CAPÍTULO 4
FÉRIAS
Em São Roque, no final do primeiro semestre, não íamos para casa. Gozávamos as férias no próprio colégio. Com as aulas suspensas, era maior o número de horas para a recreação. No salão de estudos, podíamos, também, dedicar o nosso tempo a outras atividades não relacionadas com o ano letivo, como leituras, cartas, trabalhos manuais, etc.
Certa ocasião, eu resolvi consertar um relógio de pulso, desses à prova dágua. Pelo menos, isto é o que estava escrito no fundo da caixa de aço. Querendo mostrar aos meus amigos que eu tinha um relógio desse tipo, no dia em que fomos à piscina, chamei a atenção dos colegas, me aprontei, mergulhei, atravessei a piscina e.........sai do outro lado com o relógio todo cheio de água.
Como estávamos em férias, eu aproveitei o horário de permanência no salão de estudos para o conserto. Tinha na minha escrivaninha algumas ferramentas: um canivete, chaves de parafuso, o alicate pequeno de fazer terços e um martelo. Este último, fazia parte de um jogo de ferramentas, presente de meus pais, incluindo serra tico-tico, furadeira e régua. Eram de tamanho pequeno, próprios para meninos. Guardava esses apetrechos num armário que ficava no salão de entrada da ala principal, uma espécie de buffet, junto com alguns carrinhos de corda e outros brinquedos. Não tinha pedido licença a ninguém para guardar essas coisas naquele lugar. Ficaram lá durante algum tempo, até que sumiram. Nunca mais as achei. Só sobrou o martelo, que estava, por acaso, na escrivaninha do salão de estudos.
Coloquei esses objetos sobre a escrivaninha e comecei a abrir o relógio, para enxugar o mecanismo e o vidro, que ficara todo embaçado. O martelo estava ali apenas porque havia sido retirado da gaveta. Não seria utilizado. Para meu azar, passou pela minha carteira, naquele momento, o Corazza. Levou muito tempo se divertindo à minha custa, dizendo a todo mundo que eu consertava relógios de pulso com martelo.
Nas horas de recreação, jogávamos futebol e, enquanto uma turma estava praticando esse esporte, os outros disputavam partidas de voleibol. Diferentemente dos fins de semana, em que todo mundo jogava futebol contra todo mundo, com uns quarenta alunos dentro do campo, nessa época de férias formávamos equipes e disputávamos torneios.
O esporte era praticado com o mesmo uniforme que usávamos no resto do dia. Todos de calças compridas, de cor amarelada, e de chuteiras, que, naquele tempo, tinham o bico duro e cravos de metal. Quem levasse um pontapé corria o perigo de se machucar de verdade. Quando os padres participavam do jogo, não tiravam a batina que era apenas arregaçada. Tenho uma fotografia dos alunos do Seminário Maior do Ipiranga, que foram nos visitar, todos jogando bola de batina, bem engraçada.
Também aproveitávamos essas férias de meio de ano para fazer algumas excursões a cidades vizinhas. Íamos na carroceria de dois ou três caminhões, onde eram colocadas algumas tábuas para sentarmos, no estilo "pau-de-arara". A estrada tinha uma poeira incrível, uma camada grossa que se levantava com a passagem dos caminhões e encobria totalmente a visão dos que vinham logo atrás. A região de São Roque tem um relevo bastante acidentado, com muitos vales e morros, que formam uma paisagem muito agradável. Quando íamos além de Araçariguama, em direção a Pirapora, avistávamos o Rasgão e o Vuturuna, duas elevações muito conhecidas dos alunos que tinham vindo do Seminário que existia naquela cidade. Em uma dessas vezes, fomos a Ibiuna, terra do Davi e do Deusdedit. Fomos recebidos por crianças da Cruzada Eucarística que cantaram algumas músicas, em nossa homenagem. Depois da missa, foi servida uma gostosa macarronada.
Em uma outra ocasião, houve uma festa no Seminário de Pirapora e os ex-alunos, que haviam sido transferidos para São Roque, foram convidados. Eu fui escolhido para representar os novatos do Seminário do Ibaté. Depois de correr todo o prédio, fiquei sozinho, na varanda da frente, de onde se podia ver a cidade. Havia uma escola primária, no outro lado da rua, e estava sendo dada uma aula. Chamou-me a atenção o fato de a professora ter uma longa vara, com a qual ameaçava os alunos que não estavam se comportando direito.
Mais tarde, os meus colegas me convidaram para darmos um passeio pelo bosque que havia nos fundos do Seminário. Era um terreno bem grande e nos distanciamos bastante. Quando voltamos, Monsenhor Luís Gonzaga, nosso Reitor, estava muito bravo, porque havia me procurado por toda a parte, pois queria que eu retornasse a São Roque. O veículo com que tínhamos ido não era muito grande, cabendo um número limitado de pessoas, e os padres de Pirapora estavam reclamando a presença de um outro colega, que não havia sido escolhido para aquele passeio. Como a perua iria retornar a São Roque, para buscar alguns objetos, o Reitor resolveu que eu iria embora, para que esse colega pudesse voltar no meu lugar. Fiquei meio aborrecido mas não houve jeito.
As férias de fim de ano eram diferentes. Íamos para nossas casas, passar perto de um mês com nossos pais. Antes de sairmos, tínhamos que fazer uma agenda, com os horários a serem cumpridos. Hora para levantar, para ir à Missa, para ficar na igreja ajudando o Vigário, para ir almoçar em casa, para voltar à igreja e rezar o terço, para fazer meditação e exame de consciência, um período de permanência em casa até a hora do jantar, e, antes de acabar o dia, hora para voltar à igreja para a "reza".
Naquela tempo, as igrejas ficavam abertas quase todo o dia, pois não havia assaltantes, apenas uns raros gatunos de cofres de esmolas, que o sacristão afugentava. Meu padrinho, Monsenhor Paulo, costumava dizer que a mudança dos costumes tinha muito a ver com o crescimento das cidades. Antigamente, dizia ele, quando um viajante se aproximava de um lugarejo ou mesmo de uma cidade maior, a primeira coisa que via, de longe, ainda da estrada, era a torre de uma igreja. Em volta dela se desenvolvia a vida urbana. A Igreja era o centro das atenções. Com os prédios modernos, os arranha-céus, as igrejas ficaram escondidas. Muitas vezes, hoje em dia, as pessoas passam e nem percebem que estão diante de uma igreja. O templo não chama mais a atenção e o pensamento de todos raramente está voltado para a Igreja.
Mas, retornemos às férias dos seminaristas. O calendário que preparávamos, antes de ir para casa, tinha que ser submetido ao visto superior e devia ser entregue ao Vigário de nossa paróquia que, assim, poderia, se quisesse, vigiar o nosso comportamento. Meu padrinho, Monsenhor Paulo, um homem de convicções arraigadas e que não gostava muito de seguir diretrizes de terceiros, nunca aceitou que eu lhe apresentasse aquele quadro de horários. Dizia que eu sabia muito bem como devia me comportar e não era ele quem iria ficar me controlando.
Passávamos boa parte do dia na igreja, durante as férias. Certa ocasião, aconteceu um fato pitoresco. Um casal, que havia contraído matrimônio pouco tempo antes, teve o seu casamento considerado nulo, porque eram primos irmãos e não tinham pedido a dispensa eclesiástica. Responderam a um processo na Cúria e receberam uma penitência. Contaram que tiveram que fazer uma romaria a Aparecida do Norte e dar algumas esmolas, além de rezar alguns rosários. Depois, compareceram à paróquia, para regularizar sua situação. Pensavam que iriam apenas cumprir uma formalidade burocrática, mas o Vigário foi enfático: - "Onde estão os seus padrinhos ? O casamento de verdade vai ser agora, aquele não valeu". Os nubentes não tinham entendido isto e não estavam preparados. Eu e o sacristão fomos escalados como padrinhos de última hora. Nunca mais vi esses meus afilhados que, muito aborrecidos, nem agradeceram.
Monsenhor Paulo era um padre meio fora do comum. Era um historiador sacro, membro da Academia Paulista de Letras, e tinha várias obras publicadas. Seu escritório tinha papéis e livros espalhados por toda parte. Um dia, sua irmã resolveu fazer uma surpresa e por tudo em ordem. Nunca mais o Monsenhor conseguiu terminar o livro que estava escrevendo. Tinha uma aversão muito grande pelo Getúlio Vargas e pelo Adhemar de Barros. Via de regra, encerrava seus sermões proferindo um admoestação grave contra um dos dois, antes de descer do púlpito. Quem não tinha acompanhado os acontecimentos políticos da semana, muitas vezes, ficava sem entender o que o padre estava condenando.
Certa vez, eu ajuda a missa que ele estava celebrando e, na hora da ablução das mãos, substituiu a oração ritual pelo seguinte: - "Paulo, esse sacristão é um porco. Quando terminar a missa, lave essas galhetas para mim, que estão imundas". No confessionário, quando eu era bem pequeno, antes que houvesse oportunidade para eu relatar minhas faltas, ele tomava a palavra: - "Como vai sua avó, como está sua mãe? Leve um abraço para elas, reze 3 ave-marias e até logo". (Que pecados um menino de 7 anos poderia ter cometido, que o simples ato de ir até o confessionário já não merecesse a absolvição?)
Mas o regulamento de férias dos seminaristas não ficava apenas na agenda previamente elaborada e aprovada pelos padres do Seminário. Levávamos muitas recomendações sobre como devíamos nos comportar. Lembro-me de frases fortes, que até hoje ainda repercutem em meus ouvidos:
1) Quem quiser ir ao cinema durante as férias, pode ir, mas não precisa voltar para o Seminário.
2) Quem quiser ler revistas mundanas, como o "O Cruzeiro", também não precisa voltar.
3) Se vocês estiverem em casa e se alguma amiga ou prima de suas irmãs for visitá-las, vocês devem ir imediatamente para o seu quarto, para fazer as suas orações ou ler um livro religioso.
4) Na rua, andem sempre de olhos baixos, voltados para o chão. Não fiquem prestando atenção nas pessoas que passam.
Sempre achei esse exagero contraproducente. Servia para despertar a curiosidade e a malícia. Nós, que éramos meninos inocentes, acabávamos tendo a atenção despertada para as moças que iam visitar nossas irmãs ou que passavam pela rua, embora somente pudéssemos prestar atenção às suas pernas e seus sapatos.
O comportamento exigido de nós no Seminário deixou marcas duradouras, perenes. O Senador Roberto Campos, que também foi seminarista, costuma dizer que é capaz de identificar uma pessoa que passou por um Seminário, somente pela forma desta cruzar os braços ou ficar de mãos postas.
Com férias de fim de ano tão cheia de normas, seria mesmo necessário o retiro espiritual que realizávamos, logo que retornávamos a São Roque? Os padres diziam que era para afastar a dissipação das férias. Que dissipação?
No decorrer das férias, eram ainda realizadas reuniões, com a presença de todos, como algumas que fizemos na igreja de São João Batista, no Brás, para meditação e oração. Numa outra ocasião, fomos a Aparecida do Norte. A estrada ainda era de terra, cheia de curvas e arborizada. Em Aparecida, ainda não funcionava o Seminário Menor da Arquidiocese de São Paulo. Lá, ainda estavam apenas os redentoristas. Quando a Arquidiocese organizou o Seminário Menor, naquela cidade, o Seminário de São Roque passou a se denominar Seminário Médio.
Um ponto a considerar e que os leigos dificilmente entenderão, é que, para o seminarista, existe um mundo espiritual, em que a presença divina é relevante. Não havia necessidade de tantas regras e tanto controle. O seminarista tinha consciência de que Deus tudo estava vendo e que, se agisse de forma errada, poderia enganar os pobres mortais, nunca o Criador. Lembro-me de uma ocasião, em que alunos novos, recém chegados ao Seminário, ainda não acostumados com a nossa disciplina, aprontaram um folia no dormitório, à qual alguns veteranos aderiram. No dia seguinte, o Padre Ministro só teve um trabalho. Reuniu a comunidade e disse: - "Quem participou das brincadeiras, ontem à noite, no dormitório, está obrigado, em consciência, a vir até aqui e dar o seu nome". Não faltou nenhum dos barulhentos.