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Feiras, livros e amazônias

 

 

Encerrada a segunda edição da Feira Pan-Amazônica do Livro, vale à pena fazer algumas considerações sobre o evento. Na verdade, seriam duas essas considerações, na medida em que o projeto pode ser visto como mercado livreiro e como fórum pan-amazônico, suas faces não divergentes mas não necessariamente similares. Em relação à primeira feira, nota-se uma menor preocupação com o caráter reflexivo do projeto, ou seja, com o seu caráter de fórum do diálogo amazônico. Concomitantemente, um maior envolvimento da Câmara Brasileira do Livro e dos patrocinadores atribuíram a esta segunda feira aspectos mais comerciais.

O projeto faz refletir sobre as políticas culturais públicas para a área do livro e da leitura, que são setores fundamentais de qualquer política cultural e isso implica falar em bibliotecas, edição e distribuição de obras, fomento à pesquisa e à criação e programas de incentivo à leitura. Implica falar, também, da expansão dos mercados livreiro e editorial. Mas é preciso resguardar certa posição crítica para que não se confundam, nesse campo, as funções do estado e do mercado, mesmo porque a simples fusão dos dois pode ser danosa para alguns setores culturais. Uma política cultural para o setor deve, no entanto, considerar ambos os aspectos. Atendendo ao convite de O Liberal para discutir o tema busco levantar, a seguir, algumas questões relativas às políticas culturais públicas para a área do livro e da leitura. Tudo parte de uma constatação fácil e básica: há pouca leitura no Pará. Como resolver esse problema? Em que medida uma feira de livros colabora para a resolução desse problema? Quais as responsabilidades das secretarias de cultura do estado e dos municípios para com as política da leitura? Vamos por partes:

 

1. As funções sociais dos livros, bibliotecas e leituras

O Pará precisa formar, com urgência, uma geração de leitores e não é possível fazer isso, exclusivamente, com o mercado. Se não houver investimento público na área da leitura, com a revitalização e a ampliação dos recursos existentes - que são poucos - e a abertura de novos espaços, com especial atenção para as bibliotecas móveis, coerentes com o espaço físico e com as condições sócio-econômicas de acesso regionais, e, ainda, sem o desenvolvimento de programas de edição e distribuição de obras, não existe política cultural para a área.

Nesse sentido, produzir feiras do livro sem se preocupar com o sistema das bibliotecas paraenses acaba sendo uma política incoerente. As bibliotecas, enquanto equipamento cultural, não têm se destacado suficientemente no cenário brasileiro. Muitas seriam as suas funções. Poucas, efetivamente, o são. Identificadas no imaginário mediano nacional como locais formais e frios, permanecem distantes da vida quotidiana da maioria das pessoas. A mentalidade positivista e burocrática do estado brasileiro vincula as bibliotecas às funções extrínsecas da educação, compreendendo-as como um espaço exclusivamente de pesquisa complementar, depósito passivo de suportes de conhecimento.

 

As bibliotecas precisam ver a si mesmas como centros culturais, como centro articulador do conhecimento. Nesse mesmo raciocínio os bibliotecários e a burocracia cultural que os supera deveriam ser vistos - por si próprios e pela população em geral - como agentes articuladores do saber. É preciso investir nessa gente, provê-los de cursos, complementar sua formação. É preciso superar o famoso conceito de Almeida Júnior (1984), que diz que a história da biblioteconomia é linear e redunda sempre no próprio caráter conservador e retrógrado da área.

Sem recursos suficientes para ampliar acervos, renovar equipamentos, capacitar técnicos, desenvolver projetos de extensão e campanhas de formação de novos públicos, as bibliotecas - como qualquer outro equipamento cultural público do qual esteja ausente o elemento homem - estão fadadas a se tornarem estruturas ocas, vazias de todo conteúdo e descomprometidas com a função social que uma política cultural democratizadora do saber lhes deveria impor e cobrar.

Uma política cultural coerente para a área deveria envolver, ao menos, três proposições: a) atualização dos acervos, b) construção de novos espaços, adequação dos espaços existentes e reequipagem material e c) aprimoramento do quadro funcional.

Milhares de exemplos ilustram e justificam essas necessidades. O maior desses exemplos é o fato incompreensível de a prefeitura de Belém não dispor de uma biblioteca pública adequada. O ideal seria a construção de bibliotecas públicas setoriais, associadas a equipamentos de ensino mas que fossem constituídas como espaços individualizados nas suas proposições culturais. Ideal, também, que fossem localizadas em áreas carentes desses equipamentos. No plano da política cultural estadual é exemplo o estado lastimável em que se encontra a biblioteca do Centur, cujo acervo geral de consultas e cujas estruturas de apoio são de uma precariedade franciscana. Faltam máquinas de leitura de microfilmes, por exemplo. Quem quiser utilizar o serviço das três ou quatro que lá sobrexistem precisa disputar a vaga em esperas insólitas. Mesas pensas, máquinas copiadoras deficientes (onde se cobram 10 centavos por xerox, o dobro do preço cobrado na UFPa e em qualquer esquina da cidade), deficiências de atendimento e filas que descem três andares de escada fazem parte da rotina dessa biblioteca - a única biblioteca pública de uma cidade com um milhão e meio de habitantes.

A equação consegue superar até mesmo países miseráveis. É uma equação borgiana ao inverso. Imagino que imenso desperdício de tempo e de inteligência gastos por essas crianças nas filas onde aguardam. A pergunta procede: qual a função social das bibliotecas públicas? Oferecer ao cidadão meios de acesso à leitura e à formação. Bibliotecas deveriam valer por universidades inteiras. São o equipamento cultural essencial.

 

2. A Feira Pan-Amazônica do Livro como Fórum

Esta segunda edição da Feira Pan-Amazônica do Livro teve méritos e deméritos em relação à primeira, e é preciso mencioná-los para que a terceira edição do evento possa superar as experiências anteriores. É louvável a preocupação demonstrada desde o ano passado com o bem estar do público. O sistema de ventilação, revestimento do piso, o material gráfico distribuído, destacando a edição magnífica da revista Unamazônia. Os pecados devem-se quase todos a erros de programação: foi pequena a afluência de intelectuais "pan-amazônicos", bastante presentes na primeira edição; os debates havidos foram pífios, as oficinas e a programação cultural paralela ao evento foi relativamente pobre, muitos foram os erros de divulgação dos horários, e faltou, sobretudo, certo esprit de critique que trouxesse instigação, questionamento e reflexão a respeito daquilo que é a proposição nominal da Feira: promover a integração - não apenas comercial - das nações e povos pan-amazônicos. Essa proposição, presente na proposta original do projeto de uma feira cultural pan-amazônica e melhor alcançada no ano anterior, foi apenas tênue nesta edição.

Faltou antropologia à feira. Faltou instigar o diálogo pan-amazônico. Faltou inteligência e vontade. Bem, talvez tenha faltado dinheiro para trazer a Belém essa inteligência e essa vontade, porém pode ser, também, que tenha faltado mais coerência ao planejamento da distribuição dos recursos disponíveis. Melhor seria preservar o fundamental e diminuir a extensão dos tapetes vermelhos, o que, é lógico, é uma questão de política cultural, o que não quer dizer que se possa ter algo contra os tapetes vermelhos, um mimo que, aqui, apenas exemplifica o paradoxo das opções realizadas.

É preciso resgatar, numa próxima edição, a proposição original do evento. E fazer isso não é tão difícil: começa-se superando certo ranço de beletrismo que associa feiras de livros a palestras e oficinas sobre literatura e gramática. Tais eventos, ainda que importantes, inibem o potencial mais profundo do projeto. A programação crítica não pode ficar a cargo da Biblioteca Arthur Vianna - de resto não incompetente para muitos outros setores. E, ainda no campo das sugestões, pode-se programar uma melhor utilidade para os espaços do evento. O teatro Schiwazzappa, o cine Líbero-Luxardo, o auditório do MIS e o centro de Convenções, no Centur, ficaram ociosos, acredito, em cerca de 70% do tempo do evento. Os espaços da biblioteca foram também envolvidos de menos. Por que não ocupar o teatro, por exemplo, com apresentações de músicos paraenses? É preciso dar trabalho e espaço a essa gente. Em última instância é o trabalho dos seus artistas - e não a burocracia cultural - que vende o Pará para o mundo. Ou melhor, que poderá vendê-lo, caso a descoberta da importância estratégica da produção cultural - para a indústria cultural, para a indústria do turismo, para a reorganização da identidade e da soberania cultural, venha a ser realizada em terra paraense. Esse o sentido, aliás, do projeto "Merconorte Cultural", anunciado em 1995 pela Secretaria de Cultura do Estado. Um sentido proposto mas não alcançado ainda.

Outra sugestão de uso dos espaços: expandir o que é chamado de Mostra Pan-Amazônica de Cinema. Neste ano foram exibidos dois únicos filmes não-brasileiros, um dos quais de uma qualidade técnica tão precária que o filme foi retirado da programação. A idéia é muito boa e deve ser expandida. Na busca de uma identidade própria, peculiar ao espaço geográfico e histórico amazônico, uma possibilidade seria dar a essa mostra um forte caráter documental, com valorização do espaço para o filme documental dentro da mostra ou mesmo na sua conversão em mostra de cinema documental, o que nos trás de volta ao caráter antropológico da feira.

Repito novamente, que a Feira-Panamazônica do Livro, bem como a proposição de um Merconorte Cultural, precisam de mais antropologia. Sem reconhecer no homem regional o próprio fundamento de sua existência esses dois projetos estão fadados a uma interpretação mercadológica do bem cultura e - mais grave - dos processos culturais, valendo lembrar que apenas o homem suplanta o mercado.

 

3. A Feira Pan-Amazônica do Livro como mercado

Se preservar o modelo adotado, a Feira será sempre delimitada pelo potencial consumidor do público leitor de Belém. A princípio, nada de errado com isso. É esse o modelo da grande maioria das feiras de livro. No entanto, sob a perspectiva do anunciado "merconorte cultural", seria possível pensar esta Feira de uma outra maneira: suplantando a perspectiva da venda varejista de livros, não parece descabido pensar no projeto como um espaço de feira cultural capaz de negociar, fundamentalmente a nível industrial, o imaginário e o interesse contemporâneo pela região amazônica.

No campo do mercado o principal desafio a solver pode ser colocado da seguinte maneira: como transformar a Feira Pan-Amazônica numa vitrine atraente da produção cultural (não apenas literária) amazônica? Um passo estratégico para o projeto é transformá-lo, na medida do possível, em feira de negócios - sendo resguardado, naturalmente, o espaço para a venda a varejo, também necessária e importante a Belém. A estratégia seria atrair a Belém uma série de indústrias culturais amazônicas e voltadas para a Amazônia. Não apenas editoras, mas também gravadoras, produtoras de televisão, agências publicitárias, emissoras radiofônicas, empresas de turismo e outras instituições, inclusive centros de pesquisa e produção de conhecimento. Um inventário dessas empresas e instituições e a organização de um catálogo de seus produtos seriam os primeiros passos a dar. A articulação do atores envolvidos na próxima feira é uma tarefa urgente, de modo a iniciar uma divulgação direcionada do evento. O direcionamento mercadológico dessa proposta tem por coerência o motivo de reunir em Belém, uma vez por ano, o melhor da indústria cultural amazônica. Sendo a Amazônia a segunda marca mais conhecido do mundo, de acordo com famoso estudo da Universidade de Chicago, e compreendendo-se o interesse que a região gera em todo o planeta, seria possível ter-se uma feira de produtos culturais amazônicos de caráter internacional.

Essas anotações ficam aqui como uma contribuição à organização da Feira e às políticas de leitura do governo e do município. No espírito de que mais livros há que serem lidos, aguardemos que uma terceira versão do projeto se realize no próximo ano.

 

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 Prof. Fábio de Castro da Gama, da UFPa. Publicado em "O Liberal", em novembro de 1998.

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