INSTITUTO DE CIÊNCIAS
RELIGIOSAS
DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À
FILOSOFIA
PROFESSOR ANTONIO CARLOS
MACHADO
O
CONHECIMENTO
(Arcângelo Buzzi)
No vigor de sua constituição ontológica, o homem
deseja ardentemente conhecer. (Aristóteles, Metafísica, I, 1) O que é
conhecimento: É a fabricação do ideal sobre a terra. A terra está serena no azul
do céu. Seu percurso é um tranqüilo morar. Nós, porém, estamos inquietos. No
fogo da linguagem procuramos. O conhecimento é caminho de busca e de regresso à
tenda de convivência com todos os seres.
O primeiro conhecimento é o mito. Primeiro na origem
e na fundamentação de todo outro conhecimento. Mito é comunicação imediata com
todos os seres; uma comunicação dionisíaca; uma comunicação entusiástica. Do
mito se diferencia o conhecimento de ciência.
No início, a ciência começou como filosofia. Os
títulos acadêmicos de doutoramento PhD das
universidades anglo-saxônicas ainda lembram a identidade primitiva de filosofia
e ciência. Hoje, estão separadas. E administram conhecimentos diferentes.
Conhecimentos importantes, porque todas as valorações da vida passam hoje,
necessariamente, pelo crivo da filosofia e da ciência.
Do mito, da filosofia e da ciência diferencia-se o
bom-senso (senso comum), que é o conhecimento de uso certo e comedido de toda
experiência.
Como se elabora o conhecimento? O início está na intuição sensível. Tudo que se dá
na intuição deve ser simplesmente recebido e trabalhado no interior dos limites
de nossas possibilidades.
A intuição é o ato de apresentação ou de percepção da
realidade. Não cria a realidade. Recebe-a. Por causa dessa atividade de
recebimento, a intuição é sempre receptiva e passiva. E revela-se, também,
sempre sensível porque o caminho de percepção da realidade são os órgãos
sensoriais. Por conseguinte, a sensibilidade desempenha um papel de mediação,
comparável ao horizonte que se abre e deixa a paisagem mostrar-se em sons e
cores nunca iguais.
O segundo passo que nos possibilita constituir o
conhecimento está na memória. Sua função é conservar e lembrar o que já esteve
ao alcance da intuição sensível. “A memória é o tesouro
e o lugar de conservação das imagens”. (S. Tomás, Sum.
Th., I, q.29,
7).
O terceiro passo constituinte do conhecimento está na
experiência: a síntese ordenada do material das intuições sensíveis e da memória
e ponto de partida para conhecimentos mais elaborados, como são as artes e as
ciências. “A ciência e as artes vêm ao homem por intermédio da experiência.”
(Aristóteles, Met. I, 4)
As ciências e as artes são uma
produção livre, sublime e comprometedora. Livre, porque não acontece ao
acaso; sublime, porque conduz ao íntimo da experiência; comprometedora porque se
constitui em norma da própria experiência. Assim é que a ciência médica se
constitui em norma para o médico. Este, quando clinica, segue os cânones da
medicina e não tanto da experiência pessoal.
Aristóteles, numa compreensão mais abrangente que a
moderna, dividiu as ciências em três classes: teoria, práxis e póiesis. Póiesis é a criação, a
produção, então são as ciências produtivas, que ensinam a fazer alguma coisa que
ainda não eiste. Por exemplo, ensinam a fazer o arado,
a espada, o avião, a poesia, a música, o culto, a prece, o Estado, as leis.
Práxis é ação, então são as ciências práticas que não ensinam a produzir, mas a
agir. Para agir, é preciso deliberar sobre o que é ou não conveniente. Se
admitirmos que o bem maior do homem está na convivência
e na liberdade, então as ciências práticas são a ética e a política, porque
ensinam a fazer a liberdade e a convivência. “Os homens dotados de tal ciência
são bons administradores de casas e de Estados”. (Aristóteles, Ética, VI,
5).
Teoria é visão contemplativa, então a ciência
contemplativa é uma só: a filosofia, a mais excelente de todas as ciências,
porque se eleva além do interesse das ciências produtivas e práticas. “Todas as
outras ciências são mais necessárias do que a filosofia, mas nenhuma se lhe
sobreleva em excelência”. (Aristóteles, Met., I, 2, 11)
Quando, na experiência humana, buscamos o
conhecimento de filosofia e de ciência, só temos um caminho a seguir: inventar o
conceito. “Os conceitos são o próprio do homem, e a faculdade que ele possui de
os formar, facultade que o
distingue de todos os animais, é o que se chamou de razão.” (A. Schopenhauer, O mundo..., I, 3)
Sócrates disse que o conceito é gerado na nossa
mente, tal qual a criança é gerada no ventre da mãe. As idéias existentes no
nosso pensamento nascem sob a forma de conceitos. É uma espécie de parto do
espírito. Kant, filósofo alemão do século XVIII, para marcar a diferença entre a
filosofia e a ciência moderna (tão diferente da antiga), distinguiu dois tipos
de conceito. O conceito empírico ou a posteriori, próprio das ciências, e o
conceito puro ou a priori, próprio da filosofia.
O conceito empírico é uma medida estatística que se
adequa de maneira igual a cada elemento da realidade
que ele classifica. Por exemplo, para a química, o conceito científico de água
está na medida H²O.
O conceito puro é o acordo do pensamento com o
sentido da experiência. Ele não é obtido pela experiência sensorial, mas pela
intuição sensível. Pelo conceito puro, o pensamento sinaliza clara e
distintamente a realidade no limite de sua experiência. Por exemplo, espírito é
um conceito puro que sinaliza a experiência de sentido do
corpo.
A essência do conceito puro está na ‘audição sonora’
de sentido. Quer dizer, aquilo que é intuído em sua singularidade, se sonoriza
no pensamento. Ao se sonorizar, o intuído se aclara e deixa-se ver e ouvir:
torna-se conceito puro. O conceito mostra assim que o interesse do pensamento
está na intuição sensível. Envolvido no ‘som’ da realidade, entranhado no tropel
de sua dinâmica, o pensamento aprende a conhecê-la. Nessa aprendizagem,
identifica-se com ela. Não por um processo de osmose, onde o real e o pensamento
perderiam sua identidade, mas por um processo de diferenciação, onde o
pensamento conceitua o real.
Daí porque o conhecimento aparece inicialmente como
mito e não como saber racional. O conhecimento racional tende a discriminar:
aponta o certo e o errado, o afinado e o desafinado, o bem e o mal, o falso e o
verdadeiro. Discute, julga, valoriza, secciona o real em blocos, em fatias,
organiza-o de acordo com suas rígidas regras.
Já o mito ocupa todos os espaços da vida humana e faz
do mundo uma celebração de sonho e de delírio. Os demais conhecimentos se
enraízam no mito e são modulações de sua força. É sempre a experiência mítica
que entusiasma a filosofia e a ciência. E hoje é ainda ela que comanda a
produção e o uso das máquinas e dos aparelhos técnicos.
Num célebre discurso aos atenienses, Péricles nos diz
como os gregos, quando ainda eram filósofos, encaravam o conhecimento: “Nós
amamos o belo na sua medida e filosofamos sem timidez”. O belo está no
aparecimento da realidade para nós. Aparecimento gratuito, simples e comedido,
consumado no limite e na passagem, como o raio que cai entre o céu e a terra,
como a tempestade que despeja sobre os campos as chuvas prateadas. Sua aparência
inebriava o sentimento dos antigos gregos e eles a celebravam nos mitos de
Dionísio e Apolo, nos cantos órficos, na poesia e na
arte.
Compete á filosofia, evocada por Péricles, destruir
sem timidez a exaltação desmedida do conhecimento racional para retomar o tempo
da simplicidade, que é sempre também o tempo de pouco saber e de muito
mito.
(Texto adaptado pelo Prof. a
partir de BUZZI, A., Introdução ao Pensar, Ed.Vozes, p.
81-84)