INSTITUTO DE CIÊNCIAS RELIGIOSAS

DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

PROF. ANTONIO CARLOS MACHADO



UMA CHAVE PARA A NATUREZA DO HOMEM: O SíMBOLO



O biologista Johannes von Uexkull escreveu um livro em que procede a uma revisão crítica dos princípios da biologia. De acordo com Uexkull, a biologia é uma ciência natural, que precisa ser desenvolvida por meio dos métodos empíricos usuais - os da observação e experimentação. O pensamento biológico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do pensamento físico ou do químico. Uexkull é um resoluto campeão do vitalismo, defendendo o principio da autonomia da vida. A vida é uma realidade final e dependente de si mesma. Não pode ser descrita nem explicada em termos de física ou de química. Uexkull principia suas investigações com um estudo dos organismos inferiores; estendendo-as gradativamente a todas as formas da vida orgânica. Em certo sentido, recusa-se a falar em formas inferiores ou superiores de vida. A vida é perfeita em toda parte: é idêntica tanto no menor como no maior dos círculos. Todo organismo, até o mais rudimentar, não só se acha adaptado, num sentido vago (angepasst) ao seu meio, mas também inteiramente coordenado (eingepasst) com seu ambiente.

De acordo com sua estrutura anatômica, todo ser vivo possui um certo Merknetz e um certo Wirknetz - um sistema receptor e um sistema destinado a responder a estimulação. Sem a cooperação e o equilíbrio destes sistemas, o organismo não poderia sobreviver. O sistema receptor, pelo qual uma espécie biológica recebe os estímulos externos, e o sistema pelo qual reage a eles são, em todos os casos, intimamente entreligados. São elos da mesma cadeia, descrita por Uexkull como o circulo funcional (Funktionskreis) do animal.

Não posso entrar aqui na discussão dos princípios biológicos de Uexkull. Referi-me tão-somente aos seus conceitos e à sua terminologia a fim de formular uma pergunta geral: será possível utilizar o plano proposto por Uexkull para uma descrição e caracterização do mundo humano? É evidente que este mundo não constitui exceção as regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encontramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; mas sofreu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito a arte e a religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo o progresso humano no pensamento e na experiência aperfeiçoa e fortalece esta rede. Já não é dado ao homem enfrentar imediatamente e a realidade; não pode vê-la, por assim dizer, face a face. A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de lidar com as próprias coisas, o homem, em certo sentido está constantemente conversando consigo mesmo. Envolveu-se por tal maneira em formas lingüísticas, em imagens artísticas. em símbolos míticos ou em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela interposição desse meio artificial.

Do ponto de vista a que acabamos de chegar, podemos corrigir e ampliar a definição clássica do homem. A despeito de todos os esforços do irracionalismo moderno, a definição o homem como animal rationale não perdeu sua força. A racionalidade, com efeito, é uma característica inerente a todas as atividades humanas. A própria mitologia não é pura e simplesmente, um conjunto vulgar de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é puramente caótica, pois possui forma sistemática ou conceitual. Mas, por outro lado, fora impossível caracterizar como racional a estrutura do mito. A linguagem foi freqüentemente identificada com a razão, ou com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que esta concepção não consegue abarcar todo o campo. É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo. Pois lado a lado com a linguagem conceptual, há a linguagem emocional; lado a lado com linguagem lógica ou científica, há a linguagem da imaginação poética. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições. Os grandes pensadores que definiram o homem como um animal rationale não eram empiristas, nem jamais tentaram oferecer uma explicação empírica da natureza humana. Por meio desta definição, expressavam antes um imperativo moral fundamental. Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um animal rationale, deveríamos defini-lo como um animal symbolicum. Deste modo, podemos designar sua diferença especifica, e podemos compreender o novo caminho aberto ao homem: o da civilização. Neste contexto, o homem convive diuturnamente com um conjunto de forças que o impulsionam a um contínuo desenvolvimento, ora prevalecendo a força de estabilização, ora prevalecendo a força de propulsão.

No mito e na religião primitiva, a tendência para a estabilização é tão forte que sobrepuja o pólo oposto. Estes dois fenômenos culturais parecem ser as forças mais conservadoras da vida humana. Por sua origem e princípio, o pensamento mítico é o pensamento tradicional. Pois o único meio que tem o mito de compreender, explicar e interpretar a forma presente da vida humana é reduzi-la a um passado remoto. O que tem suas raízes nesse passado mítico, o que foi desde então, o que existiu desde tempos imemoriais, é firme e indiscutível. Contestá-lo seria sacrilégio. Para o espírito primitivo, nada é mais sagrado que a sacrossanta idade. A idade dá a todas as coisas, aos objetos físicos e às instituições humanas seu valor, sua dignidade, sua excelência moral e religiosa. Para manter esta dignidade torna-se imperativo continuar e preservar a ordem humana na mesma forma inalterável. Qualquer solução de continuidade destruiria, .a própria substância da vida mítica e religiosa. Do ponto de vista primitivo, a menor alteração no plano estabelecido das coisas é desastrosa. As palavras de uma fórmula mágica, de um conjuro ou encantamento, as fases isoladas de um ato religioso, de um sacrifício ou de uma oração, tudo isto precisa ser repetido na mesma ordem invariável. Qualquer alteração anularia a força e a eficiência da palavra mágica ou do rito religioso. A religião primitiva, por conseguinte, pode não dar azo a nenhuma Iiberdade de pensamento individual. Prescreve suas regras fixas, rígidas, invioláveis, não só para toda ação humana mas também para todo sentimento humano. A vida do homem está sob constante pressão. encerrada no círculo estreito de exigências positivas e negativas, de consagrações e proibições. de observâncias e tabus. Sem embargo disto, a história da religião nos mostra que esta primeira forma do pensamento religioso não expressa, absolutamente seu verdadeiro significado e objetivo. Aqui também encontramos um avanço contínuo na direção oposta. O anátema, sob o qual a vida humana foi colocada pelo pensamento mítico e religioso primitivo, vai-se afrouxando gradativamente e, afinal parece ter perdido sua força compulsiva. Está surgindo uma nova forma dinâmica de religião, que abre uma viçosa perspectiva de vida moral e religiosa. Numa religião dinâmica desta natureza, os poderes individuais conquistaram a preponderância sobre os meros poderes de estabilização. A vida religiosa alcançou sua maturidade e sua liberdade; quebrou o feitiço de um rígido tradicionalismo.

Se do campo do pensamento mítico e religioso passarmos à linguagem, encontraremos, em forma diferente, o mesmo "processo fundamental. A própria linguagem é uma das forças conservadoras mais firmes da cultura humana. Sem este conservantismo, não poderia realizar sua principal tarefa, a comunicação. A comunicação requer regras estritas. Os símbolos e as formas lingüísticas precisam ter estabilidade e constância a fim de resistir à influência dissolvente e destrutiva do tempo. Não obstante, a mudança fonética e a mudança semântica não são apenas aspectos acidentais no desenvolvimento da linguagem; são condições inerentes e necessárias do mesmo. Uma das principais razões desta mudança continua é o fato de que a linguagem precisa ser transmitida de geração a geração. A transmissão não será possível pela simples reprodução de formas fixas e estáveis. O processo da aquisição da linguagem sempre supõe uma atitude ativa e produtiva. Os próprios erros da criança são muito característicos neste sentido. Longe de serem meras falhas, decorrentes de um poder insuficiente de memória ou reprodução, são as melhores provas de atividade e espontaneidade da criança. Num estádio relativamente precoce do seu desenvolvimento, a criança parece haver adquirido certo senso da estrutura geral de sua Iíngua materna sem, evidentemente. possuir qualquer consciência abstrata de regras lingüísticas. Usa palavras ou sentenças que nunca ouviu e que são infrações das regras morfológicas ou sintáticas. Mas nestas mesmas tentativas é que transparece o senso agudo pelas analogias. Nelas demonstra sua capacidade de aprender a forma da linguagem em vez de lhe reproduzir simplesmente a matéria. A transferência da Iíngua de uma geração para outra, portanto, nunca poderá ser comparada à simples transferência de propriedade, pela qual uma coisa material, sem nenhuma alteração de sua natureza, muda apenas de dono. Em seus Prinzipien der Sprachgeschichte, Hermann Paul deu especial destaque a este ponto. Mostrou com exemplos concretos, que a evolução histórica de uma Iíngua depende, em grande parte, dessas lentas e contínuas mudanças que ocorrem na transferência das palavras e das formas lingüísticas de pais para filhos. No entender de Paul, este processo deve ser considerado como uma das principais razões dos fenômenos da mudança fonética e da mudança semântica. Em tudo isto percebemos muito distintamente a presença de duas tendências diferentes - uma que conduz à conservação e outra à renovação e ao rejuvenescimento da linguagem. Dificilmente. porém. poderemos falar numa oposição entre as duas tendências. Estão em perfeito equilíbrio; são os dois elementos e as duas condições indispensáveis à vida da linguagem.

Novo aspecto do mesmo problema encontramos no desenvolvimento da arte. Neste caso, entretanto. o segundo fator - o da originalidade, da individualidade e o poder criador - parece predominar de maneira definida sobre o primeiro. Em arte, não nos contentamos com a repetição ou a reprodução de formas tradicionais. Sentimos uma nova obrigação, introduzimos novos padrões críticos. "Mediocribus esse poetis non di, non homines, non concessere columnae", diz Horácio em sua Ars Poetica ("A mediocridade dos poetas não é permitida, nem pelos deuses, nem pelos homens, nem pelos pilares que sustentam as lojas dos livreiros"). Sem dúvida alguma, até aqui a tradição ainda desempenha um papel soberano. Como no caso da Iinguagem, as mesmas formas se transmitem de uma geração a outra. Os mesmos motivos fundamentais da arte se repetem indefinidamente. Não obstante, todo grande artista, em certo sentido, faz uma nova época. Temos consciência deste fato quando confrontamos as formas do nosso linguajar comum com a linguagem poética. Nenhum poeta é capaz de criar uma linguagem inteiramente nova. Precisa adotar as palavras e respeitar as regras fundamentais da sua Iíngua. A tudo isto, porém, empresta não apenas novo feitio mas vida nova. Em poesia, as palavras não são significativas somente de um modo abstrato; não são simples indicadores, com os quais desejamos designar objetos empíricos. Tropeçamos com uma espécie de metamorfose de todas as nossas palavras comuns. Cada verso de Shakespeare, cada estrofe de Dante ou Ariosto, todo poema Iírico de Goethe têm seu som peculiar. Lesslng afirmou que é tão impossível roubar um verso de Shakespeare quanto roubar a clava de Hércules. E o que é ainda mais assombroso, um grande poeta nunca se repete. Shakespeare falou uma linguagem nunca ouvida até então - e seus personagens falam a mesma linguagem incomparável e inconfundível. Em Lear e Macbeth, em Brutus ou Hamlet, em Rosalind ou Beatrice, ouvimos essa linguagem pessoal que é o espelho de uma alma. Só desta maneira a poesia é capaz de expressar todos os matizes inumeráveis, as delicadas gradações de sentimentos, que são impossíveis em outros modos de expressão. Se a linguagem, em seu desenvolvimento, necessita de constante renovação, não encontrara para isto fonte melhor nem mais profunda que a poesia. A grande poesia sempre faz uma incisão aguda, uma cesura definida na história da linguagem. A Iíngua italiana, a inglesa e a alemã já não eram as mesmas, por ocasião da morte de Dante, de Shakespeare e de Goethe, que haviam sido no dia em que os poetas nasceram.

A relação entre a subjetividade e a objetividade, a individualidade e a universalidade não é realmente a mesma na obra de arte e na do cientista. É verdade que um grande descobrimento científico também traz a marca do espírito de seu autor. Nele encontramos não só um novo aspecto objetivo das coisas, mas também uma atitude individual do espírito e até um estilo pessoal. Mas tudo isto tem apenas importância psicológica, não sistemática. No conteúdo objetivo da ciência estes traços individuais se esquecem e apagam, pois um dos escopos principais do pensamento científico é a eliminação de todos os elementos pessoais e antropomórficos. No dizer de Bacon, a ciência tenta conceber o mundo ex analogia universi, não ex analogia hominis.

Tomada em conjunto, a cultura humana pode ser descrita como o processo da auto libertação progressiva do homem. A linguagem, a arte, a religião, a ciência são várias fases deste processo. Em todas elas o homem descobre e prova um novo poder - o de edificar um mundo próprio, um mundo ideal. A filosofia não pode renunciar à sua busca de uma unidade fundamental neste mundo ideal. Mas não confunde a unidade com a simplicidade. Não ignora as tensões e atritos, os vigorosos ataques contra estes e os profundos conflitos entre as várias forças do homem. Estas não podem ser reduzidas a um denominador comum. Tendem para direções diferentes e obedecem a princípios diferentes. Mas a multiplicidade e a disparidade não denotam discórdia ou desarmonia. Todas as funções se completam e complementam. Cada qual rasga um novo horizonte e nos mostra um novo aspecto da humanidade. O dissonante está em harmonia consigo mesmo; os contrários não se excluem, mutuamente, mas são interdependentes: a harmonia na contrariedade, como no caso do arco e a lira.


Texto adaptado pelo Prof. Antonio Carlos Machado a partir de Cassirer, E., Antropologia Filosófica, para uso em sala de aula)


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