Edição nº9 - 20/08/99

Alguma Poesia

Profa. Esther Rosado

 

"Quando eu nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."

 

I.

O Poeta

"Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais,

me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos".

 

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. Era o nono filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de dona Julieta Augusta Drummond de Andrade. Itabira vai persegui-lo nos temas da infância e família e deu nome a um de seus mais conhecidos poemas, que fazem parte do livro Sentimento do Mundo, 1940:

Confidência de Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

 

Fez os primeiros estudos no Grupo Escolar Dr. Carvalho Brito e, posteriormente, transferiu-se para o Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, onde passa a estudar como interno, em 1916. Tinha, então, 14 anos incompletos, mas volta para casa em decorrência de problemas de saúde no final do ano letivo. Em 1917, passa o ano inteiro tendo aulas particulares e , no ano seguinte, vai para Friburgo, estudar com padres da Companhia de Jesus, no Colégio Anchieta.

Lá, colabora com um jornalzinho escolar chamado Aurora Colegial e alcança, nos concursos internos, os postos de coronel e general.

Mas indispõe-se com um professor de Português que o desacata, e acaba sendo desacatado por ele.

É bom lembrar: tal professor acha o que Drummond escreve muito ruim, e acusa o poeta de não saber tirar sentimentos nobres das palavras ( ah, como os professores de Português vivem se enganando a respeito dos bons poetas...). Acaba expulso do colégio após desentendimentos com o mesmo professor e passa a morar em Belo Horizonte, local para onde se transferira toda a sua família.

Em 1921, ainda que timidamente, começa a publicar seus primeiros trabalhos na coluna social do Diário de Minas. Entre 21 e 23 ganha alguns prêmios, publica alguns trabalhos nas revistas Para Todos e Ilustração Brasileira e passa nos exames vestibulares da Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte. É a época em que conhece Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars, de passagem por BH. Troca correspondência com Mário de Andrade, e se tornam, através dela, bons amigos.

Em 1925 casa-se com Dolores Morais; nesse mesmo ano, funda A Revista, em companhia de Emílio Moura e Gregoriano Canedo, órgão do movimento modernista mineiro: a revista tem apenas três números.

Em 1925 também conclui o curso de Farmácia e é o orador da turma. Volta para Itabira e passa a ser professor de Português e Geografia, não demonstrando qualquer interesse pela profissão de farmacêutico. Em 1926 volta para BH e passa a trabalhar no Diário de Minas, a princípio como redator e depois como redator-chefe.

Em 1928, publica seu poema No meio do Caminho na Revista de Antropofagia, e torna-se o pivô do escândalo nacional que este poema foi; no ano seguinte passa a trabalhar no Minas Gerais, órgão oficial daquele Estado.

Em 1930, publica, finalmente, seu primeiro livro de poemas: Alguma Poesia.

O poeta tímido, melancólico e triste, como ele próprio se definiria, estava, finalmente, iniciando sua longa trajetória na literatura brasileira. E viria para ficar, como ficou até hoje, drummondiando a poesia.

Bibliografia:

Poesia:

Alguma Poesia ( 1930)
Brejo das Almas ( 1934)
Sentimento do Mundo ( 1940)
Poesias ( 1942)
A Rosa do povo ( 1945)
Poesia Até Agora ( 1948)
Claro Enigma (1951)
Viola de Bolso (1952)
Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora ( 1954)
Poemas ( 1959)
Antologia Poética ( 1962)
Lição de Coisas ( 1962)
Versiprosa ( 1967)
Boitempo ( 1968)
Reunião ( 1969)
As Impurezas do Branco (1973)
Menino Antigo ( 1973)
Amor, Amores (1975)
Discurso da primavera ( 1977)
Esquecer para Lembrar ( 1979)
A Paixão Medida ( 1980)
Nova Reunião ( 1983)
Corpo ( 1984)
Amar se Aprende Amando ( 1985)
Tempo Vida Poesia (1986)
Farwell ( 1990)

Prosa:

Confissões de Minas(1944)
Contos de Aprendiz (1951)
Fala Amendoeira(1957)
A Bolsa & A Vida (1962)
Cadeira de Balanço (1966)
Caminhos de João Brandão ( 1970)
O Poder Ultra-Jovem, De Notícias e não-notícias faz-se a crônica (1974)
Os Dias Lindos (1978)
70 Historinhas (1981)
Contos Plausíveis (1981)
Boca de Luar (1984)
O Observador no Escritório (1985)

II. A crítica, as características

"Sim: se eu tivesse o gosto das classificações diria que o Sr. Carlos Drummond de Andrade é o poeta que mais unanimemente representa a poesia moderna no Brasil, através da linha fiel dos seus desdobramentos. Na forma, na substância poética, nos temas, na posição histórica — tornou-se o poeta mais representativo do Modernismo."

( Álvaro Lins, Os mortos de sobrecasaca, Ed. Civilização Brasileira, p.7, 1963)

Quando o segundo número da Revista de Antropofagia saiu à luz, carregava em seu bojo um poema que causaria um verdadeiro escândalo na época: No meio do caminho:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Uns poucos o aplaudiram como revolucionário, outros, os puristas acostumados ao rigor gramatical de Olavo Bilac, Coelho Neto e Rui Barbosa, o tomaram por um analfabeto gozador e ressaltaram, em suas críticas, os "defeitos"do poema:

  • usava o verbo ter por haver;
  • a regência do verbo esquecer estava errada;
  • havia muitas repetições no texto, empobrecedoras demais.

Além disso, uns críticos conservadores observaram que o poema era um desrespeito a duas obras de autores consagrados:

  • "No meio do caminho" verso que inicia a Divina Comédia, de Dante Alighieri, poeta italiano do século XIV: "Nel mezzo del camin di nostra vita";
  • "Nel mezzo del camim" é nome de um dos poemas mais conhecidos de Olavo Bilac, poeta recém-falecido àquela época e ainda tido como modelo literário parnasiano.

E Drummond amargou anos. Colecionou ataques muitos e elogios poucos. Entre os elogios, os de Mário de Andrade e do crítico Álvaro Lins que, já na década de 60, daria o título de Os mortos de sobrecasaca ( nome de um poema drummondiano) a um dos mais importantes livros de sua carreira.

E é nesse mesmo livro, num capítulo sobre o poeta mineiro, que Álvaro Lins reconhece que acertou ao apoiar Drummond numa época de azedas críticas contra Alguma Poesia. É o que passamos a transcrever:

Humour e Poesia

" Refere-nos Chesterton que um dia perguntaram a Santo Agostinho o que de maior agradecia a Deus; e ele respondeu: "ter entendido todas e cada uma das páginas que li". Que ninguém se inquiete com a citação: eu não vou aplicar ao meu caso as palavras de um santo que foi também um sábio. Nem vou me dirigir aos deuses para agradecer a capacidade de entendimento que só me foi concedida com extrema economia. Penso, porém, que se me perguntassem o que mais estimo no meu ofício de crítico, logo diria: ter entendido e sentido a poesia moderna. Uma espécie de orgulho de me haver salvado de uma incompreensão que será a vergonha da nossa época literária.

E, sobretudo, gosto de recordar que compreendi um poeta moderno, tão difícil e complexo como o Sr. Carlos Drummond de Andrade, numa ocasião pouco ou nada propícia a essa iniciação na poesia moderna. Sucedeu que, ainda incerto de gosto literário, ainda vacilante quanto a uma possível vocação literária, veio ao meu encontro a aventura de um cargo dentro de um governo estadual. Durante três anos quase que foram de nenhuma espécie as minhas leituras ou contatos de ordem literária. Um deles foi com a poesia do Sr. Carlos Drummond de Andrade, de quem somente conhecia um nome muito discutido; um nome exaltado com entusiasmo ou negado com violência. Quase nada sabia, então, da verdadeira poesia moderna; e alguns dos seus imitadores ou diletantes só faziam crescer, em mim, uma atitude de prevenção e indiferença.

Lembro-me de uma tarde, no ano de 1935, em que Odorico Tavares me levou os dois primeiros livros do Sr. Carlos Drummond de Andrade: Alguma Poesia e Brejo das Almas. E lembro-me também que a minha impressão foi a de quem recebe uma surpresa decisiva. Creio que surgiu da leitura desses dois livros a minha posterior compreensão da poesia moderna. Em dois ou três artigos, que se acham hoje sepultados em jornais do interior, deixei o testemunho dessa impressão literária que há mais de seis anos me transmitiram os versos do Sr. Carlos Drummond de Andrade. E dos seus poemas antigos, os versos que mais compreendi, foram exatamente aqueles que vêm provocando uma espécie de pânico em algumas criaturas, que talvez conquistem o reino dos céus, não sei: os da estrofe Mundo mundo vasto mundo e os de No meio do caminho — Os muito famosos poemas de Raimundo e da Pedra no meio do caminho.

Embora Carlos Drummond tenha, ainda, uma influência muito grande da primeira geração poética do Modernismo, sobretudo a da forma do poema-piada, sua ironia e seu humor são absolutamente particulares, peculiares ao estilo do poeta gauche . A abordagem aos temas do cotidiano, da saudade, da família, a terra natal, da própria poesia, da infância, da descoberta do amor são nascidos de um estilo próprio, pessoal, de uma vivência especialíssima, da observação e de um certo jeito mineiro de falar, ora contido, ora irônico, ora sentimental, ora brincalhão, quase. Veja o exemplo:

Cabaré mineiro

A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...

É inegável que o poeta Drummond capta o cotidiano em tom prosaico e anti-retórico, o que faz a crítica considerá-lo modernista por inteiro. O "eu poético"busca através do humor e da ironia estabelecer um significado para a existência do homem no mundo. Crítico do universo em que se insere , o poeta vê o mundo às vezes liricamente, ou com imensa angústia de impotente que em nada pode modificá-lo.

Podemos observar em Drummond três fases muito nítidas:

  1. eu maior que o mundo:

Poesia de cunho irônico, o aparecimento dos poemas-piada, o humor cáustico.

Este enfoque aparece nitidamente no livro que agora analisamos, e em Brejo das Almas ( 1934). Neles, o poeta trata do jeito do "eu"ver o mundo. O eu-poético é agente e paciente , diversionista, cáustico ou, até mesmo, sentimental e reflexivo:

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh, não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

( Brejo das Almas)

B) Eu menor que o mundo:

Os temas políticos, o sofrimento do ser humano e as guerras, a solidão, o mundo frágil, os seres solitários predominam. A dor humana está lá; o eu-lírico se resguarda e canta o outro, tão mais importante que ele próprio. Esta vertente desabrocha com os livros Sentimento do Mundo ( 1940), José e A Rosa do Povo (1945).

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos,
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

( Sentimento do Mundo)

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio _ e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais,
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

( José )

c) Eu igual ao mundo:

É poesia especulativa, de natureza filosófica, nascida mais intensamente a partir de Claro Enigma( 1951) . Focaliza o homem desencantado com a própria existência e, por ser assim, interroga e nega. Observe:

Amar

que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar a malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão vazio,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

 

Confissão

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna,
só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
( Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro _ vinha azul e doido _
que se esfacelou na asa do avião.

 

Oficina irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

Alguma Poesia insere-se na primeira fase. A das descobertas de experimentações. Algumas características, no entanto, seriam suas a vida inteira: as repetições enfáticas, o uso das anáforas, o anti-lirismo, o inusitado , o gauchismo do homem estropiado diante da surpresa de seus sentimentos, da vida e de todos os componentes nela inseridos.

 

III. Alguma Poesia

O livro Alguma Poesia foi publicado em 1930, ainda em Belo Horizonte. Drummond aparece timidamente: a impressão teve 500 minguados exemplares e as tais Edições Pindorama haviam sido criadas por Eduardo Frieiro. Não era uma editora de verdade, existia apenas imaginariamente porque a publicação havia sido facilitada pela Imprensa Oficial do Estado de Minas, sob módicos descontos na folha de pagamento do funcionário Drummond que, à época, era redator do Diário de Minas, órgão oficial daquele Estado.

Mas é o primeiro livro do autor e contém 49 poemas escritos entre a ironia e o humor tão característicos do poeta.

Já nesse seu primeiro livro, Drummond se anuncia grande, desmistificador da palavra falsa, da frase de efeito. Sua poesia se rende ao cotidiano, às expressões consagradas pelo povo, à sua mineiridade saborosa e incomparável:

"Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve."
( Explicação)

***

 
"Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar ... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus."
(Cidadezinha Qualquer)

***
"Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo."
( Poema das Sete Faces)

***
"Depois voltou para casa
livre, sem correntes
muito livre, infinitamente
livre livre livre que nem uma besta
que nem uma coisa."
(Política)

Na época em que apareceram, os poemas drummondianos evocavam brincadeiras cheias de ironia, quase que desrespeitosas, cuja irreverência exasperava os puristas da língua. Tomaram-no como "provocativo", apontando-lhe erros grosseiros "de português".

No entanto, o poeta estava apenas começando uma tradição só sua, misturando temas inquietantes ( o Poema das sete faces, por exemplo) de descoberta pessoal e do mundo; a família ( o poema Infância); a sentimentalidade ( os poemas Sentimental e Balada do amor através das idades) e abordagens insólitas ( Cabaré Mineiro).

Os poemas:

Poema das sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Infância
A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cozendo
olhando pra mim:
-Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro ... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu nào sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Casamento do céu e do inferno
No azul do céu de metileno
a lua irônica
diurética
é uma gravura de sala de jantar.

Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos púberes
espantando mosquitos
de cortinados e grinaldas.

Pela escada em espiral
diz-que tem virgens tresmalhadas,
incorporadas à via-láctea,
vaga-lumeando...

Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto.

Diabo tem uma luneta
que varre léguas de sete léguas
e tem o ouvido fino
que nem violino.

São Pedro dorme
e o relógio do céu ronca mecânico.

Diabo espreita por uma frincha.

Lá embaixo
suspiram bocas machucadas.
Suspiram rezas? Suspiram manso,
de amor.

E os corpos enrolados
ficam mais enrolados ainda
e a carne penetra a carne.

Que a vontade de Deus se cumpra!
Tirante Laura e talvez Beatriz
o resto vai para o inferno.

Também já fui brasileiro
Eu também já fui brasileiro
moreno, como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

Construção

Um grito pula no ar como um foguete.
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
O sorveteiro corta a rua.

E o vento brinca nos bigodes do construtor.

Toada do amor
E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta pra brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.

Europa, França e Bahia

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam
/um tapete para sua Graciosa Majestade
/Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.
Submarinos inúteis retalham mares vencidos.
O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo* do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça
/dos outros dentro de alguns anos.

A Itália explora conscientemente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suíça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

Meus olhos brasileiros se enojam da Europa.

Não há mais Turquia.
O impossível dos serranos esfacela erotismos prestes a declanchar.
Mas a Rússia tem as cores da vida.
Mas a Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista
/e no túmulo de Lenin em Moscou parece
/que um coração enorme está batendo, batendo
mas não ate igual ao da gente...
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a "Canção do Exílio".
Como era mesmo a "Canção do Exílio"?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

Lanterna mágica
  1. Belo Horizonte

  2. Meus olhos têm melancolias,
    minha boca tem rugas.
    Velha cidade!
    As árvores tão repetidas.

    Debaixo de cada árvore faço minha cama,
    em cada ramo dependuro meu paletó.
    Lirismo.
    Pelos jardins de versailles
    ingenuidade e velocípedes.

    E o velho fraque
    na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas.

  3. Sabará

  4. A Aníbal M. Machado

    A dois passos da cidade importante
    a cidadezinha está calada, entrevada.
    ( Atrás daquele morro, com vergonha do trem.)

    Só as igrejas
    só as torres pontudas das igrejas
    não brincam de esconder.

    O Rio das Velhas lambe as casas velhas,
    casas encardidas onde há velhas nas jinelas.
    Ruas em pé
    pé-de-moleque
    PENÇÃO DE JUAQUINA AGULHA
    Quem não subir direito toma vaia...
    Bem feito!

    Eu fico cá embaixo
    maginando na ponte moderna — moderna por quê?
    A água que corre
    já viu o Borba.
    Não a que corre,
    mas a que não pára nunca
    de correr.

    Ai tempo!
    Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito mortas.
    Os séculos cheiram a mofo
    e a história é cheia de teias de aranha.
    Na água suja, barrenta, a canoa deixa um sulco logo apagado.
    Quede os bandeirantes?
    O Borba sumiu.
    Dona Maria Pimenta morreu.

    Mas tudo tudo é inexoravelmente colonial:
    bancos janelas fechaduras lampiões.
    O casario alastra-se na cacunda dos morros,
    rebanho dócil pastoreado por igrejas:
    a do Carmo — que é toda de pedra,
    a Matriz — que é toda de ouro,
    Sabará veste com orgulho seus andrajos...
    Faz muito bem, cidade teimosa!

    Nem Siderúrgica nem Central nem roda manhosa de forde
    sacode a modorra de Sabará-buçu.

    Pernas morenas de lavadeiras,
    tão musculosas que parece foi o Aleijadinho que as esculpiu,
    palpitam na água cansada.

    O presente vem de mansinho
    de repente dá um salto:
    cartaz de cinema com fita americana.

    E o trem bufando na ponte preta
    é um bicho comendo as casas velhas.

  5. Caetê


  6. A igreja de costas para o trem.
    Nuvens que são cabeças de santo.
    Casas torcidas
    E a longa voz que sobe
    que sobe do morro
    que sobe...

  7. Itabira


  8. Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
    Na cidade toda de ferro
    as ferraduras batem como sinos.
    Os meninos seguem para a escola.
    Os homens olham para o chão.
    Os ingleses compram a mina.

    Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.

  9. S. João Del-Rei


  10. Quem foi que apitou?
    Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho.
    Almas antigas que nem casas.
    Melancolia das legendas.

    As ruas cheias de mulas-sem-cabeça
    correndo para o Rio das Mortes
    e a cidade paralítica
    no sol
    espiando a sombra dos emboabas
    no encantamento das alfaias.

    Sinos começam a dobrar.

    E todo me envolve
    uma sensação fina e grossa.

  11. Nova Friburgo


  12. Esqueci um ramo de flores no sobretudo.

  13. Rio de Janeiro


  14. Fios nervos riscos faíscas.
    As cores nascem e morrem
    com impudor violento.
    Onde meu vermelho? Virou cinza.
    Passou a boa! Peço a palavra!
    Meus amigos todos estão satisfeitos
    com a vida dos outros.
    Fútil nas sorveterias.
    Pedante nas livrarias...
    Nas praias nu nu nu nu nu.
    Tu tu tu tu tu no meu coração.
    Mas tantos assassinatos, meu Deus.
    E tantos adultérios também.
    E tantos, tantíssimos contos-do-vigário...
    ( Este povo quer me passar a perna.)

    Meu coração vai molemente dentro do táxi.

  15. Bahia


É preciso fazer um poema sobre a Bahia...
Mas eu nunca fui lá.

A rua diferente
Na minha rua estão cortando árvores
botando trilhos
construindo casas.

Minha rua acordou mudada.
Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.

Só minha filha goza o espetáculo
e se diverte com os andaimes,
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas formas.

Lagoa
Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.

Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
e calma também.

Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.

Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa.

Cantiga de viúvo

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo , me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
acabou.

O que fizeram do Natal

Natal.
O sino longe toca fino.
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.

As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.

POLÍTICA LITERÁRIA

A Mauoel Bandeira
O poeta municipal
discute como poeta estadual
qual dêles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
Tira ouro do nariz.

 
SENTIMENTAL
 
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçadas na mesa todos completam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

 
NO MEIO DO CAMINHO
 
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

 
IGREJA
A Manoel Bandeira
Tijolo
areia
andaime
água
tijolo.
O canto dos homens trabalhando trabalhando
mais perto do céu
cada vez mais perto
mais
- a torre.
E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.
O padre que fala do inferno
sem nunca ter ido lá.
Pernas de sêda ajoelham mostrando geolhos.
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já [esquecida.
A manhã pintou-se de azul.
No adro ficou o ateu,
No alto fica Deus.
Domingo...
Bem bão! Bem Bão!
Os serafins, no meio, entoam quirieleisão.


 
POEMA QUE ACONTECEU

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nessa vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem comêço.

A mão que escreve êste poema
não sabe que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

 
ESPERTEZA

Tenho vontade
- ponhamos amar
por esporte uma loura
o espaço de um dia.

Certo me tornaria
brinquedo nas suas mãos.

Apanharia, sorriria
mas acabado o jogo
não seria mais joguete,
seria eu mesmo.

 
POLÍTICA
A Mário Casasanta
Vivia jogado em casa,
Os amigos o abandonaram
quando rompeu com chefe político.
O jornal governista ridicularizava seus versos,
Os versos que ele sabia bons.

Sentia-se diminuído na sua glória
enquanto crescia a dos rivais
que apoiavam a Câmara em exercício.

Entrou a tomar porres
violentos, diários.
E a desleixar os versos.
Se já não tinha discípulos.
Se só os outros poetas eram imitados.

Uma ocasião em que não tinha dinheiro
para tomar o seu conhaque
saiu à toa pelas ruas escuras.
Parou na ponte sobre o rio moroso,
o rio que lá embaixo pouco se importava com ele
para misteriosos carnavais.

E teve vontade de se atirar
(só vontade).

Depois voltou para casa
livre, sem correntes
muito livre, infinitamente
livre livre livre que nem uma besta
que nem uma coisa.

POEMA DO JORNAL

O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
a transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensangüentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.

Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

 

SWEET HOME

Quebra-luz, aconchego.
Teu braço morno me envolvendo.
A fumaça de meu caminho subindo.

Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês.

O jornal conta histórias, mentiras...
Ora afinal a vida é um bruto romance
e nós vivemos folhetins sem o saber.

Mas surge o imenso chá com torradas,
chá de minha burguesia contente.
O gozo de minha poltrona!
O doçura de folhetim!
Ó bocejo de felicidade!

 
NOTA SOCIAL

O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.

Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.

O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico.

 
CORAÇÃO NUMEROSO

Foi no Rio.
Eu passeava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

 
POESIA

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

 
FESTA NO BREJO

A saparia desesperada
coaxa coaxa coaxa.
O brejo vibra que nem caixa
de guerra. Os sapos estão danados.
A lua gorda apareceu
e clareou o brejo todo.
Até à lua sobe o coro
da saparia desesperada.

A saparia toda de Minas
coaxa no brejo humilde.

Hoje tem festa no brejo!

 
JARDIM DA PRAÇA DA LIBERDADE
A Gustavo Capatiema

Verdes bulindo.
Sonata cariciosa da água
fugindo entre rosas geométricas.
Ventos elísios.
Macio.
Jardim tão pouco brasileiro ... mas tão lindo.

Paisagem sem fundo.
A terra não sofreu para dar estas flores.
Sem ressonância.
O minuto que passa
desabrochando em floração inconsciente.
Bonito demais. Sem humanidade.
Literário demais.

(Pobres jardins do meu sertão,
atrás da Serra do Curral!
Nem repuxos frios nem tanques langues,
nem bombas nem jardineiros oficiais.
Só o mato crescendo indiferente entre sempre-vivas desbotadas
e o olhar desditoso da moça desfolhando malmequeres.)

Jardim da Praça da Liberdade,
Versailles entre bondes.
Na moldura das Secretarias compenetradas
a graça inteligente da relva
compõe o sonho dos verdes.

PROIBIDO PISAR NO GRAMADO
Talvez fosse melhor dizer:

PROIBIDO COMER O GRAMADO
A prefeitura vigilante
vela a soneca das ervinhas.
E o capote preto do guarda é uma bandeira na noite estrelada [de funcionários.
De repente uma banda preta
vermelha retinta suando
bate um dobrado batuta
na doçura
do jardim.
Repuxos espavoridos fugindo.
CIDADEZINHA QUALQUER
Casas entre banananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.


 
FUGA
As atitudes inefáveis,
os inexprimíveis delíquios,
êxtases, espasmos, beatitudes
não são possíveis no Brasil.
O poeta vai enchendo a mala,
põe camisas, punhos, loções,
um exemplar da Imitação
e parte para outros rumos.
A vaia amarela dos papagaios
rompe o silêncio da despedida.
- Se eu tivesse cinco mil pernas
(diz êle) fugia com todas elas.
Povo feio, moreno, bruto,
não respeita meu fraque preto.
Na Europa reina a geometria
e todo mundo anda - como eu - de luto.
Estou de luto por Anatole
France, o de Thaïs, jóia soberba.
Não há cocaína, não há morfina
igual a essa divina
papa-fina.
Vou perder-me nas mil orgias
do pensamento greco-latino.
Museus! estátuas! catedrais!
O Brasil só tem canibais.

Dito isto fechou-se em copas.
Joga-lhe um mico uma banana,
por um tico não vai ao fundo.

Enquanto os bárbaros sem barbas
sob o Cruzeiro do Sul
se entregam perdidamente
sem anatólios nem capitólios
aos deboches americanos.

 
SINAL DE APITO

Um silvo breve: Atenção, siga.
Dois silvos breves: Pare.
Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.
Um silvo longo: Diminua a marcha.
Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.

(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos seus veículos para movimentá-los imediatamente.)

 
PAPAI NOEL ÀS AVESSAS
A Afonso Arinos (sobrinho)
PAPAI NOEL entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
o a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam [por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

 
QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

 
FAMÍLIA

Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.

 
O SOBREVIVENTE
A Cyro dos Anjos

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da [humanidade.

Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessida-[des mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.

Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

 
MÔÇA E SOLDADO

Meus olhos espiam
a rua que passa.

Passam mulheres,
passam soldados.
Moça bonita foi feita para namorar.
Soldado barbudo foi feito para brigar.

Meus olhos espiam
as pernas que passam.
Nem todas são grossas ...
Meus olhos espiam.

Passam soldados.
... mas todas são pernas.
Meus olhos espiam.
Tambores, clarins
e pernas que passam.
Meus olhos espiam
espiam espiam
soldados que marcham
moças bonitas
soldados barbudos
... para namorar,
para brigar.
Só eu não brigo.
Só eu não namoro.

 
ANEDOTA BÚLGARA

Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e [andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

 
MÚSICA

A Pedro Nava

Uma coisa triste no fundo da sala.
Me disseram que era Chopin.
A mulher de braços redondos que nem coxas
martelava na dentadura dura
sob o lustre complacente.
Eu considerei as contas que era preciso pagar,
os passos que era preciso dar,
as dificuldades...
Enquadrei o Chopin na minha tristeza
e na dentadura amarela e preta
meus cuidados voaram como borboletas.

 

COTA ZERO

STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?

 
INICIAÇÃO AMOROSA

A rede entre duas mangueiras
balançava no mundo profundo.
O dia era quente, sem vento.
O sol lá em cima,
as folhas no meio,
o dia era quente.

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando [as pernas[morenas da lavadeira.

Um dia ela veio para a rêde,
se enroscou nos meus braços,
me deu um abraço,
me deu as maminhas
que eram só minhas.

A rêde virou,
o mundo afundou.

Depois fui para a cama
febre 40 graus febre.

Uma lavadeira imensa, com duas têtas imensas, [girava o espaçoverde.

 

BALADA DO AMOR ATRAVÉS DAS IDADES

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.

Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

 
CABARÉ MINEIRO

A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas. . .

 
QUERO ME CASAR

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.

Depressa, que o amor
não pode esperar!

 
EPIGRAMA PARA EMILIO MOURA

Tristeza de ver a tarde cair
como cai uma folha.
(No Brasil não há outono
mas as folhas caem.)

Tristeza de comprar um beijo
como quem compra jornal.

Os que amam sem amor
não terão o reino dos céus.

Tristeza de guardar um segredo
que todos sabem
e não contar a ninguém
(que esta vida não presta).

 
 
 
SOCIEDADE

O homem disse para o amigo:
- Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
 Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga:
 Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: - Que idiota.

- A casa é um ninho de pulgas.
- Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.

 
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.

 
ELEGIA DO REI DE SIÃO

Pobre rei de Sião que morreu de desgosto
por não ter um filho varão.
Pobre rei de Bangkok educado em Oxford,
pequenino, bonito, decorativo,
que morreu especialmente para nos comover.
O filho que desejava, a Ásia não deu
e seu desejo de um filho era maior do que a Ásia.
Pobre rei de Sião, que Camões não cantou.
Amou três mulheres em vez de dez mil
e nenhuma lhe deu um filho varão.
De sua costela real nasceu uma pequenina siamesa.
Ao vê-Ia, o rei caiu para trás como um europeu,
adoeceu, bebeu um veneno terrível e morreu.

Seu coração enegreceu de repente,
o corpo ficou todo fofo.

Depois queimaram o corpo fofo e o coração preto [numa fogueira esplêndida
e a alma do rei de Sião fugiu entre os canais.

Pobre reizinho de Sião.

 
 

SESTA

A Martins de Almeida
A família mineira
está quentando sol
sentada no chão
calada e feliz.
O filho mais moço
olha para o céu,
para o sol não,
para o cacho de bananas.
Corta ele, pai.
O pai corta o cacho
e distribui pra todos.
A família mineira
está comendo banana.

A filha mais velha
coça uma pereba
bem acima do joelho.
A saia não esconde
a coxa morena
sólida construída,
mas ninguém repara.
Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo
(a cerca da horta).
A família mineira
olha para dentro.

 
O filho mais velho canta uma cantiga nem triste nem alegre, uma cantiga apenas mole que adormece. Só um mosquito rápido

mostra inquietação. O filho mais moço ergue o braço rude enxota o importuno. A família mineira está dormindo ao sol.

 
OUTUBRO 1930

Suores misturados
no silêncio noturno.
O companheiro ronca.
O ruído igual
dos tiros e o silêncio
na sala onde os corpos
são coisas escuras.
O soldado deitado
pensando na morte.

De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, abríamos para as notícias olhos que não viam, olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio.

O funcionário deitado
não pensa na morte.
Pensa no amor
tornado impossível
no minuto guerreiro.
E fecha os olhos
para ver bem
o amor com sua espada
de fogo sobre a cabeça
de todos os homens,
legalistas, rebeldes.

O inimigo resistia sempre e foi preciso cortar a água do quartel. Corno resistisse ainda, a água circulou de novo, desta vez azul, de metileno. A torneira aberta escorre desinfetante. O canhão fabricado em Minas - suave temperamento local não disparou.

Olha a negra, olha a negra,
a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
olha a bala na negra,
olha a negra no chão
e o cadáver com os seios enormes,
expostos, inúteis.

 
O general, com seus bigodes tumultuosos, era o mais doce dos seres, e destilava uma ternura vaporosa em seu hábito de usar culotte sem perneiras. A um canto do salão atulhado de mapas e em que telefones esticados retiniam trazendo fatos, levando ordens, eu fazia, exercício fácil, a caricatura do seu imenso nariz. Que todos acharam ótima e reprovaram com indignação cívica.

A esta hora no Recife,
em Guaxupé, Turvo, Jaguara,
Itararé,
Baixo Guandu,
Igarapava,
Chiador,
homens estão se matando
com as necessárias cautelas.
Pelo Brasil inteiro há tiros, granadas,
literatura explosiva de boletins,
mulheres carinhosas cosendo fardas
com bolsos onde estudantes guardarão retratos
das respectivas, longínquas namoradas,
homens preparando discursos,
outros, solertes, captando rádios,
minando pontes,
outros (são governadores) dando o fora,
pedidos de comissionamento
por atos de bravura,
ordens do dia,
"o inimigo (?) retirou-se em fuga precipitada,
deixando abundante material bélico,
cinco mortos e vinte feridos...
Um novo, claro Brasil
surge, indeciso, da pólvora.
Meu Deus, tomai conta de nós.

Deus vela o sono dos brasileiros.
Anjos alvíssimos espreitam
a hora de apagar a luz de teu quarto
para abrirem sobre ti as asas
que afugentam os maus espíritos
e purificam os sonhos.
Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros.
Mas eles acordam e brigam de novo.

 
EXPLICAÇÃO

Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma [cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo essa [cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu pais, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita -de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego [vagabundo,
é sempre a mesma sem-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial -da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de [dinheiro

e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na [gente.
O francês o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

ROMARIA

A Milton Campos
Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.

Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas,e rezas.

No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.

Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa.

No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.

Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não possui.

Jesus meu Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.

Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.

Os romeiros pedem com os olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade.

 
POEMA DA PURIFICAÇÃO

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.