Textos extraídos do jornal "O Estado de S. Paulo"
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7 de março de 1999

"Saibamos vencer ou morrer"

Neste texto publicado no "Estado" no dia 9 de agosto de 1932, articulista pede o fim dos apelos pelo rádio

Há 30 dias que estamos em estado de guerra. Em todo este primeiro mez de campanha, durante o qual S. Paulo tem supportado victoriosamente sobre todas as suas fronteiras o embate do inimigo, o espaço tem vibrado, transmittindo aos quatro cantos do horizonte a voz dos oradores que se têm succedido, ininterruptamente, ao microphone dos apparelhos de radiotelephonia.

O radio é uma admirável arma de guerra de que talvez ainda não tenhamos sabido nos utilisar com toda a efficiencia que lhe podemos dar. Della, porém, temo-nos servido para annunciar a todos os rincões do Brasil, aonde cheguem as ondas das nossas estações transmissoras, qual o verdadeiro caracter da revolução constitucionalista, quaes os reaes propositos e objectivos deste movimento de que S. Paulo tomou a iniciativa desmentindo os vituperios com que o procuram cobrir os nossos inimigos.

E isto está bem. Talvez mesmo não seja demais insistir nessa affirmativa, para que não possa pairar sombra de duvida sobre o caracter da guerra civil que hoje divide a República e só a má fé explique a persistencia com que ella é desvirtuada pelo interesse dos nossos adversarios.

Durante este mez inteiro, ressoaram também através do ar, em sucessão insistente, os "apellos" de todos os typos e aspectos. Tivemol-os em arroubos de oratoria demosthenica de admirável forma literaria, como em discursos gradiloquos de velho estilo; tivemol-os proferidos em voz serena e persuasiva, como em arrebatamentos vibrantes e imperativos; tivemol-os vasados em períodos onde perpassava a antecipação da victoria, como em phrases merencoreas onde transpareciam os receios e temores de almas amedrontadas; ouvimos mesmo um orador que falava com tremulos na voz carregada de lagrimas com que se dirigia aos seus irmãos de um Estado do Norte.

Foram feitos appellos aos bahianos e aos gauchos; aos pharmaceuticos e aos advogados; à Marinha e às policias; às classes conservadoras e às classes renovadoras; a tudo enfim para que se podia appellar...

Parece que está inteiramente esgotado, exhaurido, explorado o filão deste genero literario. Note-se desde já que isto é apenas uma opinião pessoal da qual muita gente discordará provavelmente. Seja-me, porém permittido expol-a com a lealdade e franqueza de que sempre usei em meus escriptos. É tempo de parar com os appellos.

Basta de appellos!

São Paulo está só. Saibamos vencer ou morrer, envolvidos no manto do nosso orgulho, sem atroar os ares com pedidos de socorro. É isto o que pensam os nossos irmãos que estão dando o seu sangue nas trincheiras. É o que me mandam dizer.

13 de março de 1999

Conflito iniciou a revolução imagética dos jornais do País

Imprensa paulistana tornou-se pioneira no uso de fotos como instrumento de propaganda política

JEZIEL DE PAULA

Especial para o Estado

De uma maneira geral e por muito tempo, os estudos sobre o evento que ficou conhecido na historiografia brasileira como a Revolução Constitucionalista de 1932 se caracterizaram basicamente por uma polarização radicalizada entre dois discursos antagônicos que, de um lado, reproduzia a visão dos vencedores da guerra (chamada varguista ou getulista) e, de outro, a versão dos vencidos conhecida como paulista ou triunfalista. Do ponto de vista historiográfico, seria interessante empregar os próprios termos com que, na época, se autodenominavam os dois lados adversários no conflito: a visão ditatorial e a constitucionalista.

Ambas as versões concordam em um dos aspectos mais recorrentes sobre o evento: a decisiva participação da grande imprensa paulista na mobilização. As controvérsias surgem na interpretação dos motivos. Na visão dos vencedores, tudo não passou de uma eficiente manipulação ideológica das elites oligárquicas. Para os vencidos, representou a contribuição máxima dos brasileiros de São Paulo em prol de um Brasil mais democrático.

O fato é que universo documental do período (visual, escrito e sonoro); evidencia uma mobilização popular bem maior do que se acreditava. Uma participação ativa de mulheres e homens, velhos ou crianças, provenientes dos mais diversos segmentos sociais, étnicos e econômicos e que acreditaram na bandeira constitucionalista que exigia a imediata democratização do país. Por mais conflituosos e múltiplos que pudessem ser seus objetivos pessoais, naquele determinado momento histórico, é inegável a convergência de esforços para alcançar um mesmo fim.

Festa cívica - Esses testemunhos documentais podem ser considerados com alto grau de confiabilidade, pois, partiram de grupos rivais ou classes antagônicas. Todos, porém, afirmando a participação do povo na revolução, seja pelo enaltecimento de tão nobre fato, por uns, como pelo lamento da nfelicidade do ocorrido, por outros.

A receptividade popular aos apelos dos líderes políticos e militares por meio da imprensa atingiu níveis de uma verdadeira festa cívica. O sentimento patriótico contido na idéia da configuração geográfica do Brasil pelo bandeirante associado ao orgulho pela independência do País em solo paulista contribuiu favoravelmente para a mobilização popular.

O rádio - a grande novidade tecnológica da época - é visto por muitos como um dos principais fatores que contribuíram para uma rápida mobilização. De fato, pela primeira vez em nossa história, a radiodifusão foi utilizada como propaganda política em ambos os lados da guerra. No entanto, é preciso considerar que no ano de 1932 a maioria dos brasileiros não possuía aparelhos receptores. Era, sobretudo, pelas edições extraordinárias dos jornais do Estado de São Paulo que a população acompanhava o desenrolar dos acontecimentos.

A campanha de oposição promovida principalmente por gaúchos, mineiros e paulistas contra o governo provisório, em 1931-32, contou com o apoio dos principais jornais paulistanos, cujos diretores se confundiam com a liderança do movimento. Entre eles, Julio de Mesquita Filho e Francisco Mesquita, que, após o término da guerra, com mais 68 líderes constitucionalistas seriam exilados para Portugal pelo governo Vargas.

Ousadia - Extremamente atual e até certo ponto ousado para sua época, jornais como O Estado de S. Paulo e a Gazeta se tornariam pioneiros na utilização da fotografia como instrumento de propaganda política no Brasil. Com grandes tiragens, freqüentemente em duas edições diárias, esses jornais paulistanos inauguravam uma moderníssima técnica visual na qual páginas inteiras eram preenchidas apenas com fotografias, sem ao menos trazer uma única legenda escrita ou sequer uma manchete.

Era a pura linguagem fotográfica sendo utilizada em São Paulo, desde o início dos anos 1930, como veículo de comunicação de massa e propaganda política. A fotografia ia conquistando as páginas dos jornais e operando uma mudança inédita na imprensa brasileira. A conscientização de que a fotografia poderia desempenhar um importante papel na mobilização da população paulista fez com que se contornassem muitos problemas técnicos relativos à impressão e, pela primeira vez em nossa História, a fotografia tornou-se freqüente nos jornais.

Com o objetivo de atingir um público mais abrangente e mobilizá-lo em torno da guerra, os jornais de São Paulo buscaram novas alternativas jornalísticas que rompessem com a monotonia dos relatos distantes do teatro de operações. Os apelos aos voluntários eram lançados em grandes comícios em praças públicas, onde tribunos como Ibrahim Nobre e João Neves da Fontoura convocavam a multidão por meio da grande imprensa.

Esse voluntariado não se restringia apenas a um eficiente serviço que recrutava homens para a guerra. Muito mais que isso, tal engajamento popular abrangia os mais variados setores não apenas nas frentes de combate, mas, sobretudo, no apoio logístico da retaguarda. É principalmente nesse aspecto que a mobilização das massas se faz presente.

A cidade de São José do Rio Preto - nos sertões da Alta Araraquarense - não dispunha em 1932 de estradas de rodagem, apenas caminhos carroçáveis. As comunicações telefônicas e telegráficas estavam interrompidas. O único meio de comunicação era o trem, que trazia os jornais da capital paulista. No entanto, em menos de 30 horas após deflagrada a guerra, praticamente toda a região respondia favoravelmente ao brado pela Constituição.

Um bom exemplo do poder de divulgação e propaganda exercido pela grande imprensa paulista. Durante os 85 dias de combates, o parque gráfico paulista passou a usar um papel de qualidade superior, para garantir a melhor impressão dos registros da luta contra a ditadura. Esses jornais revolucionaram as formas de utilização na imprensa do País, explorando profundamente o potencial informativo e propagandístico da imagem ao publicar páginas inteiramente dedicadas à fotografia.

Influências - As possibilidades de o fotógrafo interferir na imagem existem desde a invenção da fotografia, esteja ela a serviço de uma ou de outra ideologia, denunciando tensões sociais ou, ao contrário, testemunhando a normalidade de uma mesma situação apenas pela escolha de um outro ângulo mais conveniente.

O processo de formação da imagem fotográfica abrange, simultaneamente, inúmeros fatores tanto de natureza objetiva quanto subjetiva. Nesses dois opostos, contraditórios apenas em aparência, estão contidos, de um lado, determinantes tecnológicos de um instrumento óptico, mecânico e químico de precisão inquestionável - a câmara fotográfica; no outro extremo, o poder da escolha de quem manipula esse mesmo instrumento - sua visão de mundo.

Não seria correto, entretanto, encarar apenas o fotógrafo como uma espécie de narrador visual de seu tempo. A interferência conotativa na imagem não é exclusiva do operador da câmara, prevalecendo apenas seu ponto de vista. Vários outros sujeitos atuam de forma concomitante na operação e a subjetividade ideológica do fotógrafo não é o único elemento que compõe o universo da imagem fotográfica, porém, um dentre vários.

Esses sujeitos podem exercer influências com igual peso e simultaneamente entre si. No caso de fotografias em que entra o elemento humano, também é preciso considerar a visão do próprio fotografado, que pode estar exprimindo, de forma consciente ou não, seus anseios e sua auto-imagem idealizada.

Mesmo assim, o historiador deve estar atento para não deslocar a primazia de um para outro componente formador da imagem, pois, as maneiras de ver, tanto do fotógrafo quanto do fotografado, não são as únicas e as filtragens na produção da fotografia não se restringem apenas a esses dois sujeitos.

No caso de fotografias que não sejam retratos, também existe a forte interferência da visão do público a que se destinam tais imagens ou até mesmo os desejos de um editor, patrocinador financeiro ou grupo político, dentre inúmeros exemplos.

É preciso considerar também que nem sempre o espírito norteador da realização dos registros fotográficos resulta obrigatoriamente de uma posição ideológica definida a priori, seja por um editor manipulado ou qualquer grupo manipulador. Tais registros também podem ser fruto de uma convergência de expectativas e da similaridade de um mesmo imaginário - do fotógrafo, do leitor, do editor, do patrocinador e do próprio fotografado de verem traduzidas nas imagens as esperanças do sucesso da campanha -, bem como da realização de um ideal coletivo.

Neste sentido, a fotografia divulgada pela imprensa paulista em 1932 não somente corrobora o discurso verbal (oral e escrito) que pretende assegurar a vitória sobre um regime de exceção, mas, principalmente, estabelece vínculos, aproximando e identificando a quase totalidade dos habitantes do Estado de São Paulo e demais constitucionalistas de outros Estados a uma causa comum.

13 de março de 1999

1932, o ano em que o "Estado de S. Paulo" foi à guerra

Principal líder civil do movimento que uniu as forças políticas de São Paulo contra a ditadura de Getúlio Vargas foi o diretor do jornal, que reafirmava, assim, sua disposição para o aperfeiçoamento da democracia

A Revolução de 1932, que pôs as forças ditatoriais do governo de Getúlio Vargas ante o esforço de reconstitucionalização do País, centralizado em São Paulo, foi um conflito com uma característica determinante: teve como catalisador do movimento e como seu fio condutor um jornal diário, O Estado de S. Paulo.

Mais que isso: o principal líder civil do movimento era o jornalista Julio de Mesquita Filho (1892-1969), diretor do Estado. Essa liderança ficou clara em 25 de janeiro de 1932 - cinco meses antes da eclosão do conflito. Na ocasião, mais de 100 mil pessoas marcharam da Praça da Sé à sede do jornal, então na Rua Boa Vista, para ouvir a saudação de Mesquita Filho, que discursou. "Anulada a autonomia de São Paulo, o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias", disse Julinho, como era conhecido, da sacada da redação.

"E, se o nosso afastamento da direção da coisa pública equivaleu à implantação do caos e da desordem em todo o território nacional, a ordem, a tranqüilidade, a disciplina, em uma palavra, o império da lei e da justiça só poderá ser restabelecido no dia em que São Paulo voltar à sua condição de líder insubstituível da Nação", conclamou.

O papel do Estado nesse episódio recente da História nacional foi tanto político quanto aglutinador. O jornal esteve todo o tempo no centro do movimento, no instante em que São Paulo vivia um dos seus mais intensos momentos de fervor cívico. "O Estado se distingue porque sempre foi um instrumento de luta política", diz Ruy Mesquita, diretor-responsável do jornal e filho de Julio de Mesquita Filho, lembrando que o surgimento do periódico se deu justamente na luta pelo estabelecimento da República no País, em 1891. "Ele foi criado para isso, para o aperfeiçoamento das instituições democráticas."

O diretor do jornal lembra que Julio de Mesquita Filho, apesar do empenho na luta pelo retorno do País à ordem constitucional, jamais disputou uma eleição ou pleiteou um cargo político. "Mas fez do jornal uma trincheira", afirma. "Era um militante, um estadista, com uma cultura mais refinada que a maioria dos brasileiros e um dos maiores patriotas que eu conheci", afirmou.

Apoio total - Do chamado "grupo do Estado", que pontificava na Revolução, destacavam-se - além de Mesquita Filho, Francisco Mesquita e Alfredo Mesquita - nomes como Paulo Duarte, Guilherme de Almeida e Vivaldo Coaracy (que assinava editoriais de guerra sob as iniciais V.Cy).

Graças à reputação do jornal e ao seu respaldo entre a população, um dos generais constitucionalistas, o mato-grossense Bertoldo Klinger, chegou a comentar: "Tudo quanto peço aos paulistas para essa guerra recebo em excesso", disse. Ele tinha pedido, por intermédio do Estado, binóculos de campanha para ajudar os voluntários e os soldados no front. Em quatro dias, tinha recebido 500 binóculos.

Foi o jornal também que organizou, para o Tesouro da Guerra, um lastro econômico para as despesas no confronto, com uma campanha de donativos de ouro e jóias. Em menos de uma semana, 5 mil pessoas tinham contribuído. Segundo declarou o escritor Menotti Del Picchia, a campanha foi iniciada na primeira quinzena de agosto e "as mulheres perderam a mais feminina e resistente das suas vaidades: o amor pelas jóias".

O jornal refletia, naquela época, também a efervescência de uma cidade que começava a se tornar o maior centro urbano do País, com mais de 1 milhão de habitantes. O movimento modernista de dez anos antes dera à cidade ares cosmopolitas, de vanguarda, com aspirações européias.

Só para dar uma idéia: no antigo Cine Odeon, o filme em cartaz, na sala azul, conforme anunciava o jornal, era o hoje clássico O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, símbolo do cinema expressionista. Liquidação total no Mappin anunciava tapetes "inglezes" e tweeds "escocezes". Graça Aranha animava as livrarias com o livro Espírito Moderno, sobre a Semana de Arte Moderna de 1922. As moças da alta sociedade usavam esmalte Cutex e os homens bebiam a cerveja da época, Cascatinha.

Cenário inflamável - Mas a esse absoluto estado de normalidade civil se contrapunha um cenário político inflamável. Decepcionados com os rumos da Revolução de 1930, que conduziu Vargas ao poder, os paulistas suportaram por dois anos a desordem administrativa e o fortalecimento do poder central em detrimento da autonomia dos Estados.

Em 1982, quando a Revolução completava 60 anos, foi publicado o álbum São Paulo, 1932, que coletava documentos e fac-símiles de registros de época. Está lá, por exemplo, uma carta do aviador Alberto Santos Dumont, escrita poucos dias antes de sua morte, na qual ele pedia "a volta da pátria brasileira ao regime legal". A carta foi publicada na primeira página do Estado.

Eram muitas as manifestações contrárias à "traição" de Getúlio Vargas. No final, inconformados com o desrespeito de Vargas às regras constitucionais, o paulistas levantaram-se - mas sem contar com o anunciado apoio dos aliados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Foi uma luta desigual: 100 mil homens das forças ditatoriais contra 50 mil paulistas, a maioria voluntários.

A derrota era inevitável e, após numerosos combates, foi assinado um armistício em 2 de outubro, a chamada Convenção Militar. Houve prisões e exílio, mas a Revolução Constitucionalista sairia moralmente vencedora, fato que depois foi corroborado com a convocação da Constituinte de 1934 por Vargas.

Mesquita Filho e seu irmão Francisco Mesquita (1893-1969), líderes ativos da revolução, foram presos e exilados em Portugal. Mas Getúlio Vargas, ciente do poder político do jornal, sabia que era preciso tentar cooptá-lo para abafar sua influência. Então, nomeou como interventor no Estado Armando Salles de Oliveira, cunhado de Julio Mesquita Filho.

"Meu pai sabia que Getúlio Vargas não era confiável e avisou o Armando Salles: ele vai tentar de novo um golpe contra o regime democrático", recorda Ruy Mesquita. O que acabou ocorrendo em 1937, quando Oliveira e Mesquita Filho foram novamente presos e exilados. Julio Mesquita voltaria do exílio em 1943. Oliveira, em 1945.

6 de julho de 1999

Veteranos revelam detalhes de uma batalha em que coragem e democracia eram armas

Ex-combatentes reúnem-se no 9 de Julho e falam do espírito de união que tomou conta de São Paulo

MAURÍCIO MORAES

Especial para o Estado

As comemorações do 9 de Julho trazem à tona um sentimento especial aos que participaram da Revolução Constitucionalista, em 1932. Todos os anos, na data em que se iniciou o movimento, o espírito de união que tomou conta do Estado volta a revelar-se. Ex-combatentes, voluntários e parentes de pessoas que foram para as frentes de batalha se reúnem, mais uma vez, para celebrar o levante.

A disputa teve como fundamento o pedido dos paulistas por uma nova Constituição. Empossado na Revolução de 1930, depois de derrotado por Júlio Prestes na eleição presidencial daquele ano, Getúlio Vargas passou a exercer um governo ditatorial no País.

Dessa forma, acabou relegando São Paulo a segundo plano e nomeou interventores para os Estados. A situação política agravou-se com o passar do tempo e a revolta entre os paulistas cresceu.

Em 1932, o Estado decidiu rebelar-se contra a ditadura, exigindo a promulgação de uma Constituição. Tinha início um dos maiores conflitos armados do século no País, que teve em Júlio de Mesquita Filho um dos seus principais articuladores políticos.

Cerca de 35 mil paulistas lutaram por três meses. No dia 2 de outubro daquele ano, sem armas, sem munição e sem o apoio de outros Estados, São Paulo foi obrigado a render-se às forças de Vargas.

Anos após o término dos combates, os participantes da revolta formaram a Sociedade de Veteranos de 1932, uma associação localizada no centro da cidade. Entre as diversas atividades promovidas anualmente pelo grupo está a escolha dos quatro membros do comando do "Exército constitucionalista". O coronel Atiliano Martins Corrêa, de 90 anos, atual coronel-comandante da brigada, é o último oficial que participou da revolução ainda

vivo.

Telegrafista - Na sexta-feira, tanto o ilustre morador da Aclimação como os demais integrantes passarão os cargos para outros quatro membros da sociedade. Corrêa esteve no centro dos acontecimentos que culminaram no conflito.

Nos anos 20, ele trabalhava na Companhia Paulista de Estradas de Ferro como telegrafista. Muito dedicado à profissão, prestou vários exames e estava prestes a tornar-se chefe de estação, mesmo tendo menos de 20 anos.

Faltava, no entanto, o certificado de reservista para que conseguisse a promoção. Ao completar 18 anos, em 1927, o telegrafista entrou para o Exército.

Estudou por três anos no Rio e estabeleceu-se em Pirassununga como tenente. "Logo que terminei o curso, entrei para o 4º Esquadrão do 2º Regimento de Cavalaria Divisionária", explica. Tempos depois, foi chamado para organizar a escolta de um quartel-general em São Paulo.

No dia 23 de maio de 1932, Corrêa estava no pelotão designado para verificar o que estava ocorrendo na Praça da República. Manifestações contra Getúlio Vargas eclodiam pela capital paulista, em um clima crescente de revolta. Um grupo tentou invadir a Liga Revolucionária - organização favorável ao regime situada nas proximidades da praça -, dando origem a um episódio que impulsionou o movimento.

MMDC - Os governistas resistiram a bala e acabaram matando os jovens Mário Martins de Almeida, Euclides Miragaia, Dráusio Marcondes de Sousa e Antônio Camargo de Andrade. "Quando cheguei, havia três mortos e dois feridos, que acabaram morrendo depois", lembra Corrêa. O quinto ferido era o estudante Orlando de Oliveira Alvarenga.

"Havia revoltosos por toda a parte." Ao lado dos homens do Corpo de Bombeiros, ajudou a apagar um incêndio provocado por manifestantes.

As iniciais de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo serviram para formar o MMDC. A sigla representava uma organização civil clandestina, que, entre outras atividades, oferecia treinamento militar.

No dia 9 de julho, a Revolução Constitucionalista começou. Corrêa entrou para o movimento, mas não chegou a pegar em armas. "Cuidava da parte logística."

Viajando entre a capital e as frentes de batalha, ele levava munição, armas e roupas para os soldados. Por saber o Código Morse, também cuidava das comunicações, passando mensagens cifradas.

Segundo ele, dificilmente São Paulo poderia ter derrotado as forças do governo. "Nós não tínhamos armamentos nem munição suficientes para vencer", ressalta. Corrêa lembra que, para enganar os inimigos, os soldados utilizavam as "matracas".

Canhões - Ao ser girados, os instrumentos emitiam sons semelhantes aos de uma metralhadora. Assim, disfarçavam a falta de munição. Para evitar que os adversários soubessem que tinham poucos canhões, de apenas duas marcas diferentes, costumavam dar tiros com balas de diferentes calibres.

"Muitos ficavam sem granadas e jogavam até terra nos inimigos", diz. Em outubro de 1932, o general Bertholdo Klinger, comandante das forças paulistas, assinou a rendição.

Alguns regimentos, como o de Corrêa, acabaram extintos pelo governo. "Fomos todos para a rua", esclarece. Assim como vários de seus colegas, ele acabou sendo deportado e mudou-se para Portugal.

Lá, estudou agronomia e, quando voltou ao Brasil, conseguiu um emprego de classificador de produtos vegetais. "Hoje a função equivale à de um técnico agropecuário", salienta. Apesar de desligado do Exército desde aquela época, ele ainda cultiva o espírito da revolução, indo todos os anos às comemorações oficiais.

10 de julho de 1999

Revolução é lembrada em desfile no Ibirapuera

Ato marcou o 67º aniversário do início dos combates entre paulistas e tropas fiéis a Vargas

EUGÊNIO MELLONI

Um desfile com cerca de 1,8 mil participantes, entre policiais militares e civis metropolitanos, soldados do Exército, escoteiros e até motociclistas, realizado ontem na frente do Obelisco do Ibirapuera, marcou o 67º aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932. Apesar do frio e da idade avançada, vários veteranos do levante paulista contra as tropas de Getúlio Vargas participaram ativamente das solenidades - que contaram com a presença do governador Mário Covas.

Lúcido aos 87 anos, Salem João Salim exibia com orgulho, ontem, a sua identidade militar da época. "Eu era bonitão, não?", dizia, ao mostrar sua foto aos 21 anos. Apesar do bom humor, Salim queixou-se de que, com o passar dos anos, a Revolução Constitucionalista e os seus princípios andam um pouco esquecidos. "Só se lembram da revolução no 9 de Julho", afirmou.

A data marca o início dos combates entre as forças paulistas, que queriam o retorno do País à ordem constitucional, e as tropas federais, leais a Getúlio Vargas.

Conflito - O conflito envolveu, durante três meses, 135 mil brasileiros, dos quais cerca de 40 mil paulistas, a grande maioria voluntários civis, de acordo com os dados da Polícia Militar, que organizou o evento. Tombaram 630 paulistas e cerca de 200 homens das tropas federais, segundo o capitão Nélson, da área de Relações Públicas da PM.

Salim era terceiro-sargento do Exército quando a revolução começou e, como todo o efetivo lotado em São Paulo, aderiu à causa constitucionalista. Foi deslocado para evitar o avanço das tropas federais na região de Buri, no sul do Estado, onde foi ferido.

"Fiquei em um hospital improvisado em uma escola de Itapetininga que estava repleto de feridos", lembra. Salim ainda carrega, com as lembranças do episódio, uma bala incrustada na perna.

Escoteiros - Oswaldo Leite de Moraes tinha apenas 13 anos quando a revolução começou. Mas, como escoteiro, prestou serviços no atendimento de feridos na Cruz Vermelha. "Os escoteiros participaram ativamente servindo como elementos de ligação entre as tropas paulistas", informou o capitão Nélson, da PM. O escoteiro Aldo Chiorato, que morreu durante o bombardeio da estação de trens de Campinas por aviões das forças federais, é um dos mártires do levante constitucionalista.

Para Moraes, a luta foi válida. "Foi um movimento idealista que mobilizou toda a sociedade paulista para restabelecer a democracia", lembra. Segundo a Sociedade Veteranos de 32 -- MMDC, ainda estão vivos cerca de 200 ex-combatentes, espalhados pelo Estado. A sociedade procura manter a tradição e a mística que mobilizou a população do Estado na revolução, por meio de uma cerimônia em que os capacetes de ex-combatentes são entregues aos seus descendentes. Ontem, o garoto Marcus Vinícius Emendabili de Carvalhosa recebeu o capacete que pertenceu a seu bisavô, o escultor Galileo Emendabili.

11 de julho de 1999

A nova geração Na trilha do pai Admirável Ruy Barbosa Atos e idéias Véspera da deportação Conspirador convicto Dura prova Desencanto Contra o varguismo Fiel amigo

Seguindo os passos do pai, Julio de Mesquita Filho fez do Estado a tribuna e a trincheira em sua luta na defesa dos ideais do liberalismo. Ele procurou transmitir o mesmo espírito, aos três filhos, que aparecem com ele, em sua sala na antiga sede do jornal, na Rua Major Quedinho, centro de São Paulo: Ruy Mesquita, à esquerda, Luiz Carlos Mesquita e Julio Mesquita Neto. Atualmente, a quarta geração está assumindo o comando da empresa. A luta de Julio de Mesquita Filho por uma república verdadeiramente democrática começou cedo, ao lado do pai, Julio Mesquita - que dirigiu o jornal no período de 1891 a 1927. Abolicionista e defensor da República, Julio Mesquita fez parte da primeira dissidência republicana, que, em 1902, se colocou contra o poder das oligarquias e as fraudes eleitorais. Seu maior instrumento de luta, o jornal Estado, foi legado aos filhos. Na foto acima, feita durante uma viagem à França, em 1912, Julio Mesquita aparece à esquerda. Ao centro encontra-se um amigo da família, Paiva Azevedo; e à direita, de chapéu, o jovem Julio de Mesquita Filho. No início de suas atividades políticas, Julio de Mesquita Filho aproximou-se de Ruy Barbosa, companheiro de seu pai. Em 1909/1910, o Estado apoiou a primeira tentativa de Ruy para chegar à Presidência da República. Em 1919, na segunda e igualmente malograda tentativa, Julio de Mesquita Filho acompanhou-o em comícios pelo Brasil. Na foto ao lado ele aparece à esquerda do candidato, num ato em São Paulo.

Para Julio de Mesquita Filho, o advogado e primeiro-ministro da Fazenda da República era um exemplo acabado de homem público. "Ele tinha uma admiração absoluta por Ruy, por suas campanhas contra os desmandos da República Velha", conta Ruy Mesquita, diretor do Estado. "A escolha de meu nome foi uma homenagem a ele."

Na verdade, a pregação civilista de Ruy Barbosa influenciou toda uma geração, conforme Julio de Mesquita Filho disse certa vez. Teria agido até sobre os espíritos dos jovens militares que encabeçaram o levante do Forte de Copacabana, em 1922 - primeiro grande ato de rebeldia militar contra a República Velha. Em 1915, o poeta e jornalista Olavo Bilac (1865-1918) empenhou-se numa campanha nacional a favor do serviço militar obrigatório. Julio de Mesquita Filho, que via no alistamento uma forma de melhorar a educação dos jovens brasileiros, tanto do ponto de vista intelectual como cívico, deu amplo apoio a Bilac. No ano seguinte, numa de suas primeiras demonstrações de que as idéias políticas são inseparáveis da ação, ele próprio se alistou e prestou o serviço militar no 2º Regimento de Infantaria - cujo uniforme ele exibe na foto acima. Com a derrota da Revolução Constitucionalista, em 1932, seus principais líderes foram presos. Entre eles se encontrava Julio de Mesquita Filho, enviado com seus companheiros para a Sala da Capela - nome dado um pequeno recinto na Casa de Correção, do Rio, reservado para os prisioneiros políticos provenientes de São Paulo. Pouco tempo depois, na noite de 30 de novembro de 1932, ele e outros 75 companheiros foram colocado a bordo do navio Pedro I e deportados para Portugal. Só conseguiu retornar de lá em 1933. Parte daquele grupo de prisioneiros aparece na foto acima, feita no pátio da prisão carioca. Julio de Mesquita Filho está à esquerda, em pé, sem camisa e com a mão na cintura. "Conheço quase todas as cadeias deste País", disse Julio de Mesquita Filho durante uma entrevista no programa de televisão Pinga Fogo, que fazia sucesso no início dos anos 60. Ele se referia às 17 vezes em que passou por prisões, por causa de questões políticas. "Nunca protestei porque sempre conspirei", disse. As fotos acima, nas quais aparece de frente e de perfil, constam da ficha que tinha no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Embora a ficha apresente a data de 1946, é provável que as fotos tenham sido feitas noutra ocasião, em outubro de 1932, quando foi recolhido à chamada Casa de Correção, logo após a derrota da Revolução Constitucionalista. Ele tinha 40 anos. Em 1922, Julio de Mesquita Filho casou-se com Marina Vieira de Carvalho Mesquita. O casal teve três filhos: Julio Mesquita Neto, que substituiu o pai na direção do Estado, em 1969; Ruy Mesquita, atual diretor; e Luiz Carlos Mesquita, que morreu prematuramente em 1970. No foto à esquerda, o casal aparece na Rua Florida, em Buenos Aires, durante o segundo exílio determinado por Getúlio Vargas. Nesse período, entre 1939 e 1943, a família Mesquita enfrentou dificuldades econômicas e passou por uma dura provação: a ocupação do jornal por agentes da ditadura, que passaram a editar a publicação. Em 1945, o Estado voltou às mãos dos irmãos Julio de Mesquita Filho e Francisco Mesquita. Procurado por militares, em 1962, Julio de Mesquita Filho redigiu o documento que ficou conhecido como Roteiro da Revolução. Nele indicava os passos que deveriam ser seguidos caso fosse vitoriosa a conspiração contra João Goulart: o regime revolucionário deveria durar pouco, apenas para afastar a ameaça comunista e a herança varguista. Mas logo após a vitória, Julio de Mesquita Filho afastou-se de Castelo Branco, que aparece ao lado cumprimentando-o, sob o olhar de Ernesto Geisel. Durante as eleições presidenciais de 1960, Julio de Mesquita Filho apoiou a candidatura de Jânio Quadros contra o marechal Henrique Teixeira Lott. A vitória de Jânio representava, naquele contexto, a derrota do varguismo, ainda presente na cena política e que era considerado por Julio de Mesquita Filho uma das principais causas do atraso político brasileiro. Logo após a vitória de Jânio, porém, ele rompeu com o presidente, que acabou renunciando. Carlos Lacerda, político, jornalista e polemista vigoroso, manteve uma longa amizade com Julio de Mesquita Filho. Divergiram em determinadas ocasiões, foram companheiros de luta em outras. Os dois apoiaram o movimento de março de 1964 e depois se voltaram contra os militares. Lacerda, que teve os direitos políticos cassados, era, nas palavras de Julio de Mesquita Filho, "o denominador comum do elemento civil revolucionário".

11 de julho de 1999

Ossadas de Itararé podem mudar história de batalhas

Restos de soldados gaúchos mortos em combate mostrariam que cidade resistiu em 30 e 32

JOSÉ MARIA TOMAZELA

ITARARÉ - O fotógrafo Gustavo Jansson, de 81 anos, guarda com cuidado, no meio de milhares de negativos e fotos, aquela que julga ser a prova de que a história foi injusta com Itararé, a 320 quilômetros de São Paulo, nas Revoluções de 1930 e 32. A foto mostra restos mortais de soldados gaúchos sendo retirados das sepulturas, em 1934, para o traslado para o Sul. É a prova de que Itararé resistiu aos invasores, segundo ele. A cidade ficou conhecida pela "luta que não houve" e pelas duas rendições às tropas gaúchas sob o comando de Getúlio Vargas.

Em 1930, pela história oficial, a batalha decisiva, anunciada com estardalhaço, não ocorreu e as tropas revolucionárias entraram em Itararé sem disparar um tiro. Dois anos depois, no mesmo lugar, os constitucionalistas amargaram nova derrota para as forças federais.

"Nossa cidade entrou para a história pelas portas do fundo e virou motivo de piada", diz o escritor da terra José Maria Silva, em seu livro As Batalhas de Itararé, editado em 1997.

A foto do arquivo de Jansson, filho de Claro Jansson, que fotografou as duas revoluções, fazem parte de uma campanha dos moradores de Itararé para contar sua versão das batalhas. O jornalista e pesquisador Hélio Porto identificou as ossadas recolhidas no cemitério local como de soldados do 8º Regimento de Passo Fundo (RS), mortos em 32.

No dia 18 de julho daquele ano, Vargas entrava vitorioso na cidade. "Mas a história não fala das baixas gaúchas e do sofrimento da nossa população naqueles dias de guerra, tanto que o armistício foi recebido com festa."

Túmulos - Em outro livro que será lançado no mês que vem, Memórias de Itararé - Revoluções de 30 e 32, as gêmeas Terezinha de Jesus Mello Martins e Maria Aparecida Silva Mello revelam a existência de quatro sepulturas de soldados gaúchos, mortos em combate na Revolução de 30, no local conhecido como Passo do Cypriano, na fazenda da família.

Os túmulos foram preservados pelo avô das gêmeas e os ossos não foram retirados. "Nas revoluções houve combate e mortes dos dois lados", diz Terezinha.

As irmãs contam que nasceram sob o tiroteio de 14 de outubro de 1930, data da chamada "batalha que não houve". Relatam histórias que ouviram de seus pais e avós, depoimentos de ex-combatentes vivos, como Valdomiro Marques e Manoel Luciano de Mello. Contam que os moradores tinham de entregar as casas para o aquartelamento dos soldados. Jansson, com 15 anos na época, ajudava o pai a fotografar.

"Eu ficava num abrigo construído embaixo da casa." Na Revolução de 32, segundo ele, soldados gaúchos foram mortos na Fazenda Morungava, usada como quartel pelas tropas federais. A vala onde estariam de 40 a 50 corpos foi localizada este mês pelo tenente Hélio Tenório dos Santos, da Sociedade Veteranos de 32. Ele espera confirmação do achado para comunicar o fato ao governo gaúcho.

Conforme Jansson, os soldados da Força Pública de Itararé mostraram mais coragem que o Batalhão Universitário Paulista (BUP), da capital. "Quando Vargas ordenou o ataque à cidade, eles gritaram em francês `salve-se quem puder' e bateram em retirada, mas os soldados ficaram na trincheira e resistiram até o fim."

Tabu - A repercussão que as duas derrotas tiveram no resto do País transformaram as revoluções em tabu em Itararé. "Até 1968, as rádios locais não tocavam músicas gaúchas e só nos últimos anos o Dia do Soldado Constitucionalista passou a ser lembrado", contou Porto. As trincheiras e os restos da batalha não foram preservados. Uma casa atingida por um tiro de canhão foi demolida.

Há cinco anos, o ex-vereador Marcos Tadeu Soares, assessor técnico da prefeitura, sugeriu a construção de um monumento ao soldado constitucionalista e enfrentou resistência. Mas a aceitação da obra foi o sinal verde para o projeto de resgate da memória das revoluções na cidade.

Este ano, 60 professores participaram de um curso de capacitação com duração de 12 horas, dado pelo tenente Santos. "Por meio desses profissionais, vamos tentar fazer os jovens e crianças entenderem melhor a nossa história."

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