CAPÍTULO 5

RENASCIMENTO


O karma pode ser compreendido como causa e efeito do mesmo modo que os físicos entendem que, para cada ação, existe uma reação igual e contrária. Como na física, nem sempre é previsível qual forma aquela reação irá assumir, mas, às vezes, podemos prever a reação e podemos fazer alguma coisa para minimizarmos o resultado. Agora a ciência está trabalhando em maneiras de limpar o meio ambiente que está poluído e muitos cientistas estão tentando prevenir a poluição futura. Do mesmo modo, as nossas vidas futuras são determinadas pelas nossas ações presentes, bem como por aquelas do nosso passado imediato e das nossas vidas passadas. A prática do Dharma pretende minimizar a consequencia das nossas ações kármicas e prevenir qualquer poluição futura por pensamentos e ações negativas. Caso contrário, aqueles pensamentos e ações negativos nos levarão a um renascimento de extremo sofrimento.
Mais cedo ou mais tarde, vamos morrer e, mais cedo ou mais tarde, precisaremos renascer novamente. Os domínios de existência nos quais podemos renascer estão limitados a dois: o favorável e o desfavorável. Onde vamos renascer depende do karma.
O karma é criado por um agente, uma pessoa, um ser vivo. Os seres vivos não são nada mais do que o ego, definido como a continuidade da consciência. A natureza da consciência é a luminosidade e a clareza. Ela é um agente do conhecimento que é precedido por um momento anterior de consciência que é a sua causa. Se conseguirmos compreender que a continuidade da consciência não pode ser exaurida em uma única vida, descobriremos que existe um suporte lógico para a possibilidade da vida após a morte. Se não nos convencemos da continuidade da consciência, pelo menos sabemos que não há nenhuma evidência que possa invalidar a teoria da vida após a morte. Nós não podemos comprová-la, mas também não podemos rejeitá-la. Há muitos casos de pessoas que se recordam nitidamente de suas vidas passadas. Este não é um fenômeno limitado aos budistas. Existem pessoas com tais recordações cujos pais não acreditam em vida após a morte ou em vidas passadas. Conheço três casos de crianças que são capazes de recordarem nitidamente as suas vidas passadas. Em um dos casos, a recordação da vida passada foi tão intensa que, embora anteriormente os pais não acreditassem em vida após a morte, como conseqüência da clareza da recordação da sua filha, agora estão convencidos. A filha não apenas lembrava-se claramente de ter vivido em uma aldeia da vizinhança que ela reconheceu, mas foi capaz de identificar os seus pais anteriores, os quais ela não havia tido nenhuma outra oportunidade de conhecer. Se não existe nenhuma vida após a morte, não existe nenhuma vida passada e nós precisaremos encontrar uma outra explicação para essas recordações. Há também muitos casos de pais que têm dois filhos educados da mesma maneira, na mesma sociedade, com a mesma formação, embora um seja mais bem-sucedido do que o outro. Nós achamos que essas diferenças surgem em conseqüência de diferenças em nossas ações kármicas passadas.
A morte não é nada mais do que a separação da consciência do corpo físico. Se você não aceita este fenômeno chamado consciência, acho que também é muito difícil explicar exatamente o que é a vida. Quando a consciência está ligada ao corpo e a relação deles continua, nós chamamos isto de vida. Quando a consciência termina a sua relação com um corpo em particular, chamamos isto de morte. Embora os nossos corpos sejam uma agregação de componentes químicos e físicos, um tipo de agente sutil de luminosidade pura constitui a vida dos seres vivos. Já que isto não é físico, não podemos mensurá-lo, mas isso não significa que não exista. Temos gastado muito tempo, energia e pesquisa na exploração do mundo externo, mas agora, se mudarmos aquele enfoque e dirigirmos toda essa exploração, pesquisa e energia para o interior e começarmos a analisar, acho realmente que temos a capacidade de compreender a natureza da consciência — esta clareza, esta luminosidade dentro de nós mesmos.
De acordo com a explicação budista, a consciência é considerada não-obstrutiva e não-física. Todas as emoções, ilusões e falhas humanas surgem das ações desta consciência. Entretanto, também é devido à natureza inerente desta consciência que uma pessoa pode eliminar todas estas falhas e ilusões e produzir uma paz e uma felicidade duradouras. Uma vez que a consciência é a base para a existência e para a iluminação, existem extensos escritos sobre o assunto.
Pela nossa experiência, sabemos que a consciência ou mente está sujeita à mudança, pois ela é dependente das causas e condições que a modificam, transformam e influenciam as condições e as circunstâncias das nossas vidas. Para surgir, a consciência precisa ter uma causa substancial semelhante à natureza da consciência em si. Sem um momento anterior de consciência, não pode haver qualquer consciência. Ela não surge do nada e não pode se transformar em nada. A matéria não pode se transformar em consciência. Conseqüentemente, deveríamos ser capazes de voltarmos no tempo para
investigarmos a seqüência causal dos momentos de consciência.
As escrituras budistas falam sobre centenas de bilhões de sistemas mundiais, números infinitos de sistemas mundiais, e da consciência existindo desde o início dos tempos. Acredito que existam outros mundos. A cosmologia moderna também diz que há muitos tipos diferentes de sistemas mundiais. Embora a vida não tenha sido observada cientificamente em outros planetas, seria ilógico concluir que a vida só é possível neste planeta, que é dependente deste sistema solar, e não em outros tipos de planetas. As escrituras budistas mencionam a presença de vida em outros sistemas mundiais, bem como tipos diferentes de sistemas solares e um número infinito de universos.
Agora, se perguntam aos cientistas como o universo surgiu, eles têm uma grande quantidade de respostas a oferecer. Porém, se lhes perguntam por que essa evolução aconteceu, então eles não têm nenhuma resposta. Geralmente, eles não explicam isso como criação de Deus, porque são observadores objetivos que tendem a acreditar apenas no universo material. Alguns dizem que isso aconteceu por acaso. Agora, tal posição em si é ilógica porque, se existe alguma coisa por acaso, então é equivalente a dizer que as coisas realmente não têm quaisquer causas. Porém, pelas nossas vidas cotidianas, percebemos que tudo tem uma causa: as nuvens causam a chuva; o vento sopra as sementes e, assim, novas plantas crescem. Não existe nada sem uma razão. Se a evolução tem uma causa, então há duas explicações possíveis. Você pode aceitar que o universo foi criado por Deus, caso em que haverá muitas contradições, tais como o sofrimento e o mal também terem sido necessariamente criados por Deus. A outra opção é explicar que existem infinitos seres sensíveis cujos potenciais kármicos criaram coletivamente todo este universo como um ambiente para eles. O universo que habitamos é criado pelos nossos próprios desejos e ações. E por essa razão que estamos aqui. Isso, pelo menos, é lógico.
No momento da morte, somos impelidos pela força das nossas próprias ações kármicas. A consequencia das ações kármicas negativas é o renascimento em domínios inferiores. Para nos desencorajarmos de praticarmos ações negativas, deveríamos tentar~imaginar se seríamos capazes de suportar os sofrimentos dos domínios inferiores. Tendo percebido que a felicidade é uma conseqüência das ações positivas, teremos grande prazer em acumular virtudes. Comparando a sua própria experiência com a de outras pessoas, você será capaz de desenvolver uma forte compaixão, porque irá compreender que os sofrimentos delas não são diferentes dos seus e que elas também desejam alcançar a libertação. É importante meditar sobre o sofrimento dos domínios animal e infernal. Se não fizermos progresso espiritual, as nossas ações negativas nos conduzirão para lá. Se sentirmos que não podemos suportar o sofrimento do calor ou do frio ou da sede e da fome insaciáveis, então a nossa motivação para praticarmos irá aumentar incalculavelmente. Nos dias de hoje, esta existência humana nos proporciona a oportunidade e as condições para nos libertarmos.
As formas inferiores de existência são renascer como um animal, um fantasma voraz ou um ser demoníaco. De acordo com as escrituras, os infernos estão localizados a uma certa distância diretamente abaixo do Bodh Gaya, o local na Índia onde o Buda alcançou a iluminação. Porém, se você realmente viajasse naquela distância, terminaria no meio da América. Portanto, estes ensinamentos não devem ser considerados literalmente. Eles foram transmitidos de acordo com a convenção da época, ou a crença popular. O objetivo da vinda do Buda para este mundo não foi medir a circunferéncia do mundo e a distância entre a terra e a lua, mas, ao contrário, ensinar o Dharma, libertar os seres sensíveis, aliviar os seres sensíveis dos seus sofrimentos. Se não compreendemos o enfoque básico do Budismo, podemos imaginar que, às vezes, o Buda fala de uma maneira contraditória e confusa. Porém, existe um propósito em cada uma das diversas visões filosóficas que ele ensinou, e cada uma beneficia tipos diferentes de seres sensíveis. Quando ele falava sobre os infernos, deve ter levado em conta muitas convenções e crenças populares com o objetivo específico de motivar os ouvintes a praticarem o Dharma.
Acredito que tais estados de variados infernos quentes e frios realmente existam. Se os estados mais elevados, como o nirvana e a onisciência, existem, por que não existiria o seu oposto, o estado mais extremo de sofrimento, a mente mais indômita? Mesmo na existência humana existem tipos diferentes de pessoas: algumas aproveitam mais a vida e têm um grau maior de felicidade, algumas precisam superar um grau maior de sofrimento. Agora, todas estas diferenças na experiência surgem como consequencia de diferenças nas causas —ações ou karma. Se formos mais longe e compararmos os seres humanos às várias formas de existência animal, descobriremos que os estados mentais dos animais são mais indômitos e o sofrimento e a confusão deles são mais óbvios. Mesmo assim, eles têm uma tendência natural de desejar a felicidade e de evitar o sofrimento. Alguns animais são muito espertos: se tentamos prendê-los dando-lhes comida, eles ficam muito cautelosos. No momento em que acabam de comer, tentam fugir. Porém, se formos sinceros e pacientes ao lhes dar comida, eles podem vir a confiar totalmente em nós. Até mesmo os animais, como os cachorros e os gatos, apreciam o valor da delicadeza; eles apreciam o valor da sinceridade e do amor.
Se existem níveis diferentes de realização espiritual baseados em quão domada a mente se torna, também deve haver níveis diferentes de mentes indômitas. Além do domínio animal, há estados corno aquele dos fantasmas vorazes, que não conseguem satisfazer os seus apetites. Os domínios infernais são estados de existência nos quais os sofrimentos são tão extremos que os seres que lá estão dificilmente conservam qualquer poder de julgamento ou de inteligência. Nos infernos, os sofrimentos são calor intenso e frio intenso. Provar que esses domínios existem está além da nossa lógica comum. Porém, podemos concluir que eles existem porque sabemos que o Buda demonstrou ser muito exato, lógico e consistente em muitos outros assuntos importantes, como a impermanência e a causalidade, que podemos verificar logicamente.
Conseqüentemente, podemos inferir que ele também estava correto sobre os vários níveis de renascimento. Os únicos motivos do Buda para explicar os domínios infernais são a compaixão e o seu desejo de ensinar o que seria benéfico para os seres sensíveis se libertarem do ciclo do renascimento. Já que ele não tem nenhuma razão para mentir, essas coisas misteriosas também devem ser verdadeiras.
Todos os dias, nós aceitamos, como sendo verdadeiras, coisas que não temos nenhuma maneira direta de comprovar. Eu nasci em 6 de julho de 1935. Sei disso simplesmente porque a minha mãe me falou e eu acredito nela. Não existe nenhum modo pelo qual eu possa perceber diretamente ou comprovar isso logicamente. Porém, acreditando em alguém em quem confio e que não tem nenhuma razão para me mentir, sei que nasci em 6 de julho de 1935. Aquelas questões mais profundas sobre a vida após a morte e sobre a existência de outros domínios só podem ser abordadas confiando nas escrituras. Precisamos comprovar a validade daquelas escrituras usando a razão. Não podemos simplesmente tomar uma citação ao pé da letra. Precisamos estudá-la e aplicá-la em nossas vidas.
Os muitos níveis diferentes de sofrimento nos domínios inferiores de existência têm sido explicados em diferentes escrituras. Alguns dos sofrimentos são tão extremos que estão além do nosso entendimento. Se você renascer em qualquer um desses domínios inferiores de existência, como irá conseguir suportá-lo? Examine se você tem criado as causas e as condições para renascer em tais domínios inferiores de existência. Uma vez que estamos sob o controle de ilusões, das forças poderosas do rancor e do desejo, seremos forçados, contra a nossa vontade, a nos entregarmos a ações negativas que realmente serão a causa da nossa própria queda. Se for este o caso, então precisaremos nos submeter a esses sofrimentos. Se você não deseja passar por tais sofrimentos ou se acha que nunca seria capaz de suportar tais sofrimentos extremos, deve impedir o seu corpo, a sua fala e a sua mente de se entregarem a ações que irão acumular o potencial para a sua queda em tais estados. Aqueles que já acumularam devem ser adequadamente purificados de acordo com as práticas pertinentes. E já que tudo é impermanente, não existe nenhuma falta de virtude que não possa ser purificada.
Quanto mais você refletir sobre esses sofrimentos e quanto mais fortemente sentir que eles seriam insuportáveis, mais irá perceber o potencial destrutivo das ações negativas. Quando você medita sobre esses sofrimentos, deve tentar se imaginar renascendo nestas existências e suportando os sofrimentos. Por exemplo, diz-se que, quando está refletindo sobre os sofrimentos dos infernos quentes, você deve imaginar o seu corpo queimando ou, quando está refletindo sobre os sofrimentos dos infernos frios, deve pensar que o seu corpo está congelando. O mesmo deve ser feito com relação aos sofrimentos dos animais. Recomenda-se que você vá para algum lugar isolado e tente simular toda a experiência de tais seres, tentando se imaginar suportando o sofrimento deles. Quanto mais poderosamente você se sentir incapaz de suportar o sofrimento, maior será o seu medo dos domínios inferiores. Isso leva ao conhecimento do poder destrutivo das ações negativas e do sofrimento por elas causado. Posteriormente, quando você meditar sobre a compaixão, essa prática irá ajudá-lo a aumentar a sua compaixão com relação às outras pessoas que se entregam a ações negativas muito graves. Por exemplo, quando os tibetanos pensam nos chineses, cujas ações negativas consistem de genocídio, ao invés de ficarem com raiva, tentam desenvolver um forte sentimento de compaixão em relação àqueles que são tão controlados por suas ilusões. Embora essas pessoas possam não passar por sofrimentos óbvios imediatamente, é só uma questão de tempo, porque, mais cedo ou mais tarde, terão de enfrentar as conseqüências. Se, como seres humanos, formos capazes de desenvolvermos imediatamente um medo do sofrimento, temos o potencial, a capacidade e a oportunidade de evitarmos as causas da nossa própria queda. Nós podemos purificar o negativo e acumular grandes reservas de mérito. Seremos capazes de aumentarmos a acumulação de mérito que já temos e de devotarmos o mérito de modo a que ele não possa ser destruído pela raiva. Se, dia após dia, empreendermos a prática adequada, seremos capazes de tornar as nossas vidas humanas significativas.
 

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