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Edição nº9 - 20/08/99 Alguma Poesia Profa. Esther Rosado
"Quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."
I. O Poeta "Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos".
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. Era o nono filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de dona Julieta Augusta Drummond de Andrade. Itabira vai persegui-lo nos temas da infância e família e deu nome a um de seus mais conhecidos poemas, que fazem parte do livro Sentimento do Mundo, 1940: Confidência de Itabirano Alguns anos vivi em Itabira.Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!
Fez os primeiros estudos no Grupo Escolar Dr. Carvalho Brito e, posteriormente, transferiu-se para o Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, onde passa a estudar como interno, em 1916. Tinha, então, 14 anos incompletos, mas volta para casa em decorrência de problemas de saúde no final do ano letivo. Em 1917, passa o ano inteiro tendo aulas particulares e , no ano seguinte, vai para Friburgo, estudar com padres da Companhia de Jesus, no Colégio Anchieta. Lá, colabora com um jornalzinho escolar chamado Aurora Colegial e alcança, nos concursos internos, os postos de coronel e general. Mas indispõe-se com um professor de Português que o desacata, e acaba sendo desacatado por ele. É bom lembrar: tal professor acha o que Drummond escreve muito ruim, e acusa o poeta de não saber tirar sentimentos nobres das palavras ( ah, como os professores de Português vivem se enganando a respeito dos bons poetas...). Acaba expulso do colégio após desentendimentos com o mesmo professor e passa a morar em Belo Horizonte, local para onde se transferira toda a sua família. Em 1921, ainda que timidamente, começa a publicar seus primeiros trabalhos na coluna social do Diário de Minas. Entre 21 e 23 ganha alguns prêmios, publica alguns trabalhos nas revistas Para Todos e Ilustração Brasileira e passa nos exames vestibulares da Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte. É a época em que conhece Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars, de passagem por BH. Troca correspondência com Mário de Andrade, e se tornam, através dela, bons amigos. Em 1925 casa-se com Dolores Morais; nesse mesmo ano, funda A Revista, em companhia de Emílio Moura e Gregoriano Canedo, órgão do movimento modernista mineiro: a revista tem apenas três números. Em 1925 também conclui o curso de Farmácia e é o orador da turma. Volta para Itabira e passa a ser professor de Português e Geografia, não demonstrando qualquer interesse pela profissão de farmacêutico. Em 1926 volta para BH e passa a trabalhar no Diário de Minas, a princípio como redator e depois como redator-chefe. Em 1928, publica seu poema No meio do Caminho na Revista de Antropofagia, e torna-se o pivô do escândalo nacional que este poema foi; no ano seguinte passa a trabalhar no Minas Gerais, órgão oficial daquele Estado. Em 1930, publica, finalmente, seu primeiro livro de poemas: Alguma Poesia. O poeta tímido, melancólico e triste, como ele próprio se definiria, estava, finalmente, iniciando sua longa trajetória na literatura brasileira. E viria para ficar, como ficou até hoje, drummondiando a poesia. Bibliografia: Poesia: Alguma Poesia ( 1930)Brejo das Almas ( 1934) Sentimento do Mundo ( 1940) Poesias ( 1942) A Rosa do povo ( 1945) Poesia Até Agora ( 1948) Claro Enigma (1951) Viola de Bolso (1952) Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora ( 1954) Poemas ( 1959) Antologia Poética ( 1962) Lição de Coisas ( 1962) Versiprosa ( 1967) Boitempo ( 1968) Reunião ( 1969) As Impurezas do Branco (1973) Menino Antigo ( 1973) Amor, Amores (1975) Discurso da primavera ( 1977) Esquecer para Lembrar ( 1979) A Paixão Medida ( 1980) Nova Reunião ( 1983) Corpo ( 1984) Amar se Aprende Amando ( 1985) Tempo Vida Poesia (1986) Farwell ( 1990) Prosa: Confissões de Minas(1944)Contos de Aprendiz (1951) Fala Amendoeira(1957) A Bolsa & A Vida (1962) Cadeira de Balanço (1966) Caminhos de João Brandão ( 1970) O Poder Ultra-Jovem, De Notícias e não-notícias faz-se a crônica (1974) Os Dias Lindos (1978) 70 Historinhas (1981) Contos Plausíveis (1981) Boca de Luar (1984) O Observador no Escritório (1985) II. A crítica, as características "Sim: se eu tivesse o gosto das classificações diria que o Sr. Carlos Drummond de Andrade é o poeta que mais unanimemente representa a poesia moderna no Brasil, através da linha fiel dos seus desdobramentos. Na forma, na substância poética, nos temas, na posição histórica tornou-se o poeta mais representativo do Modernismo." ( Álvaro Lins, Os mortos de sobrecasaca, Ed. Civilização Brasileira, p.7, 1963)Quando o segundo número da Revista de Antropofagia saiu à luz, carregava em seu bojo um poema que causaria um verdadeiro escândalo na época: No meio do caminho: No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento Uns poucos o aplaudiram como revolucionário, outros, os puristas acostumados ao rigor gramatical de Olavo Bilac, Coelho Neto e Rui Barbosa, o tomaram por um analfabeto gozador e ressaltaram, em suas críticas, os "defeitos"do poema:
Além disso, uns críticos conservadores observaram que o poema era um desrespeito a duas obras de autores consagrados:
E Drummond amargou anos. Colecionou ataques muitos e elogios poucos. Entre os elogios, os de Mário de Andrade e do crítico Álvaro Lins que, já na década de 60, daria o título de Os mortos de sobrecasaca ( nome de um poema drummondiano) a um dos mais importantes livros de sua carreira. E é nesse mesmo livro, num capítulo sobre o poeta mineiro, que Álvaro Lins reconhece que acertou ao apoiar Drummond numa época de azedas críticas contra Alguma Poesia. É o que passamos a transcrever: Humour e Poesia " Refere-nos Chesterton que um dia perguntaram a Santo Agostinho o que de maior agradecia a Deus; e ele respondeu: "ter entendido todas e cada uma das páginas que li". Que ninguém se inquiete com a citação: eu não vou aplicar ao meu caso as palavras de um santo que foi também um sábio. Nem vou me dirigir aos deuses para agradecer a capacidade de entendimento que só me foi concedida com extrema economia. Penso, porém, que se me perguntassem o que mais estimo no meu ofício de crítico, logo diria: ter entendido e sentido a poesia moderna. Uma espécie de orgulho de me haver salvado de uma incompreensão que será a vergonha da nossa época literária. E, sobretudo, gosto de recordar que compreendi um poeta moderno, tão difícil e complexo como o Sr. Carlos Drummond de Andrade, numa ocasião pouco ou nada propícia a essa iniciação na poesia moderna. Sucedeu que, ainda incerto de gosto literário, ainda vacilante quanto a uma possível vocação literária, veio ao meu encontro a aventura de um cargo dentro de um governo estadual. Durante três anos quase que foram de nenhuma espécie as minhas leituras ou contatos de ordem literária. Um deles foi com a poesia do Sr. Carlos Drummond de Andrade, de quem somente conhecia um nome muito discutido; um nome exaltado com entusiasmo ou negado com violência. Quase nada sabia, então, da verdadeira poesia moderna; e alguns dos seus imitadores ou diletantes só faziam crescer, em mim, uma atitude de prevenção e indiferença. Lembro-me de uma tarde, no ano de 1935, em que Odorico Tavares me levou os dois primeiros livros do Sr. Carlos Drummond de Andrade: Alguma Poesia e Brejo das Almas. E lembro-me também que a minha impressão foi a de quem recebe uma surpresa decisiva. Creio que surgiu da leitura desses dois livros a minha posterior compreensão da poesia moderna. Em dois ou três artigos, que se acham hoje sepultados em jornais do interior, deixei o testemunho dessa impressão literária que há mais de seis anos me transmitiram os versos do Sr. Carlos Drummond de Andrade. E dos seus poemas antigos, os versos que mais compreendi, foram exatamente aqueles que vêm provocando uma espécie de pânico em algumas criaturas, que talvez conquistem o reino dos céus, não sei: os da estrofe Mundo mundo vasto mundo e os de No meio do caminho Os muito famosos poemas de Raimundo e da Pedra no meio do caminho.
Embora Carlos Drummond tenha, ainda, uma influência muito grande da primeira geração poética do Modernismo, sobretudo a da forma do poema-piada, sua ironia e seu humor são absolutamente particulares, peculiares ao estilo do poeta gauche . A abordagem aos temas do cotidiano, da saudade, da família, a terra natal, da própria poesia, da infância, da descoberta do amor são nascidos de um estilo próprio, pessoal, de uma vivência especialíssima, da observação e de um certo jeito mineiro de falar, ora contido, ora irônico, ora sentimental, ora brincalhão, quase. Veja o exemplo: Cabaré mineiro A dançarina espanhola de Montes Clarosdança e redança na sala mestiça. Cem olhos morenos estão despindo seu corpo gordo picado de mosquito. tem um sinal de bala na coxa direita, o riso postiço de um dente de ouro, mas é linda, linda, gorda e satisfeita. Como rebola as nádegas amarelas! Cem olhos brasileiros estão seguindo o balanço doce e mole de suas tetas... É inegável que o poeta Drummond capta o cotidiano em tom prosaico e anti-retórico, o que faz a crítica considerá-lo modernista por inteiro. O "eu poético"busca através do humor e da ironia estabelecer um significado para a existência do homem no mundo. Crítico do universo em que se insere , o poeta vê o mundo às vezes liricamente, ou com imensa angústia de impotente que em nada pode modificá-lo. Podemos observar em Drummond três fases muito nítidas:
Poesia de cunho irônico, o aparecimento dos poemas-piada, o humor cáustico. Este enfoque aparece nitidamente no livro que agora analisamos, e em Brejo das Almas ( 1934). Neles, o poeta trata do jeito do "eu"ver o mundo. O eu-poético é agente e paciente , diversionista, cáustico ou, até mesmo, sentimental e reflexivo: Não se mate Carlos, sossegue, o amoré isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será.
Inútil você resistir
O amor, Carlos, você telúrico,
Entretanto você caminha ( Brejo das Almas) B) Eu menor que o mundo: Os temas políticos, o sofrimento do ser humano e as guerras, a solidão, o mundo frágil, os seres solitários predominam. A dor humana está lá; o eu-lírico se resguarda e canta o outro, tão mais importante que ele próprio. Esta vertente desabrocha com os livros Sentimento do Mundo ( 1940), José e A Rosa do Povo (1945). Mãos dadas Não serei o poeta de um mundo caduco.Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos, Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. ( Sentimento do Mundo) José E agora, José?A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?
Está sem mulher,
E agora, José?
Com a chave na mão
Se você gritasse,
Sozinho no escuro ( José ) c) Eu igual ao mundo: É poesia especulativa, de natureza filosófica, nascida mais intensamente a partir de Claro Enigma( 1951) . Focaliza o homem desencantado com a própria existência e, por ser assim, interroga e nega. Observe: Amar que pode uma criatura senão,entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar a malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão vazio, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Confissão Não amei bastante meu semelhante,não catei o verme nem curei a sarna, só proferi algumas palavras, melodiosas, tarde, ao voltar da festa. Dei sem dar e beijei sem beijo. ( Cego é talvez quem esconde os olhos embaixo do catre.) E na meia-luz tesouros fanam-se, os mais excelentes. Do que restou, como compor um homem e tudo o que ele implica de suave, de concordâncias vegetais, murmúrios de riso, entrega, amor e piedade? Não amei bastante sequer a mim mesmo, contudo próximo. Não amei ninguém. Salvo aquele pássaro _ vinha azul e doido _ que se esfacelou na asa do avião.
Oficina irritada Eu quero compor um soneto durocomo poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser. Esse verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender. Alguma Poesia insere-se na primeira fase. A das descobertas de experimentações. Algumas características, no entanto, seriam suas a vida inteira: as repetições enfáticas, o uso das anáforas, o anti-lirismo, o inusitado , o gauchismo do homem estropiado diante da surpresa de seus sentimentos, da vida e de todos os componentes nela inseridos.
III. Alguma Poesia O livro Alguma Poesia foi publicado em 1930, ainda em Belo Horizonte. Drummond aparece timidamente: a impressão teve 500 minguados exemplares e as tais Edições Pindorama haviam sido criadas por Eduardo Frieiro. Não era uma editora de verdade, existia apenas imaginariamente porque a publicação havia sido facilitada pela Imprensa Oficial do Estado de Minas, sob módicos descontos na folha de pagamento do funcionário Drummond que, à época, era redator do Diário de Minas, órgão oficial daquele Estado. Mas é o primeiro livro do autor e contém 49 poemas escritos entre a ironia e o humor tão característicos do poeta. Já nesse seu primeiro livro, Drummond se anuncia grande, desmistificador da palavra falsa, da frase de efeito. Sua poesia se rende ao cotidiano, às expressões consagradas pelo povo, à sua mineiridade saborosa e incomparável: "Meu verso é minha consolação.Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres, folha de taioba, pouco importa: tudo serve." ( Explicação) *** "Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar ... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus." (Cidadezinha Qualquer) *** "Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo." ( Poema das Sete Faces) *** "Depois voltou para casa livre, sem correntes muito livre, infinitamente livre livre livre que nem uma besta que nem uma coisa." (Política) Na época em que apareceram, os poemas drummondianos evocavam brincadeiras cheias de ironia, quase que desrespeitosas, cuja irreverência exasperava os puristas da língua. Tomaram-no como "provocativo", apontando-lhe erros grosseiros "de português". No entanto, o poeta estava apenas começando uma tradição só sua, misturando temas inquietantes ( o Poema das sete faces, por exemplo) de descoberta pessoal e do mundo; a família ( o poema Infância); a sentimentalidade ( os poemas Sentimental e Balada do amor através das idades) e abordagens insólitas ( Cabaré Mineiro).
Os poemas: Poema das sete facesQuando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás das mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Infância A Abgar Renault Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé. Comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom. Minha mãe ficava sentada cozendo olhando pra mim: -Psiu... Não acorde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro ... que fundo! Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda. E eu nào sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. Casamento do céu e do inferno No azul do céu de metileno a lua irônica diurética é uma gravura de sala de jantar. Anjos da guarda em expedição noturna velam sonos púberes espantando mosquitos de cortinados e grinaldas. Pela escada em espiral diz-que tem virgens tresmalhadas, incorporadas à via-láctea, vaga-lumeando... Por uma frincha o diabo espreita com o olho torto. Diabo tem uma luneta que varre léguas de sete léguas e tem o ouvido fino que nem violino. São Pedro dorme e o relógio do céu ronca mecânico. Diabo espreita por uma frincha. Lá embaixo suspiram bocas machucadas. Suspiram rezas? Suspiram manso, de amor. E os corpos enrolados ficam mais enrolados ainda e a carne penetra a carne. Que a vontade de Deus se cumpra! Tirante Laura e talvez Beatriz o resto vai para o inferno. Também já fui brasileiro Eu também já fui brasileiro moreno, como vocês. Ponteei viola, guiei forde e aprendi na mesa dos bares que o nacionalismo é uma virtude. Mas há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam. Eu também já fui poeta. Bastava olhar para mulher, pensava logo nas estrelas e outros substantivos celestes. Mas eram tantas, o céu tamanho, minha poesia perturbou-se. Eu também já tive meu ritmo. Fazia isto, dizia aquilo. E meus amigos me queriam, meus inimigos me odiavam. Eu irônico deslizava satisfeito de ter meu ritmo. Mas acabei confundindo tudo. Hoje não deslizo mais não, não sou irônico mais não, não tenho ritmo mais não. Construção Um grito pula no ar como um foguete. Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos. O sol cai sobre as coisas em placa fervendo. O sorveteiro corta a rua. E o vento brinca nos bigodes do construtor. Toada do amor E o amor sempre nessa toada: briga perdoa perdoa briga. Não se deve xingar a vida, a gente vive, depois esquece. Só o amor volta pra brigar, para perdoar, amor cachorro bandido trem. Mas, se não fosse ele, também que graça que a vida tinha? Mariquita, dá cá o pito, no teu pito está o infinito. Europa, França e Bahia Meus olhos brasileiros sonhando exotismos. Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo. Os cais bolorentos de livros judeus e a água suja do Sena escorrendo sabedoria. O pulo da Mancha num segundo. Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas. Tarifas bancos fábricas trustes craques. Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam /um tapete para sua Graciosa Majestade /Britânica pisar. E a lua de Londres como um remorso. Submarinos inúteis retalham mares vencidos. O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados. Hamburgo, embigo* do mundo. Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça /dos outros dentro de alguns anos. A Itália explora conscientemente vulcões apagados, vulcões que nunca estiveram acesos a não ser na cabeça de Mussolini. E a Suíça cândida se oferece numa coleção de postais de altitudes altíssimas. Meus olhos brasileiros se enojam da Europa. Não há mais Turquia. O impossível dos serranos esfacela erotismos prestes a declanchar. Mas a Rússia tem as cores da vida. Mas a Rússia é vermelha e branca. Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista /e no túmulo de Lenin em Moscou parece /que um coração enorme está batendo, batendo mas não ate igual ao da gente... Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a "Canção do Exílio". Como era mesmo a "Canção do Exílio"? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá! Lanterna mágica
minha boca tem rugas. Velha cidade! As árvores tão repetidas. Debaixo de cada árvore faço minha cama, em cada ramo dependuro meu paletó. Lirismo. Pelos jardins de versailles ingenuidade e velocípedes. E o velho fraque na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas. A Aníbal M. Machado A dois passos da cidade importante a cidadezinha está calada, entrevada. ( Atrás daquele morro, com vergonha do trem.) Só as igrejas só as torres pontudas das igrejas não brincam de esconder. O Rio das Velhas lambe as casas velhas, casas encardidas onde há velhas nas jinelas. Ruas em pé pé-de-moleque PENÇÃO DE JUAQUINA AGULHA Quem não subir direito toma vaia... Bem feito! Eu fico cá embaixo maginando na ponte moderna moderna por quê? A água que corre já viu o Borba. Não a que corre, mas a que não pára nunca de correr. Ai tempo! Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito mortas. Os séculos cheiram a mofo e a história é cheia de teias de aranha. Na água suja, barrenta, a canoa deixa um sulco logo apagado. Quede os bandeirantes? O Borba sumiu. Dona Maria Pimenta morreu. Mas tudo tudo é inexoravelmente colonial: bancos janelas fechaduras lampiões. O casario alastra-se na cacunda dos morros, rebanho dócil pastoreado por igrejas: a do Carmo que é toda de pedra, a Matriz que é toda de ouro, Sabará veste com orgulho seus andrajos... Faz muito bem, cidade teimosa! Nem Siderúrgica nem Central nem roda manhosa de forde sacode a modorra de Sabará-buçu. Pernas morenas de lavadeiras, tão musculosas que parece foi o Aleijadinho que as esculpiu, palpitam na água cansada. O presente vem de mansinho de repente dá um salto: cartaz de cinema com fita americana. E o trem bufando na ponte preta é um bicho comendo as casas velhas. A igreja de costas para o trem. Nuvens que são cabeças de santo. Casas torcidas E a longa voz que sobe que sobe do morro que sobe... Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê. Na cidade toda de ferro as ferraduras batem como sinos. Os meninos seguem para a escola. Os homens olham para o chão. Os ingleses compram a mina. Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável. Quem foi que apitou? Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho. Almas antigas que nem casas. Melancolia das legendas. As ruas cheias de mulas-sem-cabeça correndo para o Rio das Mortes e a cidade paralítica no sol espiando a sombra dos emboabas no encantamento das alfaias. Sinos começam a dobrar. E todo me envolve uma sensação fina e grossa. Esqueci um ramo de flores no sobretudo. Fios nervos riscos faíscas. As cores nascem e morrem com impudor violento. Onde meu vermelho? Virou cinza. Passou a boa! Peço a palavra! Meus amigos todos estão satisfeitos com a vida dos outros. Fútil nas sorveterias. Pedante nas livrarias... Nas praias nu nu nu nu nu. Tu tu tu tu tu no meu coração. Mas tantos assassinatos, meu Deus. E tantos adultérios também. E tantos, tantíssimos contos-do-vigário... ( Este povo quer me passar a perna.) Meu coração vai molemente dentro do táxi. É preciso fazer um poema sobre a Bahia... Mas eu nunca fui lá. A rua diferente Na minha rua estão cortando árvores botando trilhos construindo casas. Minha rua acordou mudada. Os vizinhos não se conformam. Eles não sabem que a vida tem dessas exigências brutas. Só minha filha goza o espetáculo e se diverte com os andaimes, a luz da solda autógena e o cimento escorrendo nas formas. Lagoa Eu não vi o mar. Não sei se o mar é bonito, não sei se ele é bravo. O mar não me importa. Eu vi a lagoa. A lagoa, sim. A lagoa é grande e calma também. Na chuva de cores da tarde que explode a lagoa brilha a lagoa se pinta de todas as cores. Eu não vi o mar. Eu vi a lagoa. Cantiga de viúvo A noite caiu na minh'alma, fiquei triste sem querer. Uma sombra veio vindo, veio vindo , me abraçou. Era a sombra de meu bem que morreu há tanto tempo. Me abraçou com tanto amor me apertou com tanto fogo me beijou, me consolou. Depois riu devagarinho, me disse adeus com a cabeça e saiu. Fechou a porta. Ouvi seus passos na escada. Depois mais nada... acabou. O que fizeram do Natal Natal. O sino longe toca fino. Não tem neves, não tem gelos. Natal. Já nasceu o deus menino. As beatas foram ver, encontraram o coitadinho (Natal) mais o boi mais o burrinho e lá em cima a estrelinha alumiando. Natal. As beatas ajoelharam e adoraram o deus nuzinho mas as filhas das beatas e os namorados das filhas, mas as filhas das beatas foram dançar black-bottom nos clubes sem presépio. POLÍTICA LITERÁRIA A Mauoel Bandeira discute como poeta estadual qual dêles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso o poeta federal Tira ouro do nariz. SENTIMENTAL Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçadas na mesa todos completam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! - Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências um cartaz amarelo: "Neste país é proibido sonhar." NO MEIO DO CAMINHO No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra IGREJA A Manoel Bandeira Tijolo areia andaime água tijolo. O canto dos homens trabalhando trabalhando mais perto do céu cada vez mais perto mais - a torre. E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações. O padre que fala do inferno sem nunca ter ido lá. Pernas de sêda ajoelham mostrando geolhos. Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já [esquecida. A manhã pintou-se de azul. No adro ficou o ateu, No alto fica Deus. Domingo... Bem bão! Bem Bão! Os serafins, no meio, entoam quirieleisão.
Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nessa vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem comêço. A mão que escreve êste poema não sabe que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse. ESPERTEZA Tenho vontade - ponhamos amar por esporte uma loura o espaço de um dia. Certo me tornaria brinquedo nas suas mãos. Apanharia, sorriria mas acabado o jogo não seria mais joguete, seria eu mesmo. POLÍTICA A Mário Casasanta Vivia jogado em casa, Os amigos o abandonaram quando rompeu com chefe político. O jornal governista ridicularizava seus versos, Os versos que ele sabia bons. Sentia-se diminuído na sua glória enquanto crescia a dos rivais que apoiavam a Câmara em exercício. Entrou a tomar porres violentos, diários. E a desleixar os versos. Se já não tinha discípulos. Se só os outros poetas eram imitados. Uma ocasião em que não tinha dinheiro para tomar o seu conhaque saiu à toa pelas ruas escuras. Parou na ponte sobre o rio moroso, o rio que lá embaixo pouco se importava com ele para misteriosos carnavais. E teve vontade de se atirar (só vontade). Depois voltou para casa livre, sem correntes muito livre, infinitamente livre livre livre que nem uma besta que nem uma coisa. POEMA DO JORNAL O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter a transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensangüentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A polícia dissolve o meeting. A pena escreve. Vem da sala de linotipos a doce música mecânica. SWEET HOME Quebra-luz, aconchego. Teu braço morno me envolvendo. A fumaça de meu caminho subindo. Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês. O jornal conta histórias, mentiras... Ora afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber. Mas surge o imenso chá com torradas, chá de minha burguesia contente. O gozo de minha poltrona! O doçura de folhetim! Ó bocejo de felicidade! NOTA SOCIAL O poeta chega na estação. O poeta desembarca. O poeta toma um auto. O poeta vai para o hotel. E enquanto ele faz isso como qualquer homem da terra, uma ovação o persegue feito vaia. Bandeirolas abrem alas. Bandas de música. Foguetes. Discursos. Povo de chapéu de palha. Máquinas fotográficas assestadas. Automóveis imóveis. Bravos... O poeta está melancólico. Numa árvore do passeio público (melhoramento da atual administração) árvore gorda, prisioneira de anúncios coloridos, árvore banal, árvore que ninguém vê canta uma cigarra. Canta uma cigarra que ninguém ouve um hino que ninguém aplaude. Canta, no sol danado. O poeta entra no elevador o poeta sobe o poeta fecha-se no quarto. O poeta está melancólico. CORAÇÃO NUMEROSO Foi no Rio. Eu passeava na Avenida quase meia-noite. Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis. Havia a promessa do mar e bondes tilintavam, abafando o calor que soprava no vento e o vento vinha de Minas. Meus paralíticos sonhos desgosto de viver (a vida para mim é vontade de morrer) faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente na Galeria Cruzeiro quente quente e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro, nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso. Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas autos abertos correndo caminho do mar voluptuosidade errante do calor mil presentes da vida aos homens indiferentes, que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram. O mar batia em meu peito, já não batia no cais. A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu a cidade sou eu sou eu a cidade meu amor. POESIA Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira. FESTA NO BREJO A saparia desesperada coaxa coaxa coaxa. O brejo vibra que nem caixa de guerra. Os sapos estão danados. A lua gorda apareceu e clareou o brejo todo. Até à lua sobe o coro da saparia desesperada. A saparia toda de Minas coaxa no brejo humilde. Hoje tem festa no brejo! JARDIM DA PRAÇA DA LIBERDADE A Gustavo Capatiema Verdes bulindo. Sonata cariciosa da água fugindo entre rosas geométricas. Ventos elísios. Macio. Jardim tão pouco brasileiro ... mas tão lindo. Paisagem sem fundo. A terra não sofreu para dar estas flores. Sem ressonância. O minuto que passa desabrochando em floração inconsciente. Bonito demais. Sem humanidade. Literário demais. (Pobres jardins do meu sertão, atrás da Serra do Curral! Nem repuxos frios nem tanques langues, nem bombas nem jardineiros oficiais. Só o mato crescendo indiferente entre sempre-vivas desbotadas e o olhar desditoso da moça desfolhando malmequeres.) Jardim da Praça da Liberdade, Versailles entre bondes. Na moldura das Secretarias compenetradas a graça inteligente da relva compõe o sonho dos verdes. PROIBIDO PISAR NO GRAMADO Talvez fosse melhor dizer: PROIBIDO COMER O GRAMADO A prefeitura vigilante vela a soneca das ervinhas. E o capote preto do guarda é uma bandeira na noite estrelada [de funcionários. De repente uma banda preta vermelha retinta suando bate um dobrado batuta na doçura do jardim. Repuxos espavoridos fugindo. CIDADEZINHA QUALQUER Casas entre banananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia. A Pedro Nava COTA ZERO E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando [as pernas[morenas da lavadeira. Uma lavadeira imensa, com duas têtas imensas, [girava o espaçoverde. BALADA DO AMOR ATRAVÉS DAS IDADES SESTA A Martins de Almeida e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na [gente. A Milton Campos
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