Alpinista no iceberg O telefone toca. É o diretor de uma grande agência de publicidade convidando para uma viagem à Antártida, o lugar mais inóspito da Terra para muitas pessoas, mas nem tanto para Amyr Klink, que no continente gelado fica quase tão à vontade quanto em sua própria casa. Assim, é claro que o convite foi aceito. E com orgulho, já que desta vez Amyr foi contratado para ser o consultor de uma equipe que buscava icebergs para rodar um comercial de cigarros. Apesar de não ser exatamente um entusiasta da fumaça cheia de nicotina, Amyr aceitou a missão de orientar a equipe com os conhecimentos práticos que tem sobre a região. Além do mais, a publicidade também pagou a conta para que o mesmo grupo pudesse realizar a gravação de um documentário em cinema (16 mm) e vídeo. Assim, Amyr não perdeu a oportunidade de revistar o lugar que foi o seu lar durante sete meses - e até aproveitou para testar um novo sistema de telefonia móvel, que poderá ser utilizado em sua próxima viagem. Amyr embarcou em uma verdadeira Torre de Babel flutuante: dois navios levaram 10 toneladas de equipamentos e pessoas de 11 nacionalidades diferentes, entre russos, americanos, brasileiros, argentinos etc... A expedição de caça aos icebergs partiu de Ushuaia, na Argentina, em 9 de fevereiro de 1997, e levou três dias para chegar na Península Antártida. Ao todo, havia 40 pessoas na equipe de produção, formada por técnicos, diretores de cinema e alpinistas, todos a bordo do navio meteorológico russo Professor Kromov de 70 metros. O rebocador chileno Laurel, de 50 metros, também viajou como embarcação de apoio. O barco foi adaptado com uma plataforma de popa onde um helicóptero poderia pousar. Para navegar em meio aos icebergs, eram usados botes de borracha. "Eram 14 horas por dia em cima desses botes" diz Amyr.
Era verão na Antártida. "A temperatura média até estava agradável, entre zero e 5ºC negativos", conta Amyr. Com um clima a que nem todos ali estavam acostumados - especialmente o pessoal de filmagem --, foi necessário um acompanhamento do médico paulista Fábio Tozzi. "Não tivemos nenhum problema grave, apenas enjôos, queimaduras de sol e hipotermia", conta o doutor, que segundo Amyr, "adora barcos moribundos".
Tozzi, aliás, passou pelos momentos mais perigosos da viagem. Quem embarca em expedições como esta, acaba se tornando polivalente, e o doutor também atacou de comandante de bote. Ao todo, na busca dos icebergs mais fotogênicos, foram vasculhadas 200 montanhas de gelo. Cada vez que um alpinista cravava a picareta no iceberg, ouvia-se um barulho ensurdecedor das rachaduras provocadas. O problema era saber quando os pedaços de gelo viriam abaixo. Um dia, já na volta para o navio, uma imensa calota se desprendeu e mergulhou a alguns centímetros do bote de Fábio. Um susto inesquecível...

Amyr com a furadeiraEngenharia Polar --- O Lugar escolhido para as filmagens foi um "cemitério de icebergs", próximo à Ilha Pleneau, na saída do Canal de Lemaire, um fiorde estreito com paredes de até 1.200 metros. Todo o planejamento das escaladas ficava para os riggers, engenheiros que engendravam incríveis esquemas para subir câmeras e equipamentos. Eles eram acompanhados por oito alpinistas, operadores de câmera e diretor. "Difícil mesmo era convencer o diretor dos perigos da operação. É arriscado ficar até 14 horas filmando, sendo que a temperatura pode baixar de repente", explica Amyr.
Mesmo quem era experiente passou por apuros, como o mergulhador argentino Herman Arbizu, convocado para ficar de plantão nos botes. Caso algum alpinista caísse, ele seria a única salvação. Mas Herman contava apenas com uma roupa de neoprene de 10 mm insuficiente para conter o frio antártico. Resultado: hipotermia. Quando ainda se recuperava, teve seu dia de herói. Um dos câmeras deixou cair uma bateria, que Amyr insistiu em buscar: "A regra na Antártida é não deixar nada para trás, nem mesmo uma bituca de cigarro", justifica. Arbizu se prontificou a reaver a bateria, mas ela estava em um lago formado dentro de um iceberg, onde flutuavam outros pequenos icebergs. Até Amyr já estava deixando de lado a retidão ecológica. Mas o mergulhador caiu na água assim mesmo. "Ele não conseguia achar e nem subir à tona, por causa dos pedaços de gelo. Foi um alívio quando o vi subir depois de alguns minutos. E com a bateria !", conta Amyr.
Também sobrava um tempinho para o lazer. Os técnicos até jogaram futebol em cima de um iceberg --- um deles queria plantar a bandeira do Corinthians no gelo, como os grandes conquistadores, mas para sorte da Antártida, a consciência ecológica barrou a tentativa. E à noite, os brasileiros promoviam um happy-hour, regado a uísque.

Foto do rebocador chileno LaurelFilmagem Perigosa --- Nos últimos dias da viagem, foi encontrado o iceberg ideal para a filmagem final. "Tinha o topo chato, onde seriam feitas algumas tomadas aéreas", lembra Amyr. Mas estava distante. Os navios teriam que navegar até lá contornando o "cemitério de icebergs". Sem planejamento nem consentimento de Amyr, o diretor enviou os alpinistas de helicóptero que foram deixados sem comunicação. Um bote também seguiu para lá, levando técnicos, Fábio e o fotógrafo Pedro Martinelli. Foi quando o vento pulou de 25 para 50 nós. Com o tempo ruim, o helicóptero ficou preso no navio. À mercê da tempestade, os rapazes ficaram deitados no topo para se proteger. E o pessoal do bote passou a enfrentar ondas de 2,5 metros.
O Laurel foi enviado para o resgate. Mas enquanto isso, o pessoal no bote enfrentava a "surra" do mar. Fábio tentou repetidamente, sem sucesso, prender o bote em um iceberg. "Foi o Pedrão quem conseguiu fixar o parafuso. E eu tinha ensinado a ele como manejar o equipamento um dia antes", lembra Amyr. Por sorte, a tempestade passou. Assim os alpinistas pegaram carona no bote do doutor Tozzi para voltar ao navio.
Após um mês, o grupo tomou o caminho de volta, com uma escala na Ilha Deception --- uma cratera vulcânica alagada pelo mar. Na entrada da cratera, o Laurel bateu em uma pedra, avariou o casco e teve que ficar para sofrer reparos. Comandante triste e tripulação sem teto. Quem estava no rebocador foi transferido para o navio russo. Apesar dos contratempos, as gravações foram "um sucesso", como os telespectadores poderão conferir. Até quem não fuma, como o próprio Amyr, deverá gostar das imagens da Antártida e seus icebergs cinematográficos.

Matéria retirada da revista Náutica Nº 105
Por Flávia Pegorin e Pedro Kutney
Fotos Fábio Tozzi
Este Texto foi digitado por Maicon F. Santos em 26 de Maio de 1997 - "A única alteração que fiz foi acrescentar o ano na data de partida da cidade de Ushuaia na Argentina".


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