Fragmentos da história verbal da Revolução de 1932

Isto aconteceu na década de 60, não sei precisar exatamente quando, mas eu era pouco mais que um menino quando meu tio mandou-me ao armazém comprar biscoitos "Maria". Lembro-me que ele deu alguma recomendação mas não prestei atenção. Saí e logo estava de volta, com dois ou três pacotes de biscoitos "Maria".

Meu tio pegou um pacote, leu alguma coisa e resmungou: -"Vai trocar por outra marca, essa eu não quero!"

-"Mas o que tem essa marca, é gostosa essa 'bolacha'!" falei.

-"Não! Dessa marca eu não compro nada! Veja aqui: IRFM - Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. O maldito Matarazzo traiu São Paulo na Revolução de 32!".

-"Que revolução foi essa? Como ele traiu? O que aconteceu?" disparei a perguntar.

-"Foi quando São Paulo sozinho enfrentou Getúlio Vargas e o resto do país! Getúlio deu um golpe de estado e se apossou do poder, depois acabou com a autonomia dos estados, só para tentar acabar com São Paulo! Mas o povo paulista enfrentou o resto do país, foi traído por todo lado e o Matarazzo fabricava munição, só que no lugar da pólvora colocava, sei lá, farinha de mandioca. O sujeito pegava o cartucho, chacoalhava e via que estava carregado. Dava um tiro e a bala enroscava no meio do cano. Só tinha a espoleta, não tinha pólvora!".

-"Não! Dessa marca eu não compro nada! Veja aqui: IRFM - Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. O maldito Matarazzo traiu São Paulo na Revolução de 32!". E continuou a falar: -"Depois disso o Matarazzo, que já era uma potência, aliando-se com o Getúlio, cresceu até tornar-se o maior grupo industrial brasileiro!" Mas eu nunca comprei nada fabricado pelo Matarazzo! Só se comprei enganado, mas esse é o meu protesto. Pode não adiantar nada, mas eu nunca comprarei nada do Matarazzo!"
Aquilo ficou marcado para mim. Pensei muito sobre aquelas palavras, que nem mesmo sei se eram totalmente verdadeiras ou imaginação do meu tio, mas até o início dos anos 90, quando ele faleceu, a primeira coisa que olhava quando alguém trazia um pacote de uma produto qualquer era verificar se não tinha a marca IRFM. Se tivesse, mesmo com fome, não comia.
Acho até que era verdade, pois um dia, conversando com um senhor que havia participado como combatente lá pelos lados de Lorena, ele contou que a certa altura, iam atirar e as balas falhavam, enroscavam no cano. Ele e muitos de seus companheiros acabaram desertando. Vieram caminhando pela estrada de ferro e quando ouviam um trem, corriam na mata para esconderem-se. Acabaram chegando em Tatuí bem depois do final da revolução. ...o Matarazzo fabricava munição, só que no lugar da pólvora colocava, sei lá, farinha de mandioca...
Se era ou não verdadeira a suspeita sobre o Matarazzo - quando falava "o Matarazzo", referia-se a Francisco Matarazzo - nada posso afirmar, mas foi depois da consolidação do governo de Getúlio que as indústrias Matarazzo cresceram tanto a ponto de produzirem cerca de 1/3 do PIB brasileiro da ocasião.
Mas aos mais velhos, participantes dos eventos da época, a mudança de lado de muitos políticos paulistas, principalmente aqueles sem expressão alguma, marcou para sempre. Lembro-me quando estava com meu avô, na sua serraria, ainda no início dos anos 60, todos os dias passava em frente ao escritório certo homem, que tinha uma fábrica logo ali perto e, quando aproximava-se de meu avô, o tal abaixava a cabeça e nunca olhou para meu avô. Ele, vovô, por ocasião da revolução era o presidente do PRP em Tatuí. Também falava alto para que o outro o escutasse: - "Esse aí nunca terá coragem de levantar a cabeça quando eu estiver por perto!".
Muitos políticos inexpressivos aproveitaram o bonde Getúlio para firmarem-se no vácuo deixado pelos antigos donos do poder. E o que não era "acertado" de uma maneira, acabava sendo através dos "acordos" entre o governo e os "chefetes" de todas as localidades. -"O Brasil era uma lagoa com águas tranqüilas, serenas. Veio o Getúlio e agitou as águas e toda a sujeira que estava no fundo acabou vindo à superfície!
Isso sem dúvidas resultou na modernização do país, mas muita corrupção rodou em todas as áreas. Meu avô, comentando isso dizia: -"O Brasil era uma lagoa com águas tranqüilas, serenas. Veio o Getúlio e agitou as águas e toda a sujeira que estava no fundo acabou vindo à superfície! E agitou tanto que já morreu e a sujeira toda ainda está aí!"

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Francisco A. L. Campos (1998-2000)

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