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A Representação da Cidade de Belém no Imaginário e na Literatura de seus Espectadores ao longo do Século XX

 

(Excerto de "A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, Memória e Melancolia numa Capital da periferia da Modernidade", dissertação de mestrado, orientada por benedito Nunes. UnB, 1995)

 

 

PRÓLOGO

Na noite de 28 de agosto de 1912 a cidade de Belém do Grão-Pará foi tomada por uma série de acontecimentos surpreendentes. A memória oral situa naquela noite uma chuva de proporções tão gigantescas, que, conta-se, chegou a destruir a todos os vitrais da loja Cúpula de Malquistã. Daquela noite lembra-se, ainda, que a cidade foi invadida por um odor profundo de gerâneos, que a alguns lembrou o odor de cadáveres insepultos e suscitou a hipótese de a chuva ter alagado o cemitério da Soledade, no centro da cidade, e ter trazido os mortos à superfície da terra. Por sinal, foi também a noite de uma festa familiar na qual se viu surgirem de dentro de paredes brancas dois fantasmas, como me foi contado, que prenunciaram vários desassossegos. E ainda, porfim, foi a noite em que o líder oposicionista, o ex-governador Lauro Sodré, sofreu um atentado, enquanto se dirigia em seu coche para assistir a uma récita lírica no Theatro de Nossa Senhora da Paz.

O autor desse atentado foi identificado como sendo um elemento da guarda pessoal do senador Antônio José de Lemos, o político de maior prestígio na Amazônia de então. A cidade dormiu pouco, e no dia 29 de agosto de 1912, foi às ruas para ler os jornais e ouvir as discussões a respeito do atentado. Líderes oposicionistas incitaram a população e o jornal lemista, "A Província do Pará", acabou por ser invadido e incendiado. A crise política, no entanto, parecia ser um sucedâneo de crises privadas. Naqueles dias todos os estabelecimentos comerciais da cidade estavam em crise, todos os investimentos estavam ameaçados, e todas as felicidades estavam comprometidas. A pequena multidão que protestava no Largo da Pólvora contra o atentado, então, se dirigiu à residência de Lemos e também a incendiou, e o velho senador, aos oitenta anos, ainda de pijamas, foi arrastado e humilhado pelas ruas da cidade, sendo obrigado a se refugiar na casa de seus próprios adversários políticos.

Aí terminava a "Era da Borracha", de forma tão inesperada e rápida quanto foram vertiginosas as folias da sua história privada. As marcas do período eram evidentes: entre 1860 e 1912 a população de Belém cresceu cerca de 1.200%. De cerca de 18 mil habitantes no final da guerra civil de 1835, passou a contar com um número em torno de 180 mil em 1912. Um crescimento intenso, baseado, principalmente, na imigração portuguesa e nordestina, mas que contou também com fluxos imigratórios espanhóis, franceses e italianos, além de fluxos do interior paraense. A renda interna da Amazônia cresceu, nesse período, em torno de 2.800%. A renda per capta da região, que em 1910 fora calculada 323 dólares, para decair, na década seguinte, a 74 dólares, tendo sido superior, na última década do século XIX, aos valores estimados para cidades como o Rio de Janeiro, Boston e Nova York.

No entanto, o monopólio que a Amazônia mantinha sobre a produção mundial de caucho (a seiva milagrosa que modificava o processo industrial de todo o mundo e que equipava indústrias crescentes, como a automobilística) não duraria para sempre. Preocupados com as manobras especulativas que começaram a ser desenvolvidas por exportadores paraenses e portugueses em 1908, em Nova York, 407 companhias e 231 firmas internacionais formaram a "Rubber Growers Association", que passou a financiar pesquisas e a desenvolver técnicas de cultivo ordenado - na Amazônia, afora algumas poucas experiências, a atividade sempre foi extrativista - com plantações próprias na Malásia.

Essa produção de borracha no oriente subiu de 3 mil quilos em 1900 para 28 milhões de quilos em 1912. Em 1913 alcançou a produção de 48 milhões de quilos e, em 1914, a Malásia produziu mais da metade da borracha mundial, 71 milhões de quilos. Em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica.

Não será difícil imaginar o baque que sofreu a estrutura econômica amazônica com a súbita e inesperada queda dos preços. De acordo com Paul Le Cointe, somente na praça de Belém as falências pronunciadas alcançaram o valor de 100 milhões de francos (cerca de 59.524 contos de réis), e isto somente no ano fiscal de 1913. A renda interna da região caiu de 485.833 contos de réis em 1910 (e fora ainda maior nos anos do final do século XIX) para 153.568 contos em 1915.

Em 1912, quando se prenunciou, no final do mês de agosto, a extensão que as perdas alcançariam, prenunciou-se também o final de toda uma "Era", um período de opulência, fausto e fastígio, de incrível liberalidade nos costumes e de experimentações e maneirismos na vida privada. Nos dias que se seguiram, cerca de 160 estabelecimentos comerciais fecharam as portas. Dias tumultuados, que a memória oral preenche com aparições de fantasmas, dramas individuais e uns sessenta suicídios. Dias que marcaram também a queda dramática de uma oligarquia, a dos "Lemistas", no poder desde 1897 e uma procura nunca antes registrada por passagens de navio e fretes de embarcações. A situação atingia gravemente, também, a administração pública. A prefeitura de Belém devia mais de 2 milhões de libras esterlinas e o governo do Estado devia quase a mesma quantia.

Ali terminava a "Era da Borracha". Seus mitos e metáforas, no entanto, ainda persistem. E é com base nesses fatos de agosto de 1912, inclusive nas histórias pouco plausíveis sobre os fantasmas, os misteriosos odores de gerâneo e as chuvas torrenciais e inesperadas, que constituo o "evento fundador" que possibilitou a base sígnica das produções discursivas que abordo neste trabalho.

 

 

1. Saudades do desconhecido

Vou contar a história de um beijo de cem anos atrás. Era em Belém que ele acontecia e embora fosse bem agosto, aquele tempo, o céu estava carregado com cúmulos cinzentos, como os que envolviam a cidade nos meses chuvosos. Era Belém e chovia. Sebastião tinha vinte e seis anos e Edmée tinha dezessete em agosto de 1912. Os dois estavam na varanda da casa dela e se despediam, e havia no ar da cidade, carregado de mistérios, uma estranha ambivalência de saudades prematuras. Sebastião aproximou seu rosto enquanto Edmée conseguia pensar somente em flores, como me foi contado, e a beijou. Era a primeira vez que se beijavam em dois anos de noivado. Despediram-se em seguida.

Em menos de duas horas, Sebastião embarcava num vapor da companhia "Pará & Amazonas" que estava ancorado no cais inglês - um dos que restaram da imensa frota do Visconde de Santo Elias. Partiu para o Rio de Janeiro um pouco afobado - os acontecimentos na cidade provocavam muitas partidas naqueles dias. Era bem agosto, tudo aquilo, ainda que um céu cinzento, de desejo incasto, envolvesse por cima a cidade, e fosse desenhando, como num sonho, uma contingência de chuvas gigantescas e sucessivas, no mês de maior calor. Edmée jamais tornou a ver Sebastião. Ele partiu da cidade para tentar solver a falência da empresa do seu pai, e, não conseguindo, jamais retornou. Escreveu algumas cartas e certa vez enviou um presente de natal, mas acabou por desaparecer completamente. Aquele primeiro e único beijo entre os dois, no entanto, não foi esquecido, e foi-me contado por algumas amigas de Edmée do tempo em que eram todas senhoritas, e do tempo em que mesmo a cidade era ainda senhorita. E o que seguem, neste livro, são memórias e sonhos, simplesmente porque não sei se um beijo é só um beijo, cem anos depois.

Ou, talvez, pudesse dizer assim: cem anos depois, uma "Era da Borracha" vai ser só uma "Era da Borracha"... ou não? Será, que hoje, cem anos depois daqueles dias, Belém se livrou dos seus mitos de apogeu, glória, loucura e vigorosa queda? Ou, será que não... Proponho ver que sobre Belém existe outra Belém - imaginária. E que esta Belém imaginária (que precisa ser conhecida) surge daquela outra (dentre outras mais) de cem anos atrás.

O que seguem, são anotações para que sejam inscritos túmulos no ar.

Adentro da cidade havia cidades transeuntes e adentro dos fantasmas havia várias histórias perpassadas. A concretude da história, as várias versões sobre os fatos, a velha fé nos anjos-custódios, alguns odores misturados e, enfim, todas as outras coisas que faziam a cidade, estavam em permanente suspensão e, para todas aquelas pessoas, era como se o passado transitasse por instantes.

Tinha para mim que eram todos uns sonhadores sensuais. Os temas que desenvolviam, seus mitos, aquelas falas que se repetiam sempre, todos os dias, amparadas pela própria tristeza, eram falas sobre a cidade e ao mesmo tempo sobre o vazio. O passado então não existira? Como o Marco Polo de Ítalo Calvino explicava para Kublai Khan (ou imaginava explicar, ou Kublai imaginava a explicação) os passados mudam de acordo com o itinerário do viajante. Os sonhadores viajam para reviver seu passado ou para reencontrar seu futuro?, pergunta Khan, e Marco Polo responde: "O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá".

Dalcídio Jurandir se perguntava: De Belém, aquela, quem me dá notícias?. A cada pergunta desse gênero formulada em Belém um coro de respostas murmurava - no vento, segundo o poeta Ruy Barata - um calendário de respostas. Um calendário de destinos. E também na minha casa, e em todos os lugares em que se ia, se percebia a estranha ambivalência dos sonhos sobre a história. As palavras estavam sempre carregadas de mistério.

Ao escutar mais atentamente aquela interminável seqüência de falas, ou de murmúrios, sobre a pequena grandiosidade deixada no passado, e ao perceber que todas aquelas falas compunham um discurso coletivo do qual eu próprio (e este livro) não era ausente, percebia como todos eles eram uns sonhadores sensuais. As memórias envolviam. A cidade desmedusa-se. As falas literárias, as falas musicais, as falas plásticas e as falas orais não registradas, mas poderosas, socialmente instaladoras, repetiam sempre a mesma história inconclusa. Mas eram memórias carnívoras aquelas memórias.

Por vezes duvido de minha própria lucidez, inclusive enquanto autor de uma "tese", porque não sei se as memórias que tenho são realmente minhas. No entanto, dentro desse processo discursivo de implicitação e denominação, há certo espaço oco, que é um jogo do ser dentro do tempo.

Um vácuo qualquer de tempo, ou um vácuo de memória, nos joga na Belém do final do século XX. É o tempo onde vive o Sujeito Observador, mas sua memória aborda outras épocas. A realidade concreta se mistura, em sua mente, a uma realidade onírica, composta por fragmentos de informações e emoções, coisas que lhe restam quase impunemente. Um homem é um ser-em-sí junto com a sua circunstância. Percebamos que essa circunstância é também o ser-por-outros da história. O ser histórico, como ser social, se faz num discurso circunstante, circundande, ambivalente, dimensionado pelo lento e repartido, pela consciência de ser-para-si, pela impressão lesada de ser-com-outros e pela inconsciência de ser-em-si.

O Sujeito Observador enxerga a cidade. Mas, narrador sensual, converte a cidade que vê num labirinto, um "mis-en-abîme", e não há tempo ou espaço que deixe de ser convertido dessa maneira: a visão desse observador pressupõe a superposição das narrações da cidade, ou seja, a cidade enquanto uma narrativa barroca. O que vê? O barroco dos curvilíneos das mangueiras de Belém, o barroco das alturas históricas superpostas, o barroco em que a cidade se converte, quando sonha, num armário de gavetas imbricadas, uma dentro da outra, como caixas infinitas de lembranças e descobertas, criam uma cidade na qual a pungência cotidiana do "ter-perdido-algo" leva à melancolia, expressão do seu ser-para-sí. Na Belém do final do século XX milhões de brilhos "vidrilhos", bilhos quintilhos e versos sextilhos se misturam sendo. São-em-si, mas o que é ser? Quem descreve essa realidade? No Sujeito que olha ela é para-si. A cidade se abre em gavetas e se perde num céu que está ao quarto andar, ou seja, ao fim das mangueiras e prédios velhos, e se Belém pensa e representa o passado, faz isso porque tem consciência de um tipo de morte que mata as cidades.

Observo o Sujeito Observador. Ele olha intranqüilamente. Sugiro que ele descreva primeiro a Belém do "passado" (entenda-se, "Era da Borracha", pois boa parte do passado da cidade é convertido, também impunemente, em "Era da Borracha", o que é fácil e aliviante). Em seguida, sugiro que ele descreva a Belém ideal para viver. A síntese dos dois depoimentos me leva a Sancha.

Sim, pois Belém seria uma cidade chamada Sancha, sra. d. Sancha, coberta de ouro e prata, como imaginou o maestro Waldemar Henrique. Ela teria ruas compridas e confusas, e calçadas com pedras de lios em toda sua extensão. Seria uma cidade respirando entre o abafado do mormaço e o vento de um temporal. Teria sobrados misteriosos e palacetes com estilos misturados, e bondes e ônibus "zeppelin", e teria algumas torres construídas em casas imponentes. Suas ruas estariam cobertas por mangueiras e outras árvores, num emaranhado silencioso e noturno, ou melhor: soturno, próprio das belezas femininas densas, e não distante daqueles imensos cabelos pintados nas damas de Albery. Haveria homens com chapéus "cronstadts", e mulheres vestidas com rendas, panos lisos, cintas, ou apenas chitas, mas sobre todas pairaria um odor simulado, na verdade o odor das flores de sapotilhas.

Se essa Belém claramente onírica continuasse a ser descrita, ela cada vez mais recenderia a flor de sapotilhas, ou a outras frutas poderosas, e seria uma cidade enorme e com idéias estrangeiras, e a cor cinza predominaria no centro e o colorido em derredor. E haveria música misteriosa, que de longe pareceria cítara, mas de perto era claramente pianolas que haveria, e meio alegre mezzo partida, e cartas viriam de Lisboa, mensagens das ruas de Lisboa, e essas cartas planeariam sobre a cidade e suas salas. Haveria navios mercantes chegados de Hamburgo, Massachussets, Oporto e Liverpool, e estranhos objetos cirúrgicos, e aparelhos de vários ferros de construir. Muitos fantasmas seriam ressuscitados, e eles sussurrariam. E tudo isso seria trazido pelo vento (o vento azul de uma manhã casta, do poeta Ruy Barata), sempre furioso, mordendo todos os telhados e a cabeça de todos os homens.

A existência desses signos pressupõe a antecedência de ser, ou melhor, o ser-para-si, a elaboração sócio-cultural, de vários elementos materiais, que os sujeitos observadores dos vários tempos sucessivos da história extravasaram com o seu desejo imaterial de representação. Vários sujeitos em tempos sucessivos... O acumulo discursivo da história torna os últimos Sujeitos seres delirantes... Os signos que estes últimos Sujeitos produzem, através de uma mecânica de pulsão de morte e desejo, traçam uma poética lúdica em forma de devaneio.

Não estarei falando, neste texto, ao menos de forma direta, sobre o "ciclo do látex". Falo sobre a "Era da Borracha", que é a sua produção discursiva, que é o ciclo do látex preenchido com valores míticos. E o que é a "Era da Borracha"? Em sua temporalidade discursiva, um devaneio sobre o passado.

A "Era da Borracha", sempre é bom lembrar, não existia em seu período histórico. Havia, sim, a certeza da economia próspera e a produção sígnica-discursiva de então. Essa é a primeira evidência da ilusão discursiva que permeia o termo "Era da Borracha". Aquele tempo somente se torna "Era da Borracha" quando precisamos, em nossos tempos de sujeitos sucessivos, definir e proteger nossos sonhos e nossas melancolias de fausto, apogeu e queda. Nesse sentido, creio, posso dizer que "Era da Borracha" é um lugar de produções sígnicas, que incorpora o passado de uma forma imaginativa.

Os elementos discursivos atuais, digamos dos anos 40 a este fim de século em que estamos, sobre a "Era da Borracha" se baseiam nos seguintes signos, ou melhor, códigos de afluição de signos:

- Idéia de um passado de fausto,

- Idéia de um passado "modernamente" civilizado,

- Idéia de uma urbanidade delirante e cosmopolita,

- Idéia de destruição ágil e impiedosa dos signos anteriores.

Essas idéias produzem o devaneio sobre o ciclo, saudades do que poderia ter sido mesmo sem ter acontecido. Certamente que podemos investigar o ciclo econômico do látex à luz da história (de uma histórias das produções) e definir com mais exatidão se cada uma delas é prudente, ou plausível materialmente, e a partir dessa pesquisa criticar a grande ilusão paraense sobre o ciclo, mas lembro que estamos trabalhando com o conceito de que a realidade é um produto dialético da concretude material e do delírio fantasmático, ou ilusão, sobre a antecedência de ser dessa mesma concretude.

Torna-se lícito, dessa forma, buscar no devaneio certo grau de verdade, ou mesmo a tese do qual constitui-se, o devaneio, como antítese. Formulação que permite caracterizar e interpretar a categoria das "saudades do desconhecido".

Todo o lugar de fala "Era da Borracha" é uma saudade do desconhecido. É uma lembrança sensual, efetivada quando a concretude material de um objeto histórico-discursivo permeia o poder de gerenciar novas falas, novos enunciados. O tema da ligação entre memória e imaginário está presente em boa parte das filosofias do conhecimento. A verdade material do discurso, dentro de uma perspectiva fenomenológica da discursibilidade dos atores sociais, é a união da materialidade histórica dos fatos com os sonhos dos produtores do discurso.

Ao tomar conhecimento daquelas falas encantadas, e sebastianas, que se sucediam incessantemente em Belém, passei a cogitar certas hipóteses sobre a existencialidade das coisas que "eram" discursivamente. Todo o lugar de fala "Era da Borracha" constituiria uma "saudade do desconhecido"? As cidades melancólicas, assim, teriam saudades ocas, como se verá. Saudades ocas, roucas e barrocas. Saudades ideais e não contingenciais.

 

 

2. Território da saudade

Tentando contingenciar, sob uma perspectiva fenomenológica, a dimensão do discurso sobre a "Era da Borracha", adotei o procedimento de observar os acervos de "representações" de Belém pesquisando em coleções públicas e particulares de incipts artísticos e históricos. Percebi ser notável a repetição de determinados feixes semióticos, ou conjuntos de signos evocativos de um "passado-látex". Notei também que esses feixes eram permeados por uma dimensão algo mítica/mística contingenciadora das saudades do passado-látex: uma melancolia leve, enunciatória e indicial. Batizei esses feixes de "semiotical blues". Poderia trabalhar somente com eles, em seu campo narrativo, ou seja, nas "escrituras" em que estavam, pois até então havia pesquisado, somente, em campos não-orais de representação: livros, músicas, artes plásticas, imagens... Optei, no entanto, por estender a pesquisa a campos orais, que me permitissem, inicialmente, confirmar a extensão social do discurso sobre o passado-látex e, depois, trabalhar não somente ao nível de uma análise discursiva, mas ao nível de uma análise social da reverberância discursiva.

Assim foi que passei a colher depoimentos sobre "a cidade de Belém", não mencionando diretamente o ciclo do látex, mas adotando terminar esses depoimentos com duas perguntas abertas, que permitissem a fruição do passado-látex, se houvesse, no campo discursivo tradicional do semiotical-blues: 1) Poderia descrever a Belém ideal para se viver hoje?, e 2) Como imagina ter sido a Belém da "Era da Borracha"? Creio que as duas questões estiveram estrategicamente colocadas, de modo a permitir certa liberdade de expressão minimamente necessária para a integridade do método fenomenológico.

A questão sobre a "Era da Borracha" só entrou no final de cada entrevista, de uma forma quase inusitada. No universo de respostas colhido, observei que a Belém ideal para se viver era a mesma que as pessoas imaginavam como tendo sido a Belém da "Era da Borracha", ou melhor, a Belém do discurso corrente sobre o ciclo. Na verdade, quando mencionei, no final de cada entrevista, o signo "Era da Borracha", tive impressão de que era esse o grande termo que faltava para encadeiar o feixe de signos relacionados na questão anterior (como seria a Belém ideal para se viver?) como descrição da cidade.

A partir desses depoimentos, comecei a perceber que não só o imaginário expresso nas "escrituras", produções mais formais e intencionais, mas também uma grande tradição de narrativa oral descrevia Belém a partir dos mitos de apogeu e queda do látex. Mais que isso, percebi que o semiotical blues derivava não de uma tradição narrativa de escrituras, e sim o contrário: eram as escrituras formalizações de um discurso social reverberante. A partir desse momento passei a considerar os feixes semióticos que chamava de semiotical blues como um lugar de fala.

Com essa constatação, tendo o objetivo de analisar em sua plenitude o lugar de fala "Era da Borracha", busquei a forma narrativa/discursiva de Belém produzida durante o ciclo, ou seja, quando não existia uma "Era da Borracha", mas uma realidade. Minha intenção era a de observar a dialogia do lugar de fala "Era da Borracha" em seu campo histórico conformador, utilizando a tática de pesquisar a intertextualidade para alcançar a discursibilidade do presente.

Retornei novamente às pesquisas de campo, desta vez me atendo às produções discursivas do ciclo do látex. Possuo, assim, elementos sígnicos elaborados em duas épocas, e um grupo deles (os de hoje) contratransferencialmente produzidos em relação aos primeiros. Minha intenção é confrontar alguns de seus signos, mas não proceder uma análise discursiva de cada elemento em particular, fazer isso, sim, tendo em vista o referencial mnemônico (abrangente a diversas formas de "memória" e produção de sentido), socialmente produzido, que relaciona o habitante atual da cidade de Belém do Grão-Pará com o habitante e a cidade de sonhos que imagina ter existido e que, por alguma razão cultural, cerebral, e com algum estupor utópico, acredita habitar, ainda que ficticiamente.

Meu ponto de partida é a visão da cidade de Belém que sobreexiste hoje no discurso social dos habitantes dessa cidade a partir dos referenciais de "urbanidade" e "modernidade" explorados durante o ciclo do látex. Entretanto, é útil dizer logo, numa história de esquecimentos e longos silêncios, "Era da Borracha" nada mais é que um outro signo referencial, associado a tempos magníficos e a sensações de vertigem (vertigem de delírio e vertigem de queda), um signo como, por exemplo, o Teatro da Paz, ou outro prédio qualquer de valor sígnico indicial simbólico. Existem duas Beléns, que não se permutam com tranqüilidade: uma, a cidade objetiva, material e, outra, a cidade onírica. A incompatibilidade entre as duas gera certa efusão de melancolia.

Por ora, percebamos que essas duas cidades superpostas são referências da vida cotidiana do habitante da cidade, que, de agora em diante, será chamado, para que tenhamos sempre em mente o seu ponto de vista, que é reprodutor de um discurso social sobre a cidade, de Sujeito Observador. Esse habitante caminha pelas ruas observando prédios e personagens, como um flâneur benjaminiano, e é uma criatura fictícia, que será citada até o fim do trabalho, guiando nossas observações.

O Sujeito Observador pode ser qualquer habitante da cidade. Qualquer habitante é permeado por um discurso e emite falas. A história, o passado e a "Era da Borracha" são discursos. O pensamento do Sujeito e a sua ação em proferir esse pensamento são as falas. O discurso sobre a "Era da Borracha" permeia tanto a existência do Sujeito Observador quanto a existência social de Belém. E a opinião privada de cada um dos seres da cidade, inclusive a do Sujeito Observador, são falas, emissões sígnicas estruturadas politicamente.

A dimensão existente entre o Sujeito e um Discurso qualquer que o permeie é, em toda circunstância, uma dimensão política. Nesse espaço contextuo a teoria de Lucien Goldman sobre o "lugar de fala", que é, em síntese, o lugar social que o Sujeito ocupa durante a emissão da sua fala; a sua condição de ente falante, de emissor de mensagens. Goldman diz que um enunciado nunca começa nada, é sempre a resposta para alguma coisa. Com isso, quer dizer que a fala está inserida num discurso social, tendo fronteiras enunciadoras. O lugar de fala não seria nem um fenômeno verbal e nem um produto social, seria um ponto de encontro dessas duas coisas, um espaço onde a polêmica pode se desenvolver.

Nesse sentido, "Era da Borracha" seria um lugar de fala, situado na interseção entre um discurso sobre o passado e uma ilusão social a respeito desse passado. O Sujeito Observador é o senhor da sua fala, e quando ele discursa a respeito da "Era da Borracha", está assumindo um papel dentro do discurso social. Esse papel é político. Nosso Sujeito é um ser móvel dentro da ação discursiva: sobre ele pesam falas, resgatam-se falas e criam-se falas. A sua própria fala tem origem na fala de outros, e essas falas alheias são, na verdade, grandes falas sociais. A sua fala tem fronteiras: ele a inicia e encerra onde pretende, dentro da grande fala social (o discurso), e a escolha dessas fronteiras é a sua grande oportunidade de mover-se politicamente, ou seja, a abertura e o corte que, dando forma ao discurso, formalizam também a ideologia.

Para proceder minha análise, considerei todas essas falas, ou feixes de signos, como "enunciados" do discurso social sobre o ciclo, que, em termos de sua estruturação semântico-ideológica e para efeitos científicos, passei a chamar de "lexias". Para ordenar todo o trabalho utilizei o conceito de que cada código, cada lexia, cada conjunto de enunciados culturais que manuseei, tanto de falas orais quanto de falas escritas, é, na verdade, a representação de um conhecimento cultural acumulado, que pode ser seqüenciado e estudado como se fosse um feixe de signos, de onde procede minha categoria analítica dos semiotical blues.

Assim, dividi o meu grande Texto social, urdido conjuntamente e regido por uma economia de trocas simbólicas, em lexias de duas naturezas, as lexias teóricas (o espaço ideológico do discurso social) e as lexias empíricas (o seu espaço lingüístico). Dessa forma, pude realizar um inter-relacionamento de lexias observando a existência de diversos graus de intertextualidade, implicitação e assimetria e, porfim, verificar que certas lexias, tanto empíricas quanto teóricas, se repetiam, no próprio ato de socialização do lugar de fala "Era da Borracha". Achei possível considerar essa repetição de lexias como verdadeiros mecanismos, ou códigos sociais, da enunciação diversa de um mesmo discurso.

O lugar de fala "Era da Borracha", portanto, aflui, no discurso social sobre o ciclo do látex, através de códigos sistematizados e desenvolvidos socialmente, socialmente compreendidos, numa positivação de condutas ideológicas regida certamente por leis econômicas de trocas simbólicas.

Esses códigos se misturam, para regerem, conjuntamente, a estrutura e o conteúdo de cada enunciado, tanto em sua forma ideológico/teórica quanto na sua forma empírica.

São vários os códigos que compus para entender o discurso que analisava, mas as falas que afirmam e introjetam socialmente o mito de fausto e queda são, no entanto, a maioria das falas tecidas pelo discurso sobre o látex, de forma que criam uma associação discursiva entre os referenciais da história material do látex e os signos de apogeu/queda. Observa-se, na verdade, que a construção do discurso social sobre o ciclo do látex acabou por promover um combate de signos nos quais as melhores histórias sobre apogeu/queda acabaram por superar, e mesmo por esconder, a verdade material da história.

Isso constitui, materialmente, o que chamarei adiante de devaneio sobre o passado. As lexias do apogeu/queda, em sua manifestação material e ideológico/teórica, formam o eixo das falas que apresento aqui. Sendo importante assinalar que esse modelo de análise discursiva, que perpassa minha pesquisa não é o objetivo, ou, melhor dizendo, que o mainstream teórico deste trabalho não o trata como uma pesquisa sobre o lugar de fala "Era da Borracha", mas sim como uma pesquisa sobre a introjeção social do lugar de fala "Era da Borracha". Estou interessado não na estrutura do discurso, mas na fenomenologia da ação discursiva e no impacto social dessa ação discursiva - impacto esse que considero social essencialmente, por ser um juízo de valor sobre um espaço histórico. Nesse sentido, quero entender este trabalho como pertencendo ao gênero dos cultural studies, e não ao gênero da análise do discurso, ainda que parta desta última.

 

3. Spleen de Belém

"Havia Paris do século XIX...

E aporto-me em Belém,

- Grão-Pará -"

(João de Jesus Paes Loureiro, "Altar em Chamas")

 

A percepção do modus faciendi, da tecitura social do lugar de fala em questão, seja através de obras memorialísticas, de obras de ficção, de obras de cunho histórico (em qualquer linguagem, escrita ou oral, e, sendo escrita não só através dos artifícios do papel mas, também através da música e do vídeo, por exemplo), levam a uma linguagem e a um discurso particularmente sustentado pela ilusão de fausto e pela proximidade ao laconismo sêmico de uma certa melancolia. Observe-se estes depoimentos:

Sonho com Belém em preto e branco; é um sonho encardido, lembra a cor que fica nas pedras de lios após uma forte chuva. O engraçado é que as calçadas, em meus sonhos, são ainda de lios e têm o seu contorno, bem como a cor, definida dentro do acizentado. É uma Belém antiga, não necessariamente a antiga Belém; a cidade é cheia de chalés. A atmosfera é fantástica. Eu não piso nas calçadas, simplesmente flutuo qual um espírito líquido. E sonho, também, com os porões das antigas casas de Belém.

Eu sonho que estou sozinho no Paris N'America, na loja. O imenso salão está vazio, só os objetos que o compõe estão lá. Desce, a escadaria, uma bela mulher morena, toda nua. Ao final, ao ultimo degrau, ela troca a nudez por vestes de uma santa barroca .

A Belém em que vivo tem tudo o que uma cidade do primeiro mundo possui: tem metrô que liga o subúrbio ao centro da cidade, tem um shopping center para cada dez quilômetros; possui um grande monumento que não se iguala à Torre Eiffel e nem à Estátua da Liberdade, mas chega perto.

Belém seria industrializada, com os prédios mais sofisticados e modernos .

 

O que eles têm em comum? São falas que possuem um mesmo material semiótico: coabitar um mesmo plano ideológico e, assim, perfazem um "lugar de fala". São alguns exemplos colhidos dentro de um material vasto. A saudade do desconhecido está presente em todos eles. Saudade do desconhecido: uma angústia objectual que pode ser analisada como uma relação intersemiótica ambivalente, na qual um signo, que deveria estar por outra coisa, está, na verdade, pela intenção de estar por uma terceira coisa contraditória, oponente à sua objectuação.

Se essa é a relação intersemiótica da saudade do desconhecido, a sua relação fenomênica se baseia, possivelmente, na dicotomia do objeto desejado ser, ao mesmo tempo, o que o contingência como objeto e o que ele seria, intersubjetivamente.

Essa tensão representativa, que constitui a saudade do desconhecido, pode ser observada socialmente e na esfera psicológica do sujeito, por vezes nos representamens da sua melancolia, coisa que se mostra em relações diversas entre sujeitos enunciadores e contingências objectuais na cultura ocidental. Assim, no bojo do estudo das afetividades representativas a que se dedica Walter Benjamin, saudade do desconhecido seria mais um termo para que se entendesse o "spleen" de Baudelaire em relação às contingências da modernidade parisiense. A sua estrutura, em seguida, objetivaremos em termos de um "semiotical blues". A sua referenciação constitui-se em melancolia. Spleen é uma palavra de difícil tradução. O inglês, sua língua matriz, faz com que signifique, literalmente, baço, o órgão produtor da bílis e empresta a noção primitiva dos gregos de "melaina kolé" (bílis negra), que em oposição à aphrosia da espuma marinha, simbolizaria o mau humor, o tédio e a melancolia propriamente dita. Baudelaire a utilizou com um caráter melancólico - "j'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans". Em Nietzsche, ela eqüivaleria, talvez, ao conceito de "astro sem atmosfera" (Unzeitgemässe Betrachtungen). Walter Benjamin disse: "O spleen é um sentimento que corresponde à catástrofe em permanência". E disse também: "O spleen põe séculos entre o presente e o momento que acaba de ser vivido. É ele que, incansavelmente, estabelece a antigüidade". Tedium vitae. Sensação de inadequação. Mau humor e ao mesmo tempo cansaço. Pode-se entender spleen de várias maneiras. Um dos sonhadores que pesquisei entenderia, possivelmente, assim:

...era a sensação que eu tinha quando estava na casa da minha avó no inicio da tarde, com aquele calor, lasso, que me fazia ter uns desejos estranhos que não era certamente o de fazer amor com minha prima, que morava ali, mas de desejar fazer amor com minha prima, mas tudo isso misturado com muito sono.

Para mim, spleen seria traduzido como uma lembrança sensual, ou como memórias inconfortáveis, ou como um certo gênero de nostalgia ambivalente (porque presa a um presente pouco visível) que chamava de saudades do desconhecido.

A sucessão das falas sobre Belém, nas minhas pesquisas, conformavam um spleen da cidade. Eram intranqüilidade quanto ao passado: memórias carnívoras, pois tudo era passado. Logo nos primeiros trabalhos de observação do material que estava colhendo, comecei a chamar aquele "spleen" de melancolia. Algumas pessoas objetaram, sugerindo que passasse a chamar de nostalgia, considerando que seria um termo mais leve, pois seria difícil caracterizar a situação discursiva, do discurso que analisava, socialmente imbricada, como melancólica. Pensava-se, naturalmente, nos termos da definição psicanalítica-freudiana para o termo melancolia: a que a dá por uma situação de luto patológico, de tristeza muito agravada, da qual não se consegue livrar-se facilmente; uma situação, enfim, que aprofunda a relação de perda que o sujeito melancólico tem com o objeto perdido. Com o avanço das pesquisas deixei de hesitar chamar de melancolia para a situação que envolvia os sujeitos contingenciadores do discurso que analisava e o objeto que consideravam ter perdido, ou seja, o lugar-de-fala "Era da Borracha", que, em certas instâncias discursivas, podia se converter no lugar de fala "Belém", o que, para efeito de análise de sentidos, vinha a ser a mesma coisa. Passei a agir assim porque percebi a extensão do caráter "melancólico" desse discurso social mas, também, porque ao ver como se dava o seu mecanismo e sua relação com a subjetividade social em análise, pude considerar estruturas peculiares de tecitura que me permitiam pensar em "melancolia" de forma semiótica e intersemiótica e, assim, considerando o caso específico falar, também, especificamente, em melancolia.

Como disse, tive para mim que eram todos sonhadores sensuais: a melancolia (ou o spleen, ou a saudade do desconhecido) de Belém me remetia ao devaneio de sonhos sobre sonhos e à explicação onírica do curso da história, o que poderia constituir uma subjetivação poética. Neste caso, é possível ter em mente a idéia de Ítalo Calvino:

A melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor e o cômico que perdeu o peso corpóreo. (...) Não se trata, pois, dessa melancolia compacta e opaca, mas de um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma poeira de átomos como tudo aquilo que constitui a última substância da multiplicidade das coisas.

É nesse plano que posso perceber como os sujeitos discursadores concebem a sua relação com o objeto do seu discurso: sempre de uma forma mística. Sendo o seu discurso um produto dialético da materialidade histórica da cidade (uma ambivalência) com a memória de somas oníricas sobre essa cidade (outra ambivalência), posso entender o que dizia Ferdinand Lion:

Quem entra numa cidade, sente-se como numa tecitura de sonhos, onde o evento de hoje se junta ao mais remoto. Um prédio se associa a outro, independente das camadas de tempo às quais pertencem.

E posso, talvez, entender também os discursadores que pesquisei: na sua mística sensualidade, na sua melancolia leve, nas suas saudades de um desconhecido que, contingencialmente (e significativamente), é meu também: saber a existência de Belém, no século XX, é coabitar a intromissão de um tempo idealizado. Diante do ser da cidade nos tempos do século XX, tem-se essa idealização de outro tempo de ser, que fornece a base da sua subjetividade. Pedro Maligo assinala isso:

A Amazônia social do passado é representada primordialmente através de um memorialismo que pretende oferecer uma visão crítica do presente. Em geral, tal passado é o do primeiro Ciclo da Borracha (1870-92), cujo impacto é descrito em termos da realidade paradoxalmente associada àquele período da história econômica da região.

Através da sua análise da obra de Dalcídio Jurandir, Pedro Maligo observa que a situação de Belém em relação ao ciclo ultrapassa a situação de "nostalgia":

...ao contrário, ela aparece como a impotência que uma personagem sente ao tentar compreender as devastadoras consequências dos acontecimentos históricos.

O que levaria a:

...estados de introspecção, ou a um sentimento de determinismo que se manifesta como apatia ou desespero diante da realidade que evoluiu da decadência econômica.

Estaria falando de melancolia? A semiose melancólica de Dalcídio Jurandir se mostra, por exemplo, assim:

Como foi que tão de repente a cidade caiu? Todos os dias via cair um sobrado, embarcar uma família.

Mamasse nas vacas e não nas seringueiras. Pensava que a borracha esticava sem rebentar um dia?

De fato, o sentimento de desconforto existencial que perpassa não somente a obra de Dalcídio Jurandir, mas também um razoável conjunto de obras paraenses do século XX, conduz possivelmente à situação de melancolia, que já foi sugerida por alguns autores, como Célia Coelho Bassalo, como decorrente da ação da crise econômica sobre o imaginário de elite:

A superação histórica do extrativismo da borracha, com a conseqüente marginalização da Amazônia, provocou a queda dessa elite e, com ela, a estrutura simbólica que sustentava de forma tênue, as Paris tropicais. Dessa forma, as folias do látex deixaram entre nós marcante impressão de melancolia

Ângela Gemaque Álvaro, assinala a importância que o ciclo tem, com suas lendas de fausto e poder, sobre o imaginário das elites atuais. E Roberto Santos, tratando das ilusões do ciclo escreveu:

A imagem que a região guardou do mundo comercial ligado à borracha foi (...) a da primeira década do século - imagem duplamente errada. Errada com respeito ao passado, quando a manipulação dos mercados se fez geralmente no sentido de alta - ainda que a Amazônia tirasse um proveito bastante reduzido, certamente muito mais reduzido para o seu esforço humano, dado o papel exercido pelos experientes exportadores e negociantes de fora. E errada quanto aos vinte anos ulteriores, porque já então a tecnologia produtiva e a estrutura do mercado se haviam modificado.

Belém era elíptica: diante da ambivalência de "ser", tentavam seus habitantes tracejar, com desejos, a cartografia de um passado sonhado.

 

4. Configurações do passado-látex

Constitui uma boa tentativa de "explicação" de Belém o depoimento do fotógrafo Miguel Chikaoka:

Com a transferência de uma cultura mais européia, que se instalou nesse contexto de Amazônia ainda misteriosa, fantástica, de grandes florestas e com toda a tecnologia da época se pôde montar, digamos, uma super-cidade (...) uma cidade do futuro sendo instalada no coração daquela Amazônia .

De fato, durante o ciclo do látex, para quem vivia longe de Belém, a cidade incorporava uma certa face cosmopolita. Humberto de Campos, que passava a infância entre o interior do Piauí e do Maranhão, escreveu:

Por esse tempo [1894], a Amazônia começava a transformar-se em Califórnia, em uma terra de prodígios, com pepitas de ouro ao alcance da mão dos cegos. Pedia-se por favor ao aventureiro que enchesse as algibeiras e fosse embora. Mendigo que estendesse o chapéu à liberalidade pública, podia, em um mês, abrir uma casa bancária. Caixeiros de Parnaíba, que abandonavam a vassoura e partiam em janeiro com um saco e uma passagem de proa, regressavam em novembro com anel de brilhante, correntão de ouro, sete malas pregueadas, e cédulas de quinhentos reis, para casar nas famílias mais aristocráticas da cidade, quando não vinham casados, já, com uma índia rica, filha legítima ou legitimada de proprietário de seringal. Tio Antoninho viu isso no Maranhão, e partiu para Belém.

O cosmopolitismo de Belém, justificado pela riqueza da cidade, é verificado em elementos práticos, da vida cotidiana:

Meus tios costumavam mandar, de Belém, a Província do Pará e a Fôlha do Norte, grandes folhas diárias de que eu viria a ser, dez anos mais tarde, redator literário ou político. E eu acompanhava, por eles, o desdobramento das operações militares em Canudos, a chegada do Sr. Lauro Sodré à sua terra, e outros acontecimentos consideráveis. Tudo isso me parecia, porém, tão distante, ocorrido em regiões tão remotas, que eu jamais supus pudesse conhecer o cenário fantástico daqueles sucessos.

Os sucessos dos tios de Humberto de Campos, que imigraram para a Amazônia em busca da riqueza prometida pelo látex, eram acompanhados com espanto pelo menino. Belém se convertia, a cada carta que chegava, a cada notícia, através de cada discurso de quem partia em um "cenário fantástico".

Foi por essa época, se bem me recordo, que meu tio Antoninho mandou à família, de Belém, além de outras coisas preciosas, uma dúzia de latas de leite condensado, e a mim, um exemplar, cartonado, do Il Cuore, de Edmundo D'Amicis, na tradução portuguesa de João Ribeiro. Esse livro constituiu um acontecimento, em Parnaíba.

Após uma permanência de alguns meses na capital paraense, havia esse Campos [Benjamin Campos, tio de Humberto] (...) entrevisto a fortuna que lhe acenava com a mão pérfida naquelas regiões insalubres, e partiu a vê-la de perto. Subiu o rio, com a sua mala. E ao fim de dois meses, a mala, recolhida por pessoas caridosas, voltava sozinha. O dono ficara sepultado com a sua mocidade e a sua esperança, no alto de um barranco, nas proximidades de um seringal....

Mas chega o momento de crise, a "débacle", a falência absoluta de Belém, e enunciar referencialmente esse momento histórico, talvez seja a mais difícil negociação com o Nada que fazem os enunciadores deste protocolo:

Veja bem, eles viram todas aquelas coisas, viram a mata daquela forma, viram o ouro branco, e aí, então, começaram a dormir.

A derrota do látex é, por vezes, associada aos fracassos pessoais dos milhares de aventureiros que imigravam para o Pará com destino aos seringais. Noutras vezes, é o fracasso da própria cidade de Belém que é o tema das histórias e a margem das associações. A "capital da Amazônia" era um centro de poder dentro de uma gravitação discursiva. A "débacle", a falência absoluta da cidade, acompanhada de revoltas populares, da deposição do intendente (prefeito) Antônio Lemos, incêndios, mais de trezentos pedidos de falência e quarenta e seis suicídios em uma única semana, é um tema recorrente, um "evento fundador" da melancolia paraense:

Não me lembro, obviamente, de 1912, porque eu era muito pequena, mas nos anos seguintes me repetiram tanto sobre as coisas que aconteceram ali, que às vezes tenho impressão de que fiz parte daquelas coisas, de que participei da fuga, porque foi uma fuga, não foi?, da minha família para o Rio de Janeiro. Às vezes é como se eu tivesse vivido as aflições que devem ter vivido os meus pais.

Me acostumei a associar a crise da borracha de 1912 com a morte da minha mãe, d. Sarah Cerqueira Lima de Castro, que no entanto morreu bem antes, e também com a tristeza do meu pai e com os hábitos que ele passou a ter desde então.

Belém de minha infância era uma cidade triste. (...) Anos seguidos não se via um andaime, uma construção, uma obra nova. Belém apodrecia na sua pobreza e na sua melancólica decadência. (...) Tudo seria arrastado na enxurrada do desastre financeiro e anos de sofrimento e luta aguardavam um Estado empobrecido, despovoado e abandonado pela Nação.

É ainda Octávio Meira que diz: "Um dia Belém acordou do sonho maravilhoso que vivera desde os fins do século XIX". Acordou mesmo? A produção literária, a produção artística, e toda a produção discursiva da oralidade belemense não parece ter acordado. Signos de apogeu vigoroso e de queda vertiginosa se repetem, por vezes ludicamente: em algumas histórias, é inevitável falar de grande (ainda que não seja a grandeza do látex) e de queda súbita, inesperada, irremediável:,

O Coronel Rêgo, que embarcara milionário em Belém, bebendo champanha e fumando charuto, saltou em Manaus completamente arruinado.

Na obra de Peregrino Júnior há vários momentos que representam essa duplicidade de signos. No conto "Feitiço", a personagem-título poderia ser considerada como a própria cidade de Belém-látex, ingênua e volátil, encantada, encantadora e azarenta. Fadada à queda. O conto narra um momento de apogeu e queda na vida de Feitiço, moça do interior que encanta os homens da cidade e lhes traz o azar. Já no conto "Putirum dos Espectros", do mesmo livro, Peregrino Júnior trata explicitamente da falência de um seringal da região das Ilhas (Furos de Marajó), em 1892. Na sua agonia, o seringal se vê, de repente, assombrado por um navio fantasma, que passa ao largo e que é tão grande, tão gigantesco, que não pode ser "gaiola" nem "lóide", talvez um navio da "Booth", inglês, que no entanto não costumava navegar por ali. É um navio encantado e estranho, mas seu espectro real é o da melíflua lembrança do látex. O navio parte sempre, embora algumas vezes seja nítida, para os habitantes do seringal, a sua intenção de aportar.

As saudades de Belém desenhavam, para quem viveu aqueles anos do ciclo, uma cidade peculiar, sempre noturna, ou escurecida, com cores tênues e um rebuscado de galhos e troncos de árvores emaranhados, por vezes ensombrecida por pesados cúmulos, vigiada por anjos perigosos e também por ventos confusos, que misturam odores e ruídos vindos de rios diferentes. É o universo que permeia a "interpretação da cidade" de boa parte dos relatos orais e que por vezes é clara em obras plásticas e visuais de paraenses .

Essa é a cidade de Oswald Goeldi, filho do cientista suíço Emílio Goeldi, diretor do Museu Paraense, que passou sua infância em Belém, durante o ciclo, foi-se com ele e voltou somente em março de 1938, para expor seu trabalho de ilustração para o livro "Cobra Norato", de Raul Bopp. É possível perceber como esse reencontro com Belém influenciou o artista na sua fase seguinte, quando é mostrada uma Belém inerente ao contexto da obra, citada com seus temas peculiares de cidade, como é o caso de trabalhos como "Chuva", nanquim e aquarela de 1956, "Peixe Vermelho", xilogravura em cor de 1958, "Depois da Chuva", carvão de 1930, "O Anjo", nanquim a traço de 1940, "Surpresa", nanquim a traço de 1945, "Ameaças de Chuva", xilogravura de 1945 e "São João", nanquim a traço de 1945.

É a cidade proto-moderna, cheia de sutilezas quando dimensiona o seu ser, ou melhor, seu desejo-de-ser: efêmera ao reconhecer-se no passado:

O que te amei,

foi o efêmero,

A estranha duração da tua eternidade.

Flâneurs da modernidade no terceiro-mundo, subitamente, os habitantes de Belém se converteram em flâneurs da história, ou melhor, dos enunciados sobre a história que, não raro, se converte numa história da modernidade, ou melhor, numa história efêmera da modernidade, pois como diz um poeta,

Vagarei pela inexistência da cidade

por sobre os telhados,

(Nunca mais pelos da Palmeira,

que rescendiam a pão,

e hoje resistem noutra tarde),

da cidade,

sobre a vida que transpira na pele da idade

dos meus 20 anos,

de poeta,

de aprendiz de arquiteto,

menino de sonho,

e ossos no universo de um quintal do Norte.

Vagarei soturno por entre as mangueiras,

com o coração exilado da cidade,

(talvez num quintal de outro pais).

O poema de Age de Carvalho preserva as ilusões discursivas sociais com a melancolia leve da perda que deixou belezas e instalou a poiésis no logos. Em outros momentos do mesmo livro, o autor fala não da sua experiência, mas da experiência "histórica" da cidade:

Casas sem asas.

A memória,

reboco,

arruinando-se...

Lesmas de cal em almas e paredes.

Porque tocadas pelo tempo, as coisas,

intocáveis,

caem no oco de si mesmas,

A referência à ascensão e à queda de Belém costuma abrir um caminho para o discurso, para a continuidade ou para a abertura do discurso.

Ao meu ver Belém antigamente era um sonho, agora é um pesadelo.

A cidade de Belém viveu seu apogeu na época da Borracha. Era uma cidade de brilho, luzes e cores. O luxo fazia parte de cada esquina, casarões, teatros, cinemas, tudo em estilo art-decor e art-nouveau, projetados por arquitetos vindos da Europa.

E, o implausível, é remediado com signos cuja referência negocia a perda. A peça "Godibai Pororoca", produção do Grupo Experiência, possuiu um quadro chamado "Mon Chéri Belém", referência explícita à Era da Borracha, em que a cidade é chamada de "a cidade do já teve", termo que, aliás, foi incorporado pelo jornalismo diário do colunista Edwaldo Martins, de "A Província do Pará", um dos grandes apaixonados por Belém, e por diversos sujeitos enunciadores da vida cotidiana.

Os relatos referenciais da perda negociam com um vazio plausível. A série "Janelas", pinturas de Geraldo Teixeira, a série "Noturnos de Belém", de Paolo Ricci, a série "Nunca Viram Mas Pintaram. Isso é Guerra", de PP Condurú e a série "Amorocidade", de Antar Rohit, pronunciam certa intenção de restauro de prédios históricos, trabalhando diretamente, por assim dizer, com referências às coisas "que caem no oco de si mesmas". São exemplos desse imaginário de tempo e espaço (cronotópico) que chamo de semiotical blues.

 

5. Memórias do desejo de ter sido

A tradição de narrar o passado-látex celebra Belém: não a Belém contemporânea de todos os seus narradores, cada um a seu tempo, ao longo do século XX, mas a Belém da qual se tem, ao mesmo tempo, e ambivalentemente, memórias do desejo de ter sido e mágoa por não ser mais o que seria. As ambivalentes narrações de Belém celebram o passado como pretérito imperfeito - o tempo passado que participa do quase-futuro.

Eu gostava se vivesse naquele tempo...

A celebração do passado-que-seria faz com que os narradores de Belém traiam a sua dimensão do real... A cidade que seria permanece presente de alguma forma, assombrada pelos mortos que não devem morrer:

Meu avô e minha avó morreram na Era da Borracha. Minha tia Stela vendeu todas as coisas na década de vinte. Porfim, a casa foi vendida...

Todos mantém, em relação ao passado, uma atitude discursiva que se instaura sobre a perda. Os discursos que reuni revestem-se de luto por algo que ninguém define exatamente o que é, mas que acaba por se materializar na própria cidade. Creio que o verdadeiro luto é pela extinção abrupta dos sonhos e pela impressão de decadência. A rigor, seria um luto pela "felicidade" perdida, pelo "tempo" ou pela "vida" perdida. Na impossibilidade de definir claramente o objeto dessa relação de luto, no entanto, a perda da materialidade da cidade pode servir, como denegação. O proprietário de um firma de demolições (uma das várias que desmontaram boa parte da cidade-látex), sensibilizado com seu trabalho, passou a recolher materiais diversos e fundou um pequeno museu nos fundos da sua casa. Dezenas de habitantes de Belém possuem coleções de azulejos antigos recolhidos de demolições. Virou costume, pela cidade, emoldurar tais azulejos e utilizá-los como decoração, nas paredes e sobre mesas. A fotógrafa Cláudia Leão utilizou janelas recolhidas em demolições como molduras fotográficas. De alguma forma mística, a cidade se enche de resguardos quanto aos seus mortos, principalmente os mortos objectuais, ícones da materialidade do passado. Tal gênero de atitude é uma forma de narração. No dia de finados de 1989 uma "passeata fúnebre por Belém" reuniu cerca de duzentas pessoas num percurso de 10 quilômetros, com encerramento em ato público em frente ao cemitério da Soledade, no centro da cidade, então ameaçado de demolição.

De alguma forma, todos salvam-se morrendo juntos. Mas nem tudo é sinistro nessa celebração do destino. A fruição do passado em termos de semiotical blues deixa a cidade eternecida. Belém adora mencionar-se, e quando é permitido fazer isso livremente, sem ferir o código do silêncio deontológico que perpassa as boas maneiras para com os mortos, o peso do passado perdido é revestido por um eternecimento leve que vê beleza na salvaguarda do nada.

O Festival "Três Canções para Belém", realizado em outubro de 1976 pela prefeitura da cidade, foi pródigo em demonstrar a idéia que músicos e intérpretes fazem de Belém: o passado da cidade era um ícone de ventura, ícone este que pode indicar, indiciar, os incipts fenomênicos da perda. Seja esse passado iconizado o da "Era da Borracha", seja qualquer outro passado, persiste a idéia da perda. Belém se concebe como uma cidade perdida:

Ia Belém fluindo leve fina flor.

Ia-Belém. Belém citada no imperfeito e nos passados, fluía leve e fina. Logra dizer que a Belém contemporânea do artista nega a situação privilegiada que possuiu no seu passado. As doze músicas selecionadas nos primeiros lugares, nesse festival, constituíram o disco "Dança das águas". Todas as doze falam de uma cidade perdida e lamentam a destruição do passado. As referências às perdas "do látex" são icônicas em somente uma das músicas, mas são indiciais nas demais. Como se verá, a "queda-látex" é apenas uma dimensão - de utopia "moderna" - dentre outras quedas sebastianas que habitam a mentalidade daquela cidade de periferia do capitalismo. A referência icônica reúne ao tema látex os signos do gigantesco (mil seringais) típico do sistema de produção implantado na região Amazônica durante o ciclo, signos de luxo (renda mais fina, resina, cristais) e o irremediável, mas tangível, signo da "queda", que sai da perda econômica denotada (vestiu-se) e é atravessado pelo poético do avanço da idade e do tempo sobre o modo de produção (quando era menina, senhora).

Vestiu-se quando era menina,

Com a renda mais fina,

De mil seringais.

Senhora, inda hoje fascina,

Cheirando a resinas,

Banhada em cristais.

 

As outras onze músicas falam, indicialmente, de queda, dano, perda do passado:

Se as promessas fossem como âncoras,/Jamais esqueceriam de voltar.

Há muito que aqui no meu peito,/Murmuram saudades azuis do teu céu.

Respingos de ausência me acordam,/Luando telhados que a chuva cantou.

Renasci de amor primeiro por Belém,/Remorri de amor depois.

Se me der na sorte,/Vou voltar pro Norte,/E vou ficar por lá.

Navegando só em sonhos,/Aportando sem remar .

Cidade Nova,/essa moda de viola/não conta agora os teus tempos atuais.

Pois a viola prefere calar agora,/de saudade se afoga,

lembrando os tempos atrás. E a viola desafia e desafina,

Chora nota, chora rima, e prossegue nos seus ais...

Esse gênero de canção se tornou grandemente popular nos anos subseqüentes e por toda a década de 1980 em Belém do Pará, e talvez caiba assinalar o papel do Festival "Três Canções para Belém" como uma das forças motrizes no processo de criação, ou de investigação, a que a cidade se lançou sobre suas origens. A partir do final dos anos 70 não faltaram artistas, músicos, pintores, gravuristas e atores para denunciar a "queda". Sob a proteção da bandeira do "novo regionalismo", e em busca daquilo que o arquiteto Paulo Chaves Fernandes citou como uma desvairada "busca da linfa perdida", a tarefa de redescobrir a cidade, ou melhor, de superar/remediar a "queda" se tornou intensa.

Assim é que, em 1989, o grupo "Oficina de Samba" lança, com grande sucesso pela cidade, uma canção que diz sobre Belém:

Velha namorada,

Tu me finges o cuidado

De quem quase me amou.

A aventura de reler a cidade que, em certas instâncias pode significar tanto fugir da cidade quanto reconstruir a cidade, empolga um público amplo, que passa a freqüentar o teatro do novo regionalismo - do qual a peça "Ver-de-Ver-o-Peso"constitui um marco (mais de dez anos retornando sistematicamente aos palcos), que se emociona com as exposições de fotografias de Luiz Braga, cujas fotos criam uma atmosfera midcult-suburbana que Belém escolhe para si, cheia de coloridos intensos e rostos expressivos e que dá margem, entre outras atividades culturais, para a instalação da TV e Rádio Cultura, que nos seus quatro primeiros anos de existência (1986-1990) produz uma programação "regionalista" intensa e de qualidade razoável..

A base mítica referencial da "Era da Borracha", no entanto, curiosamente, não envolve apenas os belemenses, em sua experiência sócio-histórica. É interessante observar que, textos memorialísticos de pessoas que não eram de Belém, apenas viajantes, reproduzem os signos de grandeza e queda da cidade. A que se deveria isso? O discurso social de Belém seria poderoso o suficiente para que viajantes, por vezes etnólogos e historiadores, com interesse em observar criticamente as peculiaridades de regiões alheias, se vissem envolvidos por ele e dele participassem? Os elementos discursivos daquela essencialidade pretensa de Belém constituiriam uma base de significados extensiva a outras sociedades?

Qual seja a resposta, é interessante observar que esse fenômeno indica a dimensão social do discurso, ou a imersão social do discurso. Qual seja a resposta para essa questão, temos que o discurso sobre a Era da Borracha instala-se como lugar social de fala. Por exemplo, os diários de viagem de Mário de Andrade, que ressaltam, em 1926, uma Belém cheia de idéias de grandeza, mas também, realmente, grande. Em "O Turista Aprendiz" os subúrbios de Belém encantam por alguns prédios gigantescos, o que representaria, numa análise breve do relato, certo espírito moderno-empreendedor que para aquela geração era admirável.

Esses viajantes deixaram relatos bastante ricos sobre Belém. É o caso de Reginald Koettlitz, Affonso d'Escragnolle Taunay, Jean de Bonefous e dos vários trabalhos de Paul Walle e Euclides da Cunha. Todos eles importantes viajantes, dotados de preocupações críticas, no entanto, estiveram envolvidos pelas ilusões discursivas que fundam a base mítica de Belém. Obviamente, em seu tempo, todos esses autores viram uma Belém imersa na riqueza do látex ou "ainda" imersa na riqueza do látex, o que, antes de afastar a dimensão acrítica da sua análise da cidade, serve para demonstrar que o lugar de fala "Era da Borracha " surge de uma situação histórica verificável, fundadora, porém já então permeada de contradições discursivas.

Isabel de Orléans e Bragança, por outro lado, que não tinha intenções críticas evidentes, visitou a cidade em 1927 e disse da cidade as mesmas coisas. Seu relato descreve uma Belém ainda "grandiosa".

A cidade era soberba com suas avenidas ladeadas de grandes mangueiras, seus numerosos jardins públicos e o museu ornitológico [sic] Goeldi, na época o mais belo do mundo com suas milhares de espécies de pássaros brasileiros.

É impossível deixar de justificar a grandeza de Belém como um produto da "Era da Borracha". Refere-se ao ciclo dizendo:

Nessa época, vapores ingleses asseguravam a ligação entre Manaus, Belém e a Europa. Os jovens destas cidades preferiam fazer seus estudos na universidade de Bordeux porque levava-se menos tempo de viagem do que para se ir ao... Rio!

Grandeza justificada. Mário de Andrade percorre o mesmo mito em "O Turista Aprendiz". A Belém que observa é a de 1927. A "débacle" ocorrera quinze anos antes, mas os sinais de urbe majestosa persistiam ainda, e, como o livro demonstra muito bem, todos os paraenses da época faziam questão de demonstrar o que sobrara do fausto recente. Na verdade, Mário de Andrade se irrita freqüentemente com os protocolos e as atenções oficiais e da elite com a patrocinadora da viagem, d. Antonieta Penteado, e vai se apaixonar por Belém justamente pelo seu lado amazônico. Vai comer manga no Ver-o-Peso e iniciar uma interessante aventura gastronômica, que inclusive o leva a desconfiar que sorvete de muruci é feito na verdade com queijo parmesão - talvez mais um golpe das elites paraenses tentando europeizar a cidade com pretextos de modernidade gastronômica.

Os viajantes que passam por Belém entre as décadas de 20 e 60, ou seja, antes do advento da rodovia Belém-Brasília e da televisão, são pródigos em descrever os signos europeus na cidade. É possível pensar que a base mítica sobre a "Era da Borracha" se conservou razoavelmente intacta nesse período e que foi denegrida posteriormente. Esses viajantes concebem tais signos como informações/valores europeus. Talvez quisessem referir-se a signos de uma modernidade européia. Observação: descrevem ao mesmo tempo os signos materialmente produzidos, a arquitetura, os costumes, etc, e a mentalidade dos paraenses, que, dez, vinte, quarenta anos depois da "débacle" ainda têm miragens "modernas".

Entre os relatos de viajantes que melhor demonstram as ilusões discursivas de Belém a respeito do ciclo estão "L'Amazone Sans Crocodilles", de Hakon Mielche, "Columbia Excelsa: Amazonas e Pará", de Júlio Cézar de Faria, "Belém, Metropolis of the Amazon", de C. Hunt, "O Que Eu Vi no Pará", de Otávio Coutinho, "O Ciclo do Ouro Negro - Impressões da Amazônia", de Vianna Moog e as obras de Antônio Rocha Penteado.

Nesse esquema, acho interessante perceber como a ilusão discursiva/ideológica sobre o ciclo é tão poderosa, socialmente falando, em Belém, que mesmo os trabalhos mais estruturados em base empírica e as mais sinceras críticas sociais atualmente elaboradas, não deixam de ser perpassadas pela ilusão e pelos velhos fantasmas dos mitos de ascensão e queda. Nesse sentido, tais trabalhos científicos constituem, também, signos indicativos, portadores de um antecedência de ser à qual, creio, o discurso científico não está imune.

Alguns exemplos: no dia 29 de agosto de 1993, durante o ciclo de palestras "Cidade em Pedaços" (esse nome é referencial, observe-se), promovido pelo Museu da Universidade Federal do Pará e pelo Arquivo Público do Pará, a prof. Maria de Nazareth Sarge apresentou em público sua dissertação de mestrado, que tinha como tema a urbanização de Belém durante a intendêcia de Antônio Lemos, ou seja, no auge da "Era da Borracha". Pois bem, ainda que a pesquisa da professora tenha sido seriamente estruturada, e construída em base crítica sobre a sociedade Amazônica da "belle-épocque", foi inevitável que, durante seu discurso, nos limites da sua fala, a professora se detivesse longamente em descrições de detalhes pitorescos da "urbanidade" à qual se referia. E isso foi feito, certamente, com aquiescência e delícia da platéia. Todos reunidos numa sessão de devaneio coletivo, deixando-se levar pelos deliciosos mitos de quem vive Belém, deixando-se embalar na sutileza e na delicadeza de uma alienação que não é política, como definirei melhor em seguida, mas que tem por base semiótica uma desestrutura de referenciais simbólicos, uma "mala afectatio per inconsequentia rerum", dizendo melhor. Nessa palestra, os momentos críticos ao ciclo, os quais foram expostos com justo uso de dados sociográficos e calcados numa verificação da "história dos oprimidos", por parte da expositora, cederam seu lugar de contundentes à velha crise mítica de Belém: o pensamento fatal: "que injustiça perdermos aquilo tudo... de quem é a culpa?... nossa?... do capitalismo mundial?... do pequeno depreendimento industrializador das nossas elites?..."

Outros vários discursos sérios e críticos a respeito do ciclo da borracha são atravessados por ilusões discursivas. O escritor Márcio Souza, tanto nos seus ensaios críticos quanto na sua grande obra de ficção, "Galvez, Imperador do Acre" ironiza a ilusão contemporânea sobre o ciclo, mas também atravessa (inconscientemente?) seu discurso com a mesma ilusão que critica: em "A Expressão Amazonense" é visível a emotividade com que desenvolve sua crítica: cada palavra forte levantada contra as alienações do ciclo do látex em Manaus, traz em seu bojo a contra-referência à opulência do ciclo. A virulência do ataque de Márcio Souza ao Ser de Manaus, em certo sentido, serve para informar, e assim buscar transcender, a base mítica sobre a qual instala ele próprio a sua narratividade.

Numa passagem de "Galvez", numa cena em que ironiza a futilidade dos milionários de Belém, cria uma personagem milionária, porém não exatamente fútil, diante dos demais, chamada Cira Chermont de Albuquerque. Ora, o nome Chermont, para quem conhece a história do Pará, pode ser tomado como um signo referencial de refinamento, dado à participação social dessa família na vida econômica e política de Belém, especialmente durante o ciclo do látex. Márcio Souza ao acrescentar o índice - Chermont - à personagem, recaiu na cilada do devaneio, e, em vez de criticar, acabou por colaborar, assim, com os mitos da "Era da Borracha".

Exemplos semelhantes podem ser encontrados em outras obras de amazônicos contemporâneos que desejam "resolver" a problemática nostálgica/alienante atual. Creio que vários artigos do jornalista Lúcio Flávio Pinto são tomados de uma emotividade que resgata os mitos de fausto de Belém, ainda que através de signos bem mais inconcretos que os utilizados por Márcio Souza. O trabalho desse jornalista não deixa de estar baseado numa verificação das "perdas" e das "potencialidades" de uma Amazônia que, se não é permeada imediatamente por um passado-látex, é marcada por séculos de espoliações que deram a constituir uma situação de "impotência" e "alienação social" não desvinculável da temática elaborada pelo semiotical blues de Belém.

Como indica Hölderlin,

...Schwer verlässt

Was nahe dem Ursprung wohnet, den Ort.

Observe-se que me referi, até agora, a leitores críticos, ainda que em alguns casos inconscientes, dos mitos de fausto e queda da "Era da Borracha". São leitores que elaboraram discursos críticos mas que, no entanto, tiveram esses discursos atravessados pela alienatio social de Belém. Ademais, fundamental é perceber que há outros autores de discursos (todos os gêneros de discurso) que não estiveram comprometidos com um projeto crítico a respeito desses signos de fausto e queda: são leitores sociais que, basicamente, reafirmaram e, assim, reforçaram os mitos sociais, ou melhor, as alienatio sociais. Diante disso, pode-se perguntar: é possível que se esteja de fora, que se tenha a "visão de águia" de que falava Kant para proceder uma análise de sua própria sociedade? É possível tecer um discurso crítico a respeito dos mitos de apogeu e queda da "Era da Borracha" se se faz parte da sociedade descendente da "Era da Borracha" e, ainda, inserida numa condição discursiva que a instaura como lugar de fala? Não posso deixar de colocar em dúvida, num momento como este, a real possibilidade de produção deste ensaio, já que estou inserido, tanto criticamente quanto socialmente, no plano social conformador dos mitos que tenho a pretensão de analisar. Sugiro que se tenha sempre em mente o fato de este texto poder se dever a uma ilusão pessoal (e social) de seu autor e, portanto, estar sujeito às mesmas ilusões discursivas que marcam o seu próprio ponto criticado. Creio que não seria demasiado previdente sugerir que se tente estar um pouco à frente de minhas intenções críticas, e que se tenha em mente minha própria conduta discursiva como parte de um contexto social (qualquer contexto social) do qual o discurso vem a ser parte instauradora do "ser".


Fábio de Castro da Gama, UFPa. Excerto de dissertação de mestrado. Belém/Brasília, 1993-95.

 

 

Notas

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