CAPÍTULO 4

MORTE


O Buda dizia que, de todas as estações para arar o outono é a melhor; de todos os tipos de combustível para o fogo, o estrume de vaca é o melhor e, de todos os diferentes tipos de consciência, a consciência da impermanência e da morte é a melhor. A morte é certa, mas quando ela irá acontecer é incerto. Se realmente enfrentamos as coisas com destemor, não sabemos o que virá primeiro — o amanhã ou a morte. Não podemos ter certeza absoluta de que o velho irá morrer primeiro e de que o jovem permanecerá. A atitude mais realista que podemos cultivar é esperar pelo melhor, mas estarmos preparados para o pior. Se o pior não acontecer, então está tudo bem. Porém, se ocorrer, não nos pegará desprevenidos. Isso também se aplica à prática do Dharma: esteja preparado para o pior, porque nenhum de nós sabe quando vai morrer.
Todos os dias, ouvimos falar de morte nos jornais ou
sobre a morte de um amigo, de alguém que conhecíamos vagamente ou de um parente. Às vezes, sentimos a perda;
às vezes, quase nos regozijamos, mas, de algum modo, ainda
nos aferramos à idéia de que isso não irá acontecer conosco. Achamos que somos imunes à impermanência e, por isso, adiamos a prática espiritual (que pode nos preparar para a morte), pensando que teremos tempo no futuro. Quando, inevitavelmente, o momento chega, a única coisa que nos resta é o arrependimento. Precisamos nos envolver imediatamente na prática para que, não importa quão cedo a morte venha, estejamos preparados.
Quando a hora da morte chega, nenhuma circunstância
pode evitá-la. Não importa que tipo de corpo você possa ter, não importa quão resistente à doença você possa ser, a morte certamente irá chegar. Se refletirmos sobre as vidas dos Budas e dos bodhisattvas do passado, veremos que, hoje, eles são apenas uma lembrança. Grandes mestres indianos, como Nagarjuna e Asanga, fizeram grandes contribuições para o Dharma e trabalharam para o beneficio dos seres sensíveis, mas tudo o que resta deles agora são os seus nomes. O mesmo se aplica a grandes dirigentes e líderes políticos. As histórias de suas vidas são tão vigorosas que quase parece que eles estão vivos. Quando vamos em peregrinação à Índia, encontramos lugares, como o grande monastério de Nalanda, onde grandes mestres como Nagarjuna e Asanga estudaram e ensinaram. Agora, Nalanda está em ruínas. Quando vemos os vestígios deixados pelas grandes figuras da história, as ruínas nos mostram a natureza da impermanência. Como diz a antiga máxima budista, se entrarmos no subsolo, no mar ou no espaço, nunca seremos capazes de mantermos a morte à distância. Os membros da nossa própria família irão, mais
cedo ou mais tarde, se separar uns dos outros, como um conjunto de folhas sopradas pelo vento. Dentro de um ou dois meses, alguns de nós começarão a morrer e outros irão morrer dentro de poucos anos. Em oitenta ou noventa anos, todos nós, incluindo o Dalai Lama, teremos morrido. Então, somente as nossas realizações espirituais irão nos ajudar.
Não existe ninguém que, depois de nascer, vá cada vez mais para longe da morte. Ao contrário, chegamos cada vez mais perto dela, como animais sendo levados para o abate. Assim como os vaqueiros reúnem os seus bois e as suas vacas e os reconduzem para o estábulo, nós, atormentados pelo sofrimento do nascimento, da doença, do envelhecimento e da morte, movemo-nos sempre para mais próximo do fim de nossas vidas. Neste universo, tudo está sujeito à impermanência e irá, finalmente, se desintegrar. Como dizia o Sétimo Dalai Lama, pessoas jovens que parecem muito fortes e saudáveis mas que morrem cedo são, na verdade, mestres que nos ensinam sobre a impermanência. De todas as pessoas que conhecemos ou temos visto, nenhuma restará em cem anos. A morte não pode ser evitada por mantras ou buscando refúgio em um poderoso líder político.
Durante os anos da minha vida, conheci muitas pessoas. Agora, elas são apenas objetos da minha lembrança. Hoje em dia, conheço novas pessoas. É como assistir a uma peça de teatro; após interpretarem os seus papéis, as pessoas trocam de roupa e reaparecem. Se passamos as nossas curtas vidas sob a influencia do desejo e do rancor; se, por amor àquelas vidas curtas, aumentamos as nossas ilusões, o mal que faremos será de prazo muito longo, porque irá destruir as nossas perspectivas de alcançarmos a felicidade definitiva.
Se, algumas vezes, não somos bem-sucedidos em assuntos mundanos triviais, isso não tem muita importância. Porém, se desperdiçarmos esta preciosa oportunidade proporcionada pela vida humana, estaremos, a longo prazo, nos decepcionando. O futuro está em nossas mãos — quer desejemos suportar o sofrimento extremo caindo nos domínios da existência não-humana, quer desejemos conseguir formas superiores de renascimento, quer desejemos alcançar o estado de iluminação. Shantideva diz que, nesta vida, temos a oportunidade, temos a responsabilidade e temos a capacidade de decidirmos e determinarmos como serão as nossas vidas futuras. Devemos treinar as nossas mentes para que as nossas vidas não sejam desperdiçadas — nem mesmo por um mês ou por um dia — e estejam preparadas para o momento da morte.
Se pudermos cultivar aquele entendimento, a nossa motivação para a prática espiritual virá do nosso interior — o fator motivacional mais forte que existe. Geshe Sha-ra-wa (1070-1141) dizia que o seu melhor mestre era a meditação sobre a impermanência. O Buda Shakyamuni dizia, no seu primeiro ensinamento, que a base do sofrimento era a impermanência.
Quando defrontados com a morte, os melhores praticantes ficarão encantados; os praticantes de nível médio estarão bem preparados e mesmo os praticantes inferiores não terão nenhum arrependimento. Quando chegamos ao último dia de nossas vidas, é muito importante não termos nem sequer uma pontada de arrependimento; caso contrário, a negatividade que experimentamos na hora da morte poderia influenciar o nosso próximo renascimento. A melhor maneira de tornar a vida significativa é empreender o caminho da compaixão.
Se você refletir sobre a morte e a impermanência, começará a tornar a sua vida significativa. Você pode achar que, porque mais cedo ou mais tarde irá morrer, não há nenhuma razão para tentar pensar agora na morte, porque isso somente o tornaria deprimido e preocupado. Porém, a consciência da morte e da impermanência pode ter grandes benefícios. Se as nossas mentes estão aferradas ao sentimento de que não somos sujeitos à morte, então nunca seremos sérios em nossa prática e nunca faremos progresso no caminho espiritual. A crença de que você não irá morrer é o maior obstáculo para o progresso espiritual: você não se lembrará do Dharma; não seguirá o Dharma mesmo que se lembre dele e não seguirá o Dharma completamente mesmo que possa segui-lo até um certo ponto. Se você não contemplar a morte, então nunca levará a sério a sua prática. Dominado pela preguiça, não colocará esforço e ímpeto na sua prática e será bloqueado pela exaustão. Você terá grande apego à fama, à riqueza material e à prosperidade. Quando pensamos tanto nesta vida, tendemos a trabalhar para aqueles que amamos, os nossos parentes e amigos — e esforçamo-nos por fazê-los felizes. Então, quando outras pessoas tentam fazer mal a eles, nós imediatamente rotulamos essas outras pessoas como nossas inimigas. Dessa maneira, as ilusões como o desejo e o rancor aumentam como um rio que transborda no verão. Automaticamente, estas ilusões nos induzem a nos entregarmos a todo tipo de ações negativas, cujas consequências serão, no futuro, renascer em formas inferiores de existência.
Como resultado de uma pequena acumulação de mérito, nós já obtivemos uma preciosa vida humana. Qualquer mérito restante se manifestará como um grau relativo de prosperidade nesta vida. Sendo assim, o pequeno capital que temos já terá sido gasto e, se não acumularmos nada de novo seria como gastarmos as nossas poupanças sem fazermos um novo depósito. Se simplesmente exaurirmos a nossa acumulação de mérito, então, mais cedo ou mais tarde, seremos arremetidos para uma vida futura de sofrimento ainda mais intenso.
Diz-se que, se não tivermos uma consciência adequada da morte, morremos dominados pelo medo e pelo arrependimento. Estes sentimentos podem nos enviar para domínios inferiores. Muitas pessoas evitam falar sobre a morte. Evitam pensar no pior; por isso, quando ele realmente acontece, são tomadas pela surpresa e estão totalmente despreparadas. A prática budista nos aconselha a não ignorarmos os infortúnios, mas a reconhecê-los e confrontá-los, preparando-nos para eles desde o início. Desse modo, quando realmente experimentarmos o sofrimento, ele não será completamente insuportável. Evitar simplesmente um problema não ajuda a resolvê-lo e, na verdade, pode torná-lo pior.
Algumas pessoas observam que a prática budista parece enfatizar o sofrimento e o pessimismo. Acho que isso está muito errado. Na realidade, a prática budista se esforça para obter uma paz duradoura — algo que é inconcebível para uma mente comum — e para pôr fim aos sofrimentos de uma vez por todas. Os budistas não se satisfazem apenas com a prosperidade nesta vida ou com a perspectiva da prosperidade em vidas futuras, mas, ao contrário, buscam uma felicidade definitiva. Agora, a perspectiva budista básica é que, já que os sofrimentos são uma realidade, simplesmente evitá-los com a mente não resolverá o problema. O que deve ser feito é confrontar o sofrimento, enfrentá-lo e analisá-lo, determinar as suas causas e descobrir a melhor maneira de suportá-lo. Quando aquelas pessoas que evitam pensar na miséria são realmente atingidas por ela, estão despreparadas e sofrem mais do que aquelas que se familiarizaram com os sofrimentos, conhecem a origem deles e sabem como eles surgem. Um praticante do Dharma pensa diariamente na morte, reflete sobre os sofrimentos dos seres humanos, sobre o sofrimento da hora do nascimento, sobre o sofrimento do envelhecimento, sobre o sofrimento da doença e sobre o sofrimento da morte. Todos os dias, os praticantes tântricos passam pelo processo da morte na imaginação. É como se morressem mentalmente uma vez a cada dia. Devido à sua familiaridade com a morte, eles estarão bem preparados quando realmente se encontrarem com ela. Se você precisa atravessar um terreno muito perigoso e assustador, deve descobrir com antecedência quais são os perigos e como lidar com eles. Não pensar neles com antecedência seria uma tolice. Quer você goste ou não disso, precisa ir lá. Portanto, é melhor estar preparado e, assim, você saberá como reagir quando as dificuldades aparecerem.
Se você tiver uma perfeita consciência da morte, terá certeza de que vai morrer em breve. Então, se descobrir que vai morrer hoje ou amanhã, você, devido à sua prática espiritual, tentará se separar dos objetos de apego pondo fim aos seus pertences e vendo toda a prosperidade mundana como desprovida de qualquer essência ou importância. Você tentará pôr todo o seu esforço na sua prática. A vantagem de estar consciente da morte é que isso torna a vida significativa e, sentindo alegria quando o momento da morte se aproximar, você irá morrer sem nenhum remorso.
Quando você reflete sobre a certeza da morte em geral e sobre a incerteza da sua hora, fará todo esforço para se preparar para o futuro. Perceberá que a prosperidade e as atividades desta vida são desprovidas de essência e de importância.
Então, trabalhar para o beneficio a longo prazo seu e de outras pessoas parecerá muito mais importante e a sua vida será orientada por esta compreensão. Como dizia Milarepa, já que, mais cedo ou mais tarde, precisamos deixar tudo para trás, por que não abrirmos mão imediatamente? Apesar de todos os nossos esforços, incluindo tomar medicamentos ou realizar cerimônias duradouras, é muito pouco provável que alguém irá viver mais do que cem anos. Existem alguns casos excepcionais, mas, após sessenta ou setenta anos, a maioria das pessoas que estão lendo este livro não estará viva. Após cem anos, as pessoas refletirão sobre o nosso tempo simplesmente como uma parte da história.
Quando a morte chega, a única coisa que pode ajudar é a compaixão e a compreensão da natureza da realidade que a pessoa obteve. Desse ponto de vista, é muito importante examinar se existe ou não vida após a morte. Vidas passadas e futuras existem pelas seguintes razões: determinados padrões de pensamento do ano passado, do ano retrasado e mesmo da infância podem ser recordados agora. Isso mostra claramente que existiu uma consciência anterior à consciência presente. O primeiro instante de consciência nesta vida também não é produzido sem uma causa nem nasceu de algo permanente ou inanimado. Um momento de recordação é algo claro e conhecido. Conseqüentemente, deve ser precedido por alguma coisa clara e conhecida, um momento de recordação anterior. Não é provável que o primeiro momento de recordação nesta vida pudesse vir de qualquer outra coisa que não fosse uma vida anterior.
Embora o corpo físico possa agir como uma causa secundária de mudanças sutis na mente, ele não pode ser a causa principal. A matéria nunca pode se transformar em mente e a mente não pode se transformar em matéria. Conseqüentemente, a mente deve vir da mente. A mente desta vida presente vem da mente da vida anterior e serve como a causa da mente da próxima vida. Quando você refletir sobre a morte e tiver consciência dela constantemente, a sua vida tornar-se-á significativa.
Compreendendo as grandes desvantagens do nosso instintivo apego à permanência, devemos nos opor a isso e estarmos constantemente conscientes da morte. Assim, ficaremos motivados para empreendermos a prática do Dharma com mais seriedade. Tsong-kha-pa diz que a importância da consciência da morte não se limita apenas à etapa inicial. É importante através de todas as etapas do caminho. É importante no início, no meio e também no fim.
A consciência da morte que devemos cultivar não é o medo comum e incapacitante de sermos separados das pessoas e posses que amamos. Ao contrário, devemos aprender a temer o fato de que iremos morrer sem termos posto um fim às causas que determinam um renascimento em formas inferiores de existência e de que iremos morrer sem termos acumulado as causas e condições necessárias para um renascimento futuro favorável. Se não realizarmos estes dois objetivos, então, no momento da morte, seremos dominados por um forte medo e remorso. Se passamos toda a nossa vida entregando-nos a ações negativas induzidas pelo rancor e pelo desejo, causamos prejuízos não apenas temporariamente mas também a longo prazo, porque acumulamos e armazenamos uma vasta coleção de causas e condições para a nossa própria queda em vidas futuras. Temer isto irá nos inspirar a transformarmos até mesmo as nossas vidas do dia-a-dia em algo significativo. Tendo obtido uma consciência da morte, iremos ver a prosperidade e os assuntos desta vida como sem importância e iremos trabalhar por um futuro melhor. Este é o propósito de meditar sobre a morte. Se temermos a nossa morte agora, tentaremos encontrar um método para superar o nosso medo e o nosso arrependimento na hora da morte. Entretanto, se tentarmos evitar um medo da morte imediata, no momento da morte estaremos dominados pelo remorso.
Tsong-kha-pa diz que, quando a nossa contemplação da impermanência se torna muito firme e estável, tudo o que encontrarmos irá nos ensinar sobre a impermanência. Ele diz que o processo da abordagem da morte começa desde a concepção e que, enquanto estamos vivos, as nossas vidas são constantemente atormentadas pela doença e pelo envelhecimento. Embora estejamos saudáveis e vivos, não deveríamos nos enganar pensando que não iremos morrer. Não deveríamos ficar obviamente encantados quando estamos bem. É melhor estarmos preparados para o nosso destino futuro. Por exemplo, alguém que está caindo de um penhasco muito alto não fica feliz antes de chegar ao solo.
Mesmo enquanto estamos vivos, existe muito pouco tempo para a prática do Dharma. Mesmo se assumimos que podemos viver muito, talvez cem anos, nunca deveríamos nos apegar ao sentimento de que teremos tempo para praticar o Dharma mais tarde. Não deveríamos ser influenciados pela procrastinação, que é uma forma de preguiça. Metade da vida de uma pessoa é passada dormindo e, na maioria do tempo restante, somos distraídos pelas atividades mundanas. Quando ficamos velhos, a nossa força física e mental diminui e, mesmo que queiramos praticar, será tarde demais, porque não teremos a capacidade de praticar o Dharma. Como diz uma escritura, metade da vida de uma pessoa é passada dormindo; durante dez anos somos crianças e durante vinte anos somos velhos, e o tempo intermediário é atormentado por preocupações, tristezas, sofrimentos e depressões. Portanto, dificilmente existe algum tempo para a prática do Dharma. Se vivemos sessenta anos e pensarmos em todo o tempo passado como crianças, em todo o tempo que estamos dormindo e no tempo em que somos idosos demais, descobriremos que só há cerca de cinco anos que podemos devotar à prática séria do Dharma. Se não fizermos um esforço deliberado para empreendermos a prática do Dharma, mas, ao contrário, vivermos como normalmente o fazemos, certamente passaremos as nossas vidas em ociosidade sem objetivo. Gungthang Rinpoche dizia, parcialmente brincando: “Passei vinte anos sem pensar em praticar o Dharma; depois, passei outros vinte anos pensando que praticaria mais tarde e, depois, passei dez anos pensando em como eu tinha perdido a oportunidade de praticar o Dharma.”
Quando eu era apenas uma criança, não aconteceu muita coisa. Com cerca de quartorze ou quinze anos, comecei a me interessar seriamente pelo Dharma. Depois, os chineses vieram e passei muitos anos em todos os tipos de confusões políticas. Fui para a China e, em 1956, visitei a Índia. Depois, retornei ao Tibet e novamente me envolvi algumas vezes em assuntos políticos. A melhor coisa da qual me lembro foi o meu exame para geshe (o mais alto grau acadêmico e
nas universidades monásticas tibetanas), após o qual precisei deixar o meu país. Agora, estou no exílio por mais de trinta anos e, embora tenha conseguido estudar e praticar um pouco, a maior parte da minha vida é passada ociosamente sem muito beneficio. Ainda não cheguei ao ponto de me arrepender por não ter praticado. Se eu pensar em termos da prática da Tantra Ioga Mais Elevada, há certos aspectos do caminho que não posso praticar porque os meus componentes físicos começaram a se deteriorar com a idade. O tempo para praticar o Dharma não chega naturalmente, deve ser estabelecido deliberadamente.
Se você precisa sair para uma longa viagem, em um determinado momento é necessário fazer preparativos. Como sempre gosto de dizer, deveríamos gastar cinqüenta por cento do nosso tempo e da nossa energia com questões relativas à nossa vida futura e cinqüenta por cento com assuntos desta vida.
Existem muitas causas para a morte e muito poucas causas para permanecer vivo. Além disso, aquelas coisas que normalmente consideramos como sendo de apoio à vida, tais como comida e remédios, podem se tornar causas da morte. Hoje, diz-se que muitas doenças são causadas pela nossa dieta. As químicas usadas para o crescimento das safras e para a engorda dos animais contribuem para a má saúde e causam desequilíbrio no corpo. O corpo humano é tão sensível e tão delicado que, se estiver gordo demais, você tem todo o tipo de problema: você não consegue andar direito, tem pressão alta e o seu próprio corpo torna-se um fardo. Por outro lado, se estiver magro demais, você tem pouca força ou estamina, o que leva a todo tipo de outros problemas. Quando você é jovem, aborrece-se por não estar incluído entre os adultos e, quando é idoso demais, sente-se como se tivesse sido expulso da sociedade. Esta é a natureza da nossa existência. Se o dano fosse algo imposto externamente, então você poderia, de algum modo, evitá-lo; poderia ir para baixo da terra ou submergir no oceano. Porém, quando o dano vem do interior, não há muita coisa que você possa fazer. Enquanto estamos livres de doenças e dificuldades e temos um corpo saudável, devemos capitalizar e tirar a essência disso. Tirar a essência da vida é tentar alcançar um estado totalmente livre da doença, da mortalidade, da decadência e do medo — isto é, um estado de libertação e onisciência.
O homem mais rico do mundo não pode levar uma única posse consigo na morte. Tsong-kha-pa diz que, se devemos deixar para trás este corpo, do qual gostamos tanto, consideramos como sendo nosso e que tem nos acompanhado desde o nosso nascimento como o nosso mais antigo companheiro, então não há dúvidas sobre deixar para trás os pertences materiais. A maioria das pessoas gasta muito tempo e energia simplesmente tentando obter alguma prosperidade e felicidade nesta vida. Porém, no momento da morte, todas as nossas atividades mundanas, tais como cuidar dos nossos parentes e amigos e competir com os nossos rivais, precisam ser deixadas incompletas. Embora você possa ter comida suficiente para se abastecer durante cem anos, na hora da morte você terá de ir com fome, embora possa ter roupas que seriam suficientes para cem anos, você terá de ir nu. Quando a morte chega, não há nenhuma diferença entre a maneira como um rei morre, deixando o seu reino para trás, e a maneira como morre um mendigo, deixando o seu cajado para trás.
Você deveria tentar imaginar uma situação na qual estivesse doente. Imagine que você tem uma doença grave e que toda a sua força física foi embora; você se sente exausto e até mesmo os medicamentos não o irão ajudar. Quando chegar a hora da morte, o médico falará de duas maneiras: para o paciente, ele dirá: “Não se preocupe, você vai melhorar. Não há nada com que se preocupar; apenas relaxe.” Para a família, irá dizer: “A situação é muito grave. Vocês devem se preparar para as cerimônias finais.” Naquele instante, você não terá nenhuma oportunidade de concluir negócios incompletos ou de terminar os seus estudos. Quando você se deitar, o seu corpo estará tão fraco que dificilmente poderá move-lo. Depois, o calor do seu corpo se dissolve gradativamente e você sente que o seu corpo se tornou muito rijo, como uma árvore que caiu na sua cama. Você irá realmente começar a ver o seu próprio cadáver. As suas últimas palavras mal serão ouvidas e as pessoas ao seu redor precisarão lutar para entender o que você está dizendo. A sua última refeição não será uma comida deliciosa, mas sim uma mistura de pílulas que você não terá força para engolir. Você precisará deixar os seus amigos mais íntimos; talvez se passem eras antes que possa encontrá-los novamente. A sua respiração se modificará e ficará barulhenta. Gradualmente, ela se tornará mais irregular, com a inalação e a exalação cada vez mais rápidas. Finalmente, haverá uma última exalação muito forte e será o fim da sua respiração. Isso determina a morte como ela é comumente entendida. Depois disso, o seu nome, que um dia deu tanta alegria aos seus amigos e à sua família ao ouvi-lo, terá um prefixo acrescentado a ele, “o falecido”.
E crucial que, no momento da morte, a mente esteja em um estado virtuoso. E a última oportunidade que temos e que não deve ser perdida. Embora possamos ter vivido uma vida muito negativa, no momento da morte devemos fazer grande esforço para cultivar um estado virtuoso da mente. Se, na hora da morte, formos capazes de desenvolver uma compaixão muito forte e poderosa, há esperança de que, na próxima vida, renasceremos em uma existência favorável. De um modo geral, a familiaridade representa um grande papel nisso. Quando a pessoa está doente e quase morrendo, não é oportuno que outras pessoas permitam que o moribundo sinta desejo ou rancor. No mínimo, devem ser mostradas ao moribundo imagens de Budas e bodhisattvas para que ele possa vê-las, tentar desenvolver uma forte crença neles e morrer em uma constituição mental auspiciosa. Se isso não for possível, é muito importante que os assistentes e os parentes não façam o moribundo sentir-se perturbado. Naquele momento, uma emoção muito forte, como o desejo ou o rancor, pode remeter a pessoa a um estado de grande sofrimento e, bem possivelmente, a um renascimento inferior.
Na medida em que a morte se aproxima, podem aparecer determinados sinais indicando o futuro. Aqueles que tem mentes virtuosas sentirão que estão indo da escuridão para a luz ou para um campo aberto. Sentir-se-ão felizes, terão visões de coisas bonitas e não irão sentir nenhum sofrimento agudo enquanto morrem.
Se, no momento da morte, as pessoas têm sentimentos muito fortes de desejo ou rancor, elas verão todo tipo de alucinações e sentirão grande ansiedade. Algumas pessoas sentem como se estivessem entrando na escuridão; outras sentem que estão queimando. Conheci algumas pessoas que estiveram muito doentes que me falaram que, quando estavam seriamente enfermas, tinham visões de estarem sendo queimadas. Isso é uma indicação do destino futuro delas. Como um resultado de tais sinais, a pessoa moribunda irá se sentir muito confusa e irá gritar e gemer sentindo como se todo o corpo estivesse sendo derrubado. Na hora da morte, terá uma dor aguda. Tudo isso deriva, em última análise, da afeição ‘focalizada em si mesmo. O moribundo sabe que a pessoa que ele tratou com tanto carinho vai morrer.
Quando aquelas pessoas que, na maior parte de suas vidas, se entregaram à ação negativa morrem, diz-se que o processo de dissolução do calor corporal começa da parte superior do corpo até alcançar o coração. Para os praticantes da virtude, diz-se que o processo de dissolução do calor começa de baixo, das pernas, e, finalmente, alcança o coração. Em qualquer caso, a consciência realmente vai embora partindo do coração.
Após a morte, a pessoa entra no estado intermediário, o bardo. No estado intermediário, o corpo tem diversas características extraordinárias: todos os sentidos físicos estão completos e o corpo tem uma aparência física que é idêntica à aparência física do ser que renascerá a seguir. Por exemplo, se for para renascer como um ser humano, terá uma aparência física idêntica de um ser humano. Se for para renascer como um animal, então terá a aparência física do animal em particular. O ser do estado intermediário tem uma visão tão poderosa que pode ver através de objetos sólidos e é capaz de viajar para qualquer lugar sem obstáculos. Os seres do estado intermediário só são visíveis para os seres intermediários do mesmo tipo. Por exemplo, se um ser intermediário está destinado a renascer como um humano, ele só será visível para seres intermediários que estão destinados a renascerem como humanos. Os seres intermediários do domínio das divindades andam e olham para cima e os seres intermediários do domínio humano andam e olham para a frente. Diz-se que os seres intermediários daquelas pessoas que se entregaram a ações negativas e que estão destinadas a renascerem em domínios inferiores se movem de cabeça para baixo.
O período de tempo passado nesse estado intermediário é de sete dias. Após uma semana, se o ser do estado intermediário encontra circunstâncias apropriadas, irá renascer no domínio de existência apropriado. Se não encontra, então precisará morrer novamente uma pequena morte e surgir novamente como um ser intermediário. Isso pode acontecer sete vezes, mas, após 49 dias, não pode mais permanecer como um ser do esta do intermediário e deve renascer, quer queira ou não. Quando chega a hora dele renascer, ele vê seres do seu próprio tipo brincando e irá desenvolver um desejo de juntar-se a eles. Os fluidos regeneradores dos futuros pais, o sêmen e o óvulo, parecem-lhe diferentes. Embora os pais possam não estar realmente dormindo juntos, o ser intermediário terá a ilusão de que estão e se sentirá atraído por eles. Se alguém provavelmente nascer como uma menina, diz-se que ela sentirá repulsa pela mãe e, dirigida pela atração, tentará dormir com o pai. Se alguém provavelmente nascer como um menino, ele sentirá repulsa pelo pai, mas terá atração pela mãe e tentará dormir com ela. Movido por este desejo, ele ou ela vai até onde os pais estão. Então, nenhuma parte do corpo dos pais aparece para aquele ser, exceto os órgãos sexuais, e, conseqüentemente, o ser se sente frustrado e irritado. Aquela raiva serve como a condição para a sua morte do estado intermediário e ele renasce no útero. Quando os pais estão copulando e chegam ao orgasmo, diz-se que uma ou duas gotas de sêmen espesso e o óvulo se misturam como nata na superfície do leite fervido. Naquele momento, a consciência do ser intermediário extingue-se e entra na mistura. Aquilo marca a entrada no útero. Embora os pais possam não estar copulando, o ser intermediário tem a ilusão de que eles o estão fazendo e irá para o lugar. Isso implica que existem casos nos quais, embora os pais possam não copular, ainda assim a consciência pode entrar nos elementos físicos. Isso explica os atuais bebês de proveta. Quando os fluidos são recolhidos dos pais, misturados e guardados em um tubo, a consciência pode entrar naquela mistura sem que realmente haja a cópula.
Shantideva diz que até os animais agem para experimentar o prazer e evitar a dor nesta vida. Precisamos voltar a nossa atenção para o futuro; caso contrário, não seremos diferentes dos animais. A consciência da morte é o verdadeiro fundamento de todo o caminho. Até que você tenha desenvolvido esta consciência, todas as outras práticas ficam obstruídas. O Dharma é o guia que nos conduz através do terreno desconhecido; o Dharma é o alimento que nos sustenta em nossa viagem; o Dharma é o capitão que nos levará à praia desconhecida do nirvana. Conseqüentemente, ponha toda a energia do seu corpo, da sua fala e da sua mente na prática do Dharma. Falar a respeito da meditação sobre a morte e a impermanência é muito fácil, mas a verdadeira prática é realmente muito difícil. Quando realmente praticamos, às vezes não notamos muita mudança, especialmente se apenas comparamos o ontem e o hoje. Existe um perigo de perder a esperança e ficar desencorajado. Em tais situações, é bastante útil não comparar dias ou semanas, mas, ao contrário, tentar comparar o nosso estado de espírito atual com aquele de cinco ou dez anos atrás; estão, veremos que houve alguma mudança. Podemos observar alguma mudança na nossa perspectiva, na nossa compreensão, na nossa espontaneidade, na nossa reação a estas práticas. Aquilo, em si, é uma fonte de grande encorajamento; realmente nos dá esperança, porque mostra que, se fizermos o esforço, existe o potencial para o progresso futuro. Ficarmos desencorajados e decidirmos adiar a nossa prática para um momento mais favorável é realmente muito perigoso.

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