"O fim louva a vida como a noite louva o dia" (Petrarca)
Como era de se esperar, o mundo não acabou há uma semana, tampouco na sexta-feira 13.
Apenas algumas centenas de apavorados levaram a história a sério, revelando que a
perspectiva do fim do mundo já não é um prato tão popular no cardápio dos temores
contemporâneos.
Mas não é porque o significativo esforço da mídia em atemorizar as pessoas falhou que
se deva imaginar que o fim do mundo deixe de assustar. O falecido Frei Damião extraiu boa
parte de sua fama de santo dos grotescos sermões nos quais descrevia com detalhes o
castigo dos pecadores no inferno. Também este é o combustível da oratória dos chamados
fundamentalistas que tentam convencer as pessoas a serem boas não pela virtude, mas pelo
medo.
A descrição dos horrores do Inferno, perpetuados no Juízo Final, está
indissoluvelmente ligada a um adjetivo que lhe extrapola o sentido: dantesco. Não há
como falar do outro mundo sem mencionar Dante Alighieri, sem citar nominal ou
subrepticiamente a Divina Comédia no mundo ocidental.
Ainda que Dante tenha se inspirado largamente em textos de outras culturas que lhe
antecedem - de um lado na Eneida de Virgílio e de outro na Liber Scalae Mahometi,
tradução latina de texto muçulmano - foi a ele que se associou o vigor das imagens de
um inferno terrível. As ilustrações de Gustave Doré (1833-1883) mesmo muito
posteriores e sujeitas a milhares de críticas técnicas fundiram-se tanto ao texto que é
difícil imaginar como autêntica uma edição da Comédia que não as tenha nas guardas.
O tema de Céu e Inferno é antigo e certamente povoou a Idade Média e sem sombra de
dúvida foi um dos grandes responsáveis pelo poder ideológico da Igreja na Europa - e
dos teólogos tradicionalistas no mundo do Islam - no período. Mas é com Dante que o
tema encontra uma expressão nova, herdada talvez das visões místicas dos sufis, no qual
não é o medo, mas o amor que se sobressai da descrição do outro mundo.
Curiosamente o Paraiso permanece a parte menos explorada da Divina Comédia, mesmo durante
a Renascença à qual Dante abre as portas o cenário dantesco do Inferno sempre foi
predominante. Talvez com excessiva ousadia é possível defender a idéia que não houve
descrição de Céu e Inferno posterior a Dante que não dialogue com a Divina Comédia.
E isto não apenas na literatura, mas nas artes e mesmo no senso comum. Um tema recorrente
na pintura renascentista, por exemplo, é o Juízo Final e não há nenhuma obra
significativa sobre o tema que não dialogue - quase sempre diretamente - com a obra de
Dante.
O caso mais notório é a pintura de Giotto, O Juízo Final, pintada sob encomenda do
usurário Enrico Scrovagni em 1304. Não bastasse o fato do pintor ter se hospedado na
casa de Dante enquanto pintava o mural, há ainda que se notar que o pai do mecenas era um
dos personagens da Divina Comédia, Reginaldo, que figura no Inferno entre os usurários.
O filho, por sinal, encomenda a capela como parte de um acordo para ser perdoado pelo papa
por seus pecados.
Também Michelângelo é tributário de Dante - a quem leu com avidez - especialmente no
seu O Juízo Universal pintado na Capela Sistina. Tal como Dante em relação à sua
Divina Comédia, Michelângelo considerava sua obra - em especial o Juízo - como uma
manifestação da divindade, como mensageiro de uma epifânia.
Dia Michelângelo, na época que terminava o Juízo: "A boa pintura aproxima-se de
Deus e une-se a Ele (...) Não é mais que uma cópia das Suas perfeições, uma sombra do
Seu pincel, Sua música, Sua melodia". Mais adiante diz que o talento - que tanto
revoltava seus invejosos contemporâneos - não é suficiente para pintar um quadro como
aquele: "Não basta que o pintor seja um hábil e grande mestre. Penso ser mais
importante a pureza e a santidade da sua vida, a fim de que Deus guie seus
pensamentos".
Note-se que como Dante, tampouco Michelângelo era um carola. Quando ambos falam de
religiosidade e santidade não falam delas em um sentido formal, mas num sentido mais
profundo. É talvez por isso que se encontre mais de Dante do que das negras pregações
de fim do mundo de Savonarola - que valeram ao mestre um de seus muitos exílios - na obra
do artista.
Alexandre Gomes é editor do PRIMEIRA PÁGINA