Artigos

 

O Nacionalismo Intelectual na Transição Democrática

 

Resumo:

Este texto investiga, através de uma abordagem semiótica da história das idéias, o desenvolvimento da relação entre os conceitos de nacionalidade e de povo, no discurso sociológico e literário da intelectualidade brasileira.

Pretende-se colecionar alguns subsídios que historiem a adaptação dos referenciais sígnicos presentes no conceito de povo - formatado, inicialmente, no âmbito de uma classe intelectual vinculada, e mesmo dependente, do poder público instaurado com as idéias positivistas, ao final do século XIX - e sua transformação simbólica remática, a partir dos processos sociais nacionais vivenciados com a falência do modelo econômico militar e com a abertura política, no conceito de massa.

O artigo desenvolve a tese de que o conceito de "democracia" constitui uma experiência intelectual recente no pensamento brasileiro, surgida após o abandono da tradição ideária nacionalista e num cenário de crescente massificação das formas de mediatização.

 

1. Uma Investigação Ideológica

A tarefa de pensar o Brasil, historicamente, tem cabido a intelectuais que, independentemente de sua posição política ou método utilizado, fazem parte de uma classe dominante. Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Caio Prado Jr. e muitos outros, das gerações anteriores a 1970, fazem parte, de uma forma mais ou menos presente, da própria elite que descreveram como senhorial, autoritária e conservadora. Sem pretender questionar a contribuição de cada um deles para a compreensão da sociedade brasileira, o que absolutamente é o caso aqui, seria possível constatar que, não por acaso, a palavra democracia jamais fez parte do discurso político de qualquer desses intelectuais, de esquerda ou de direita, até o final da década de 1970.

Do ponto de vista da Comunicação, seria possível analisar como a palavra "Povo" foi substituída pela palavra "Massa", no debate intelectual brasileiro, a partir desse período. A idéia de "democracia" jamais esteve junto com a idéia de "povo", e só assume um papel signal-discursivo, um valor simbólico (utilizando a terminologia da semiótica de Charles Peirce, um valor simbólico-remático), quando desponta ao lado da nova fórmulação intelectual brasileira para "povo": o conceito de "massas". Isso se dá com o processo de reabertura política, a partir do fracasso do modelo econômico militar, nos anos seguintes ao "milagre brasileiro". O papel das forças sindicais e dos movimentos operários, no período, a campanha pela revogação do AI-5, a tomada de consciência, pelas classes intelectuais, do papel assumido pela televisão e pelas telecomunicações de uma maneira geral, sobre a sociedade brasileira, todos esses fatores, enfim, contribuíram para que novas acepções discursivas fossem incorporadas pelos intelectuais para falar em "Brasil".

Dessa época são os trabalhos "Autoritarismo e Democracia", de Fernando Henrique Cardoso (1975); "A Democracia como valor Universal", de Carlos Nélson Coutinho (1980); "Cultura e Democracia", de Marilena Chauí (1981); "Direito, Cidadania e Participação", de Bolívar Lamounier, Francisco Weffort e Maria Victória Benevides (1981) e "Por Que Democracia?", de Francisco Weffort (1984). Claramente percebe-se uma modificação no tom do discurso intelectual brasileiro, nesse período.

A partir da perspectiva de uma análise dos signos discursivos desses intelectuais, e tendo essa questão por temática central deste ensaio, gostaria de perguntar sobre que fatores ideológicos e que fatores discursivos foram tocados por quais fatores sociais e políticos para irem de encontro às palavras "massa" e "democracia", enquanto referenciais sígnicos remáticos e dicentes, como forma de falar do Brasil e para o Brasil?

 

2. Uma trajetória em campo nacionalista

É possível fazer uma trajetória dos signos "povo" e "poder" até o momento em que, no discurso intelectual brasileiro, se transformaram de "massa" e "democracia".

Na literatura crítica existente sobre os pensadores do Brasil e sua obra, percebe-se de imediato a relação que há entre cada um deles e o pensamento sobre o "nacional". A partir do final do século XIX, quando as formulações sobre o "nacional" se tornaram mais "politizadas", há uma grande preocupação em definir o Brasil a partir de uma essência tropical, luso-ameríndia e africana. O paradigma nacionalista engendra males e salvações. Claramente, no entanto, os intelectuais brasileiros, das gerações entre 1870 e 1970 estiveram convictos de que era sua a tarefa, ou melhor, a responsabilidade, de construir uma nação.

De uma ou outra maneira, o caminho para fazer isso passava pela imposição de determinados mitos sobre o "nacional". Pedro Nava, no seu segundo livro de memórias, "Balão Cativo", ao ironizar a proposição de tal paradigma nacionalista-tropical, sintetiza um dos grandes conflitos intelectuais brasileiros - aquilo a que se poderia chamar, talvez, de amar o próprio através do outro:

"No colégio ficávamos sabendo que a Inglaterra já nos oferecera as reservas do Banco de Londres para lhe cedermos a música do nosso hino - proposta que o governo repelira a altura. Também que a França, a Rússia, a Bósnia-Hezergóvina e o Principado de Andorra estavam estomagados uns com os outros porque os quatro queriam negociar, com exclusividade, o desenho da bandeira brasileira. Ofereciam a compensação de seus feixes lictores, de sua águias bicéfalas, escudos quartelados, campos de arminho e listas tricolores. O Barão do Rio Branco já nem dava resposta. A França, no fim, abria mão da bandeira e só queria nosso 'Órdem e Progresso', que ela estava disposta a trocar pelo seu desenxabido 'Liberté, Egalité, Fraternité' e mais a Guiana de contrapeso. A resposta fora Não! porque Caiena por Caiena, nós tínhamos o Cucuí... (...) Sabíamos que Floriano escorraçara o embaixador britânico, do Itamaraty, ameaçando-o de pontapés e gritando-lhe do topo da escada como receberia a esquadra da rainha na Guanabara. À bala, à bala! Que o homem mais inteligente do mundo vexara os súditos de Sua Majestade Graciosa pondo na porta da sua casa a placa onde se dizia: Ruy Barbosa - English teacher"

(Nava: 1986, 66-67)

 

Pedro Nava se refere a uma ideologia perpassada pela escola pública em que estudou. Se, nessa esfera mínima de debates sobre o "nacional", o país surgia com tanta força, imagine-se nas esferas que produziam esse discurso, quais sejam, as esferas letradas e intelectuais que, na tradição brasileira, sempre estiveram vinculadas ao poder público. Os intelectuais das gerações entre 1870 e 1920, comprometidos com a queda do Império, com o abolicionismo, com a República e, consequentemente, com as oligarquias regionais que dividiram o Brasil até 1930, aparentemente formaram o coro da nacionalatria que a política adotou como mote na sua missão de compensar certo sentimento de inferioridade, próprio talvez às colônias, e certa mania de perseguição, com a transcendência de estereótipos os mais delirantes - os mitos da brasilidade.

É difícil tratar da relação entre uma classe intelectual e o poder público, principalmente porque sempre houve quem criticasse, de dentro da classe intelectual brasileira, esse gênero de xenofobia que ela própria, em sua vinculação "classista" ao poder público, alimentava. Entretanto, é de fato possível traçar toda uma linha de vinculações e relacionamentos sobre o Brasil. Essa linha em geral é discursiva, mas por vezes o discurso se torna praxis e intelectuais se unem ao governo, mais diretamente, por vezes com a missão de "construir" o "país". Roberto Schwarz, em "Nacional por Subtração", sugere que o mal moral, da elite cultural brasileira, aparece ligado ao caráter nacional apenas falsamente. Para Schwarz, o mal é da elite, e não da cultura.

Observemos que a elite intelectual brasileira, historicamente, foi também uma elite social e política. Nesse sentido, é que pretendemos perguntar o que é, de fato, o seu discurso, a sua eficácia discuriva, a essência política das sua metáforas, dos seus mitos, dos seus processos de significação?

Muitos autores, e o mais recente parece ser Alfredo Bosi (1992), comentam essa espécie de sentimento de pastiche indigno, e o caráter de cultura postiça, estrangeira, falsa, contra o qual muitos se propuserm a lutar, muitas vezes utilizando a forma de nacionalismo mais primária e sentimental. Na verdade, muitos foram os pensamentos sobre o Nacional, e, se as críticas das gerações do fim do Império e da República Velha foram mais primárias, ou menos argutas (com as devidas excessões, é claro, o que é caso tanto de José Veríssimo quanto de Sílvio Romero nas suas "História" da literatura brasileira e, perceptivelmente, na polêmica deste último contra o "anglicismo" de Machado de Assis), em gerações seguintes elas se mostraram extremamente bem elaboradas e criativas, como é o caso das gerações de 1920-30, lideradas pelo movimento modernistas e sustentadas pela "antropofagia" de Oswald de Andrade e também a geração de 1960-70, marcada por uma espécie de "nova" antropofagia cultural, visível em movimentos como o "Cinema Novo", e sua "estética da fome" e o "Tropicalismo".

Assim, no início do século, Sílvio Romero escrevia reclamando da "consciência estrangeira" na mentalidade local:

"Nosso maior mal é não termos consciência positiva do que realmente somos" (Romero: 1910, 105-106).

"É quase impossível falar a homens que dançam (...) O Brasil atravessa fase de ilusionismo" (Romero, id. ib.)

 

Com preocupações semelhantes, Gilberto Freyre reclamava do mesmo tema, cinquenta anos depois:

 

"Não deseja o Brasil ser sub-europeu nas suas aparências, nem anti-europeu nas suas atitudes, porém juntar sua herança européia aos valores tropicais para assim formar um novo estilo de civilização" (Freyre: )

 

Se a geração de 1870-1900 pretendia "forjar" uma nação, criar um paradigma para a nacionalisdade, a geração modernista, de acordo com Daniel Pécaut, pretendeu reorganizar essa nação, e trabalhou com o pressuposto de que já existia um Brasil, ainda que debaixo das instituições nacionais e do seu modelo de imitação do estrangeiro. Esse Brasil, poderoso mas escondido, podia ser percebido através do folclore e da maneira de ser do povo. Havia uma proposta de fomentar as bases, de solidificar a nação. Alguns anos mais tarde, uma outra geração, a geração de 1954-64, cujos intelectuais ligaram-se, destacadamente, ao Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e produto do frágil processo de democratização promovido pela Constituição de 1946, pensava o Brasil como uma nação já constituída. O problema agora era o de defender a cultura nacional, e o Estado, do imperialismo externo, proposta sob a qual os intelectuais do período assumem novamente o caráter do nacionalismo.

Politicamente, a diferença entre essas duas últimas gerações de intelectuais, os modernistas e os isebianos, está no fato de que a primeira via seu papel fomentador de cima para baixo, uma visão assumidamente de elite, e a segunda via seu papel como uma arregimentadora de bases, porém não menos de elite, a partir do momento em que se propunha como "locomotiva" desse projeto.

A geração modernista foi demasiado solícita ao Estado. Talvez pela própria circusntância de dependência social dos intelectuais, em geral saídos da classe agrária "deposta" com o Império e agora dependente da República. No cenário dos anos 20-30, houve espaço tanto para o nacionalismo reacionário de Jackson de Figueiredo e Alceu Amorso Lima, quanto para a explosão de criatividade de Mário de Andrade, que, aliás, mencionou que "a sociologia é a arte de salvar rapidamente o Brasil", numa alusão à mencionada dependência teórica entre Estado e classe intelectual. E havia espaço, também, para um movimento nacionalista tão profundo - e profuso - quanto foi o tenentismo, que, em síntese, pregava a supremacia de determinados valores elitistas nacionais.

Em tal cenário, a antropofagia cultural, de Oswald de Andrade, era, ao mesmo tempo, uma crítica e uma solução. Tal canibalismo poderia ter se convertido num fator ideológico extremamente interessante do ponto de vista político, e de qualquer forma, cumpriu o seu papel dentro de uma época, para ser resgatado, anos mais tarde, pelo Tropicalismo, dos anos 60-70. Entretanto, entre esses dois períodos antropofágicos, houve outros momentos.

Os intelectuais isebianos, através de conceitos-base e palavras de órdem como "ruptura" e "racionalidade", retormaram a questão nacionalista. O Iseb, criado por Café Filho, em 1955, atuou por nove anos, e estabeleceu pontos de debate que se colocavam como arautos da problemática nacionalista: povo e poder, nação e progresso, consciência imanente da história e revolução, ciência e ideologia. Francisco Weffort dise que o nacionalismo isebiano foi "pouco mais que uma forma pequeno-burguesa de consagração do Estado" (escrito em 1963 e pub.1978, p. 42), com o que concordo, porque, de fato, as ligações entre os discursos da burguesia nacionalista e dos intelectuais socialistas eram uníssonos da mesma forma que o foram em 1945, quando socialistas e liberais, unidos, aplaudiram a intervenção que derrubou Getúlio Vargas, e aderiram, em seguida, à candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República.

Um livro de 1957, "A Marcha da Revolução", de Olbiano de Melo, mostrava a existência, ora simultânea, ora alternada, de dois nacionalismos, o de Esquerda, contra o imperialismo norte-americano, e o de Direita, contra o comunismo e o imperialismo soviético.

Entretanto, observemos, que o mesmo moto-discursivo, a mesma base sígnica, amapara os dois discursos, politicamente divergentes.

Sobre isso, tratou Wilson Martins, em certo momento da sua "História da Inteligência Brasileira":

"Não seria a primeira vez, nem seria a última, em que a Direita e a Esquerda se uniam taticamente e tacitamente, cada uma desempenhando em relação à outra o papel de inocente útil. Mas, se o nacionalismo esquerdista, em nome da ideologia, sempre impediu o desenvolvimento econômico (no qual foi poderosamente auxiliado pelo nacionalismo direitista de homens como Arthur Bernardes, que terminou seus dias como herói intelectual das esquerdas), o nacionalismo de Direita opôs-se obstinadamente à reforma e à justiça social - que teriam automaticamente prevenido a revolução, que o apavorava. Assim, a longo prazo, as duas estratégias concorriam para o mesmo resultado, cada uma favorecendo, sem querer e sem saber, os objetivos da outra e ambas, é preciso dizê-lo, neutralizando-se entre sí" (Martins: 1977-78, 385).

 

Na década de 1950, o mote político da inteligentzia brasileira era "nacionalismo e desenvlvimento", por mais que esses princípios se contradissessem, entre sí. Para os isebianos, valia o pensamento de Vieira Pinto, para quem, "sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional". Lídia Acerboni, em "A Filosofia Contemporânea no Brasil", afirmou que, para os isebianos, o nacionalismo era uma "garantia de autenticidade na cultura" (Acerboni: , 97-105)

Ainda de acordo com Martins, a época foi marcada por um boom de publicações sobre história do Brasil e, na ficção, pela superação da experiência regionalista (Martins: 1987-88).

De fato, dessa época são as obras "Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro", de Nélson Werneck Sodré, "O progresso Econômico e a Questão Social", de Francisco Mangabeira e "Ideologia e Liberdade", de Michel Debrun. Em 1959 a editora Fulgor publicou, sob o nome de "Sopram os ventos da Liberdade", o manifesto do Movimento Nacionalista Brasileiro, que foi assinado por Adalgisa Neri, Gondim da Fonseca, Osni Duarte, Américo Barbosa de Oliveira e outros e Gabriel de Resende Passos, um intelectual do momento, chegou a declarar que a Petrobrás fora criada por "inspiração divina", em 1957 (Martins: 1987-88).

Esses intelectuais, respeitados por sus idéias políticas, em geral eram ligados ao Partido Comunista Brasileiro ou ao Partido Socialista Brasileiro. É fundamental observar a inexistência da palavra democracia nos seus discursos. A maneira como eles concebiam o Brasil, em sí mesma, não era nada democrática. De certa forma, a intenção, lícita ou ilícita, não importa isto, era tutelar o "povo", para conduzí-lo à própria vitória contra a tutela (sic) exterior.

No momento posterior, o Tropicalismo nacionalista de Caetano Veloso, bastante próximo da antropofagia de Oswald deAndrade (do quase se diferenciava, no entanto, pelas características da mescla e do compósito, de acordo com Roberto Schwarz) foi criticada pelo nacionalismo do movimento estudantil, descendente do pensamento isebiano através dos seus "filhos" mais populaes, mas nem por isso mais democráticos, que foram os CPCs (Centro Popular de Cultura), CPI (Comando dos Trabalhadores Intelectuais), ambos ligados ao PCB; MCP (Movimento de Cultura Popular), incentivado por Paulo Freyre e surgido no Recife, e MEB (Movimento de Educação de Base), lançado pela Igreja, além da UNE (União Nacional dos Estdantes), base dos CPCs.

Os anos entre 1968 e 1974 viram florescer uma espécie de apocalípse artístico da interpretação de "Brasil". Cinema marginal, cultura maginal, poesia marginal, teatro marginal, abundantes de referências à cultura mediática, do cinema à televisão - já abarrotada de "enlatados" - levavam a uma antítese do ideal nacional, mas nem por isso deixavam de lado a sua matéria prima: justamente o sentido de nacional enquanto sígno dicente. Não seria possível criticar, por exemplo, o cinema de Rogério Sganzerla, baseado num pastiche da influência do cinema norte-americano sobre o brasileiro, sem ter em mente toda a formação "nacionalista" do seu autor, ainda que esse cinema, chamado de contra-cultura, tenha sido agredido por uma juventude que se autoconcebia como o supra-sumo do intelectualismo nacionalista.

De alguma forma, no entanto, toda a formulação brasileira sobre a constituição do seu país, forjada ou cumprida ao longo de um século ou mais de pensamento intransigente, declinou com o golpe direitista e com o regime militar durante a década de 1970.

Nesse regime, redistribuíram-se os papéis intelectuais brasileiros. No silêncio, observou-se a ilusão dos sujeitos. A euforia nacionalista, para muitos, pôde ser criticada como uma ilusão tida por poucos, a respeito de uma imensa classe oprimida. Concebeu-se a possibilidade de que a euforia cultural, a luta social, e a consciência do dominado em relação ao dominador possa ter sido, no final das contas, uma luta de uns poucos, de uma pequena classe de esclarecidos. Parece-me que o que levou intelectuais como Francisco Weffort, Marilena Chauí, Celso Furtado, Nélson Werneck Sodré, Dias Gomes, Roberto Schwartz, Leandro Konder, Ênio Silveira e Antônio Cândido a repensarem, nos anos 80, o papel dos intelectuais como força forjadora, esclarecedora ou arregimentadora, e, sobretudo, institucionalizadora, da consciência de "Brasil", perante as classes populares, foi, em suma, a constatação de que o seu anterior projeto era essencialmente conservador e autoritário. Ao mesmo tempo, creio, esses intelectuais passaram a pensar a figura da "democracia"como o único elemento capaz de levar o "povo/massa" à consciência da sua realidade.

 

3. Democracia indicial e democracia simbólica

A palavra democracia sempre teve uma significação difusa nos discursos intelectuais sobre o Brasil. Entretanto, se isso aconteceu, é de se observar que aconteceu não por uma opção política, uma tática discursiva, mas porque, essencialmente, o signo "democracia", por natureza tropical um signo indicial, carecia de uma praxis racional capaz de dotá-lo de uma terceiridade, em sua semiose, ou, dizendo de maneira sociológica de semiótica, uma axiologia real no seio discursivo, capaz de imbuí-lo de uma valoração também simbólica, melhor dizendo, transformá-lo num qualissígno, ou, num legisígno simbólico remático.

Assim, por exemplo, é possível localizar, na historigrafia brasileira a respeito da "democracia", textos que, lidos hoje, provocam verdadeiras confusões de percepção quanto à apreensão do simbólico original do termo, como é o caso de um texto de Oliveira Vianna, escrito no final do século XIX:

"O problema da organização política do Brasil não está nesta democracia de sufrágio universal em que obstinadamente insistimos há mais de um século. Em boa verdade, nestes 120 anos de regime democrático, o povo brasileiro não chegou a formar uma tradição democrática: para ele, a democracia - com as suas eleições periódicas, os seus comícios e propagandas - só lhe dá incomodidades" (Vianna: 1947).

 

O que se observa nesse texto, quando o comparamos à nossa apreensão atual e formal de democracia, é uma "mala afectatio per inconsequentia rerum", que acontece entre uma proposição sígnica indicial (o signo "democracia") e uma percepção legisígna simbólica remática (o mesmo sígno perpassado por um sintoma axiológico que lhe fornece uma nova dimensão e possibilidade de compreensão). Do ponto de vista discursivo o que isto quer dizer?

De início, uma evolução sígnica do termo (as eveloções sígnicas não representariam um avanço do pensamento?) que retira a "democracia" de uma pré-forma indicial e a leva a tornar-se uma sígno mais complexo.

Quero dizer que, para os intelectuais anteriores a 1974, "democracia" era, se muito, um índice de algum processo não verificável e, sobretudo, subjetivamente, não admitido. E que, a partir de 1974, a partir das refexões motivadas por uma necessidade política de recolocação da problemática nacionalista num plano de debates já atravessado por uma mediatização - e por uma midificação - da sociedade e por processos de globalização das esferas de poder, "democracia" passa a representar um discurso palpável, necessário e mesmo fundamental no seio discursivo da intelectualidade brasileira.

Creio que o pensamento intelectual brasileiro pré-1974 estava compromissado por demais com um modelo totalitário de afirmação-cultural, gerido com base nos mitos de uma "brasilidade", e que esse modelo foi incompatível sempre com proposições concretamente democráticas. Esse modelo foi trabalhado, por gerações diferentes, de diferentes formas, mas sempre esteve submisso à ideologia discursiva que, no Brasil, irmanou sempre esquerda e direita até a derrocada do modelo militar: o totalitarismo presunçoso e defensivo. Desmistificado o Brasil, que, mais que um país constituído, sempre foi uma ilusão discursiva, e superadas as forças produtivas que não permitiam que pensamentos não-elitistas fizessem parte do poder público - o que fica claro com a formação do Partido dos Trabalhadores - o país passa a formular novas dimensões para os seus velhos conceitos de "democracia" e "cultura nacional".

É possível fazer uma arqueologia do simbólico da palavra "democracia" e traçar a sua evolução até os anos 80, quando ela surge como a concebemos hoje nos trabalhos de intelectuais como Carlos Nélson Coutinho e Marilena Chauí, dentre outros.

No caminho do pensamento intelectual brasileiro neste século nacionalista, a jornada do signo indicial "democracia" na direção do signo simbólico "democracia" ocupou vários códigos. Em termos gerais, a partir das tentativas de explicar o "homem brasileiro" empreendidas por tantos, entre os quais Euclydes da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buaqrue de Hollanda e Celso Furtado, começou-se a prover "democracia" de valores simbólicos a partir da constatação do seu não-valor indicial. Ao descrever o brasileiro como produto de uma sociedade baseada no patriarcalismo, Gilberto Freyre contribuiu para negar a simplicidade do vazio discursivo de uma sociedade que até então não tratara, suficientemente, de sí mesma e, ao mesmo tempo, forneceu os elementos necessários para a autocrítica dessa sociedade.

Todos os vários discursos nacionalistas, em síntese, também foram exercícios de investigação social. Exercícios que, por fornecerem ícones a um discurso permeado por vazios e indiciais, terminaram por levar a uma maturação discursiva e a uma argumentação mais elaborada.

 

4. De povo a massa, de poder a democracia

Do ponto de vista dos intelectuais brasileiros, que mudanças tão drásticas concorreram para a inclusão do conceito universal tradicional de "democracia" no seu discurso? Vários fatores socias e políticos imbrincaram-se no Brasil dos anos do regime militar, e em meio a esses fatores todos é preciso avaliar o impacto que causou a mídia sobre o discurso intelectual. O espaço mediático se agigantou durante o regime militar. As telecomunicações, as redes de informação, a produção televisiva, foram consideradas estratégicas na formulação do Brasil repressor. Os efeitos e os sintomas de uma sociedade mediática passaram a se tornar evidentes, socialmente marcantes.

Esse novo espaço de investigação social foi cedido muitas vezes à "investigação nacional", através da teledramaturgia e da teleinformação. O Brasil passou a enxergar-se mediatizado, o que convinha ao regime, e isso gerou uma modificação estrutural básica na visão tradicional que a intelectualidade brasileira tinha a respeito do país. "Povo", termo com pouco significado e muita significância, sígno icônico, acumulado por discursos brilhantes e históricos, sígno chave do discurso intelectual-nacionalista, perdeu sua força ao se deparar com as novas dimensões do social apresentadas com a mediatização do país. O Brasil do após-milagre apresentava- lhe, como substitutivo, um termo com mais significado, embora quase nenhuma significância: o conceito de "massas".

A passagem significacional de "povo" a "massas", dolorosa para uma grande tradição intelectual, teve o mérito positivo de fazer com que os intelectuais resgatassem a acepção de "democracia" em seu sentido primaz, e passassem a utilizá-la como uma nova proposição para solucionar os problemas nacionais. Diante das "massas", em síntese, os intelectuais brasileiros verificaram a ineficiência de sua ação tutelatória, e propuseram uma solução a partir da experiência social: num mundo gigantesco e mediatizado, que anula as experiências individuais e conduz as grandes definições de nacionalidade a uma entropia, nenhum intelectual tem ainda condições de promover verdades e atitudes de grande alcance, e qualquer conceito de particularidade dependeria de um debate social amplo, verdadeiramente democrático.

De certa forma, é possível dizer que a mediatização promovida pelo regime militar condenou uma postura intelectual tradicional no Brasil (e na América Latina): a do intelectual supremo, em sí uma formulação das mesmas eleites que sempre controlaram, ao mesmo tempo, o campo e a faculdade.

Nesse sentido, convém lembrar, o conceito de Brasil também foi modificado drasticamente. A mídia forneceu a nova dimensão, que, embora tenha sido desacreditada por muitos intelectuais, foi incorporada pelo discurso social de uma nova esquerda, de após-milagre, altamente pragmática - efetivamente, o Partido dos Trabalhadores, que aglutinou sobremaneira as estruturas intelectuais nacionais, já nasceu muito ciente da mediatização e do poder da informação nesse novo cenário nacional.

A meu ver, após a mediatização das classes médias nacionais, o velho discurso intelectual sobre o nacional brasileiro foi abandonado pela maioria dos intelectuais. Os seus restos discursivos viraram artefato para linhas de enfrente regionalistas, ressurgentes com o retorno de algumas velhas oligarquias, estas, inclusive, amparadas pelo regime militar em processo de dissolução. É nesse cenário, em que o "nacional brasileiro" se converte em pastiche de um conceito deixado no passado. Por exemplo, na preocupação com o "nacional" manifestada, em pobre semiose, na produção de diversos grupos de rock, na teledramaturgia, em certa MPB, em certo material editorial da imprensa, nos trabalhos mais ignóbeis da universidades brasileira, sucateadas, e, na área política, no discurso de libelo de direitas passadistas e esquerdas peremptórias, que se apropriaram do anterior discurso sobre a nacionalidade.

 

5. Consideração breve sobre a apreensão contemporânea do termo "democracia" pela inteligentzia brasileira

Democracia é um signo que começa a constar do discurso intelectual brasileiro com o processo de reabertura política e em meio aos movimentos grevistas da região operária do estado de São Paulo. É um sígno que se apresenta como "solução pela experiência e pelo diálogo", em confronto com anterior proposta de "solução doutrinária". Os intelectuais na ativa, no início dos anos 80, em sua maioria, aderem ao Partido dos Trabalhadores, que se lhes apresenta como uma possibilidade de exercício efetivo de um diálogo que sentiam ser necessário e, mais que isso, "fundador", um diálogo bipolarizado entre massas e pensadores, sem ações tutelares destes sobre aqueles.

Nesse momento, a discussão sobre o "Brasil" perde vários de seus referenciais históricos. Como falar em nacionalismo diante de fenômenos tão evidentes como a dimensão mediática das

atuais esferas de poder? Como falar em luta contra o capital estrangeiro num ápoca de crises paradigmáticas? Como falar em redefinição nacional num momento em que tal crise de paradigmas perpassa também uma crise de utopias?

É preciso entender mutações de conceitos e quebra de sistemas signais. "Povo", signo empregado durante o longo século nacionalista, cedeu seu lugar-verbal ao conceito de "massas". Este último é mais afrontivo, fornece melhor a idéia de perigo e a dinâmica da contemporaneidade.

A partir do momento em que "democracia" se torna uma idéia-signo do discurso intelectual sobre o Brasil, o velho conceito de "povo brasileiro" cede lugar à constatação, por vezes cruel, de que a categoria "massas" passou a definir melhor a zona de debates influenciada menos por intelectuais de que pela mídia. Acabou a idade dos intelectuais patriarcas. Enfim, no Brasil, os intelectuais são apenas intelectuais, e se distanciam de um projeto assertivo e gerativo de valores nacionalistas. Agora, é preciso analisar as razões mediáticas do novo intelectual e de seus conceitos.

 

Bibliografia

Cândido (de Melo e Souza), Antônio (1959) "Formação da Literatura Brasileira", 2 vols, São Paulo, Liv. Martins Editora.

Chauí, Marilena (1981) "Cultura e Democracia

Coutinho, Carlos Nélson (1985) "A Democracia como Valor Universal", Rio de Janeiro, Ciências Humanas.

Freyre, Gilberto ( 1985) "Homem, Cultura e Trópico

Lamounier, Bolivar et alli. (1981) "Direito, Cidadania e Participação"

Martins, Wilson (1976-1980) "História da Inteligência Brasileira", 7 vols, São Paulo, Cultrix.

Nava, Pedro (1986) "Balão Cativo", 4 ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

Pécaut, Daniel ( 1990) "Os Intelectuais e a Política no Brasil", São Paulo, Ática.

Peyrefitte, Alain (1980) "El Mar latino", Barcelona, Plaza Junes.

Schwarz, Roberto (1987) "Nacional por Subtração", in "Que Horas São", São Paulo, Cia. das Letras.

Süssekind, Flora (1985) "Literatura e Vida Literária; Polêmicas, Diários & Retratos", Rio de Janeiro, Zahar

Romero, Sílvio

(1943) "História da Literatura Brasileira", 5 tomos, 3 ed, aumentada, Rio de Janeiro, José Olympio.

(1910) "Provocações e Dabates", Rio de Janeiro, José Olympio.

 Voltar


Prof. Fábio Castro da Gama, da UFPa. Paper de desenvolvimento de pesquisa. Belém, junho 1997

1