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O Nacional Repartido
Resumo:
O texto relaciona as circunstâncias políticas, econômicas e culturais que teriam favorecido, no Brasil de após o "Milagre Econômico", o ressurgimento das elites regionais bem como o elemento discursivo aglutinador da ocupação do poder por essas elites, o discurso regionalista. Parte-se do pressuposto de que o pensamento nacionalista brasileiro, na versão formatada pela geração isebiana dos anos 50, reavaliado pela geração dos anos 60 e transformado em pastiche pelas geração da contra-cultura dos anos 70, teria sucumbido à distensão social do pós-"Milagre", tornado-se um "lugar vacante", facilmente ocupado pelo discurso regionalista. Pretende-se, porfim, situar politicamente o problema da regionalidade amazônica tal como, discursivamente, ela se apresenta a partir da década de 1970.
1.
No Brasil do pós-milagre estabeleceram-se as condições para um ressurgimento das velhas oligarquias provincianas. O processo de descentralização das decisões e de "redemocratização" do país, iniciado a partir do fracasso do modelo político militar, nos anos do governo Geisel, forneceu a contrapartida de um projeto de reinstalação das forças oligárquicas históricas, que, aproveitando-se do momento de fragilidade política e de silêncio, por parte de uma esfera pública reprimida e ainda desarticulada, souberam ocupar novamente o poder. Não somente ocupá-lo: reestruturá-lo discursivamente, revestindo a aura desgastada de "oligarquia histórica", ou "oligarquia udenista", com elementos discursivos arrojados, que se pôde agrupar sob expressões como "Nova República" ou "Novo Brasil".
Esse ressurgimento e reinstalação das oligarquias depostas pelo regime militar, foi acompanhado por uma eficácia discursiva capaz de amparar e difundir uma idéia geral de vinculação do poder público às esferas públicas da sociedade civil, processo que, neste estudo, quero entender por "novos regionalismos".
Caminhando ao lado de processos políticos e econômicos provinciais do Brasil dito em "Abertura" e em "Nova República", e metamorfoseando interesses particulares em interesses públicos, esse novo regionalismo ressurge na mídia, como alegoria, como pastiche, como produto midcult próprio para consumo de massas.
Não obstante, cabe observar que, da mesma forma que as raízes das oligarquias nacionais não estão restritas as motivações políticas de um momento particular, também as raízes dos regionalismos brasileiros possuem uma fundamentação histórica ampla. Ambas, inclusive, se vinculam e mitificam historicamente, por vezes ressurgindo em momentos particulares da vida nacional, freqüentemente, mas não necessariamente, vinculadas. Na verdade, o debate intelectual brasileiro preserva desde os tempos do Império o binômio nacional x regionais, manifesto, também, sob a forma da relação corte x províncias, litoral x sertão, cosmopolita x interiorano, nacional x estrangeiro e nacional x português.
Neste trabalho, pretendo analisar a forma como o momento político vivido nos anos 70 favoreceu o ressurgimento das oligarquias regionais e como a "regionalidade" serviu, discursivamente, para mascarar o avanço do poder público sobre um domínio tradicional da esfera pública da sociedade civil, ou seja, o saber popular e local.
2.
De acordo com Celso Furtado, a década de 1960 revelou ao Brasil a necessidade de um política econômica abrangente, que se baseasse, pelo menos, em três pontos políticos, a saber, os compromissos de a) assegurar uma expansão do setor de bens de capital, b) orientar de forma eficaz o sistema industrial, e, c) incrementar a capacidade de auto-financiamento (Furtado: 1980). Essas três necessidades básicas foram traduzidas, no plano político imposto pelo golpe de 64, através de duas leis, a lei bancária de 1964 e a lei de mercados de capitais, de 1965. Ambas ampliaram o campo de ação dos intermediários financeiros e abriram espaço para a formação de uma poderesa classe de agentes financeiros. A participação desses intermediários na renda nacional, ao crescer de forma exorbitante nos anos seguintes, acabou formalizando a canalização da poupança nacional para o financiamento do consumo dos grupos de renda média e alta, enquanto o salário real era reduzido gradativamente. A operação favorecia o crescimento das empresas produtoras de bens duráveis de consumo - empresas manufatureiras - e justamente esse crescimento, acalentado nos três primeiros governos militares, convencionou-se chamar de "o milagre brasileiro" (Furtado: 1980).
De acordo, ainda, com Furtado, esse tipo de crescimento econômico foi gerido sem que se operassem mudanças significativas na estrutura do sistema capitalista nacional, sem que esse sistema alcançasse níveis mais elevados de capacitação à auto-transformação. Tanto a capacidade de auto-financiamento quanto o coeficiente de exportação se mantiveram estáveis durante os anos do "milagre", enquanto a dívida externa foi elevada de 3 para 13 bilhões de dólares.
O quadro econômico nacional nos anos 70 viria a ser um aprofundamento desse contexto, com a manutenção das taxas de desvalorização do salário real da população e com o recurso paralelo de eludir o caráter estrutural que originava a inflação recorrendo a um processo de endividamento acelerado (entre 1973 e 1975 a dívida externa saltou de 2,5 para 2,2 bilhões de dólares e em 1978 era de 43,5 bilhões) no qual os recursos eram atraídos por taxas de juros elevadas e por garantias cambiais fundadas nas reservas de minério de ferro, bauxita, aço, manganês, alumínio e celulose do país.
Do quadro eufórico e ilusório do milagre econômico à fase posterior, que se caracterizou como um recuo político-ideológico dos militares rumo a uma "redemocratização", permaneceu o tratamento diferenciado entre a população em geral e os intermediários financeiros relacionados à indústria manufatureira e à indústria de obras públicas. Um tratamento que, no plano econômico, acredito, favoreceu o ressurgimento das elites tradicionais e o processo de restabelecimento de suas ligações oligárquicas com a sociedade civil. Nesse contexto, a caracterização dos anos 80 no Brasil representou uma distensão política, mas não uma distensão econômica por parte do poder público. A distensão política, denominada "processo de Abertura" e, mais tarde, "Nova República", manteve os critérios básicos de alocação de recursos de auto-financiamento geridos pelos governos militares, e a eleição de Fernando Collor de Mello à presidência, com seu projeto neo-liberal, e ainda a manutenção desse projeto neo-liberal de caráter protecionista, em relação à esfera dos especuladores, pelo governo Itamar Franco e, tendencialmente, também pelo governo Fernando Henrique Cardoso, dentro de certo ponto de vista, não representa qualquer distensão econômica na esfera pública brasileira, o que poderia ser visto como uma garantia estrutural para o retorno das oligarquias nacionais.
A política econômica do período militar favoreceu, como se disse, a vários grupos de intermediários financeiros. Essa conceituação, dos intermediários, é delicada, e abrange um grupo vasto e heterogêneo. Trata-se de um grupo que inclui, não somente, personagens ligados aos projetos públicos em execução, inclusive políticos, multinacionais, firmas empreiteiras e fundiárias. Uma classe diversificada favorecida, enfim, por um projeto econômico exclusivista.
Sob esse modelo, amparado discursivamente pela proposta de criação de um Brasil "grande", foi inevitável impedir que grandes fundos públicos, gerenciados por projetos de grandes proporções, instituições como a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e por fundos bancários de crédito fossem utilizados localizadamente e com fins que não os definidos publicamente. A situação possibilitou que uma elite economicamente decadente fosse, subitamente, favorecida por grandes capitais de investimento e pelo controle da poupança nacional. É nesse contexto econômico e político, de fomento ao protecionismo seguido por um período de distensão pública, que abriu-se espaço para o soerguimento das oligarquias que abordo e que, doravante, chamo de novo regionalismo.
3.
Mas, além dessa fundamentação econômico-política, há também uma fundamentação sócio-cultural para o novo regionalismo. Se o período entre 1964 e 1969 representou marcante efusão de uma postura de "hegemonia cultural" por parte de uma vasta classe com visível incremento ao cinema, música, teatro, literatura, crítica e artes plásticas, o período a partir do AI-5, que durou, aproximadamente, até 1975, quando terminou o governo Médici, foi marcado pela restruturação crítica e pela redistribuição de papéis no interior da esquerda intelectual.
O período que estou observando como sendo o momento ideal para o ressurgimento das oligarquias estaduais e do "novo regionalismo" é a fase posterior a isso, o momento pós-milagre, a partir de 1975, quando as classes intelectuais começam a abandonar a maioria dos seus paradigmas políticos referentes aos conceitos anteriores de "organização" e "luta ideológica", bem como a linha de produção cultural utópica e de vanguarda, que caracterizou o momento anterior de respiração artística.
A fase 1964-69 parece representar a culmináncia de um processo intelectual. Daniel Pécaut questiona se a "hegemonia cultural" do período revelaria a força de uma cultura política anterior a 64 (Pécaut: 1990). Aparentemente, sim. Elementos formadores dessa cultura política surgem ainda na década de 1950, quando é fundado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1955, que durante o governo JK vai concentrar intelectuais de linhas diversas, como Roland Corbusier (integralista), Hélio Jaguaribe (nacionalista dito "desenvolvimentista"), Nélson Werneck Sodré (militar-nacionalista ligado ao PCB), Roberto Campos (direita nacionalista) e Cândido
Mendes de Almeida (ligado à Igreja). Todos esses intelectuais possuem um grande interesse nacionalista, representado numa linha desenvolvimentista sustentada por uma postura de "educar o povo" (Chauí: 1983). Uma postura que se mostra também na produção artística da época, como por exemplo no teatro dos Centros Populares de Cultura (CPCs). Essa postura educativa é assumida por instituições ligadas à Igreja, como o Movimento de Educação de Base (MEB) e por movimentos sociais estruturados com base sindical, como o Movimento de Cultura Popular (MCP), surgido em Recife com base nas teorias de Paulo Freire e como o Comando de Trabalhadores Intelectuais (CTI), que, da mesma forma que os CPCs, foram estruturados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Essa postura educativa é também visível numa linha de publicações do ISEB, os "Cadernos do Povo", sobre os quais Marilena Chauí observa terem sido elaborados em torno de "dicotomias, antinomias e antíteses que, retoricamente, são apresentadas como contradições" (Chauí: 1983). Paternalismo intelectual sob a forma de nacionalismo? Francisco Weffort diz que "o nacionalismo foi pouco mais que uma forma pequeno-burguesa de consagração do Estado" (Weffort: 1978, 42). Entender o nacionalismo do período talvez seja uma das armas mais importantes para entender o novo-regionalismo brasileiro.
Nos anos de 1964-69 observa-se uma grande efervescência cultural, que tem como um de seus pilares ideológicos uma espécie de nacionalismo revisitado, ou seja, uma nova leitura, mais "aberta", em relação ao discurso intelectual da geração de 1954-64. É Daniel Pécaut quem afirma que, para esta última geração, não era preciso "forjar" uma nação (como parece ter sido a proposição político-cultural das gerações de intelectuais brasileiros do final do século XIX). Para eles, a nação já estava constituída, e chegava a ser uma garantia da unidade nacional. A problemática político-cultural desse período seria defender a nação do imperialismo externo. Uma postura adotada pelo ISEB, CPCs, MEB e por outros. Uma postura de intelectuais como Darcy Ribeiro, Ênio Silveira, Dias Gomes, Manoel Cavalcanti Proença, Alex Viany, Álvaro Lins, Ferreira Gullar, Leandro Konder, Nélson Werneck Sodré e de muitos outros. No período sucessor, a partir do golpe, a idéia central dos intelectuais está na intenção de abandonar a inocência do discurso cultural para viver a sua práxis. E a práxis política-cultural dos anos 1964-69 praticou um nacionalismo menos ingênuo que as formulações anteriores e, também, bastante efervescente. O período foi marcado, principalmente, por dois movimentos estéticos originais, o "Cinema Novo" e o "Tropicalismo", por um aumento vertiginoso no volume de edições de livros (52 milhões de livros editados em 1964 e 89 milhões em 1967), aumento percentual de residências com aparelhos de televisão (8,6% em 1962 e 20,4% em 1968), incremento das atividades jornalísticas, com a publicação, inclusive, de várias revistas com temas sociais, como a "Revista Civilização Brasileira", "Paz e Terra", "Anhembi" e "Política Externa Independente" e com várias formas de expressão artística.
Com o AI-5, com a censura e com a repressão do governo Médici, a postura de artistas e intelectuais modifica-se, num processo que, tendo por referência o estágio de definição pelo nacionalismo verificado anteriormente, e absolutamente sem qualquer axiologia estética, gostaria de chamar, também, de distensivo. Obrigados ao silêncio, ou a metaforizar o silêncio, e diante de uma expansão agressiva da utilização dos meios de comunicação de massa como divulgadores ideológicos do governo federal, os principais personagens do momento anterior passam a viver um momento delicado de produção. Os motes políticos usuais restavam do período anterior: "dependência econômica" era o principal desses motes, e dele derivavam os incipts "espoliação" e "bloqueios estruturais", presentes obsessivamente no discurso da época, como assinala Pécaut (1990: 282), chamando atenção para o fato de que Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort foram dois dos que não sucumbiram a essa visão simplificadora do processo capitalista. Cardoso sugere que a noção de dependência não deriva unicamente de uma opção política do Estado, propondo uma análise de "conjuntura" para explicar o momento nacional (Cardoso: 1973) e abordando uma noção de "esferas bucrocráticas superpostas" no poder público (Cardoso: 1972), o que se assemelha à compreensão de Celso Furtado.
Por essas razões, o pensamento brasileiro da década de 1970 esteve à procura de uma política desencontrada. Verificava-se a distância entre o discurso e a realidade. Pretendo assinalar que a noção de Brasil e que a proposição de defesa da nacionalidade foram um pensamento corrente desde a segunda metade dos anos 1950 até a fase pós-milagre. Mas esse pensamento, naturalmente, se modificou com os acontecimentos políticos. Se era de certa forma ingênuo, ainda que atuante, no momento 1955-64, foi efusivo, vibrante, politizado, no momento 1964-69, e de certa forma, melancólico, no período 1969-75.
A partir desse ponto, em meio ao crescente agravamento da crise social, o caráter "nacional" se modificou estruturalmente. Analisando o pensamento político, intelectual e artístico da fase pós-milagre, percebe-se, de um lado, a melancolia de quem aguardava que o processo capitalista expusesse as contradições do sistema para que as coisas pudessem melhorar, e, por outro lado, começa-se a procurar alternativas de sobrevivência ideológica, especialmente manifestas no meio acadêmico, que foi grandemente expandido durante o milagre.
A seqüência do pensamento nacionalista, a partir de 1955, é multifacetada, mas é possível compreender a sua evolução. O nacionalismo de 1955-64 era "militante", cumpria-se como um dever histórico de intelectuais esclarecidos, que tinham por missão esclarecer (doutrinar?) uma massa não privilegiada, das potencialidades pátrias e das verdades da exploração do capitalismo internacional. O nacionalismo em 1964-69 foi explosivo. Primeiro, porque rompeu com a obrigação de uma arte engajada. Segundo, porque, com extrema vitalidade e criatividade, buscou nova argumentação sobre o "nacional" Por exemplo, a "estética da fome", de Gláuber Rocha. É importante considerar essa argumentação "nacional", também, em momentos como a arte conceitual de Cildo Meirelles e os happenings, que se espalharam nos principais centros culturais.
A partir da repressão do AI-5, entretanto, onde esteve o "nacional"? Enquanto o Estado autoritário tomava para si a tarefa de patrocinar e promover a cultura, uma parte dos artistas e intelectuais fugia do país e outra parte, tendencialmente, passava a trabalhar a questão da nacionalidade através de pastiches da cultura estrangeira, com tendência a uma aproximação ao conceito de underground, como no caso da poesia de Chacal e Torquato Neto, do cinema de Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, Júlio Bressane e Carlos Reichembach e de jornais alternativos, como o "Flor do Mal", publicado no Rio de Janeiro. Seguindo a mesma tendência, mas fazendo parte de outro grupo, com referências outras, a arte foi chamada de "descompromissada", como era o caso das produções do grupo teatral "Asdrúbal Trouxe o Trombone" e do grupo de poetas e músicos "Nuvem Cigana".
O florescimento da arte marginal, na fase 1969-75, marcaria um distanciamento da objetividade sígnica da "revanche do nacional"? Tendo a acreditar que ela faz parte de uma conjuntura de impedimentos, ou de uma conjuntura de ressacas perfeitamente vinculada à "melancolia", que citei acima, como característica das dificuldades políticas daquela geração.
A partir de 1975, passando por todo o momento da Abertura e pelo da Nova República, qual seria o prosseguimento dessa idéia de "nacional"? Na verdade, a pergunta é: a partir da repressão militar, da crise econômica e da crise nos paradigmas dos modelos de esquerda no Brasil (acentuada e definida com a criação do Partido dos Trabalhadores, em 1979, sob muitos aspectos, uma nova espécie de esquerda, analisando-se a trajetória política esquerdista brasileira), que rumos teria tomado o pensamento nacionalista brasileiro, idéia trabalhada por diversas gerações de intelectuais, desde o século XIX, e que esteve na base do pensamento político intelectual, tanto de esquerda como de direita, desde os anos 50?
A classe intelectual brasileira, de fato, se modificou durante o processo de Abertura. A análise de Daniel Pécaut demonstra que é somente a partir de 1975, quando a "inteligentzia" brasileira toma o papel de "ator político" e passa a reivindicar o fim do regime militar é que surge no país uma verdadeira consciência democrática (Pécaut: 1990, 300). Pécaut considera que, no Brasil, as lutas das classes intelectuais nunca tiveram como proposta uma real democracia. Não cabe analisar o tema neste momento, mas quero tomar a idéia democrática, e junto com ela outras reformulações no pensamento político dos intelectuais que conduziram as massas no processo de Abertura, como um momento de real modificação no processo de tratamento da questão da nacionalidade.
Acredito que, de fato, houve uma reformulação considerável do modelo nacionalista da cultura brasileira a partir de 1975, mas essa mudança deveu-se a uma interrupção de fluxo e de pensamento, e não, propriamente, a uma evolução no cenário do pensamento anterior. Acredito, portanto, que houve uma "distensão" também no campo cultural e no campo do pensamento intelectual, a partir de 1975, ou seja, no momento pós-milagre e em seus sucedâneos, a Abertura, o governo José Sarney, o governo Collor, etc.
A partir de 1975, aproximadamente, a classe intelectual brasileira insere-se na tendência acadêmica mundial: passa a procurar situar o país numa esfera global de interdependência, tanto no plano econômico quanto no plano cultural. A idéia de democracia, por exemplo, alheia à trajetória do pensamento intelectual-paternalista brasileiro, surge nesse momento, importada através de reflexões externas, no âmbito internacionalíssimo da comunicação de massa, do multiculturalismo, do pós-estruturalismo e, mais recentemente, do pós-marxismo. O debate intelectual necessariamente transforma a idéia de "nacional" num elemento relativamente existente, "situado", em relação com outros diversos elementos, entre os quais há sempre uma interdependência decisiva baseada em esferas "massivas" de poder.
Quando a intelectualidade brasileira retirou seu discurso da praça nacionalista, deixou um vazio reflexivo. Um espaço público educado para uma espécie de sentimento pátrio, mas um espaço público, contingencialmente, sem país. E o que o ocupou foi justamente o discurso oligárquico, que tangenciou o vazio-referência de "lugar nacional" substituindo-o por uma referência amparada, oligarquicamente, que se pode chamar "lugar regional".
Na verdade, a distensão da idéia de "lugar nacional", tanto por parte da intelectualidade, artística e acadêmica, quanto por parte de certas esferas políticas regionais, está fundamentada numa permanência cultural, na formação social brasileira, da dicotomia nacionalidade x regionalidades, dicotomia esta que emerge facilmente em determinadas circunstâncias políticas brasileiras.
4.
Após o duro golpe que foi o Estado Novo, em 1937, o discurso regionalista encontrou poucas oportunidades para se manifestar politicamente, embora subsistisse dicotomicamente. O Estado Novo foi uma das forças estruturadoras da futura concepção intelectual do Nacional, como a conhecemos das gerações entre 1950-75. A ditadura Vargas talvez tenha sido o momento aglutinador dos discursos das regionalidades mais importante, neste século, para o Brasil, assim como o movimento tenentista, que levou o país à revolução de 30, foi seu principal agente intelectual. É no contexto desse pensamento aglutinador, que depôs as oligarquias regionais da Velha República (1889-930), que se forma, em momentos sucessivos, e não alheiamente a influências exteriores, o pensamento intelectual e político sobre o Nacional. De fundo crente e efusivo para a geração modernista (e assim, paralelo ao movimento tenentista), autocrático durante a ditadura do Estado Novo, estruturador para os isebianos de após-Vargas, reformista, esquerdista, revolucionário, crítico e, porfim, desencantado, para as gerações seguintes. Porfim desencantado, coincidentemente como o momento de após-milagre econômico. E também, nesse período, politicamente distensivo.
A partir desse momento de distensão política e intelectual, ideológica nos dois casos, o Brasil, em sua esfera pensante de "Brasil", abandonou (e não ultrapassou) a sua luta por uma concatenação do Nacional. Em todo o nível de análise, da política parlamentar à esfera acadêmica, tem-se visto prevalecer a teoria pós-moderna da relatividade cultural e da intertextualidade política e ideológica, o que corrobora a noção da individualidade nacional em favor de um multiculturalismo. A distensão da ideologia nacionalista deixou aberto um espaço de discussão e de ilusão, um espaço signicamente distendido, porém conservador, da tensão dicotômica anterior. Precisamente sobre este espaço não se teria renovado a idéia do regionalismo? O fator político - a restruturação das oligarquias locais - por sua vez, poderia ter contribuído para a renovação dessa idéia, ou, mais que isso, poderia ter dado espaço à divulgação dessa idéia e ao mesmo tempo incorporado o espaço significador, o seu lugar de fala, assumindo a postura de elemento discursador central, hierarquicamente responsável pelo discurso.
Pode-se observar que é nos estados onde o regionalismo é mais forte que há um aparato oligárquico mais definido sob um referencial histórico. O melhor exemplo é provavelmente o Rio Grande do Sul, cujas oligarquias não foram, simplesmente, institucionalmente, desfeitas com a Revolução de 30 e com o Estado Novo, mas sim continuadas, na esfera ampla do governo federal. Durante a década de 70, enquanto, com relativa facilidade, as oligarquias gaúchas se reestruturavam no poder (lembremos que dois dos presidentes militares foram também gaúchos, bem como João Goulart), espalharam-se por todo o estado os Centros de Tradição Gaúcha (CTGs), mantidos com contribuições de comerciantes e empresários do interior. A própria palavra gaúcha para definir regionalismo, que é "tradicionalismo", é um fator indicativo da relação próxima entre o incipt Regional e a política oligárquica desse estado.
O processo nordestino se diferenciou do processo sulista em muitos aspectos. Mais amplo, tanto no sentido geográfico quanto nas diversas interpretações de o que seria o "regional", constituiu-se de forma diversa em zonas específicas. Assim é que as oligarquias de Pernambuco, de tradição "regionalista" amplamente referenciada sobre a cultura popular, puderam ocupar um modelo ideológico semioticamente desenvolvido numa secundidade icônica, basicamente; ou seja, num espaço público já referenciado e difundido, "reconhecível", por assim dizer, por uma base social identificada, ideologicamente, com certos elementos históricos passíveis de serem manuseados por essas oligarquias. Cenário semelhante, mas não exatamente igual, foi o formado na Bahia, onde as oligarquias puderam encampar a seu favor, a base mediática de difusão pública dos ícones afro-brasileiros, passíveis de serem observados como índices sígnicos da sua circunstância regional. Já no Maranhão foram visíveis as intenções de iconizar o passado colonial da cidade como um resgate sócio-cultural promovido pelo poder público.
Na região Norte, é possível observar as tensões sígnicas de referenciação da regionalidade dentro de um processo de desenvolvimento essencialmente mediado pelo poder público Nacional. Diante da modificação intensa e vertiginosa da realidade "regional" local, a partir da construção das rodovias Belém-Brasília e Transamazônica, do processo migratório e da ocupação econômica desorganizada e desordenada, desenvolveu-se uma certa preocupação em desvendar e afirmar o que seria, exatamente, o ser-regional. A defesa do espaço público, em Belém, converteu-se ideologicamente em defesa dos mitos da história e da geografia. O reerguimento das oligarquias amazônicas, a partir da tensão política de defender totalmente ou defender em termos o modelo desenvolvimentista imposto pela federação, gerou uma tensão dicursiva, ideológica, em delimitar o espaço público mediante significações simbólicas, semioticamente terciárias, do referencial histórico e geográfico.
No sudeste do país, é possível observar, talvez, a dimensão regionalista do espaço público mineiro, para cujas classes formadoras de opinião seria um espaço público que, pretensamente, por vezes, transcenderia à própria compreensão do nacional-político. Dois caminhos poderiam trabalhar essa investigação: a estrutura da reorganização de oligarquias "mediatizadas", transmissoras da idéia "regionalista", no interior do estado, e a ação, nos anos 70-80, de um grande memorialista e de um grande ensaísta, que pensaram o "ser" de Minas Gerais, Pedro Nava e Fábio Lucas.
Obviamente esses processos de retomada do pensamento regionalista a partir de uma distensão do poder público federal e de uma distensão de concepções intelectuais sobre o Nacional, como forma de proposição política relacional de oligarquias que se serviram deles discursivamente (ideologicamente / semioticamente) para preencher o vazio deixado na concatenação dos espaços públicos locais, não podem ser analisados devidamente no espaço deste ensaio ou mesmo deste livro. Tento apenas assinalar o processo, para que possa me aprofundar num único desses casos, o do regionalismo amazônico do Pará.
Abandonado pelos intelectuais e artistas, e desmotivado no espaço político, o grande lugar de fala, esse espaço discursivo ilusório e ideológico sobre a nacionalidade, construído durante décadas por gerações de pensadores do "ser" do Brasil, foi ocupado facilmente, creio, pelas oligarquias locais, razoavelmente descompromissadas com um lugar de fala globalizante, embora obviamente dependentes, politicamente, da federação. Nos momentos seguintes, pretendo discutir o procedimento do poder oligárquico nesta sociedade distendida para ocupar o lugar de fala "regional". As armas das elites públicas brasileiras para a reafirmação do regional são amplas: além do poder econômico, coagem os meios de comunicação de massa. A linguagem empregada no discurso regionalista, no Brasil contemporâneo, é claramente massiva. No momento atual, "arte popular", em várias instâncias de produção, tem o caráter ambivalente dos signos discursivos perpassados por uma enunciação mediática, numa óbvia tensão dialética de discursividades. Essa situação é identificável através do alto grau de alegorização (intersubjetividade dialógica) de qualquer composição artística dita "regionalista", no Brasil de hoje. Arte regional, contemporaneamente, tenderia a ser um produto de consumo "mid-cult", pastiche de um passado e de uma ilusão de futuro, alegoria desprovida de referencialidade crítica. Tais são as idéias que, no ensaio seguinte, procuro explorar mais de perto. Talvez constituam um disfarce para um falso discurso público. Semioticamente, no entanto, constituem uma situação que toma o Nacional brasileiro por re-partido.
Bibliografia
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