... a Patética em seu esplendor dizendo e repetindo o próprio nome sem usar uma só palavra ... para que ir dormir no quarto?

Foi buscar o despertador, que regulou para que o acordasse as 7:00 e deixou-o em cima da mesinha, com a garrafa de vinho, o cinzeiro, a taça e um pouco de si.

E aquela janela? O que teria para mostrar? Simples. Só abri-la. Debruçou-se no parapeito e respirou a noite azul marinha, com pequenos buracos azuis. A lua ... a lua ... nunca havia reparado na lua ... redonda e amarela, coroada por um halo diáfano. Bonita, era bonita. Muito bonita. O vinho veio lhe fazer companhia para contemplar a lua enquanto a Patética repetia seu nome cada vez com maior convicção. Lua ... tão longe ... porque as coisas bonitas que desejamos e que não se compram sempre estão tão longe ... tão longe?

 

O ENCONTRO

 

 

Inatingível. Saiu da janela e foi sentar-se sugando em goles pequenos a alma das uvas. Impressão ou o vão da janela estava se tornado mais claro, como se uma luz se aproximasse? Cada vez mais claro e cada vez mais depressa clareando. Fulgor que fez com que tapasse os olhos com as mãos.

Em frente de si uma mulher nua ... cor de lua com olhos de estrelas ... voz de cítara "Eu sou a Lua e senti que você me desejava. Quer meu corpo e minha alma?"

Beijos que não pareciam beijos ... carícias que não eram carícias ... sinfonia de gemidos ... amantes que flutuam ... olhos que marejam de gozo ... corpos que se unem ... orgasmo de duas almas ... como as palavras são impotentes para descrever ...

 

 

 

SETE HORAS

 

 

O demônio ruge sem ligar ao mundo. Ele acorda. Sobressaltado. Olha para o lado ... não há mais mulher, aquela mulher. Corre para a janela. É dia ... não há mais Lua.

 

 

Paulo ... em 27.03.99

( Sexta feira

)

 

 
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