Texto publicado em Mundo Espírita, julho 2003, caderno especial.

Ser Espírita

Silvio Seno Chibeni

 

“Pois que vos dizeis espíritas, sede-o.”

Simeão[1]

 

1. Introdução

O que é ser espírita? Raras vezes essa questão é colocada, embora o qualificativo de espírita seja amplamente usado. Neste trabalho pretendemos mostrar como Allan Kardec abordou a questão, em diversas de suas obras.

Lembremos, inicialmente, que o termo espírita, foi, como vários outros, inventado por Kardec com o objetivo específico de conferir clareza terminológica à nova área que estava sendo criada (ver O Livro dos Espíritos, Introdução, item 1). A palavra espírita foi inicialmente introduzida como adjetivo, para qualificar diversos substantivos, como doutrina, filosofia, fenômeno, etc. Assim, as expressões doutrina espírita, filosofia espírita, fenômenos espíritas e outras são usadas por Kardec já na primeira edição do Livro dos Espíritos.

Na questão que nos propusemos analisar, o adjetivo é aplicado a pessoas: homem espírita, mulher espírita, criança espírita, etc. Desse uso do adjetivo deriva, omissão do substantivo, o substantivo ‘espírita’, que aparece em frases como: ‘Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo’, ‘os bons espíritas’, etc.  Trata-se de um fenômeno lingüístico comum; outros casos seriam, por exemplo, os substantivos jovem, louco, criminoso, e uma infinidade de outros.

 

2. A questão no Livro dos Espíritos

É interessante observar que no Livro dos Espíritos o termo espírita ainda não aparece como substantivo, ou como adjetivo aplicado a pessoas. Todavia, na segunda edição – que é de 1860, tendo-se tornado o texto definitivo que usamos até hoje – Kardec considerou a questão que nos ocupa, embora numa formulação diferente. Ele o fez no item 7 da Conclusão. (Na primeira edição não havia conclusão, mas apenas um curto Epílogo.) Vejamos o trecho relevante:

O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os  princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: 1o os que crêem nas manifestações e se limitam a comprová-las; para esses, o Espiritismo é uma ciência experimental; 2o os que lhe percebem as conseqüências morais; 3o os que praticam ou se esforçam por praticar essa moral. (O Livro dos Espíritos, Conclusão, item 7.)

Nota-se aqui que a  referência aos “adeptos” equivale a uma referência aos “espíritas”, no sentido substantivado que o termo adquiriria depois. Observa-se também que a distinção das três “classes” ou “graus” de adeptos ou de espíritas é feita a partir da distinção de três “aspectos” do Espiritismo. Hoje em dia é comum falar-se nos três aspectos do Espiritismo como sendo o científico, o filosófico e o religioso, ou moral. A distinção que Kardec traça aqui não coincide exatamente com essa distinção contemporânea.

O primeiro aspecto que ele aponta, “o fato das manifestações”, consiste simplesmente dos fatos, ou fenômenos, espíritas, como os movimentos de objetos, os ruídos, a tiptologia, a vidência, a psicografia, etc. Embora tais fenômenos sejam de importância capital, por seu papel histórico no surgimento do Espiritismo e por constituírem sua base experimental, eles por si sós não constituem a ciência espírita. Nenhuma ciência, aliás, consiste unicamente de uma coleção de fenômenos. Outro ingrediente essencial de qualquer ciência é a teoria, ou seja, o conjunto de leis ou princípios que regulam os fenômenos. Ora, na classificação traçada neste item da Conclusão tais princípios já integram o segundo aspecto. Deve-se lembrar que, seguindo a forma de expressão da época, Kardec muitas vezes se refere à teoria espírita, mesmo em sua dimensão científica, como filosofia. Assim, quando fala aqui nos “princípios de filosofia” certamente inclui os princípios genuinamente científicos do Espiritismo. O segundo aspecto do Espiritismo indicado por Kardec nessa passagem é, pois, o seu aspecto teórico, numa acepção ampla do termo, que inclui tanto a ciência propriamente dita como a filosofia.

O terceiro aspecto, a “aplicação” dos princípios espíritas, remete ao plano prático, ao plano de nossas ações. Naturalmente, essa aplicação dos princípios espíritas só faz sentido para uma classe especial deles, justamente os princípios morais. Os outros, de cunho mais propriamente científico, não podem ser objeto de “aplicação” em nossas ações, mas unicamente na análise intelectual que façamos dos fenômenos espíritas e de outros fenômenos relevantes para o Espiritismo. A moral, ou ética, é a área da filosofia que se ocupa do estudo das ações humanas: os critérios do certo e do errado, do bem e do mal, dos direitos e deveres. Portanto, nesta e nas demais passagens que examinaremos adiante a aplicação ou prática do Espiritismo deve ser entendida como a prática de seus princípios morais.

Traçada essa distinção entre os três aspectos do Espiritismo, fica naturalmente indicada uma distinção entre os adeptos do Espiritismo. Numa primeira classe estão aqueles que simplesmente reconhecem que os fenômenos espíritas são reais, e não uma fraude, ou uma ilusão. A segunda classe é formada por aqueles que, além dos fenômenos, reconhecem os princípios que os regem e os que deles decorrem, por análise filosófica, incluindo-se aí os princípios morais. Na terceira classe, por fim, estão aqueles que percebem a excelência desses princípios morais e os tomam como diretrizes de sua própria conduta, ou pelo menos esforçam-se por adaptá-la a eles.

Kardec observa que se pode considerar essas classes também como “graus”, na medida em que a aceitação dos três aspectos do Espiritismo pode ser feita um por vez, na ordem indicada.

A distinção das três classes de espíritas reaparecerá de forma explícita, com variações pequenas de expressão, no Livro dos Médiuns e na Viagem Espírita em 1862. Mas, como veremos, importantes desdobramentos dessa análise fundamental serão feitos por Kardec também em outras de suas obras.

 

3. A questão no Livro dos Médiuns

O capítulo 3 da 1a parte do Livro dos Médiuns, intitulado “Do método”, é de grande relevância para o nosso tema neste artigo. O método a que o título se refere é, por um lado, o método de proceder para a apresentação do Espiritismo aos não-espíritas e, por outro, o método geral de estudo do Espiritismo. Kardec mostra aqui toda a sua sensibilidade didática, pois o modo de divulgar e abordar o Espiritismo, assim como qualquer outra disciplina de igual complexidade, deverá levar em conta a pessoa ou grupo de pessoas a que nos dirigimos.

Comecemos destacando este trecho do parágrafo 19:

É crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo se encontram pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.

No parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:

Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos levados naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo.

Essa “sanção racional” é a que advém da explicação dos fatos pela teoria. No parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam a uma sessão de experimentação espírita “nove sairão sem estar convencidas, e algumas mais incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que esperavam”. Prossegue então Kardec:

O inverso se dará com as que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Para estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante.

Considerações interessantes nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo com o Crítico (cap. I, primeiro diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:

E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudastes os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado, satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo a metalurgia?

Mais adiante, no diálogo com o Céptico (cap. I, segundo diálogo, seção “Elementos de convicção”) Kardec coloca a questão em termos explícitos:

Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.

Quantos me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes ?

Vemos, pois, que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na “doutrina”, na sua “parte filosófica”, que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando “teoria”. Os fatos em si não constituem a ciência, conforme já dissemos na seção anterior. Notamos também que Kardec entendia o papel da teoria como dando “corpo”, ou seja, coesão, inteligibilidade, aos fenômenos.[2] 

Alongamo-nos nessas passagens porque mostram a importância de se tomar o Espiritismo no seu conjunto, fenômenos e teoria, sem o que ficaria mutilado. Embora seja possível haver, e de fato haja, “adeptos” que param no primeiro “grau”, no mero reconhecimento da realidade dos fenômenos, essa atitude não é a mais racional e científica. Talvez não seja inoportuno observar, a esse propósito, que um dos fatores do declínio do movimento espírita na Europa no início do século XX foi justamente o enfoque exclusivamente experimental de muitos pesquisadores, que se ativeram aos fenômenos – desnecessariamente repetindo experimentos, aliás –, desprezaram a teoria espírita sem  uma análise cuidadosa, e em muitos casos nem mesmo procuraram colocar outra em seu lugar. Qualquer filósofo da ciência sabe que essa postura não apenas descaracteriza o caráter científico da investigação como um todo mas também reduz drasticamente o próprio rendimento da pesquisa experimental (como ressalta Kardec no trecho citado do parágrafo 34 do Livro dos Médiuns).

Antes de prosseguirmos, devemos ainda recorrer à filosofia para compreendermos melhor a noção de crença, a que o presente estudo faz referências tantas vezes. Crença, no sentido filosófico, não é o processo vulgarmente entendido como tal, que envolve algum tipo de sentimento místico ou religioso. É um dos ingredientes básicos de qualquer conhecimento. Na  Grécia antiga, onde nasceu a filosofia, os filósofos já deram grande importância ao estudo do assunto. Uma das análises mais influentes foi a de Platão, que propôs que para que um sujeito S saiba alguma coisa P, três requisitos devem ser cumpridos: 1. S deve acreditar em P; 2. P deve ser verdade; e 3. S deve ter evidência para a verdade de P. A crença é, pois, o primeiro ingrediente do conhecimento.

É de fundamental importância reconhecer que a crença, nesse sentido, é algo involuntário: não está em nosso poder crer ou deixar de crer numa determinada coisa. A crença “ocorre” em nós quando estamos diante de certas circunstâncias, por um tipo de “automatismo” cognitivo. O máximo que podemos fazer é voluntariamente buscarmos circunstâncias que esclareçam o ponto em questão, o que poderá então determinar a crença, ou descrença, dependendo do caso. Isso remete, pois, ao terceiro requisito da definição platônica de conhecimento: a evidência. Pensando de forma bastante geral no conhecimento, essa evidência pode ser de dois tipos: evidência experimental (ou empírica, como dizem os filósofos), que é a fornecida pela observação dos fenômenos, e evidência racional, que provém da atividade da razão humana. Só para ilustrar, a evidência para as proposições matemáticas, por exemplo, é essencialmente racional: é o raciocínio que nos prova as verdades matemáticas. Já no caso do conhecimento dos processos físicos a evidência preponderante é empírica: precisamos observar sensorialmente o mundo para saber como é (embora, como vimos, a mera observação dos fatos, sem o auxílio de considerações teóricas, não forneça o conhecimento científico pleno).

Tudo isso mostra quão insensata é a posição comum, de que a crença é algo que se prescreva, que se ordene, que se delibere fazer. Se a pessoa não estiver diante da evidência relevante ao caso, ninguém poderá fazê-la crer ou não crer nisso ou naquilo, nem mesmo ela própria. Conhecedor desse ponto importante, Kardec sempre enfatizou que o Espiritismo, em particular, jamais poderia ser imposto. A crença em seus fenômenos e princípios só pode ser o resultado da exposição ao corpo de evidência apropriado. Ademais, como vimos nas passagens transcritas, Kardec sabia que o fornecimento de evidência parcial, exclusivamente experimental, em geral é ineficaz até mesmo para produzir crença na realidade dos fenômenos. O Espiritismo tem de ser apresentado, e considerado, em seu conjunto, fenômenos e princípios científicos e filosóficos, para que possibilite a formação de crença sólida e fundamentada.

Passemos agora ao parágrafo 28 do Livro dos Médiuns, onde reaparece a distinção das três classes de espíritas esboçada na conclusão do Livro dos Espíritos. Antes de apresentá-la, Kardec destaca a existência de duas classes por assim dizer “intermediárias” entre a dos opositores (amplamente examinada na parte precedente do capítulo) e a dos adeptos “que se convenceram por um estudo direto”: a dos incertos (§ 26) e a dos espíritas sem o saberem (§ 27). Os primeiros são aqueles que, em geral espiritualistas, têm uma “vaga intuição das idéias espíritas”, mas sem a coordenação e precisão que lhes confere o Espiritismo. Quando este lhe é apresentado, “é como um raio de luz: a claridade que dissipa o nevoeiro”; acolhem-no então pressurosamente.

Quanto à curiosa classe dos que, no fundo, são espíritas, mas disso não se dão conta, é formada pelos que “sem jamais terem ouvido tratar da doutrina espírita, possuem o sentimento inato dos grandes princípios que dela decorrem e esse sentimento se reflete em algumas passagens de seus escritos e de seus discursos, a ponto de suporem, os que os ouvem, que eles são completamente iniciados.” Kardec nota que a distinção entre essa classe e a precedente é tênue, esta podendo ser considerada uma variante daquela. Talvez o que distinga a segunda seja um maior grau de coordenação e clareza das idéias. Nota ainda que há numerosos exemplos de indivíduos dessa classe entre os escritores profanos e sagrados, poetas, oradores, moralistas e filósofos, antigos e modernos. Um exemplo interessante está relatado na segunda parte da obra O Céu e o Inferno. No capítulo 2, dedicado às comunicações dos Espíritos felizes, há o caso de Jean Reynaud, que em sua última encarnação levou vida virtuosa. Dentre as questões que lhe foram propostas está esta:

P. – Em vida professáveis o Espiritismo?

R. – Há uma grande diferença em professar e praticar. Muita gente professa uma doutrina, que não pratica; pois bem, eu praticava e não professava. Assim como cristão é todo homem que segue as leis do Cristo, mesmo sem conhecê-lo, assim também podemos ser espíritas, acreditando na imortalidade da alma, nas reencarnações, no progresso incessante, nas provações terrenas – abluções necessárias ao melhoramento. Acreditando em tudo isso, eu era, portanto, espírita. Compreendi a erraticidade, laço intermediário das reencarnações e purgatório no qual o Espírito culposo se despoja das vestes impuras para revestir nova toga, e onde o Espírito, em evolução, tece cuidadosamente essa toga que há de carregar no intuito de conservá-la pura. Compreendi tudo isso, e, sem professar, continuei a praticar.

Essa resposta chama a atenção para um ponto central na análise da questão do que é ser espírita. É a aceitação dos princípios básicos do Espiritismo que deve delinear a condição de espírita (quando se vai, é claro, além do rudimentar primeiro “grau” de adesão). Sendo uma disciplina científica e filosófica viva, dinâmica, o Espiritismo tem, e não pode deixar de ter, áreas de fronteira, onde as idéias ainda estão em elaboração e os princípios em fase de teste. Isso não compromete, no entanto, os princípios fundamentais, que constituem o núcleo teórico espírita, já devidamente assentado. Jean Reynaud, como muitos outros, reconhecia esse núcleo, embora não o tivesse estudado diretamente nas fontes espíritas. Retrospectivamente, no mundo espiritual, compreendeu que, por essa razão, era espírita, embora sem o saber, ou seja, sem haver explicitamente aplicado a si essa denominação. Além disso, não se contentou em ficar no segundo “grau”: incorporou em sua conduta a moral decorrente desses princípios fundamentais. Era, pois, um espírita pleno, da terceira classe.

Esse ponto remete a um comentário de Kardec no capítulo 4 do Livro dos Médiuns, “Dos sistemas”. No parágrafo 50 examina o chamado “sistema da alma material”. Embora sua aparência discrepante, na verdade o sistema “não infirma qualquer dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita, pois que nada altera com relação ao destino da alma; as condições de sua felicidade futura são as mesmas; formando a alma e o perispírito um todo, sob a denominação de Espírito, como o gérmen e o perisperma o formam sob a de fruto, toda a questão se reduz a considerar homogêneo o todo, em vez de considerá-lo formado de duas partes distintas.”

Não nos cabe aprofundar aqui a discussão técnica desse tópico. O que nos interessa mais é a exemplificação que fornece da distinção entre o núcleo e a periferia da teoria  espírita. O tópico em questão é periférico, e eventuais divergências quanto a ele não devem ser razão para a divisão entre os espíritas:

Semelhante opinião, restrita, aliás, mesmo que se achasse mais generalizada, não constituiria uma cisão entre os espíritas, do mesmo modo que as duas teorias da emissão e das ondulações da luz não significam uma cisão entre os físicos. Os que se decidissem a formar grupo à parte, por uma questão assim pueril, provariam, só com isso, que ligam mais importância ao acessório do que ao principal e que se acham compelidos à desunião por Espíritos que não podem ser bons, visto que os bons Espíritos jamais insuflam a acrimônia, nem a cizânia. Daí o concitarmos todos os verdadeiros espíritas a se manterem em guarda contra tais sugestões e a não darem a certos pormenores mais importância do que merecem. O essencial é o fundo.

Temos, pois, aqui uma eloqüente lição, relevante mesmo em nossos dias, quando já não se discute tanto o sistema da alma material, mas outros pontos secundários, que são confundidos com os essenciais, prejudicando o desenvolvimento normal do Espiritismo, e além disso gerando dissensões e rancores inteiramente contrários aos princípios morais do próprio Espiritismo.

Vejamos, por fim, o parágrafo 28, onde aparece uma classificação dos que “se convenceram por um estudo direto”:

1º Os que crêem pura e simplesmente nas manifestações. Para eles, o Espiritismo é apenas uma ciência de observação, uma série de fatos mais ou menos curiosos. Chamar-lhes-emos espíritas experimentadores.

2º Os que no Espiritismo vêem mais do que fatos; compreendem-lhe a parte filosófica; admiram a moral daí decorrente, mas não a praticam. Insignificante ou nula é a influência que lhes exerce nos caracteres. Em nada alteram seus hábitos e não se privariam de um só gozo que fosse. O avarento continua a sê-lo, o orgulhoso se conserva cheio de si, o invejoso e o cioso sempre hostis. Consideram a caridade cristã apenas uma bela máxima. São os espíritas imperfeitos.

3º Os que não se contentam com admirar a moral espírita, que a praticam e lhe aceitam todas as conseqüências. Convencidos de que a existência terrena é uma prova passageira, tratam de aproveitar os seus breves instantes para avançar pela senda do progresso, única que os pode elevar na hierarquia do mundo dos Espíritos, esforçando-se por fazer o bem e coibir seus maus pendores. As relações com eles sempre oferecem segurança, porque a convicção que nutrem os preserva de pensarem em praticar o mal. A caridade é, em tudo, a regra de proceder a que obedecem. São os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos.

Trata-se, pois, da mesma distinção apresentada no item 7 da conclusão do Livro dos Espíritos. A novidade são as denominações que Kardec propõe: espíritas experimentadores (ocupam-se só da parte experimental ou fenomênica), espíritas imperfeitos (aceitam os princípios, mas não os aproveitam para melhorar sua conduta), e espíritas verdadeiros, ou cristãos (põem em prática, ou se esforçam por praticar a moral espírita-cristã). Embora não possuindo nada de absoluto, essas denominações são bastante apropriadas, e foram repetidas por Kardec em outras obras, como veremos nas seções seguintes.

No mesmo parágrafo 28 Kardec apresenta ainda uma última classe, a dos espíritas exaltados. Trata-se de um caso aberrante, que se verifica ainda hoje, e que por isso merece ser anotado aqui.

A espécie humana seria perfeita, se sempre tomasse o lado bom das coisas. Em tudo, o exagero é prejudicial. Em Espiritismo, infunde confiança demasiado cega e freqüentemente pueril, no tocante ao mundo invisível, e leva a aceitar-se, com extrema facilidade e sem verificação, aquilo cujo absurdo, ou impossibilidade a reflexão e o exame demonstrariam. O entusiasmo, porém, não reflete, deslumbra. Esta espécie de adeptos é mais nociva do que útil à causa do Espiritismo. São os menos aptos para convencer a quem quer que seja, porque todos, com razão, desconfiam dos julgamentos deles. Graças à sua boa-fé, são iludidos, assim, por Espíritos mistificadores, como por homens que procuram explorar-lhes a credulidade. Meio-mal apenas haveria, se só eles tivessem que sofrer as conseqüências. O pior é que, sem o quererem, dão armas aos incrédulos, que antes buscam ocasião de zombar, do que se convencerem e que não deixam de imputar a todos o ridículo de alguns. Sem dúvida que isto não é justo, nem racional; mas, como se sabe, os adversários do Espiritismo só consideram de bom quilate a razão de que desfrutam, e conhecer a fundo aquilo sobre que discorrem é o que menos cuidado lhes dá.

Tiramos daqui outra lição importante: a de não deixarmos que um entusiasmo exagerado nos faça perder de vista a metodologia eminentemente racional empregada por Kardec no estabelecimento das bases do Espiritismo, e que deve estar sempre presente ao longo do seu desenvolvimento.

 

4. A questão no Evangelho Segundo o Espiritismo

O capítulo 17 do Evangelho Segundo o Espiritismo traz, em seu item 4, um importante texto de Kardec sobre o assunto que nos ocupa neste artigo, intitulado “Os bons espíritas”. Esse texto dá seqüência ao anterior, “O homem de bem”, em que Kardec apresenta a impressionante enumeração das qualidades que distinguem o homem de bem; essa enumeração aproveita e estende a que é feita no item 918 do Livro dos Espíritos. O texto sobre os bons espíritas inicia justamente salientando que

Bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, o Espiritismo leva aos resultados acima expostos, que caracterizam o verdadeiro espírita, como o cristão verdadeiro, pois que um o mesmo é que outro. O Espiritismo não institui nenhuma nova moral; apenas facilita aos homens a inteligência e a prática da do Cristo, facultando fé inabalável e esclarecida aos que duvidam ou vacilam.

É essa coincidência dos preceitos morais espíritas com os preceitos morais cristãos que justifica a denominação espíritas cristãos, que, como vimos, aparece no parágrafo 28 do Livro dos Médiuns, e será depois retomada em Viagem Espírita em 1862 (ver a seção seguinte). Deve-se, porém, notar que Kardec não preconiza que se use sempre essa expressão – ou qualquer outra, aliás –, em substituição a espírita, simplesmente. Ele a utilizou no contexto especial da análise das diferentes posturas dos homens diante do Espiritismo. Seria impróprio tentar usá-la irrestritamente, como às vezes de fato se faz no movimento espírita, na tentativa talvez de diferençar os espíritas dos adeptos de outras vertentes espiritualistas ou mediunistas.

Prossigamos, porém, no texto do Evangelho. Nos parágrafos que seguem o que acaba de ser transcrito Kardec dirige-se à questão de por que, afinal, há pessoas que ficam no primeiro, ou no segundo “graus” da adesão espírita, sem ir adiante. Vejamos como a questão é formulada e respondida, no que respeita ao estacionamento na primeira classe:

Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das manifestações não lhes apreendem as conseqüências, nem o alcance moral, ou, se os apreendem, não os aplicam a si mesmos. A que atribuir isso? A alguma falta de clareza da doutrina? Não, pois que ela não contém alegorias nem figuras que possam dar lugar a falsas interpretações. A clareza é da sua essência mesma e é donde lhe vem a força, porque a faz ir direito à inteligência. Nada tem de misteriosa e seus iniciados não se acham de posse de qualquer segredo, oculto ao vulgo.

Será então necessária, para compreendê-la, uma inteligência fora do comum? Não, tanto que há homens de notória capacidade que não a compreendem, ao passo que inteligências vulgares, moços mesmo, apenas saídos da adolescência, lhes apreendem, com admirável precisão, os mais delicados matizes. Provém isso de que a parte por assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem, enquanto a parte essencial exige um certo grau de sensibilidade, a que se pode chamar maturidade do senso moral, maturidade que independe da idade e do grau de instrução, porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial, do Espírito encarnado.

Depois da formulação da questão, Kardec dá uma resposta negativa, por assim dizer: o problema não é nenhuma falta de clareza da teoria espírita. Kardec, aliás, teve sempre uma preocupação extrema com esse aspecto; seus textos são, indubitavelmente, os mais claros, objetivos e precisos textos espíritas já escritos. Também não é por que seja difícil, intricada, como geralmente são as ciências e sistemas filosóficos acadêmicos; nos seus traços fundamentais a teoria espírita é bastante acessível à inteligência de um ser humano comum.

A razão pela qual alguns se limitam a observar e comprovar os fenômenos é a deficiência de uma sensibilidade especial a que Kardec chama de senso moral. Essa expressão já tinha sido usada por alguns filósofos acadêmicos que estudaram a questão da fundamentação da ética. Mas parece que o sentido pretendido por Kardec aqui é mais amplo: o de uma faculdade geral do ser humano, que o leva a ir longe na exploração das implicações filosóficas de um conjunto concreto de fatos ou idéias. Chama isso de senso moral certamente porque, no caso em foco, trata-se principalmente (mas não exclusivamente) de perceber as conseqüências morais dos fatos espíritas. Como as palavras finais de Kardec sugerem, essa faculdade não se adquire de uma hora para outra, requerendo um longo período de amadurecimento, que certamente se estende por inúmeras encarnações. Quando, pois, estivermos diante de um caso desses, de aparente “renitência”, pode não se tratar simplesmente má-vontade ou interesse (o que também existe; ver o capítulo “Do método” do Livro dos Médiuns). Estejamos igualmente cientes de que nem sempre os nossos melhores esforços em fornecer à pessoa as evidências sólidas a favor da teoria espírita serão coroados de êxito, para o seu convencimento. Há um tempo para tudo, e o tempo da pessoa pode ainda não ter chegado.

No parágrafo seguinte Kardec explica por que algumas pessoas podem estacionar na segunda classe, não se preocupando em aplicar as máximas morais espíritas à sua própria conduta:

Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira-lhes a visão do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores nem com seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são dotados. Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas. Numa palavra: não divisam mais do que um raio de luz, insuficiente para guiá-los e para lhes facultar uma vigorosa aspiração, capaz de lhes sobrepujar as inclinações. Atêm-se mais aos fenômenos do que a moral, que se lhes afigura cediça e monótona. Pedem aos Espíritos que incessantemente os iniciem em novos mistérios, sem procurar saber se já se tornaram dignos de penetrar os arcanos do Criador. Esses são os espíritas imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas ou das prevenções. Contudo, a aceitação do princípio da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará mais fácil o segundo, noutra existência.

As razões, portanto, que por vezes nos deixam na condição de espíritas imperfeitos (segunda classe) ligam-se ao cultivo de velhos hábitos morais, à relutância em romper com tendências ancestrais da personalidade humana, mesmo quando reconhece intelectualmente a sua inconveniência.

Finalmente, os que se dispõem superar os traços indesejáveis de seu caráter são os que passam à condição de verdadeiros espíritas:

Aquele que pode ser, com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro; os princípios da doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos outros se conservam inertes. Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons. Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más. Enquanto um se contenta com o seu horizonte limitado, outro, que apreende alguma coisa de melhor, se esforça por desligar-se dele e sempre o consegue, se tem firme a vontade.

Note-se a referência à dimensão não puramente intelectual da questão, com a bela imagem do ser “tocado no coração”. É o sentimento profundo das leis divinas, inscritas na consciência, mas obscurecidas pelos nossos vícios, agora mobilizado, junto com a razão, para nos colocar na rota de nosso crescimento espiritual.

Nos comentários de Kardec à parábola do semeador, que integram o mesmo capítulo do Evangelho Segundo o Espiritismo que estamos considerando, encontramos outra referência interessante à condição de espírita. A parábola é transcrita no item 5, e os comentários, no item seguinte, começam assim:

A parábola do semeador exprime perfeitamente os matizes existentes na maneira de serem utilizados os ensinos do Evangelho. Quantas pessoas há, com efeito, para as quais não passa ele de letra morta e que, como a semente caída sobre pedregulhos, nenhum fruto dá!

Não menos justa aplicação encontra ela nas diferentes categorias espíritas. Não se acham simbolizados nela os que apenas atentam nos fenômenos materiais e nenhuma conseqüência tiram deles, porque neles mais não vêem do que fatos curiosos? Os que apenas se preocupam com o lado brilhante das comunicações dos Espíritos, pelas quais só se interessam quando lhes satisfazem à imaginação, e que, depois de as terem ouvido, se conservam tão frios e indiferentes quanto eram? Os que reconhecem muito bons os conselhos e os admiram, mas para serem aplicados aos outros e não a si próprios? Aqueles, finalmente, para os quais essas instruções são como a semente que cai em terra boa e dá frutos?

 

5. A questão em Obras Póstumas e em Viagem Espírita em 1862

Nas três obras analisadas nas seções precedentes, notamos que, ao caracterizar os verdadeiros espíritas, Kardec tem o cuidado de não incluir a perfeição moral, nem a reforma moral instantânea, mas o esforço perseverante de aperfeiçoar-se. No texto do Evangelho há, como vimos, um arrazoado sobre as causas de nossa dificuldade em promover essa reforma, dificuldade que, nos casos mais graves, pode temporariamente reter-nos na classe dos espíritas imperfeitos. Em dois dos ensaios da 1a parte de Obras Póstumas esse assunto é retomado de forma mais extensa. Como cada um de nós experimenta, com maior ou menor freqüência e intensidade, a inércia que tende a nos manter moralmente como estamos, vale a pena meditarmos sobre essas lúcidas considerações de Kardec.

Uma primeira referência ao assunto é feita no importante ensaio intitulado “O egoísmo e o orgulho”. Vejamos sua parte final:

O Espiritismo é, sem contradita, o mais poderoso elemento de moralização, porque mina pela base o egoísmo e o orgulho, facultando um ponto de apoio à moral. Há feito milagres de conversão; é certo que ainda são apenas curas individuais e não raro parciais. O que, porém, ele há produzido com relação a indivíduos constitui penhor do que produzirá um dia sobre as massas. Não lhe é possível arrancar de um só golpe as ervas daninhas. Ele dá a fé e a fé é a boa semente, mas mister se faz que ela tenha tempo de germinar e de frutificar, razão por que nem todos os espíritas já são perfeitos. Ele tomou o homem em meio da vida, no fogo das paixões, em plena força dos preconceitos e se, em tais circunstâncias, operou prodígios, que não será quando o tomar ao nascer, ainda virgem de todas as impressões malsãs; quando a criatura sugar com o leite a caridade e tiver a fraternidade a embalá-lo; quando, enfim, toda uma geração for educada e alimentada com idéias que a razão, desenvolvendo-se, fortalecerá, em vez de falsear? Sob o domínio destas idéias, que se terão tornado a fé comum a todos, não mais esbarrando o progresso no egoísmo e no orgulho, as instituições se reformarão por si mesmas e a Humanidade avançará rapidamente para os destinos que lhe estão prometidos na Terra, aguardando os do céu.

Esse parágrafo toca um tema muito caro a Kardec: a importância da educação moral das crianças. Como sabemos a partir da observação e dos estudos sobre a infância contidos no Livro dos Espíritos (ver, por exemplo, o item 383 e os comentários ao item 917), o período infantil é o mais propício para a correção das tendências viciosas e para a implantação de novos comportamentos morais. A excelência de uma educação moral direcionada pela visão espírita é defendida em vários textos, como na Viagem Espírita em 1862 (Impressões gerais) e num artigo da Revue Spirite de fevereiro de 1864, intitulado “Primeiras lições de moral da infância”.

A outra passagem de Obras Póstumas sobre o aperfeiçoamento moral dos espíritas está no ensaio “Os desertores”. Como indica o título, o ensaio trata daqueles que, dentro do movimento espírita, cultivam discórdias e ciúmes, levantam questões irritantes, propõem cisões, ou tomam-se de entusiasmo irrefletido e danoso. De forma bastante significativa, Kardec chama-os de espíritas de contrabando, já que adentraram o meio espírita sem a devida “chancela” moral. Pois bem: depois de alertar-nos quanto a esse caso, Kardec prossegue:

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfa imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões fundamentais do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lídima acepção do termo, visto como aquele que desertasse, por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do «que dirão?»; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como conseqüência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as conseqüências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêem no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; vêem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem desfalecimentos.

Dentre os textos de Kardec reunidos por P.-G. Leymarie e publicados com o título de Obras Póstumas há ainda um outro que merece ser brevemente mencionado. Integra o conjunto de textos que formam a chamada “Constituição do Espiritismo”. Trata-se do ensaio intitulado “Do programa das crenças”. Nele Kardec explora um ponto importante, que explicamos resumidamente em nossas próprias palavras. Como o adjetivo espírita refere-se a Espiritismo, é claro que enquanto o Espiritismo vivia sua fase inicial de elaboração, não possuindo contornos teóricos e conceituais bem definidos – fase essa que se poderia situar antes da publicação do Livro dos Espíritos – a própria adjetivação de espírita carecia de precisão, quer se aplicada a teorias, princípios, fenômenos, etc., quer se aplicada a pessoas.

Embora a data de sua composição não possa ser determinada com segurança, certamente o ensaio é de um período avançado da obra kardequiana. Nessa época, nota Kardec,  “nenhuma dúvida mais se legitima sobre os pontos fundamentais da Doutrina, nem sobre os deveres que tocam a todos os adeptos sérios”. Em conseqüência, “a qualidade de espírita pode  ter um caráter definido, de que antes carecia”.

Tudo isso é justo e importante para a questão central que nos ocupa, do que é ser espírita. No entanto, nesse ponto Kardec julgou, à época, que poderia ser conveniente, dada essa precisão alcançada pela doutrina e as confusões que existiam (e ainda hoje existem) acerca de quem é ou não é espírita, o estabelecimento de “um formulário de profissão de fé” A assinatura, sempre por iniciativa pessoal e espontânea, desse formulário serviria “para evitar os inconvenientes da falta de precisão, quanto ao qualificativo de espírita”; seus signatários tomariam, então, o título de “espíritas professos”.

Ora, todos sabemos que essa idéia nunca foi implementada por Kardec, nem pelos mais importantes continuadores do movimento espírita. Analisando com a vantagem da retrospecção, vemos que de fato foi bom que não o tenha sido, dados os inconvenientes que poderia trazer, especialmente a possível confusão do Espiritismo com uma seita ou sociedade secreta, com o que ele nada tem a ver, como apontou repetidamente o próprio Kardec. Notemos também – e esse é um ponto importante, que revela o constante cuidado de Kardec em submeter suas próprias idéias ao exame crítico – que o texto a que nos referimos nunca foi publicado por Kardec. Na versão da Constituição que apareceu na Revue Spirite, em dezembro de 1868, o texto foi inteiramente suprimido, em meio a vários outros que foram aproveitados, com modificações diversas. Seria, pois, inteiramente injusto imputarmos a Kardec a divulgação de uma idéia que hoje reconhecemos como indesejável. A publicação do texto por Leymarie é de inteira responsabilidade dele, não de Kardec. Evidentemente, nem mesmo Leymarie pode ser criticado por isso, já que simplesmente  deu a público uma peça de considerável interesse histórico, e que certamente teria se perdido se tivesse permanecido em manuscrito. Erro só haveria, portanto, em não atentarmos para todos esses pontos e tomarmos como definitiva a sugestão provisória de Kardec, posteriormente abandonada por ele próprio.

Na famosa viagem que Kardec fez ao sul da França em 1862 diversas questões sobre o Espiritismo e o movimento espírita lhe foram formuladas. Uma delas é relevante ao ponto que estamos considerando. Trata-se da questão que na obra Viagem Espírita em 1862 recebeu o número 2:

P. – Não seria desejável que os espíritas tivessem uma palavra de ordem, um sinal qualquer para se reconhecerem ao se avistarem?

R. – Os espíritas não formam nem uma sociedade secreta, nem uma afiliação, não devendo, pois, possuir nenhum sinal secreto de reconhecimento. Nada ensinam ou praticam que não possa ser conhecido de todos, não tendo por conseguinte nada a ocultar. Um sinal, uma palavra de ordem, poderia, além disso, ser apropriada por falsos irmãos, de nada vos adiantando.

Tendes uma palavra de ordem compreendida em todos os cantos do mundo: a caridade. Tal palavra é fácil de ser pronunciada, mas a verdadeira caridade não pode ser falsificada. Pela prática da verdadeira caridade sempre reconhecereis um irmão, ainda que não seja espírita. Deveis estender-lhe a mão, mesmo que não partilhe vossas crenças, pois não deixará por isso de ser benevolente e tolerante.

Conforme vemos, embora não trate especificamente da cogitada adesão formal aos princípios espíritas, essa questão também versa sobre sugestões de como identificar os espíritas, no caso, por meio de palavras de ordem ou sinais. A resposta de Kardec ressalta inconveniências aplicáveis também à idéia do formulário assinado: poderia fazer crer que o Espiritismo é uma sociedade secreta ou formalista, além de poder facilmente ser objeto de abuso por falsos adeptos. A “solução” apontada por Kardec é usarmos como critério a assimilação, por parte do adepto, do preceito moral da caridade. Como sabemos, esse preceito sintetiza a moral espírita-cristã, de modo que quem o põe em prática, ou ao menos se preocupa incessantemente em praticá-lo, exibe, por isso mesmo, os traços essenciais de um verdadeiro espírita (além, é claro, da aceitação racional dos princípios fundamentais da teoria científico-filosófica do Espiritismo). Ademais, o comportamento marcado pela caridade não é passível de falsificação: quem “falsificasse” o comportamento cristão o tempo todo, sem nunca dele se desviar, já seria, de fato, um verdadeiro cristão.

Para encerrar este artigo, vejamos alguns trechos do corpo dessa obra que retomam a classificação dos espíritas em três grupos, e comentam de forma eloqüente o assunto da reforma moral dos espíritas. Abrindo a obra estão as “Impressões gerais” da viagem, o relato sucinto das observações mais significativas feitas por Kardec no contato com o movimento espírita nascente. Destacamos, da p. 11 da edição francesa corrente, o seguinte trecho:

Crer já é muito, sem dúvida, mas só a crença não basta, se não conduz a resultados. Infelizmente, há muitos nessa condição: para eles o Espiritismo é apenas um fato, uma bela teoria, uma letra morta, que nada lhes altera no caráter, nem nos hábitos. Ao lado, porém, dos espíritas que simplesmente crêem ou são simpáticos à idéia, há os espíritas de coração. Somos feliz de haver encontrado muitos deles; vimos transformações que se poderia dizer milagrosas; coletamos exemplos admiráveis de zelo, abnegação e devotamento, de caridade verdadeiramente evangélica, que poderíamos apropriadamente chamar de belas marcas do Espiritismo.

Notemos, além dos aspectos que já estavam presentes nas citações das outras obras, a expressiva frase “espíritas de coração”, que tão bem destaca essa sensibilização do íntimo do verdadeiro espírita quando percebe a excelência dos princípios morais espíritas. É essa sensibilização que desperta a vontade e promove “transformações que se poderia dizer milagrosas” no comportamento das pessoas, e que no último trecho a ser citado neste artigo Kardec também compara a verdadeiras “metamorfoses” morais.

Kardec proferiu também discurso extremamente substancial, dividido em três partes, nas cidades de Lyon e Bordeaux. Na primeira parte aborda, entre outras questões, a de por que havia pessoas que se diziam espíritas e mesmo assim se colocavam como seus inimigos. Para explicar tal anomalia recorre novamente à classificação dos espíritas em três grupos. Como o texto apresenta detalhes novos, e um desenvolvimento importante, vale a pena ser transcrito (pp. 25-7):

[...] O que pode, porém, parecer surpreendente é que eu tenha adversários até entre os partidários do Espiritismo. É aqui que uma explicação se faz necessária.

Entre os que adotam as idéias espíritas há, como sabeis, três categorias bem distintas:

1. Os que crêem pura e simplesmente nos fenômenos das manifestações, sem deles deduzir nenhuma conseqüência moral;

2. Os que vêem o lado moral, aplicando-o porém aos outros, e não a si próprios;

3. Os que aceitam para si mesmos todas as conseqüências da doutrina, cuja moral aplicam ou se esforçam por aplicar. Como vós também sabeis, estes são os verdadeiros espíritas, ou espíritas cristãos.

Essa distinção é importante, por explicar diversas anomalias aparentes; sem ela seria difícil entender a conduta de certas pessoas. O que diz a moral espírita? Amai-vos uns aos outros; perdoai vossos inimigos; retribuí o mal com o bem; não alimenteis ódio, rancor, animosidade, inveja ou ciúme; sede severos convosco mesmos e indulgentes com os outros. Tais devem ser os sentimentos de um verdadeiro espírita, daquele que, antes da forma, vê o fundo; que coloca o espírito acima da matéria. Poderá ter inimigos, mas não será inimigo de ninguém, pois que a ninguém considera tal, nem, muito menos, a ninguém procura fazer mal. Como vedes, senhores, este é um princípio geral de que todos podem se beneficiar. Assim, se tenho inimigos, não podem ser de espíritas desta classe, porque, mesmo que tivessem motivos legítimos de queixa contra mim – o que me esforço por evitar –, não seria isso motivo para me terem por inimigo; e menos ainda se não lhes houver feito mal. O Espiritismo tem por divisa: Fora da caridade não há salvação; igualmente verdadeiro é dizer: Fora da caridade não há verdadeiros espíritas. Concito-vos a inscreverem doravante esta dupla máxima em vossa bandeira, pois resume, a um só tempo, o objetivo do Espiritismo e o dever que ele impõe.

Dentre tantos aspectos interessantes desses comentários, destacamos dois: a incompatibilidade da condição verdadeiro espírita com o cultivo sistemático defeitos morais graves – no caso em foco, tomar pessoas por inimigas; e a dupla “divisa” proposta para o Espiritismo: Fora da caridade não há salvação, nem verdadeiros espíritas.

Finalmente, na terceira parte do discurso em Lyon e Bordeaux encontramos estas eloqüentes palavras (pp. 57-8):

No princípio das manifestações espíritas, muitos as aceitaram sem lhes prever as conseqüências; a maioria não viu nelas senão efeitos mais ou menos curiosos. Quando, porém, surgiu daí uma moral severa, com deveres rigorosos a cumprir, muitos não sentiram forças de a praticar, de amoldar-se a ela; não tiveram a coragem do devotamento, da abnegação, da humildade; neles, a natureza corporal sobrepujou a espiritual; puderam crer, mas recuaram diante da execução. Não havia, pois, na origem, senão espíritas, ou seja, crentes. A filosofia e a moral abriram depois a essa ciência um horizonte novo, criando os espíritas praticantes. Os primeiros ficaram na retaguarda, os outros seguiram adiante.

[Quanto aos espíritas que se formaram depois da estruturação do Espiritismo,] a grande maioria aceitou a doutrina precisamente por causa de sua moral e de sua filosofia; eis por que se esforçam por praticá-la. Pretender que devessem todos tornar-se perfeitos seria ignorar a natureza do ser humano. Ainda, porém, que se despojem apenas de algumas partes do homem velho, já será um progresso a ser levado em conta. Só não encontram desculpas aos olhos de Deus aqueles que, estando devidamente esclarecidos, não se aproveitem disso como poderiam. Ser-lhes-ão pedidas contas severas, e, como mostram inúmeros exemplos, poderão sofrer as conseqüências já nesta vida. Ao lado desses, porém, há também muitos em quem uma verdadeira metamorfose operou-se, que encontraram nesta crença a força para vencer pendores de há muito enraizados, para romper com velhos hábitos, para fazer calar ressentimentos e inimizades, para encurtar as separações sociais. Pedem milagres ao Espiritismo: aí estão os que ele produz.[3]

 

Referências bibliográficas

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378. (Disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482 ).

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.

–––. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Revue Spirite. (Coleção da Federação Espírita do Paraná.)

–––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. 

–––. O que é o Espiritismo. (s. trad.) 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972.

–––. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 59a ed., revista, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Voyage Spirite en 1862. Paris, Vermet, 1988.

–––.  L’Évangile selon le Spiritisme. (Reprodução fotográfica da 3a edição francesa.) 1a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979.

–––. Le Ciel et l’Enfer. Farciennes, Editions de l’Union Spirite, 1951.

–––. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 113a ed., Rio, FEB.

–––. Le Ciel et l’Enfer. Farciennes, Editions de l’Union Spirite, 1951.

–––. O Céu e o Inferno. Trad. de Manuel Quintão. 28ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Oeuvres Posthumes. (Ed. André Dumas.) Paris, Dervy-Livres, 1978. Também na edição original de Leymarie, em texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

–––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.



[1] Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 10, item 14, “Perdão das ofensas”.

[2] Para uma análise mais extensa do aspecto científico do Espiritismo e de sua compreensão correta por Kardec, ver o artigo “A excelência metodológica do Espiritismo”, cuja referência é dada no final deste texto.

[3] Gostaríamos de agradecer a Terezinha Colle a leitura atenta de uma versão preliminar deste trabalho, e diversos comentários que levaram ao seu aperfeiçoamento.

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