CAPÍTULO 6

REFÚGIO


Um budista é alguém que, motivado pelo medo dos sofrimentos do ciclo do renascimento e dos domínios inferiores de existência, se refugia nas Três Jóias: o Buda, o Dharma (os ensinamentos) e o Sangha (a comunidade espiritual). Através da prática e da experiência, um budista sabe que as Três Jóias têm a capacidade de protegê-lo contra a queda em domínios inferiores de existência. Certa vez, o mestre do século XI, Po-to-wa, observou que, quando visitava um monastério, mesmo entre os monges mais antigos que estavam lá dentro em oração, havia alguns que nem sequer eram budistas. Muitos deles não tinham uma compreensão adequada das Três Jóias. O que fortifica o desejo de alcançar o nirvana é assumir o refúgio.
O Buda é um ser que está totalmente livre de todas as ilusões e falhas, que é dotado de todas as boas qualidades e que obteve a sabedoria eliminando a escuridão da ignorância. O Dharma é o resultado da sua iluminação. Após ter alcançado a iluminação, um Buda ensina, e o que ele ensina é chamado de Dharma. O Sangha é constituído por aquelas pessoas que se engajam na prática dos ensinamentos dados pelo Buda. Estas são as definições básicas das Três Jóias. A atividade do Buda é dar os ensinamentos e mostrar o caminho. A atividade ou a função do Dharma é eliminar os sofrimentos e as suas causas, as ilusões. A função do Sangha é tornar prazeroso o empreendimento da prática deste Dharma. Você deve olhar o Buda com respeito. A sua atitude em relação ao Dharma deve ser de desejo veemente, tentando realizar a experiência disso dentro da sua mente, e você deve considerar o Sangha como companheiros nobres que o ajudam no processo do caminho. O Buda é o mestre que nos mostra o caminho para a iluminação, o Dharma é o verdadeiro refúgio no qual procuramos proteção contra os sofrimentos e o Sangha consiste de companheiros espirituais através das etapas do caminho.
Um dos benefícios do refúgio é que todas as más ações que você cometeu no passado podem ser purificadas, porque refugiar-se acarreta a aceitação da orientação do Buda, bem como seguir um caminho de ação virtuosa. Grande parte das ações negativas que você cometeu no passado pode ser aliviada ou reduzida e o seu estoque de mérito aumentado. Tendo procurado refúgio nas Três Jóias, estaremos protegidos não apenas contra o dano presente, mas também contra o dano do renascimento nos domínios inferiores de existência, e a total iluminação da Fraternidade Búdica pode ser rapidamente obtida. Não devemos desistir nunca das Três Jóias, mesmo se isso custar as nossas vidas. No Tibet, tem havido muitos casos nos quais os chineses tentaram forçar as pessoas a abandonarem a sua fé. Muitas pessoas reagiram dizendo que não poderiam desistir de sua fé e, em vez disso, escolheram desistir de suas vidas. Este é o verdadeiro comprometimento de quem se refugia.
Tsong-kha-pa diz que, se o seu medo e a sua convicção são meras palavras, então refugiar-se também é apenas palavras. Porém, se o seu medo e a sua convicção na capacidade das Três Jóias de protegê-lo contra este medo estão profundamente enraizados, então o seu refúgio também será muito poderoso.
Os próprios objetos dos refúgios alcançaram um estado que é totalmente livre do medo e do sofrimento. Se os próprios objetos não tivessem obtido esse estado, não teriam a capacidade de nos proteger, assim como uma pessoa que caiu não pode nos ajudar a levantar. Aquelas pessoas das quais procuramos proteção devem ser livres do sofrimento e do medo; de outro modo, mesmo que possam ter o desejo de fazê-lo, elas não terão a capacidade de nos protegerem. O Buda Shakyamuni não somente é livre do sofrimento e do medo, como também é extremamente habilidoso em liderar os seres sensíveis pelo caminho certo. Podemos compreender isso refletindo sobre os diversos ensinamentos que o Buda deu para se adequar aos diversos interesses e disposições dos seres sensíveis. Ele nos deixou ensinamentos que podem nos alcançar não importa qual seja o nosso nível de desenvolvimento espiritual. Quando compreendermos a importância disso, também começaremos a admirar todas as religiões do mundo, porque o verdadeiro objetivo do ensinamento delas é ajudar outras pessoas.
Tsong-kha-pa diz que, se você reflete sobre as grandes qualidades que tornam alguma coisa um objeto de refúgio e
desenvolve uma convicção profunda e centralizada nos três objetos de refúgio, não há jeito de não ser protegido. O que precisamos é de uma profunda sensação de medo dos sofrimentos dos domínios inferiores e de confiar na capacidade das Três Jóias de nos protegerem contra eles. Nós desenvolvemos esta confiança através da meditação sobre as qualidades do Buda, do Dharma e do Sangha.
A compaixão do Buda é sem preconceitos. Ele não faz distinção entre os seres sensíveis que o ajudam e aqueles que não o fazem. O seu trabalho em beneficio de todos os seres sensíveis é sem preconceitos. Estas qualificações só são completas no Buda e, portanto, ele e as suas muitas formas e emanações são o refúgio, juntamente com os ensinamentos que ele tem dado e com a comunidade que o imita e se engaja em sua maneira de praticar.
A fala do Buda é de tal ordem que, se lhe é feita qualquer pergunta ou muitas perguntas diferentes ao mesmo tempo, diz-se que ele é capaz de entender a essência de todas elas e que pode responder em uma única declaração. Em consequência, as respostas estão em harmonia com a compreensão de quem fez a pergunta.
A sabedoria do Buda é capaz de perceber toda a abrangência, convencional e absoluta, dos fenômenos, exatamente como se estivesse olhando alguma coisa na palma da sua mão. Conseqüentemente, todos os objetos do conhecimento são percebidos e estão ao alcance da sua sabedoria.
A mente do Buda também é onisciente. A razão pela qual é possível para uma mente de Buda perceber a esfera inteira dos fenômenos sem exceção é que ele alcançou um estado totalmente livre de todas as obstruções ao conhecimento. As obstruções ao conhecimento são as impressões ou predisposições deixadas na mente pelas ilusões — ignorância sobre a natureza da realidade, apego e rancor — desde o início dos tempos. Quando estas impressões são removidas, nos ganhamos o estado chamado de onisciência, porque não existe mais nenhuma obstrução ao conhecimento. Ganhamos o estado onisciente da mente que percebe todo o alcance dos fenômenos sem qualquer obstrução.
A mente do Buda é espontaneamente movida pela compaixão ininterrupta quando ele vê seres sensíveis sofrendo. No início do caminho, o Buda desenvolveu uma forte compaixão em relação a todos os seres sensíveis e, ao longo do caminho, trouxe aquela compaixão ao seu nível definitivo. Sendo um estado virtuoso da mente e baseada na clara natureza da mente, a compaixão tem o potencial de aumentar infinitamente.
O corpo, a fala e a mente dos Budas estão sempre ativamente envolvidos na tarefa de trabalhar pelo beneficio das outras pessoas. Eles realizam os desejos dos seres sensíveis e os conduzem através das etapas do caminho de uma maneira habilidosa apropriada às diversas necessidades, interesses e disposições dos seres sensíveis. Tsong-kha-pa diz que, se a sua fé no Buda é firme, em conseqüência da sua recordação da grande delicadeza e das outras qualidades dele, a sua fé nos outros dois, o Dharma, os ensinamentos dele, e o Sangha, a comunidade espiritual, virá naturalmente e todo o cânone das escrituras budistas será como um conselho pessoal. Portanto, tendo desenvolvido uma forte fé no Buda, você também deve desenvolver uma forte fé nos seus ensinamentos.
As estátuas ou imagens de um Buda, independentemente do seu material ou da sua forma, nunca devem ser criticadas. Você deve respeitá-las como o faria com o próprio Buda. Tendo-se refugiado no Buda, você não deve se preocupar com o material do qual a imagem é feita, mas respeitá-la de qualquer maneira. Você nunca deve transformar as estátuas de Buda em objetos de comércio ou usá-las como garantia para um empréstimo. Certa vez, um discípulo de Atisha lhe pediu para comentar sobre uma estátua de Manjushri, o Bodhisattva da Sabedoria, e disse que, se Atisha a considerasse boa, ele gostaria de comprá-la. Atisha disse que a pessoa não pode fazer julgamentos a respeito do corpo de Manjushri, mas que, no que dizia respeito à escultura, ela era bastante medíocre. Porém, depois ele colocou a estátua em sua cabeça como um sinal de respeito. Parece que, quando Atisha falou que a escultura era bastante medíocre, queria dizer que ela não parecia muito boa, portanto o artista deveria ser mais cuidadoso. Os artistas têm uma responsabilidade muito grande em pintar imagens e esculpir estátuas com uma boa aparência. Caso contrário, há um grave perigo de fazer muitas pessoas acumularem ações não-virtuosas, porque às vezes, devido à aparência estranha das imagens, não podemos evitar o riso.
O método que conduz ao estado onisciente é o caminho. O caminho e a cessação constituem o Dharma, o verdadeiro refúgio. O Dharma é algo que não podemos absorver imediatamente; precisa ser compreendido através de um processo gradual. No contexto da prática de refúgio, você precisa ter muito talento para ser virtuoso enquanto evita as ações negativas. Isto é o que é chamado de a prática do Dharma. Se você tem medo dos sofrimentos dos domínios inferiores de existência, deve transformar a sua mente e impedir que ela se entregue a ações negativas que causam a sua queda. Isso depende muito do fato da sua prática ser ou não séria e do seu comprometimento em acumular ações virtuosas e evitar as ações negativas, o que, por sua vez, depende do fato de você ter ou não uma profunda convicção na lei do karma.
Existem dois tipos diferentes de experiência, a desejável e a indesejável, e cada um deles tem a sua própria causa. O sofrimento, que é a experiência indesejável, é chamado de o ciclo da existência (samsara) e tem a sua origem nas ilusões e nas ações não-virtuosas que elas nos impelem a cometer. A forma definitiva de felicidade, que é a experiência desejável, é o nirvana e resulta da prática do Dharma. A origem dos sofrimentos e dos domínios inferiores de existência são as dez ações negativas (descritas no Capítulo 7). A prosperidade desejada e o renascimento em domínios favoráveis de existência são causados pela observância da moralidade pura ou da prática das dez ações virtuosas. Para evitar o seu renascimento em domínios inferiores de existência e ter de suportar o sofrimento lá, você precisa pôr um fim às suas causas dirigindo o seu corpo, a sua fala e a sua mente para as ações virtuosas. O grau do seu comprometimento com a prática séria depende muito de quão convencido você está, de quão profunda é a sua convicção na lei de causa e efeito, de quão completamente você acredita que os sofrimentos e as infelicidades indesejáveis são consequências de ações negativas e de quão convencido você está de que as conseqüências desejáveis, como a felicidade, a satisfação e a prosperidade, são os resultados das ações positivas. Portanto, em primeiro lugar, é muito importante desenvolver uma profunda convicção na infalibilidade da lei do karma.
Tendo se refugiado no Dharma, como um compromisso de afirmação, a pessoa deve demonstrar respeito aos textos budistas. Você não deve pular nem mesmo uma única página e os textos devem ser mantidos em um local limpo. Você não deve ter uma atitude possessiva em relação às escrituras; não deve vendê-las ou dá-las como garantia para pegar dinheiro emprestado. Não deve colocar os seus óculos ou as suas canetas em cima das escrituras. Quando virar a página, não deve lamber o seu dedo. Diz-se que Geshe Chen-ngawa costumava se levantar quando via os textos sendo transportados e, posteriormente, como não podia mais se levantar devido à sua idade ainda costumava curvar as suas mãos. Quando Atisha estava no Tibet ocidental, havia um praticante tântrico que não queria ser ensinado por ele. Um dia, Atisha viu um outro tibetano marcando o lugar do texto que estava lendo enquanto palitava os dentes. Atisha pediu a ele que não fizesse aquilo e, em conseqüência, o praticante tântrico viu o comprometimento de Atisha com os preceitos de se refugiar, ficou muito impressionado e tornou-se discípulo dele.
Nós também devemos ter fé no Sangha, a comunidade espiritual. Quando falamos sobre o Sangha, referimo-nos principalmente àqueles seres superiores que, como um resultado de sua prática diligente, compreenderam o Dharma dentro de suas próprias mentes e penetraram a natureza da realidade. O verdadeiro Sangha são aquelas pessoas que estão sempre engajadas na prática do Dharma, que preservam os preceitos adequadamente, que são excelentes na sua observância da moralidade, que são sempre confiáveis, honestos e puros de coração e que estão sempre cheios de compaixão.
Tendo se refugiado no Sangha, você nunca deve insultar um monge ou uma monja que mantém a vida ordenada. Deve ser respeitoso com eles. Dentro da comunidade Sangha, você não deve ser sectário ou ter qualquer rivalidade. Em lugares como a Tailândia, o Sangha é mantido com grande respeito. Como as pessoas os respeitam, em contrapartida os monges não devem se comportar deselegantemente para não causar nos leigos a perda da fé. Em geral, não acho que seja necessariamente bom haver uma grande comunidade de monges, como havia no Tibet, mas é melhor haver monges verdadeiramente puros, mesmo que seja apenas uma pequena comunidade. Tornar-se ou não um monge é uma questão de escolha pessoal. Porém, tendo escolhido levar a vida de monge ou monja, naturalmente é melhor não ser uma vergonha para a doutrina. Caso contrário, não somente é ruim para você como também pode fazer com que outras pessoas percam a sua fé e acumulem desnecessariamente ações não-virtuosas. Diz-se que Drom-ton-pa nem sequer passaria por cima de um pequeno pedaço de pano vermelho ou amarelo, porque representava as vestes de monges e monjas.
Tsong-kha-pa diz que refugiar-se é realmente a entrada para a comunidade budista, e se o nosso refúgio é mais do que simples palavras e é realmente sentido em profundidade, seremos invulneráveis aos males provindos dos seres humanos e mais facilmente faremos progresso em nossa prática. Compreendendo estes benefícios, devemos tentar reforçar o nosso medo do sofrimento e desenvolver uma forte fé e convicção na capacidade das Três Jóias de nos proteger desses sofrimentos. Devemos tornar a nossa prática do refúgio tão poderosa quanto possível e tentar nunca agir contra os preceitos que assumimos. Assim, com a consciência da morte e o medo dos domínios inferiores da existência, descobriremos que as Três Jóias têm a capacidade de nos proteger, que são uma verdadeira fonte de refúgio.
O Buda é o mestre que revela o verdadeiro refúgio e o Sangha são os companheiros no caminho que conduz à iluminação. O verdadeiro refúgio é o Dharma, porque através da compreensão do Dharma nos tornaremos livres e seremos aliviados do sofrimento. O Dharma consiste da cessação e do caminho para a cessação. A ausência ou a libertação das ilusões é chamada de cessação. Se não aplicarmos o antídoto apropriado, as nossas falhas e ilusões continuarão a surgir. Porém, depois da aplicação do antídoto, uma vez que uma ilusão seja totalmente desenraizada, nunca surgirá novamente. Este estado livre das ilusões ou das manchas da mente é chamado de cessação. Em resumo, qualquer coisa que queiramos abandonar, tal como o sofrimento e sua origem, pode ser eliminada por intermédio da aplicação de forças opostas. A cessação final, também conhecida como nirvana, é um estado de completa libertação.
Os Budas, os totalmente iluminados, são inconcebíveis; o Dharma, o ensinamento deles, é inconcebível e o Sangha também é inconcebível. Portanto, se você desenvolver uma fé inconcebível, o resultado também será inconcebível. Está dito nas escrituras que se os benefícios de se refugiar nas Três Jóias pudessem se tornar visíveis, todo o universo seria pequeno demais para contê-los, assim como os grandes oceanos não podem ser medidos com as suas mãos. Tendo em mente estes grandes benefícios, você deveria alegrar-se com a oportunidade de fazer oferendas às Três Jóias e de refugiar-se nelas. Você será capaz de aliviar as influências de ações negativas cometidas, além de obstruções kármicas. Todas elas serão eliminadas e você será considerado como um ser sublime, o que agradará às Três Jóias.
 

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