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Edição nº15 - 12/11/99
Primeira Estórias
João Guimarães Rosa
Rosa, como poucos, diz coisas que sentimos, coisas
que nos remexem por dentro sem achar jeito de sair. Rosa vem,
e diz no exato o que é aquilo, como se forma, a cor e o
cheiro que tem, o volume, e como vem à tona. Ele cria o
estímulo, a diferença de pressão necessária
para esguichar pra fora os sentimentos de que nem suspeitávamos.
" ( Wilson Morais, escritor, em artigo sobre Guimarães
Rosa) 1. Biografia do Autor: "Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa." João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908 e morreu no Rio de Janeiro, três dias após ter tomado posse na Academia Brasileira de Letras. Filho da classe média, Rosa fez seus primeiros estudos na cidade natal : "(...) aprendeu as primeiras letras com Mestre Candinho, em Cordisburgo, e francês com Frei Esteves, franciscano. Foi sempre aluno excelente, surpreendendo os professores pela inteligência e aplicação. Desde cedo mostrou inclinação para línguas, e, aos seis anos, lia o primeiro livro em francês Les Femmes qui Aiment. Em 1918 o avô leva-o para Belo Horizonte, matriculando-o no primeiro ano colegial do colégio Arnaldo, onde estudaram também Carlos Drummond de Andrade e Gustavo Capanema. E ele entrega-se aos livros, com entusiasmo; em breve, vamos encontrá-lo a pedir licença para freqüentar a biblioteca da cidade. Embora o seu grande amor ao estudo, não desprezava os esportes, principalmente futebol. Mas foram as línguas a sua principal paixão: estudava-as com afinco, sem se descuidar das respectivas gramáticas. Outra matéria de sua predileção foi a História Natural. Dos dez aos catorze anos colecionou insetos, borboletas; amava os animais, aprendeu a conhecê-los intimamente e a sua obra mostra bem os profundos conhecimentos que tem da matéria. Quando ia a Cordisburgo, pelas férias, explorava os matos, à procura de cobras. Lia bastante, tendo conhecido Euclides da Cunha ainda nos bancos escolares. Entretanto, o estilo árido, difícil para a sua idade, fazia-o pular páginas, amortecia-lhe o interesse. Só muito mais tarde ( quando Sagarana já se encontrava em provas) é que o releu devidamente. Terminados os preparatórios, Guimarães Rosa matriculou-se na Faculdade de Medicina de Minas gerais. Durante o curso médico conheceu no Hospital sa Santa Casa de Belo Horizonte o Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira de quem se tornou bom amigo. A propósito dele, dizia Guimarães Rosa ao seu amigo, o romancista e professor Geraldo França de Lima: "Jamais uma pessoa me tratou tão bem." Nesse época, premido por necessidade financeira, escreveu contos, publicados na revista O Cruzeiro. Concorreu quatro vezes, e em todas foi premiado com cem mil-réis. Mas escrevia friamente, sem paixão, preso a moldes alheios, como confessou. Na verdade, eram os cem mil-réis do prêmio... Depois de formado, foi Guimarães Rosa exercer a profissão em Itaguara, município de Itaúna, onde permaneceu por dois anos. A razão da escolha é que lhe haviam dito não existir médico por aquelas bandas. E, na verdade, era excelente iniciar a profissão sem concorrência... Aproveitava todos os momentos disponíveis para estudar ( mesmo durante as viagens a cavalo), e de tal modo se familiarizou com a profissão que era capaz de dar o diagnóstico apenas pela fisionomia do doente. Cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha que percorrer. Nem podia ser de outra forma, porque, quando chegava ao local, o dona da casa, a fim de baratear a consulta, aproveita-lhe a presença para uma revisão geral na saúde da família. Médico dedicado, acabou por se tornar repeitadíssimo naquelas regiões. Perder um doente era, para ele, particularmente , algo trágico. E uma vez em que isso aconteceu , ficou aflitíssimo, sem saber que resolução tomar. O padre já esperava ao lado do morto, para encomendar-lhe o corpo, e Rosa ainda lhe aplicava injeções sobre injeções, como se pretendesse ressuscitá-lo. Foi uma noite de agonia. Em casa, mais tarde, o futuro escritor fechou-se no quarto, sem querer jantar, imaginando represálias por parte dos parentes e amigos do morto, quem sabe um linchamento... Soube, depois, que a preocupação era inteiramente infundada, e que todos haviam reconhecido que ele fizera o impossível.
Aí a vida calma dá-lhe oportunidade para se entregar melhor aos seus livros. Mesmo sem se descuidar da medicina, retorna ao estudo das línguas. "Estudava as línguas para não me afogar completamente na vida do interior"- confessará depois. E através de um russo branco que se encontrava meio perdido por aquelas bandas, como soldado da polícia militar de Minas, pôde confrontar pela primeira vez a sua pronúncia. Depois, por intermédio de cadetes e de antigos oficiais do exército czarista, aparecidos em Barbacena como componentes do Coro dos Cossacos do Juban e do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. Foi a essa altura que um amigo, impressionado com os conhecimentos que tinha Guimarães Rosa das línguas estrangeiras, deu-lhe a sugestão: - Se você gosta tanto de estudar línguas, por que não faz concurso para o Itamarati? Rosa pensou no caso, e acabou por aceitar o conselho. Adquiriu livros, estudou muito, e em 1934 veio para o Rio, enfrentar o concurso para o Ministério do Exterior, onde detém o segundo lugar. Durante todo esse tempo, manteve suas ligações com a literatura. Além dos contos, escrevia versos, chegando a organizar uma seleção deles num volume Magma com o qual concorreu em 1936 ao prêmio de poesia da Academia Brasileira. O livro sai vitorioso, sendo o parecer do relator o poeta Guilherme de Almeida altamente lisonjeiro. Apesar disso, tal obra não foi publicada até hoje. Em 1937, a saudade da terra levou Guimarães Rosa a escrever os contos de Sagarana, onde, com estilo vigoroso, apresenta a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e dos criadores de gado- estórias de gente simples vividas ou imaginadas o mundo em que passara a infância e a mocidade. Transpunha também, para o livro, a linguagem rica e pitoresca daquela gente, registrando regionalismos, muitos deles ainda não utilizados em literatura. Levou sete meses para escrever o livro "sete meses de exaltação, de deslumbramento"- declarará. Em dezembro de 1937, resolve concorrer com o volume ao Prêmio Humberto de Campos, instituído então pela Livraria José Olímpio. Queria ganhar o concurso, naturalmente; mas desejava, sobretudo, saber do valor do seu trabalho. Não conhecia ninguém da área literária, e a opinião da comissão julgadora ( constituída por Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa e Pelegrino Júnior) era um excelente meio de tomar o próprio pulso. Remeteu à Comissão os originais que então se intitulavam apenas Contos para disputar o prêmio com outros 57 concorrentes. Saiu vencido por três votos a dois. No mundo literário ninguém sabia quem era o autor que chegara à final do concurso: era o desconhecido Viator. Um dos juízes, o grande e saudoso Graciliano Ramos, a propósito do assunto escreveu artigo divulgado na imprensa do país em 1946 "Conversa de bastidores onde dá de púlico esclarecimentos ( incluído em Linhas Tortas, livro póstumo de Graciliano). O livro Sagarana não foi o que se submeteu ao concurso sob o simples título de Contos. Sagarana é a depuração deste, escoimado, reduzido ( de quinhentas e tantas páginas às três centenas de hoje), refeito, portanto, segundo o critério rigoroso do Autor. No depoimento de Graciliano Ramos está a história do Prêmio Humberto de Campos de 1938, e importa transcrevê-lo na íntegra é o que se faz logo após este perfil biobibliográfico. Em 1938, nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, o escritor segue para a Europa, onde recebe a notícia de que a obra premiada fora Maria Perigosa, coletânea de contos de Luís Jardim ( de quem, aliás, o escritor se tornaria, mais tarde, amigo e admirador). Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado, com Cícero Dias, Cyro de Freitas Vale e outros, em Baden-Baden. Aproxima-se de Cícero Dias, com quem faz amizade, e acaba por mostrar-lhe os originais de Sagarana. O pintor gosta do livro, e anima-o a publicá-lo. Libertado mais tarde com os outros, em troca de diplomatas alemães, o escritor retorna ao Brasil. Depois de rápida passagem pelo Rio, segue para Bogotá, como secretário de Embaixada, de onde volta em 1944. Um ano depois, retoma os originais de Sagarana, e, em cinco meses de trabalho contínuo, refaz inteiramente o livro, suprimindo duas histórias. O volume é publicado em 1946 pela Editora Universal, com sucesso ruidoso, esgotando-se, no mesmo ano, duas edições. Recebe o prêmio da Sociedade Felipe d'Oliveira e é aclamado como uma das mais importantes obras de ficção aparecidas no Brasil contemporâneo." (Renard Perez, em primeiras Estórias, José Olímpio Editora, 1946)
Em 1963 é eleito por unanimidade para a Academia Brasileira; só tomará posse em 1967. Três dias depois, um infarto agudo o levou embora. Encantou-se. Ou, como escreveu Drummond: "Guardava rios no bolso cada qual com sua água sem misturar,sem conflitar? Ficamos sem saber o que era joão e se João existiu de se pegar." 2. Estas Primeiras Estórias: O livro Primeiras Estórias , publicado em 1962, inicia um tempo em que as narrativas rosianas iniciam por se tornarem curtas, distanciando-se daquelas contidas, por exemplo, em Sagarana ou em Manuelzão e Miguilin. Em Tutaméia ( 1967), elas seriam muito breves, como um condensamento. Nosso livro guarda 21 histórias curtas, mas o assunto é o mesmo que permeou a trajetória do escritor: os "causos"pontilhados da tradição oral, os enredos que mostram desde o tom épico, o filosofante, o lírico, o hermético. Embora nesse conjunto não haja propriamente uma linha temática, um fio condutor, é bom lembrar que neles predomina a poesia saborosa na organização das palavras e cada conjunto, oração ou período depende de nós, da nossa capacidade de observação, de nossa paciência para que se instaure o significado esplêndido que tem. Ler Guimarães Rosa nunca deve ser tomado como obrigação; ler Rosa exige os critérios do desvendamento, do amor pelo texto e pelo escritor e, sobretudo, descobrir que por detrás de aparentes causos de homens briguentos, de deslumbramentos de crianças, de loucuras, misticicismo,a mor e violência, lá está o homem e sua plenitude, o estar-no-mundo, o descobrir da existência verdadeira e valiosa. Guimarães Rosa não é apenas um escritor: ele é uma espécie de guia para nós, os cegos de nós mesmos... De acontecimentos mais ou menos banais, cotidianos cria-se o momento da paixão, o estado da paixão que nos levará a caminhar, palmilhar, perceber em cada coisa ou canto o milagre, o insuspeitável, o extraordinário, o que foge à simples concepção da vida inútil. Rosa não é apenas um contador de causos mineiros: é um desvendador dos mistérios de cada ser e suas personagens, habitantes dos desvãos de Minas Gerais, habitam um mundo de inquietações e intranqüilidades, um mundo de devaneios e mistérios, um mundo de desejos de grandes saídas. Abrigam, elas, um mundo universal dentro de si mesmas. Dito isso, poderiam transitar por Wall Street, pelas ruas de Londres, em Sidney , ou Buenos Aires: têm o que todo humano que busca resposta tem: uma inquietação da vida, um desejo de transcender. Jamais permanecem elas mesmas após o que vivem: elas acham novos caminhos, sustentam sentimentos, rompem regras, direcionam-se para a existência verdadeira. Ler Rosa, é mesmo para poucos... Após sua leitura, a vida exige que nos tornemos comprometidos conosco, com os que amamos, com a procura da existência que valha a pena. Rosa é danoso em nós: faz-nos pensar, refletir sobre o que brilha, vigoroso e íntimo, lá no fundo de nossas vidas. Dá-nos a dimensão da dor, da alegria, das transformações. E projeta em nossas almas o profundo elo com a nossa mesma existência.
Ler Rosa é quase que caminhar sobre um abismo... de nós mesmos, da humanidade, dos homens. Ler Rosa é travessia de nós mesmos. .. por isso tão perigosa. E tão urgente.
"Considero a língua como meu elemento metafísico: escrevo para me aproximar de Deus." ( JGRosa) I. As Margens da Alegria Tema: a infância "ESTA É A ESTÓRIA. ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho." O Menino não tem nome; seu nome é apenas menino. O pai e a mãe vão levá-lo ao aeroporto e, durante a viagem, até o piloto conversou com ele. A cidade, que no futuro terá um grande lago artificial, é certamente Brasília. Deram-lhe balas e chicletes e o tio ensinava coisas sobre o assento reclinável. Chegaram. O conto está dividido em cinco partes, nomeadas apenas com algarismos romanos. A segunda, é a chegada na cidade que se construía: " O Menino via, vislumbrava. Respirava muito." Foi à cozinha, daí poderiam ser vistos índios e caçadores, onça, leão, lobos? Ouviu os passarinhos e seu canto comprido. "Isso foi o que abriu seu coração." Viu também um peru. Note que o Menino, aqui, está em estado de descoberta, de si mesmo e do mundo que o cerca. O peru, colérico, andando, "gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio." A parte III se inicia com um passeio de jeep: iam ao sítio do Ipê. papagaios, veados de rabo branco, flores, "imundície de perdizes", a tropa de seriemas, o par de garças, o buriti à beira do corguinho... O menino pensava no peru. Na parte IV, vão ver onde se construiria o lago. Um mundo de máquinas, compressoras, árvores que eram derrubadas. Ele tem vergonha de falar sobre o peru. Fica pensando na árvore que vira morrer, ali derrubada. Na parte final, quando chegam de volta à casa, fica com medo de sair para o terreiro, mas lá reencontra o peru. Estava anoitecendo, e ele sabia que todo sim de dia traz esta tristeza, assim, no peito das pessoas. O peru não era o mesmo que vira ao chegar: era aniversário do doutor e o degolaram, jogaram a cabeça do primeiro peru no monturo. O outro, o peru pequeno, bicava aquela cabeça com certo ódio. E o Menino tem a experi6encia de que tudo se substitui, todas as coisas. E encantado ficou, por isso: Trevava. Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria." II. Famigerado Tema: violência e engano Um grupo de quatro cavaleiros chega à casa de um médico do arraial. Damázio, dos Siqueiras, se apresenta ao doutor que já o conhecia de nome: "Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo?" Os três cavaleiros, à distância respeitosa, pareciam mais testemunhas de algo que iria acontecer: "Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu." Damázio, por fim, declara: "- Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..." O narrador o descreve: cenho carregado, catadura de canibal, os ínvios olhos "Tudo de gente brava." Por fim, esclareceu a que vinha: "- Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..." Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que , resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquele crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Lateja-lhe um orgulho indeciso." Era difícil para aquele homem falar o que queria. Ia devagar, aquilo era coisa que mexera no seu orgulho... O narrador observa que "ele enignava". E num repente: "- Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...? Disse, de golpe, mas trazia entre dentes aquela frase. (...) - Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..." O médico perguntou se o que viera saber não era "famigerado": "- Famigerado? Habitei preâmbulos, bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio: - Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..." (...) - Famigerado é inóxio, é "célebre", notório, notável..." O homem pede que lhe em linguagem de "dia de semana", o que se deve entender como diferente da linguagem do padre na missa, aos domingos, tão difícil. É aí que o médico responde que famigerado é "importante", que merece louvor e respeito. Observe isso: nos dicionários, essa versão para a palavra é real: que tem fama, célebre, notável. No entanto, por estar freqüentemente associada à palavra malfeitor, bandido, ela adquire, vulgarmente, o sentido de "bandido, malfeitor, assassino". A confusão fez-se aí: o engenheiro disse a palavra como o vulgo a diz, mas o médico trouxe-a à tona na forma que o dicionário indica. Confirmado que não era palavra feia, nem desaforada ou caçoável, Damázio dispensa as testemunhas e sorriu: "- A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, apertou a mão do médico, diz que de outra vez aceitaria entrar na casa. E se foi, esporeando o cavalo. III. Soroco, sua mãe, sua filha tema: a loucura, a solidariedade Chegou ao povoado, vindo do Rio, e agora aguardava na linha de resguardo, um vagão especial, com as janelas de grade. Chamava a atenção de todos os moradores: "Ia servir para levar duas mulheres, para longe , para sempre. O trem do sertão passava às 12h45. E muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar." Para não se entristecerem, conversavam. Iam para o hospício de Barbacena a mãe de Soroco, uma mulher velha, com mais de setenta anos, e a filha, ainda moça, a única que Soroco possuía. Soroco era viúvo e "Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum. Para o pobre, os lugares são mais longe." Soroco era homem grande, "brutalhudo", cara grande, barbudo, a voz grossa; as crianças tinham medo dele. A filha, bem, leia esta descrição magnífica desta cena da chegada da filha: "Aí, paravam. A filha a moça tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espantados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas-virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam." De braços dados com as duas, Soroco se dirige à estação de trens: "Era uma tristeza. Parecia enterro." As pessoas estavam entre curiosas e apiedadas. Soroco calçara suas botinas, "botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a eles seus respeitos, de dó. Ele respondia: "- Deus vos pague essa despesa..." Foram anos muito tristes, os últimos. E Soroco aguentara tudo. As mulheres enlouquecidas, a trabalheira que davam. Mas agora precisavam ir. A moça começou a cantar alto, com o rosto virado pro povo, enquanto a velha se sentava numa escadinha. A velha era quietinha, mas diante da cantoria da neta, comoçou por cantar baixinho e depois mais alto: "Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar. Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades." Observe que o narrador tem marcas típicas da oralidade do contador de causos: "Aí que..." "tinham de..." Até que o trem, manobrando, juntou o vagão em que as duas estavam embarcadas e "apitou, e passou, se foi, o de sempre." Soroco de chapéu na mão, pobre homem, sequer quis esperar o trem sumir. Todos apiedados de Soroco: "Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Soroco." Esquisito, talvez sentindo a grande solidão que lhe restara, Soroco empertigou-se todo e... pôs a cantar aquela cantiga insólita. Num átimo, todos se juntaram a ele "E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele, os mais detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação. A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga." IV. A menina de lá tema: infância "Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes." Inventava histórias e palavras que espantavam as pessoas, tudo vago e esquisito: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninos e meninas sentados a uma mesa de doce, comprida, por um tempo que nunca se acabava. Ou uma que mostrava a necessidade da gente fazer uma lista de coisas que no dia por dia a gente vem perdendo. Nem sequer tinha quatro anos. Da sua quietude e placidez nada saía que perturbasse as pessoas. Era calma, concentrada. Pra comer, tinha um ritual: comia primeiro o ovo, carne, torresmos, o que havia de mais gostoso e só depois é que comia o arroz, o feijão, a abóbora, agora lentamente. "De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. "Nhinhinha, que é que você está fazendo?"- perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: "- Eu... to-u...fa-a-zendo." Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?" E era impossível puni-la por qualquer coisa que fosse. Gostava da noite e das estrela , às quais chamava de "estrelinhas pia-pia. Dizia que o ar "estava com cheiro de lembrança. "A gente não vê quando o vento se acaba..." E dizia coisas imprevisíveis, inexplicáveis: " O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..."não, disse só: "- ... altura de urubu não ir."O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: "Jabuticaba de vem-me-ver..." Suspirava, depois: "- Eu quero ir para lá."- Aonde? "Não sei." E respondia coisas despropositais: "- Eeeu? Tou fazendo saudade." Qutra hora, quando se conversava sobre parentes mortos, dizia que ia visitá-los. O narrador nos diz que nunca mais viu a menina. Mas foi por aí que começou a fazer milagres. Se desejava um sapo, dizia, e logo ele entrava , aos pulinhos, pela sala. Ou desejava pãezinhos de goiaba, logo aparecia alguém que de muito longe lhe trazia. Quando a Mãe adoeceu, foi só a Menina abraçá-la e ele sarou logo. A seca chegou, queriam que a Menina pedisse chuva. Ela disse que não podia. Mas quando, dois dias depois, desejou ver um arco-íris, choveu. Pensavam Mãe e Pai que quando a Menina crescesse, tudo isso passaria. Mas a menina adoeceu e morreu, talvez por causa das péssimas águas da redondeza. Todos pareciam ter morrido a metade. Tiantônia contou, então, que quando fizera aparecer o arco-íris ela dissera que queria ser enterrada num caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes. O Pai se recusou a ir encomendar o caixão, achando que colaboraria ainda mais na morte da Menina. Mas a Mãe acredito que fosse só encomendar o caixão e que, por milagre da Menina, sairia igualzinho ao que ela encomendara. V. Os irmãos Dagobé tema: vingança/violência Havia acontecido na vila uma enorme desgraça: um lagalhé chamado Liojorge, estimado de todos, no entanto, matara o mais velho dos quatro irmãos Dagobé, gente absolutamente facínora. E estava ali o velório; a casa não era pequena, mas as pessoas já se apertavam nela, tal era a curiosidade. "Demos, os Dagobés, gente que não prestava. Viviam em estreita desunião, sem mulher em lar, sem mais parentes, sob a chefia despótica do recém-finado. Este fora o grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços "os meninos", segundo seu rude dizer." Tudo tinha um ar de espantoso. Liojorge o matara de medo, porque tal Dagobé, sem sabida razão, ameaçara de cortar-lhe as orelhas. VI. A Terceira Margem do Rio tema: a loucura "Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que ,certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa." É assim que o narrador começa sua história. A canoa era de pau vinhático para durar uns vinte ou trinta anos na água. Acrescenta: "E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta." O pai pôs o chapeu e sem alegria nem cuidados, "decidiu um adeus para a gente. "Nem falou outras palavras, não pegou matula ou trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: - Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" O menino pediu para ir junto, o pai pôs a bênção nele e o mandou para trás. Desamarrou a canoa e pelo remar saiu no rio: "Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executara a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais." Tentaram de tudo para trazê-lo de volta: nada o demoveu. O narrador vê-se na obrigação de alimentar o pai e deixa-lhe alimento todos os dias. Até o padre foi chamado a interceder: nenhum resultado, lá continuava o pai, movendo-se naquela canoa, fizesse sol ou chuva, alienado, procurando suas próprias margens. Os filhos cresceram, a irmà se casou, teve filho, levaram a criança pra mostrar-lhe: nada. Mãe, irmão e irmã vão se mudando para a cidade, só mesmo falta o narrador: "Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na vagação, no rio, no ermo sem dar razão de seu feito. (...) E apontavam já em mimuns primeiros cabelos brancos. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? " E negando ser doido, um dia aconteceu: "Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: "- Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo." Mas o pai escutara o filho e ficou em pé, manejou o remo na água. Concordando. A filho fugiu. Observe o fecho: "Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e , eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro o rio." Para você responder: que terceira margem é esta? VII. Pirlimpsiquice tema: infância/ revelação do encantado, maravilhoso
O texto narra, em primeira pessoa, um acontecimento inexplicável que se deu durante uma apresentação teatral, feita por adolescentes que freqüentavam um colégio de padres, sob o comando do Dr. Perdigão, professor de corografia e história-pátria. O narrador se indaga se tiveram culpa no desfecho precipitado, nos acontecimentos que ocorreram , tão distante do que se previa no ensaio. A peça escolhida era Os filhos do Doutor Famoso, em cinco atos. O narrador seria o "ponto", ou seja, aquele que ficava embaixo do palco e que, durante os esquecimentos da fala, "soprava"o texto.. Representariam a peça em caráter beneficente. Mas na turma que ia representar, estavam "de mal"o Ataualpa, que seria o "Dr. Famoso"e o Darcy, o filho do Capitão. No dia do espetáculo, o pai de um dos atores estava à morte, e um parente veio buscá-lo. O narrador, então, vai levar um susto, mas é colocado sobre o palco, para ocupar o lugar daquele faltante. Ocorre que o narrador teve um branco, ficou imóvel e gago, o que arrancou gritos da platéia. E tudo começou a acontecer: ele só conseguiu gritar um viva à Virgem Maria. A platéia delirou. Os atores , também imobilizados, ficaram no palco, feito estátuas, quando os outros entravam. Então, um tal de Zé Boné, meio estúrdio, começou a representar a "sobrepeça" , uma outra história, inventada, para desespero dos padres e do Doutor Perdigão, cada um falando o que lhe vinha à cabeça: "Mas de repente eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia para fora do corrido, contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito o milmaravilhoso a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar? " Era a tal pirlimpsiquice, a magia e a loucura da cena. E o narrador conta que só havia uma maneira de parar. Deu uma cambalhota e despencou do palco. E o mundo pareceu ter se acabado. No outro dia, o Gamboa veio e falou: "Eh, eh, hem? Viu como era que a minha estória era a de verdade?" Pulou-se, ferramos fera briga. VIII. Nenhum, nenhuma tema: misticismo, o transcendente Num lugar que parece ser dentro de uma grande casa de uma fazenda, é que acontece esta história: um Menino, que ali estava de passagem, penetrara num quarto, no extremo da varanda onde se achava um homem "sem aparência, se bem que, por certo, como curiosamente se diz, já "entrado em anos"; ele deveria ser o dono de lá. Há, no conto, por parte do narrador, uma espécie de evocação da infância que só é resgatada através de cheiros, luzes. E é assim ( seria em 1914?) que ele evoca uma Moça, aureolada de certa luz, com certo som de voz. O narrador se perde nos labirintos da memória: "Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido. Infância é coisa, coisa? E continua: "A Moça e o Moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar, diferente do dos outros; e radiava em ambos um modo igual, parecido. Eles olhavam um para o outro como os passarinhos ouvidos de repente a cantar, as árvores pe-ante-pé, as nuvens desconcertadas: como do assoprado das cinzas a esplendição das brasas. Eles se olhavam para não distância, estiadamente, sem saberesm, sem caso. Mas a Moça estava devagar, mas o Moço estava ansioso. O Menino, sempre lá perto, tinha de procurar-lhes os olhos. (...) Mas o menino queria que os dois nunca deixassem de assim se olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não." O menino talvez tivesse chegado ali em "desviada viagem, sem pessoas da família. Todos imaginavam poder esconder o que havia num determinado quarto, o Homem dizia ser impossível se esconder algo de um menino. E o que havia naquele quarto? Uma mulher, uma velha, velhinha, velhíssima e inacreditável. Nem sabia mais quem era. A Moça, com muito amor, tratava dela. O menino, assustado, foi se refugiar na cozinha, o Moço lhe disse que sossegasse, que não era a Morte, não. O Homem, calado, rezava terços. "Diziam ao Menino, demonstravam-lhe: que a Velhinha não era sombração, mas sim pessoa. Sem que lhe soubessem o verdadeiro nome, chamavam-na a "Nenha". Ela ficava tão quieta, no meio da alta cama de torneados, o catre com a cabeceira dourada, que ali quase se sumia, nos panos, algo inviolável em sua exigüidade, e respirava. Era cor de cidra, em todas as rugazinhas e os olhos abertos, garços. O que ela não tinha era pálpebras? Todavia, um trêmito, uma babinha, no murcho, a boca, e era o docemente incompreensível. O Menino sorriu. Perguntou: - "Ela beladormeceu?"A Moça beijou-o. A vida era o vento querendo apagar uma lamparina. O caminhar das sombras de uma pessoa imóvel." A Moça dizia ao Moço que ele ainda não sabia sofrer. Levaram a Velhinha para um grande jardim, traziam-na para tomar sol,acomodadinha num cesto, que parecia um berço. E o Menino quis brincar com ela. Davam-lhe comidinha mole na boca, traziam-lhe a pedida água. Ela, a Velhinha, já não reconhecia ninguém. O Homem podava as roseiras, o Moço pegou a mão da Moça e o Menino ficou enciumado. De quem era a Velhinha era mãe? Tinham se esquecido, ela também. Moço e Moça se separaram, a Velhinha morreu; o Menino foi embora com ele: "Será que posso viver sem dela me esquecer, até a grande hora? Será que em meu coração ela tenha razão? "O Menino não respondeu, só pensou, forte: - "Eu também!" E ele tinha raiva desse Moço... Ao voltar para casa, o Menino chorou e gritou na presença dos pais: "- Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!..." E eles abaixaram a cabeça, figuro que estremeceram. Porque eu desconheci meus Pais eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?" Este é um conto chamado hermético. O Menino, que num dado instante de sua vida conhece o Amor das pessoas, entre as pessoas e pelas pessoas, acaba renegando os pais "desconhecidos", tão formais, tão neutros, tão sem nenhum destinamento senão ser eles mesmos e nunca UM. IX Fatalidade tema: violência "Foi o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade, veio à casa do Meu Amigo, por questão de vida e morte, pedir providências. Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia. Por tudo, talvez, costumava afirmar: "- Que a vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos , é apenas milagre; salvo melhor raciocínio."Meu Amigo sendo fatalista." Quando o homenzinho apareceu, o Amigo estava no fundo do quintal, exercitando-se. Dava tiros com carabinas e revólveres, alternadamente. Dizia, naquele exato instante em que o homenzinho viera procurá-lo, que quem entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades. O homenzinho era caipira, podia ser visto isso pelo traje e tinha entre "vinte-e-muitos e trinta anos." "Miúdo, moído. Mas concreto como uma anta, e carregado o rosto, gravado, tão submetido, o coitado; as mãos calosas, de enxadachim. Meu Amigo, mandando-lhe sentar e esperar, continuoum baixo, a conversa; fio que, apenas, para poder melhor observar o outro, vez a vez, com o rabo-do-olho, aprontando-lhe a avaliação. Do que disse: - Se o destino são componentes consecutivas além das circunstâncias gerais de pessoa, tempo e lugar... e o karma..."Ponto é que o Meu Amigo existia, muito; não se fornecia somente figura fabulável, entenda-se. O homenzinho se sentara na ponta da cadeira, os pés e os joelhos juntos, segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre." Tinha apelido de Zé Centeralfe, que era homem de obedecer leis, tinha um primo oficial de justiça. Ameaçado, viera dar parte. Era casado, na igreja e no cartório, sem filhos, morador no arraial do Pai-do-Padre. Vivia bem com a mulher, gostava do trabalho e daquela vida de casado. Mas para lá, no arraial, fora dar um homem chamado Herculinão Socó, que se engraçara com a mulher do Zé... Ela não podia sequer botar o pé pra fora de casa, que lá estava o deslavado vagabundo a persegui-la. Mudaram-se para o Amparo e lá arranjaram uma casinha, uma roça, uma horta. Mas logo o homem tornou a aparecer, por birra. Fugiram de lá também, a custo. O delegado insinua que sua carabina faria uma festa naquele desordeiro desrespeitador. E, tomado de coragem, o homenzinho pegou a carabina e se foi. Depois, seguiu o Zé. Viu quando este depôs Herculinão na terra, arriado: "O Centeralfe se explicou: "Este iscariotes..." O delegado, convidou o Zé Centeralfe para o almoço: "Meditava, o Meu Amigo. Disse: "Esta nossa Terra é inabitada. prova-se , isto...", - pontuante." IX. Seqüência tema: amor De madrugada, uma vaca viajava. "Vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa e afundada o tom intenso de azamar. Ela solevava as ancas, no trote balançado e manso, seus cascos no chão batiam poeira. Nem hesitava nas encruzilhadas. Sacudia os chifres, recurvos em coroa, e baixava a testa, ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e para lá do rio a terras de um Major Quitério, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão." No Arcanjo, onde a estrada se aproxima do povoado, foi notada e tomada por rês fujã; tentaram prendê-la, feroz ela se desvencilhou e foi-se. No riachinho do Gonçalves, parou para beber; mulheres lavando roupa, deixavam tudo e corriam dela. "Tio Terêncio, o velho,, à porta da casa, conversou com o outro: "-Meu fio, q'vaca qu"é essa? "- "- Nhô pai, e'a n'é nossa, não." Seguia certa; por amor, não por acaso. Só , assim, a vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente entre o primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos o sol saindo à sua frente, num céu quase da sua cor. Fazia parte de um gado, transportado, de boiadeiros, gado de coração ativo. Viera do Pãodolhão sua querência. Apressava-se nela o empolgo de saudade que adoece o boi sertanejo em terra estranha, cada outubro, no prever os trovões. Apanhara a boca-da-estrada para os onde caminhos fronteando o nascente." Quando seu Rigério soube que a vaca estava à procura da antiga "querência"( lugar onde fora criada e crescera), apenas disse: "Diaba". Um dos filhos, percebendo que o pai a necessitava de volta, tomou a sério o que era a busca. "Só um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo: levar em brio e tomar conta. Atou o laço na garupa. Disse: "É uma vaquinha pitanga?"Pôs-se a cavalo. Soubesse que por lá o botava, se capaz. Saiu à estrada-geral. Ia indo, à espora leve. Ia desconhecidamente. Indo de oeste para leste. Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe dava de o bastante. Ante o morro, a passo, breve, nem parava para os capins dos barrancos"arrancava-os, mesmo em marcha, no mesmo surdo inssossego. Se subia cabeceava, num desconjuntado trabalho de si. Se descia era beira-abismos, patas abertas, se borneando. Após, no plano, trotava. Agora, lá num campal, outras vacas se avistavam. Olhava-as: alteou-se e berrou o berro encheu a região tristonha. O dia era grande, azul e branco, por cima de matos e poeiras. O sol inteiro." E a vaquinha ia pelo caminho, bebia num córrego, pulou uma cerca, o rapaz, teimoso também, já vinha perto. De repente, ele a viu e pôs-se a persegui-la. A vaquinha procurando a sua querência, o rapaz procurando o que agradasse ao pai. E na perseguição, chegou à casa de um Major Quitério. E lá viu a moça por quem se apaixonou. A vaca o levara lá, quem diria, para cumprir seu destino. Observe a linguagem, como é: "O rapaz e a vaca entravam pela porteira-mestra dos currais. O rapaz desapeava. Sob o estúrdio atontamento, começou a subir a escada. Tanto tinha de explicar. Tanto ele era o bem-chegado! A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: "É sua." Essas duas almas se transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se. E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos." XI. O Espelho tema: misticismo e descobertas "- Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo." O narrador se reporta ao leitor, diretamente, como podemos observar. E conta fatos, uma série deles, desafiando o leitor, a quem chama de "senhor" ( lembre-se aqui que esse expediente também é usado em Grande Sertão: Veredas) a seguir seu raciocínio tortuoso. O narrador conta uma experiência que um dia viveu num banheiro de um edifício público: ver-se num determinado ângulo de um espelho, estranhar-se até à náusea, desconhecer-se como criatura viva e independente de si mesmo. É a mesma experiência que vivemos quando, inesperadamente, nos vemos sem que queiramos, desprevenidos, no espelho de um shopping, numa vitrina. Nossa imagem, é a do Outro, um ser alheio a nós, que em nós habita. E narra, ainda, algo mais terrível: aos poucos, vai perdendo sua imagem no espelho, ela vai se enevoando tristemente, até que nada mais lhe reste. Perder a identidade, olhar até que não se possa ver a não ser nossas próprias máscaras, a cara que não temos, o que nunca fomos: "Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Desculpe-me, não viso a afeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu nào tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era o transparente contemplador? ... Tirei-me. Aturdi-me a ponto de me deixar cair numa poltrona." E começa a se exercitar para enxergar-se novamente. Toda existência humana é isso: fazer e refazer-se. Não temos o rosto que nos atribuem, mas não temos, também, o rosto de nossas múltiplas máscaras sociais. E quantas máscaras usamos. No viver, e viver é perigoso, segundo Guimarães Rosa, fingimos demasiadamente, perdemos nossa própria identidade até que, metaforicamente, não possamos mais nos ver nos verdadeiros espelhos. Cadê nosso rosto que se perdeu? Cadê nossa verdadeira face diante do que somos, vivemos e representamos? É preciso muito esforço, depois das perdas, para que voltemos a nos "enxergar". É quando, finalmente, cansados de ser os outros, reconstruímos belamente nosso rosto. Ainda que nos custe muito. O aprendizado de "enxergar-se", identificar-se, valorizar-se é esse. Pouco a pouco e passo-a-passo, recapturamos o que há de perdido em nós nos espelhos da vida. "Sim? Mas , então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne a dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?" XII. Nada e a nossa condição tema: loucura Esta é mais uma estória que tem como tema a loucura. Um certo Tio Man'Antônio, rico fazendeiro dono da Torto-Alto, bondoso ao extremo, depois que morre-lhe a esposa Tia Liduína, também bondosa e sensata pessoa, transforma-se. "Sua mulher, Tia Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta. Tio Man'Antônio, com nenhum titubeio, mandou abrir, par em par, portas e janelas, a longa, longa casa. Entre que as filhas, orfanadas, se abraçavam, e revestia-se a amada morta, incôngruo visitou ele, além ali, um pós um, quarto e quarto, cômodo e cômodo." Derruba a mata da fazenda e só deixa delas as árvores de que Tia Liduína mais gostava. "Ah! ora, que e quem, pois e era uma enorme, feita fantasia. Porque, aquém e além, como árvores deixadas para darem sombra aos bois no ruminar do calor, só e muito se divisavam, consagradas, a vistosa sapucaia formidável, a sambaíba sertaneja à borda da sorocaba, e, para fevereiro-março e junho-julho, sem folhas, sendo-se só de flores, a barriguda rósea e a paineira purpúrea-quase-rubra, magnificentes, respectivas. Outras, outras. Mas , não mais, no qual lugar, que aqueleas que Tia Liduína em vida preferiria amar seus bens de alegria!" E as filhas se espantaram quando, no ano seguinte ao da morte da mulher, o pai se dispusesse a dar uma festa para comemorar tal estranho aniversário. E vieram os primos, e as moças se apaixonaram, se casaram e foram embora, morar na idade. Tio Man'Antônio ficou sozinho, mas não triste. Se se aborrecia, se levantava e ia para algum rude trabalho ou, então, punha-se nas asas da imaginação, ficava imaginando coisas. Rico, não estimava os bens. Aos poucos, entre os pobres, pretos, brancos, pardos e mulatos distribuiu suas terras, tudo feito secretamente. Para as filhas e genros, mandava dinheiro , dizendo fingindo vender as terras. "De seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme casa, naquela eminência arejada, edifício de prospecto decoroso e espaçoso: e de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro, sempre com um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta. Aos outros amasse-os não os compreendesse." Mas o beneficiados se acostumaram rápido, fazendo-se de donos. Não o amavam e, assim sendo, julgavam que ali, mesmo que ilhado naquela casa, era ainda o dono e o senhor. Majestade. Mas morreu, de repente, dormindo, Tio Man'Antônio. Chorou-se, tocou-se o sino, chamaram os parentes. De repente, à noitinha, incendiou-se de repente a Casa, incendiaram-se os pastos e terra em volta, ardeu o defunto até virar cinza. "Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas e, por elas, após ainda encaminhou-se, senhor, para a terra, gleba tumular, só; como a conseqüência de mil atos, continuadamente. Ele que como que no Destinado se convertera Man'Antônio, meu Tio." XIII. O Cavalo que bebia cerveja tema: loucura Esta é a estória de um italiano chamado Giovânio; narrada por seu caseiro Reivalino Belarmino, era morador de uma chácara "meio ocultada, escurecida pelas árvores, que nunca se viu plantar tamanhas e tantas em roda de uma casa." Foi da mãe que Reivalino ouviu as histórias de como o estrangeiro chegara àquelas bandas, no ano da gripe espanhola, acautelado e espantado. Os moradores da redondeza comentavam que ele comia toda a espécie de imundície: caramujo, até rã, com braçadas de alface. Jantava com a vasilha entre as pernas grossas. Muita salada e a carne, que à parte ele cozinhava. "Demais gastasse era com cerveja, que não bebia à vista da gente. Eu passava por lá, ele me pedia: - "Irivalíni, bisonha outra garrafa, é para o cavalo..."Não gosto de perguntar, não achava graça. Às vezes eu não trazia, às vezes trazia, e ele me indenizava o dinheiro, me gratificando. Tudo nele me dava raiva. Não aprendia a referir meu nome direito. Desfeito ou ofensa, não sou o de perdoar a nenhum de nenhuma. Minha mãe e eu sendo das poucas pessoas que atravessávamos por diante da porteira, para pegar a pinguela do riacho. '"Dei'stá, coitado, penou na guerra..."- minha mãe explicando. Ele se rodeava de diversos cachorros, graúdos, para vigiarem a chácara. De um, mesmo não gostasse, a gente via, o bicho em sustos, atipático o menos bem tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de ao pé dele, que estava, a toda hora, de desprezo, chamando o endiabrado do cão: por nome "Mussulino". Eu remoía o rancor." O narrador nos informa que não entendia porque um homem daqueles, cheio de catarros, rouco e gordo, pudesse ter tido dinheiro para comprar terra cristã. Quase que caminhar o homem não podia e fumava uns charutos pequenos e catinguentos, muito mascados e babados. E cavalos tinha uns três ou quatro, bem alimentados. Gostava, no entanto, da mãe do narrador, a quem tratava com benevolências, e quando ela adoeceu, o estrangeiro ofertou ao narrador dinheiro. Nada adiantou, a mãe morreu. E o homem convidou Belarmino para trabalhar na chácara. E toda vez que o rapaz passava por lá, o homem pedia que ele comprasse cerveja para o cavalo. Belarmino imaginava pelo lado de dentro o que haveria naquela casa grande, sempre trancada, nem para comer, nem para cozinhar. Foi quando chegaram uns homens e o delegado os apresentou como autoridades. Eles fizeram perguntas, perguntaram se o patrão não tinha sinal na perna de "argolão",marca dos presos. Eram homens do consulado. Uns dias antes, o estrangeiro andou com o empregado pela casa que fedia, de tal fechada, mostrando coisas, satisfazendo-lhe a curiosidade. O subdelegado Prescílio apareceu por lá e perguntou ao Giovânio que coisa era aquela de cavalo beber cerveja. e, no dia seguinte, apareceu lá com um soldado, querendo revistar a casa. Ele abriu e, para o pasmo do subdelegado, num dos quartos estava um cavalo grande, ancudo, feito esses cavalos de brinquedo das crianças, com crinas e tudo, bem no centro do quarto. Belarmino viu, certa vez, o patrão chorar enquanto comia, enquanto o ranho descia do nariz dele. Daí foi tomado de pena e foi ao subdelegado e disse que se mais alguém o incomodasse, ele saía na briga com eles. U m dia, o patrão o chamou, apresentando-lhe, de costas no chão da sala, o irmão que ele abrigava ali, sem ter dito nunca pra ninguém: "Josepe, meu irmão..." O delegado chegou para examinar: "Mas, aí, se viu só o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer só um buracão, enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces a gente devassava alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, golas. "Que esta é a guerra..."- seu Giovânio explicou boca de bobo, que se esqueceu de fechar, toda doçuras." O narrador diz que foi embora, não deu abraço no homem não por nojo, mas por vergonha. Depois que morreu, deixou a chácara para o empregado: "Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo irmão, por minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrar no campo o trem, que se achava, naquele referido quarto. Lá nunca voltei." Nunca mais voltou ali, mas ainda bebe cervejas que a casa, vendida, lhe paga. XIV. Um moço muito branco tema: misticismo/ o metafísico "Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca de Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas do rio e córregos a sessenta palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se que o terreno, em raio de légua, mudara de feições: só escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos montes e rochedos." Morreram as criações, outras vagavam por aí. E na Fazenda do Casco, que pertencia ao Hilário Cordeiro, apareceu um moço coberto de trapos, em "lástima de condições": "Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu." Hilário Cordeiro o hospedou, perdida a memória do moço, perdida a fala. Ficou com dó dele. Não lhe puseram nome, posto já ter um, mas esquecido. Parecia um bom homem, mas sem lembranças nenhumas. Levaram o rapaz na missa e um tal de Duarte Dias, pai de uma linda moça chamada Viviana, não gostou dele. Não gostava de ninguém. Havia na cidade um negro recém-alforriado chamado José Kakende, músico sem juízo, quando viu o rapaz , disse: "O rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplendor, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os Arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores." O moço muito branco, ao ver um cego na saída da igreja, deu a ele uma coisa que trazia no bolso, a semente de uma árvore, que plantada nos fins dos acontecimentos aqui narrados, deu árvore linda, de uma única e grande flor, sem que nunca desse semente ou muda. Apareceu, então Duarte Dias, e pretextando poder o moço muito branco ser um de seus parentes desaparecidos no cataclismo, quis levá-lo. Hilário Cordeiro não quis, dizendo que o moço lhe trouxera muita sorte. Mas eis que Viviana apareceu e o moço, num gesto de quase-amor, lhe pôs a mão espalmada no seio, delicadamente. Duarte Dias, irado, bradou: "Tem que casar! Agora tem de casar!" Viviana, que era moça triste, teve nela despertada ( e para sempre) a Alegria. Na missa de Nossa Senhora das neves, lá estavam o moço e Duarte Dias que suplicava precisar levá-lo embora. Motivo: tinha-lhe grande afeição. E o moço, pegando-lhe a mão, levando o cego Kekende consigo, foi até as terras dele e indicou para que cavassem ali, perto de uma tapera, numa olaria: acharam lá muitos diamantes. Duarte Dias se transformou em homem bom e generoso. Um dia, José Kakende contou que ajudara o a acender nove fogueiras e que, num certo instante, o moço criara asas e se fora, mal nascido o sol. Duarte Dias morreu, Viviana conservou a alegria para sempre. O moço muito branco? Ele cintilava, ausente. XV. Luas-de-mel Tema: amor Um fazendeiro, cujo nome era Joaquim Norberto, dá guarida a um casal que estava fugindo junto porque o pai dela não aceitara namoro nem noivado. O pai da moça era homem reconhecidamente duro, mas Seotaziano recomendara que Joaquim os abrigasse e ele o fez. A qualquer instante o pai e os capangas poderiam intervir e , nesse clima, realiza-se o casamento. Durante o casamento, Joaquim Norberto é tomado de saudades do seu próprio casamento com Sa-Maria Andreza e dispõe-se a recordar, com ela, a lua-de-mel. O título refere-se ao fato de que duas luas-de-mel ali se passam nesta noite: a dos fugitivos e a de Joaquim Norberto e a esposa. No meio da noite , avisam o pai do "fato consumado", e o major aceita de bom gosto, convidando a todos para uma festa. XVI. Partida do audaz navegante Tema: infância "Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, pele e Brejeirinha- elas brotavam nu galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo."
Brejeirinha é a protagonista e , durante a chuvinha, inventara uma história sobre um audaz navegante. Pele rezara a Santo Antônio. Assim que cessa a chuva, pedem à Mãe para ir espiar o riachinho que se enchera. Brejeirinha vê um cogumelo e dá-lhe o nome de audaz navegante, enfeitam o cogumelo de cuspe, folhinhas de bambu, ramos, gravetos e florezinhas amarelas. Colocam lá também um cliclete. O Zito põe uma moeda. É dessa forma que o audaz navegante já pode partir. Brejeirinha inventa uma moça e diz que ambos se amam, que assim, rio abaixo, ele não vai sozinho, então o Audaz Navegante, nome dado ao cogumelo, já não vai partir sozinho. XVII. A Benfazeja tema: loucura Num lugar, perdido no meio do mundo, vivia uma mulher velha e muito feia, chamada Mula-Marmela; magra, feia demasiadamente, era guia de um cego chamado Retrupé. O cego pedia esmolas rudemente. Diziam que Mula-Marmela tinha cometido um crime hediondo: matara o pai do cego Retrupé, que era um monstro de perversidade. O Mumbungo, marido que Mula-Marmela assassinara. O cego, de maus modos, pedia esmolas: "O Retrupé, com seu encaninzar-se, blasfemífero, e prepotente esmolar, ninguém demorava para dar dinheiro, comida, o que ele quisesse, o pão-por-deus. "- Ele é um tranca! o cínico e canalha, vilão. Mas só, às vezes, alguém de longe, desabafava. O homem maligno, com cara de matador de gentes. Sobre os trapos, trazia um facão, pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com uma voz de cão, superlativa. Se alguém falasse, ou risse, ele parava, esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não sabia nem podia. Tinha medo, também; disso vocês nunca desconfiaram. temia-a à mulher que o guiava." O Mumbungo era homem mau , "monstro de perversias". Dizem que "esfaqueava rasgado". Gostava da mulher, queria-a e temia-a, da mesma forma que o filho hoje o faz, temendo. O narrador observa que, depois da morte do Mumbungo, podem viver em paz. Por causa da benfazeja, a Mula-Marmela, que praticara o bem tirando aquele demônio do marido do mundo. Antes de Retrupé ficar cego, ia pelo caminho do pai, precisando de sofrimento e sangue para estar no mundo. Foi aí que, dizem, cegou aquele filho do diabo. Um dia, Retrupé tentou matar sua guia, acordado no meio de uma febre, estonteado. Mas dizem também que Mula-Marmela, apesar do sofrimento, amparando-o e gritando "meu filho!", apressou-lhe a morte. E partiu Mula-Marmela da cidade, sozinha, a fim de espiar suas culpas ou, quem sabe, desfrutar a vida como A benfazeja.
tema: loucura O narrador é um médico-residente num hospício ( o Instituto). Como se dá a história, que é tragicômica e é narrada por um mordaz médico que em tudo põe os olhos e nada deixa escapar? Assim: um homem muito bem posto, acusado de roubar uma caneta e, perseguido por outros, sobe com rapidez numa palmeira-real. Os funcionários do hospício ficam observando aquilo e decidem que ele é meio louco. Um médico plantonista, que não é o narrador, diz que o homem é secretário das Finanças Públicas, o que é contado à multidão que, achando coerente o que ele faz, devido ao seu trabalho, aceita o fato como normal. O verdadeiro secretário recebe pedido de desculpas. E uma outra multidão, agora, formada pela polícia, corpo de bombeiros, capelão, enfermeiros, padioleiros, chega. Um professor, Dartanhã, aproveita a darandina ( confusão) e contesta a autoridade do diretor do hospital. Enquanto tudo acontecia lá embaixo, o homem , lá em cima, dizia: "- O feio está ficando coisa..." (...) Querem comer-me ainda verde?!" Tira os sapatos, a roupa, os bombeiros tentam resgatá-lo, os cinegrafistas o filmam, jornalistas e fotógrafos também estão lá. E o doido, lá em cima, resolveu, então, balançar-se na palmeira, recebendo, agora, os aplausos do público. Mas, num momento, o doido recuperou o equilíbrio mental. Só que nem o público, nem os diretores, nem os médicos aceitavam isso, assim, de repente. Pretendiam linchá-lo. Foi ai que o louco deu gritos contra a ordem estabelecida e gritando "Viva a luta! Viva a liberdade!"despencou de lá de cima nu como viera ao mundo. , mas foi amparado pela multidão. De igual, depois daquilo, só mesmo a palmeira. XIX. Substância tema: amor Esta é mais uma estória de amor destas Primeiras Estórias . Quem fazia o polvilho mais branco da fazenda de Sionésio era Maria Exita: "Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o patrão nem os outros a aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque, contra a menos infeliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por atos de morte; o outro, igual, feroz, foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai razoável bom-homem, delatado com a lepra, e prosseguido, certo para sempre, para um lazareto. Restassem-lhe nem afastados parentes(...)" E lá ficava Maria Exita, trabalhando o melhor polvilho, o mais branco, o mais alvo entre todos os polvilhos que já puderam, um dia, fazer. Sionésio recebera a fazenda de herança e, devido à escassez da produção de qualquer outra coisa, plantava mandioca e em tudo punha seu olho de dono., não deixava de trabalhar nem aos domingos e feriados. Um dia, numa festa, encontrou Maria Exita, em quem jamais reconheceria aquela menina feia e magra que em suas terras chegara, largada. Apaixonou-se por ela. E num dia lindo, aberto e claro, foi até as pedras onde ela trabalhava e propôs casamento. Recebeu em resposta um largo sorriso: "Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Voc6e, comigo, vem e vai?" E ela: "Vou, demais." O narrador deste conto é Vaga-Lume, ajudante-de-ordens de Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes, a personagem protagonista de nosso conto. Iô João era um bom homem, D. Quixote sertanejo que, já velhinho, meio aluado, precisava dos cuidados de alguém. Cismava com tudo. Acordou, certa feita, e disse que ia matar o Magrinho, que era seu sobrinho-neto, médico que lhe dera injeções necessárias e aplicara-lhe uma lavagem intestinal. Para tanto, escolheu um cavalo e pediu ao Vaga-Lume que arreiasse outro, a fim de acompanhá-lo. E, esbravejando que fizera um pacto com o Demônio, lá se foi para a cidade, fincando a espora no animal. Vagalume, desesperado, ia atrás do velho, com medo que despencasse do baio imponente. Na pressa de matar o sobrinho médico, o velho calçara um pé de botina amarela e outro de bota preta. E em vez de um facão, trazia uma faca de cozinha sem-graça. Louco, tomado, segundo ele mesmo pelo Demo, consegue arregimentar 14 coitados pobres que acreditam nas suas doideiras. Vão para a cidade em busca de Magrinho. Havia uma festa lá. os parentes acharam graça, loucura, quando o velho invadiu a festa e sentenciou: "- Eu pido a palavra..." Fez um discurso esquisito, que a todos comoveu. Ao terminar. Todos os abraçaram e ele comeu fartamente, bebeu, dançou. Não houve Demo, não houve morte. E depois foi embora. Para morrer. XXI. Os Cimos tema: infância Esta estória termina os 21 contos de que se forma este livro; e parece completar o que se anuncia no primeiro desta série de contos, sobre o Menino. Está dividida em 4 partes: O inverso afastamento, Aparecimento do pássaro, O trabalho do pássaro e O desmedido momento. O Menino está sofrendo porque a Mãe está doente, longe dele, numa cidade muito distante. esta dor é pura depuração, parte do rito da iniciação do crescimento e do conhecimento do mundo. O tucano parece ser o símbolo do desconhecido, mas também do encantador demais. Quando o tio, recebendo notícias, anuncia que a Mãe do menino está bem, não corre mais perigo, a imagem do pássaro, da luz do dia, da natureza se fundem numa só, em plenitude. E o Menino, feliz, sabe que não estará sozinho outra vez. "E vinha a vida."
Profa. Esther PS Rosado |