Na criação do Sensacionismo, atribuído a Álvaro de Campos que está, a nosso ver, a realização poética mais próxima das premissas filosóficas. Aliás, essa produção "sensacionista", produzida e publicada nos anos 1915 e 1916, corresponde a um dos pontos mais altos da poesia fernandina, como expressado mundo contemporâneo, isto é, o mundo construído pela Civilização da Técnica e da Máquina, — onde as sensações humanas parecem explodir, tal o grau em que são provocadas. Referimo-nos, precisamente, aos poemas: "Ode Triunfal" (Orpheu-l - lºtrim. 1915); "Ode Marítima" (Orpheu-II - 2ºtrim. 1915) "Saudação a Walt Whitmann" (escrito em junho de 1915); "Passagem das Horas" (escrito em maio de 1916) e "Casa Branca Nau Preta" (escrito em outubro de 1916). Neste último poema, já existe uma outra atmosfera, melancólica, desalentada, que contrasta com a euforia vital que predomina nos primeiros e indica que o "sensacionismo" de Álvaro de Campos estava se esgotando, ou pelo menos iria enfatizar outros aspectos da possível apreensão do Real.
Nesses poemas, aparece de maneira indiscutível a intenção básica do processo Poético de Fernando Pessoa: consumar a alquimia do verbo, ou melhor transubstanciar em Palavra a "verdade” do Real, intuída pelas sensações.
Obviamente, não será por acaso que, nos anos 1915 e 1916, quando aqueles poemas eram publicados ou escritos, Fernando Pessoa registrava também, em seus manuscritos soltos, reflexões filosóficas e estéticas que indicam com clareza a intencionalidade criadora que orientava, no momento, sua produção poética. Para se compreender melhor o quanto a poesia fernandina foi "programada" ou era "intelectualizada" (como ele mesmo tantas vezes afirmou) parece-nos bastante esclarecedor um cotejo de textos.
Mais do que a euforia futurista de Marinetti (a primeira a tentar encontrar o ritmo e a atmosfera própria à civilização da máquina); mais do que a adesão à "vitalidade transbordante", ao "belo feroz" ou "à força sensual" do universo poético de Walt Whitmann , os poemas sensacionistas de Álvaro de Campos expressam a experiência quase apocalíptica do poeta contemporâneo, ao pretender expressar um mundo que ultrapassou sua capacidade normal de apreensão, um mundo "totalmente desconhecido dos antigos", mas resultante irredutível destes últimos.
O poeta tenta, e praticamente o consegue, nos comunicar suas sensações in totum. Não, a epidérmica visão do babélico mundo moderno que os futuristas ofereciam, mas uma apreensão global, abrangente, que sugere o mundo como um continuum vital, em que presente/passado/futuro se amalgamam na alquimia do verbo, tal como na realidade cósmica as vivências estão amalgamadas.
Foi exatamente no início deste século que certas interrogações, provocadas pela evolução, se avolumam e se tornam obsessivas ou angustiantes: como posso saber se minha sensibilidade, sensações ou minhas intuições têm realmente "formas a priori" que fundamentem em verdade o ser-das-coisas? Como saber se essas "formas" foram intuídas e não, simplesmente inventadas por mim? Quem me garante que estou expressando corretamente a minha intuição? E que não estou dando uma forma falsa à coisa-a-ser-conhecida? Até que ponto meu "entendimento discursivo", minha "palavra" expressam com autenticidade meu pensamento?
Obviamente, as dúvidas quanto à possibilidade ou não de conhecimento, que vem desafiando o homem, desde fins do século passado até hoje (homem pressionado por mil descobertas nas mais variadas áreas da Vida e da Cultura), não se colocam assim de maneira direta e simples (ou ingênua). Mas para nosso objetivo aqui, tal enunciado é suficiente. E de certa maneira, podemos dizer que nessas interrogações está uma das marcas mais flagrantes de modernidade que vai distinguir a poesia tradicional da poesia contemporânea a despersonalização na qual a perda de identidade do eu vai desembocar.
Álvaro de Campos é o poeta moderno da dialética fundamental: eu civilizado versus eu poético, tentando conhecer as antinomias latentes no novo ser-forjado-pela-civilização, quando posto em confronto com o Absoluto (Álvaro de Campos seria o novo embrionário que hoje vemos aparecer, inconfundível, no "mutante cultural" dos nossos dias). A. Campos, o das odes dionisíacas, entusiásticas, à Whitman, subscreve também algumas das expressões mais penetrantes de um tema oposto, o que acarreta por seu turno uma das ambigüidades axias de Pessoa: o tema dos estados evanescentes de sonolência, cansaço, atenção marginal, desagregação subjetiva, inapetência, apreendidos no entanto com uma tal concentração e apetência de lucidez, que problematiza e dinamiza a unidade do eu. A. Campos subscreve longos poemas admiráveis, que sondam profundamente o senso camoniano da mudança e desdobram a inquietação do destino.
Se entendermos o mito como uma vivência, gesto ou situação que se perpetua no tempo, por se alimentar de um conhecimento ou de um valor essencial à cultura de determinado grupo humano, podemos ver nos heterônimos a intenção do poeta em criar, em cada um deles, um pequeno universo mítico. Ou melhor, um "universo" que representa uma determinada maneira de ver, pensar, fazer ou conhecer que é essencial e verdadeira em-si-mesma, embora possa ser conflitante com as maneiras representadas nos demais. Embora verdadeiro e válido-em-si, o universo do homem rústico, ingênuo e comum defendido por Alberto Caeiro, se chocará com a "verdade" defendida no universo de Ricardo Reis ou no de Álvaro de Campos, e vice-versa. No entanto, facilmente se verifica que nenhum desses "universos políticos" existe de maneira arbitrária ou lúdica, isto é, dependente apenas da fantasia de seu autor. Mas, ao contrário, são autênticos "universo de valores" construídos poeticamente, cujos fundamentos são perfeitamente reconhecíveis como "verdades" atuantes em determinadas épocas.
Seja valorizando a concretude do Real e do visível, seja tentando sondar o invisível a poesia fernandina é bem eloqüente como fenômeno de modernidade: exacerbando a responsabilidade de conhecer e de dar a conhecer que o Romantismo lhe impusera como tarefa, a linguagem poética, neste século, empenha-se não mais em imitar ou representar a realidade conhecida, mas em transfigurá-la, para que o novo que nela está oculto, transpareça. Poesia, sendo expressão de vivências, sensações ou de pensamento é, acima de tudo, um fenômeno de linguagem. Daí que aos diferentes universos heterônimos correspondam diferentes processos de composição poética e diferentes linguagens. A poética fernandina, se aplica bem o que H.Lefebvre afirmou acerca de Baudelaire e Rimbaud, como poetas da modernidade:
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