CAPÍTULO 10
ADEUS IBATÉ, ADEUS SABOÓ
Foi em agosto de 1953 que deixei o Seminário de São Roque. Já no final das férias de dezembro e janeiro, eu estava disposto a não retornar ao Ibaté. Tinha, então, 15 anos. Começava a ter idéias próprias e despertara, enfim, o meu espírito crítico.
Quando comuniquei à minha mãe que desejava permanecer em São Paulo, esta correu à casa de meu padrinho, Monsenhor Paulo Florêncio da Silveira Camargo, que me convocou para uma entrevista. Disse a ele que não me julgava fervoroso o suficiente para ser um bom sacerdote e que preferia ser um bom leigo cristão. Respondeu-me que eu estava passando por uma crise, que isto era normal na minha idade, e que eu devia insistir, pelo menos até completar o seminário menor. Recomendou que eu rezasse muito ao Cura DArs.
Voltei a São Roque contrariado. Não tinha tido forças para quebrar a resistência à minha saída. Desde a tenra infância, eu fora incentivado a ser padre e , quando terminei o curso primário, a decisão de ir para São Roque não foi bem uma resolução, sendo mais a aceitação de um convite que me parecia irrecusável. Tudo fora precipitado pela visita à minha paróquia de um padre que se dizia "caçador de vocações", em busca de candidatos ao Seminário do Verbo Divino, em Santo Amaro. Seu discurso foi eficiente, porém, preferindo ser secular, candidatei-me ao Seminário do Ibaté.
Nascido de família muito ligada à Igreja, era natural o meu encaminhamento para a vida religiosa. Acabara de sair de uma escola de freiras. Tinha freqüentado o catecismo e a Cruzada Eucarística. Era coroinha e gostava de brincar de rezar missas, em altares que eu mesmo montava, em minha casa. Um coadjutor da minha paróquia, hoje arcebispo já afastado da vida apostólica, em face da idade, me presenteava com hóstias não consagradas, que eu usava nessas missas, com muito respeito. Improvisava paramentos, alfaias, sacras, velas e galhetas. Só o uso do "turíbulo" não contou com a aprovação de minha avó, que era a dona da casa.
Meu pai era líder mariano e chegou a ser Vice-Presidente da Federação das Congregações Marianas do Estado de São Paulo. Foi o primeiro a promover grandes romarias a Aparecida do Norte. Seu empreendimento foi seguido por outros grupos, para gáudio de uma conhecida empresa de ônibus que o tinha em muito bom conceito, embora meu pai nunca tenha tirado proveito material disto. Até na Revolução Paulista de 1932, ele encontrou meio de fundar, em plena campanha, de que participou como soldado, a Congregação Mariana das Trincheiras, integrada pelos seus colegas de Pelotão. Durante a madrugada, marcavam as horas de vigia rezando por três vezes o rosário. Seu capacete, que a família guarda até hoje, tinha esculpido o emblema dos congregados marianos. Participou da Liga Eleitoral Católica, movimento político que a Igreja Católica promoveu, por ocasião da redemocratização do país, como forma de impedir a eleição de comunistas (O tempora, o mores....). Fez parte de vários outros movimentos religiosos.
Minha avó e minha mãe, sucessivamente, presidiram, por quase um século, o Apostolado da Oração da minha paróquia. Mamãe, freqüentemente, publicava artigos sobre religião em revistas especializadas. Nossa casa era constantemente visitada por padres e bispos. Certa ocasião, meu padrinho, não podendo comparecer ao meu aniversário, fez-se representar por seu sobrinho, Dom Manuel da Silveira Delboux, bispo no Paraná.
Minha certidão de batismo, cujo original guardo até hoje, menciona, como meus padrinhos, São Francisco de Assis e Santa Teresinha do Menino Jesus, representados por Monsenhor Paulo e por minha avó Joana.
Quando meu avô Chico faleceu, foram celebradas, simultaneamente, missas em todos os altares da Igreja de nosso bairro, por diversos padres amigos, enquanto, no altar principal, um bispo e dois outros padres rezavam missa cantada. Por ocasião da morte de minha avó Aurora, o sino repicou em toque fúnebre, de meia em meia hora, durante todo o dia. Ela nunca perdeu as reuniões do Apostolado da Oração. A última, realizou-se oficialmente, em sua câmara mortuária, com as zeladoras em volta de seu caixão, presidida pelo Vigário.
O Padre de Poá, com fama de santidade, assediado pela multidão, quando em visita a nosso bairro, refugiou-se em nossa residência, onde lhe foi servida refeição, pois estava quase desmaiando de fome. Poucas igrejas tinham um presépio da proporção do que montávamos em nossa casa. A festa de Nossa Senhora Aparecida, que até hoje é celebrada em nossa paróquia, reunia pessoas de destaque da sociedade paulistana. Teve início com uma promessa feita por minha mãe, que nunca deixou de cumpri-la, quando eu, com dois anos de idade, tive uma otite complicada, tendo uma junta médica chegado a declarar que eu não me recuperaria. Naquele tempo, não havia antibióticos e meu médico, após vários dias em que tive febre superior a 41 graus, resolveu fazer uma experiência que, felizmente, deu certo, com um remédio novo que havia acabado de chegar ao país: a sulfamida.
Foi nesse meio religioso que eu cresci e por esse envolvimento todo era natural que eu decidisse ir para o Seminário. Permaneci em São Roque por quase cinco anos.
Nas férias de meio de ano, em 1953, fui procurar o Padre Espiritual e solicitar permissão para voltar para minha casa. Era o Padre Jair. Disse o sacerdote, textualmente, que eu era um lunático, que reagia emocionalmente de acordo com as fases da lua. Não sei de onde tirou essa conclusão. Penso que não encontrou argumento melhor, no momento. Falou-me que ia tirar um mês de férias e que, quando retornasse, nós voltaríamos a conversar sobre o assunto:- "Até lá, a lua já terá mudado de fases e você já terá esquecido essa bobagem".
Duvido que o Padre Jair tenha conseguido avaliar o quanto aquele momento era importante para mim e que esforço eu estava fazendo para externar aquele meu sentimento. Não podia ele imaginar a altura do muro que eu estava tentando transpor. Fiquei muito decepcionado com a pouca atenção dispensada por ele a uma manifestação tão custosa para mim. Eu sabia que o meu lugar não era no Ibaté. Estava procurando tomar uma decisão radical em relação à minha vida.
Passei dias de angústia, aguardando o retorno do Padre Espiritual. Demorou mais do que eu consegui esperar. Fui ao Reitor. Pedi com veemência que me deixasse sair. Feitas as considerações cabíveis, Monsenhor Luiz Gonzaga da Silva tentou a última cartada: - "Olhe aqui meu filho, eu sei que não devia propor isto. O ensino aqui no Seminário não é reconhecido pelo Governo. Está para sair uma nova lei, dando validade ao nosso currículo escolar. Porque você não espera até o fim do ano, para sair com o seu diploma de ginásio?"
Pensei um pouco e respondi polidamente: - " Sr. Reitor, me desculpe, se for preciso, eu recomeço do primeiro ano primário."
- "Então, se é assim tão forte o seu desejo, você pode ir embora".
O Reitor pediu que eu aguardasse uns dias, até o domingo de visitas, para ele falar com meus pais. Para azar de nós dois, nesse dia, meu pai não pode ir visitar-me e ele teve que dar a notícia à minha mãe, que ficou muito chocada. O Reitor recomendou que, até o dia da saída, eu guardasse absoluto sigilo e procurasse agir como se nada tivesse sido resolvido. Assim procedi.
Tinha razão o Reitor para pedir segredo. Quando, no dormitório, no dia de minha saída, eu estava arrumando minha mala, um colega que estava de cama, com gripe, foi logo dizendo: - "Você é corajoso. Acho que eu vou fazer o mesmo". Não o fez. Ordenou-se padre e, depois, pediu dispensa às autoridades eclesiásticas para voltar à vida leiga. Eu tenho um pouco de culpa nisto, porque, embora estivesse indo embora, aconselhei aquele colega a pensar melhor e não tomar decisões precipitadas.
Alguns dias antes de minha saída, fui escalado para apresentar um trabalho no Grêmio Literário. Era do regulamento que o discurso tinha que passar pela censura do Padre Ministro, que era o Diretor desse Grêmio. Achei que, em face do meu pedido de retirada, aquela minha convocação havia sido cancelada e que outro aluno iria me substituir. Na dúvida, porém, resolvi escrever alguma coisa, para ter no bolso. Decidi não submete-la à censura.
No sábado cedo, um colega veio me procurar, a mando do Padre Ministro, para saber se eu tinha feito o meu trabalho. Esclareci que tinha surgido um motivo relevante e que, pensava eu, o Padre Ministro já devia ter colocado outro aluno no meu lugar. Aberta a reunião, no fim da tarde, criou-se uma situação embaraçosa. O padre supôs que eu não havia preparado nada e, talvez, imaginando ser necessário dar-me uma lição de despedida, convocou-me para ir ao palco:
- "Chamo para apresentar o seu trabalho o número 55, o aluno Paulo Toschi".
Levantei-me, caminhei tranqüilamente até o palco e, diante de todos, tirei do bolso o meu discurso, que não era, como deveria ser, sobre um tema religioso, e que não estava censurado. Falava sobre festas cívicas e desfiles militares que eram promovidos na Avenida Nove de Julho, cujo nome evocava uma data importante para São Paulo.
Foi um trabalho literário fraco e o padre não gostou. Não sei se não apreciou o tema, que não era religioso, ou se ficou contrariado com a minha atitude, não submetendo a ele o meu discurso. Fez uns comentários depreciativos sobre a Avenida Nove de Julho, que, na realidade, estava entrando no meu ensaio como Pilatos entrou no Credo, e chamou o Darcy Corazza para fazer a crítica do meu trabalho. Era normal, após a apresentação do trabalho, que um outro colega fosse convidado para, de improviso, apresentar uma crítica literária.
O meu amigo Darcy não sabia que estava participando de uma "guerrinha" entre um seminarista renunciante e o poderoso comandante da nossa disciplina. Não sabia da minha saída iminente do Seminário e das circunstâncias em que o "trabalho literário" havia sido redigido. Fez observações pouco benevolentes sobre os defeitos que encontrou no meu discurso. Jamais ele poderia imaginar que, assim agindo, estava colaborando para aumentar o meu regozijo, de ter aplicado uma peça no Padre Ministro. Não era o trabalho em si que contava. Valia muito mais o fato de eu não ter sucumbido diante do intentado constrangimento.
No dia seguinte, domingo, como era de rotina, participamos das orações solenes de Vésperas, após o jantar. Pela última vez na vida, eu iria trajar o santo hábito. Fiz isto com devoção verdadeira.
Quando fomos para o dormitório, após a cerimônia, percebi que o Padre Ministro, de pé, parado no meio do corredor que dava acesso às camas, como era o seu costume, tinha um olho no breviário que estava rezando e outro em mim. Sabendo que eu iria embora no dia seguinte, queria ver qual seria o meu comportamento.
Tirei a batina cerimoniosamente, demonstrando estar compenetrado, dobrei-a e a beijei, antes de levá-la cuidadosamente para o armário.
Aquele meu gesto deixou o padre surpreso e deve ter compreendido que significava o meu adeus à vida de seminarista. Quando passei por ele, rumo ao roupeiro, lançou-me um olhar comprido, sem nada dizer. Cumprimentei-o, desejando-lhe uma boa noite. Não respondeu.
No dia seguinte, fui levado a São Roque, até o ponto do ônibus que ia para São Paulo, onde o motorista do Seminário me deixou sozinho, aguardando a hora da partida. Nenhum padre, nenhum colega se despediu de mim.
Desci na Rua da Consolação e, não tendo encontrado ninguém me esperando, fui para casa, carregando uma pequena mala. Chegando à minha residência, encontrei minha avó, que estava sentada em um banco do jardim, aguardando a passagem do biscoiteiro, de quem era freguesa assídua. Minha mãe e minhas irmãs que tinham ido ao meu encontro, imaginando que eu iria descer do ônibus em uma outra esquina, chegaram meia hora depois.
Começava assim uma nova vida. Não foram fáceis os primeiros tempos e, até hoje, a bem da verdade, devo confessar que sinto a influência dos tempos de Seminário, em muitos momentos de minha existência.
Palavra de seminarista.
Encerra-se aqui o meu depoimento.
O que essa experiência possa significar para a vida de quem passou por um seminário, talvez seja objeto de um outro trabalho, não de memórias, mas de entrevistas e pesquisas.
PAULO FRANCISCO DA COSTA
AGUIAR TOSCHI
1998