5. PRELÚDIO DA EXPULSÃO DOS JESUÍTAS
Acomodando-se o melhor possível às circunstâncias de momento, os jesuítas adoptaram em Angola diversas maneiras de actuar, segundo os diferentes períodos, embora a população portuguesa as não apreciasse todas com igual simpatia. Mas isso não impede que os inacianos tivessem razões válidas para procederem daquele modo, que houvesse motivos ponderáveis a justificar o seu procedimento. Nem sempre o vulgo se apercebe das causas que levam a mudar de táctica, acontecendo até que o interesse das massas ou o sentimentalismo colectivo sejam pouco razoáveis.
Nos primeiros oitenta anos, desenvolveram um apostolado dinâmico, sem olharem a sacrifícios e incómodos próprios do sertão, e interferiram muitas vezes, com acerto, na orientação dos negócios públicos. Pode dizer-se que exerceram meritoriamente a tríplice acção de missionários, de estrategas e de administradores, quando não ainda outras. Promoveram alianças com as autoridades indígenas, desenvolveram iniciativas que promoviam o ensino, a assistência e a civilização. Insuflaram coragem aos timoratos e incutiram ânimo àqueles que, em face das contrariedades, estavam prestes a perdê-lo. Neste período criaram inúmeros amigos e admiradores incondicionais, sendo-lhes feitos os elogios mais rasgados e mais entusiastas.
O segundo período da sua actuação corresponde aos anos da ocupação flamenga, englobando nele os que a antecederam e aqueles que se lhe seguiram. Deixaram de dedicar o seu interesse principal às missões do interior, prestando atenção particular à obra catequística em Luanda. Foram sobretudo os missionários da cidade e dos europeus. Fundaram o seu colégio e sustentaram aulas onde os filhos dos colonos e nativos podiam estudar. Em vez de se dedicarem à evangelização do gentio do sertão, preocuparam-se sobretudo com os habitantes de Luanda e de outros núcleos populacionais, e de modo muito particular com os portugueses, que já naquele tempo eram um grande entrave à conversão dos nativos. Os costumes desses elementos da sociedade colonial eram quase sempre mais censuráveis do que louváveis, pois tinham muito que carecia de reforma.
O ensino era tarefa meritória e digna. Mas os seus compatriotas não viam isso e para eles seria mais útil e até mais lógico que convertessem os naturais, o que equivalia muitas vezes a pacificá-los. Esses portugueses, como outros de todos os tempos, e muito especialmente daquela época histórica, desejavam para os indígenas a felicidade eterna do céu mas para eles mesmos contentavam-se com os bens e riquezas da terra, com a posse dos valores temporais.
O esclavagismo estava em pleno apogeu, contribuindo poderosamente para a formação de grandes e avultadas fortunas!
Os jesuítas, mais prudentes e mais adaptáveis do que os outros religiosos, abandonaram as actividades missionárias do interior, dedicando-se sobretudo à catequese dos centros de fixação europeia, como já salientámos. Foram os primeiros a manter escolas de primeiras letras e talvez até outras de estudos mais adiantados, mesmo que o seu funcionamento fosse irregular. As outras congregações, todavia, não deixaram de lhes seguir o exemplo!
O vulgo não compreendia a mudança de táctica e de objectivos, acusava a Companhia de Jesus de comodismo e tibieza. Não compreendia que os trabalhos missionários do sertão eram praticamente infrutíferos, por se não apoiarem em núcleos sedentários, em centros civilizados. Essas tarefas encurtavam exageradamente a média de vida dos padres, que morriam minados pelas febres tropicais e não podiam ser substituídos. Não entendia que a modificação dos costumes dos indígenas e da sua mentalidade era mais fácil e mais rápida pela influência e exemplo dos europeus do que pela pregação. E sem o apoio de uma doutrinação eficiente, que nem sempre podia ser ministrada, os colonos e comerciantes e igualmente os soldados deixavam-se arrastar facilmente para a vida desregrada e contraiam hábitos condenáveis, embrutecendo-se.
Os habitantes de Angola não entravam na análise da questão em todos os seus pormenores, só viam na atitude dos jesuítas interesses vulgares e ambições correntes. Analisavam-na pelos seus próprios prismas. Se é verdade que os religiosos algumas vezes se deixaram arrastar pela sede das riquezas e pelos interesses temporais, mesmo pela cegueira dominadora, outras muitas souberam harmonizá-los com o ardor missionário e o fervor apostólico. Não poderiam suportar os encargos da sua sustentação apenas com os subsídios oficiais e as subvenções que a Europa lhes mandava. A generosidade dos colonos também não poderia fazer face a tais despesas; os subsídios governamentais, além de insuficientes, eram pagos com atrasos enormes. As actividades lucrativas a que se dedicaram, assim como as demais ordens religiosas, exerciam benéfica influência sobre os indígenas, dando-lhes lições de iniciativa e exemplos de trabalho.
Os colonos viam que os capuchinhos e os carmelitas ainda continuavam a sacrificar-se no interior, onde morriam estoicamente, ignorados por todos. Mas esqueciam-se que os frutos de tantos esforços não eram, de maneira nenhuma, satisfatórios, não compensavam os sacrifícios que custavam. E em todas as actividades, mesmo nas espirituais, os frutos são registados em valores numéricos!
As queixas que de muitos lados se ergueram chegaram à corte e foram apresentadas também aos mais categorizados superiores da ordem. Em 6 de Outubro de 1654, chegou a Luanda o P. Manuel de Matos, na qualidade de observador e reformador, e tomou iniciativas tendentes a que a antiga prática fosse retomada. O resultado, porém, não foi lisonjeiro; e quando se viu que o pessoal missionário rareava, quando se verificou não poder ser facilmente substituído, voltou-se ao sistema anterior, o mais aconselhável. As congregações que continuaram a seguir o primitivo método de evangelização viram-se impossibilitadas de renovar os elementos que a morte ia ceifando e tiveram de abandonar posições antigas, extinguindo as estações missionárias do interior, pelo seu abandono forçado.
O definhamento da actividade evangelizadora e civilizadora, que se nota nos séculos XVII e XVIII, nem sempre foi fruto do desinteresse ou do desleixo. Por vezes verificaram-se condições gerais desfavoráveis que não foi possível vencer, houve razões que influíram profundamente, embora de forma indirecta. Convém não esquecer que os dois séculos apontados abrangem um período pouco brilhante da História de Portugal, quanto à acção ultramarina. E, se quisermos ser mais rigorosos, esses tempos decadentes podem dilatar-se, balizando-os pela batalha de Alcácer Quibir e pela agitação da Patuleia (1578-1846).
Pensou-se que poderia remediar-se o mal da situação religiosa angolana com a ordenação do maior número possível de sacerdotes nativos. Em breve se viu que os resultados não eram animadores, pois não exerciam a influência que se esperava que pudessem exercer, junto dos seus compatriotas. Estes viam-nos com certa desconfiança, considerando que fossem mandatários servis dos brancos, membros renegados e degenerados da sua raça ou da sua tribo. Os europeus não aceitavam docilmente a sua orientação espiritual, a orientação religiosa que pudessem prestar-lhes, menosprezando os ensinamentos que ministravam. Algumas vezes, a tradição gentílica manifestava-se bastante às escâncaras, porque não tinha sido sublimada por meio de uma preparação intelectual, moral e religiosa perfeita, aceitando com frequência costumes e até erros que não eram de aceitar. A sua preparação era deficiente, pois não funcionavam regularmente as aulas ou os cursos de preparação eclesiástica, visto que não tinha sido fundado ainda o seminário; faziam estudos muito irregulares, quase sempre dependentes da dedicação, da disponibilidade, do interesse, da competência de outros clérigos, quase sempre membros das congregações religiosas estabelecidas em Luanda. Chegou a acusar-se o bispo de ordenar padres que mal liam e compreendiam o latim litúrgico; dizia-se deles, por extensão, que eram quase analfabetos... Eles mesmo se sentiam diminuídos perante os sacerdotes europeus; e estes, por sua vez, nem sempre adoptavam atitudes razoáveis e compreensíveis, antes alargavam ainda mais o fosso que os separava.
O ensino não tinha grande divulgação na África intertropical, na primeira metade do século XVII; e na segunda metade do centénio as condições não melhoraram, talvez até piorassem sob certos aspectos. Excluindo a acção dos jesuítas com o seu colégio de Luanda (o do Congo não deixou tradições memoráveis), e umas tímidas tentativas dos capuchinhos, não se encontram nesta altura sinais de terem funcionado aqui outras obras especialmente dedicadas à expansão da cultura. As missões pouco ensinavam, além de elementares noções de catequética, conhecimentos bíblicos e teológicos. As escolas daquele tempo não alimentavam grande interesse e o saber geral era muito reduzido. Quando em 1624 o P. Manuel Cardoso, reitor do colégio jesuíta de Luanda, visitou o Congo, ficou muito mal impressionado com o que ali verificou; não encontrou senão poucos nativos que compreendessem um tanto a língua portuguesa, eram menos ainda os que sabiam falá-la, e só um sabia ler e escrever.
O governador-geral João Fernandes Vieira teve questões com os jesuítas durante quase todo o tempo do seu governo, tendo começado logo nos primeiros dias da sua administração, devido a um acontecimento banal, mas que serviu de pretexto para desencadear uma guerra surda e longa. Vendo as coisas com olhos do nosso tempo, parece não haver razões para tanto barulho. Precisaríamos de saber se João Fernandes Vieira era já, antes de vir para Luanda, um dos que sistematicamente hostilizavam a Companhia de Jesus. Não devemos deixar de pensar que no fundo talvez existissem posições esclavagistas, pois sabemos que os jesuítas se preocuparam sempre por defender os oprimidos, quiseram ser a voz dos que não tinham voz, o que lhes acarretou não poucos contratempos e dissabores, grande número de irredutíveis inimigos.
A questão de Vieira resume-se a que a tropa apanhou uns porcos que vagueavam pelas ruas e pertenciam a uns servos dos inacianos; estes defenderam os seus e o governador quis defender e prestigiar a tropa; os jesuítas declararam o governador "excomungado" e este respondeu-lhes com a opinião de um conselho de letrados e teólogos (de cuja isenção é lícito duvidar), negando-lhes atribuições para tanto. O caso subiu à apreciação do Governo, em Lisboa, e oito anos depois... reconheceu-se o exagero dos jesuítas.
Estas questões estão mais ou menos directamente relacionadas com outras, como seja a suspensão do pagamento do subsídio oficial aos missionários da Companhia de Jesus, a ordem para que retomassem as actividades apostólicas no sertão e outras mais. Mas não pode afastar-se de todo a hipótese de ser uma questão esclavagista. João Fernandes Vieira era um "abastado proprietário" brasileiro e isso leva-nos a pensar que a sua mentalidade fosse um tanto diferente da dos jesuítas, mesmo diametralmente oposta, pois as grandes fazendas açucareiras e as enormes explorações pecuárias viviam à base de trabalho escravo.
Não deixaremos passar a oportunidade sem dizer que o antecessor de João Vieira no governo de Angola tinha sido André Vidal de Negreiros. O seu nome prende-se ao tráfico, não sabemos se por si ou por algum dos seus ascendentes. Podemos admitir que traduzisse posição antiesclavagista, mas talvez se fundamente em atitude contrária, e nesse caso indicaria enorme volume de negócios...
Em 1672, os religiosos da Companhia fizeram nova tentativa de evangelização do interior, de pouca duração, talvez para se defenderem das acusações que lhes faziam. Por ordem do P. António de Sousa, reitor do colégio de Luanda, o P. Manuel Ribeiro, acompanhado pelo I. Francisco Correia, fez uma incursão de sete meses ao sertão, cujos frutos não podem considerar-se brilhantes e nem sequer satisfatórios. Não deve ter havido a intenção firme de se fixarem ou de fundarem qualquer estação missionária. Fez-se muito ruído com ela, houve manifestações barulhentas, mas fundamentalmente nada se alterou. Visitaram sobretudo as regiões em que a Companhia de Jesus tinha as suas fazendas agrícolas e puderam realizar ali funções religiosas imponentes. Regressando a Luanda, a missionação do gentio dos sertões ficava entregue ao antigo abandono. Parece que esta viagem teve a finalidade de levar as autoridades a pagar o subsídio missionário outrora concedido e que desde algum tempo havia deixado de ser satisfeito. Realmente, em 1673 foi-lhes novamente atribuído.
Uma provisão régia do dia 5 de Setembro deste ano, passada pelo príncipe-regente D. Pedro, em nome do rei D. Afonso VI, então destituído das suas funções, concedia aos religiosos da Companhia de Jesus, em Luanda, a pensão anual de dois mil cruzados (oitocentos mil reis), confirmando outra já anteriormente feita e resolvendo certas dúvidas e dificuldades, levantadas pelo atraso dos pagamentos.
No final do terceiro quartel do século XVII, o problema missionário foi agitado e procurou-se resolver em parte as suas dificuldades, sobretudo a que provinha da falta de pessoal. No naufrágio em que pereceu o governador-geral Pedro César de Meneses, em 19 de Novembro de 1673, que não chegou por isso a tomar posse do cargo, morreram sete jesuítas que com ele haviam embarcado e se destinavam às missões de Angola. Na mesma viagem seguia também o bispo da diocese de Angola e Congo, D. Frei António do Espírito Santo, acompanhado por alguns religiosos capuchinhos, entre os quais se contava o famoso historiador P. João António Cavazzi de Montecúcculo, nomeado perfeito da sua ordem e das missões dependentes da Sagrada Congregação da Propagação da Fé. O prelado, contudo, só teve pouco mais de um mês de vida em Luanda, pois veio a morrer nesta cidade no dia 12 de Janeiro seguinte.
Surge-nos, nesta altura, uma tentativa de colonização que merece salientar-se. A consulta do Conselho Ultramarino, de 27 de Março de 1673, e a carta régia de 29 de Maio desse ano, relativas à proposta feita, em 24 de Setembro do ano anterior, pelo governador-geral D. Francisco de Távora, tratavam da autorização a dar a um grupo de faialenses para a sua fixação em Angola, depois de parte da sua ilha ter sido devastada por uma erupção vulcânica, segundo uns, ou por um pavoroso incêndio, segundo outros. A catástrofe deveria ser de enormes proporções, visto que alguns autores brasileiros também se lhe referem, tendo sido baldeado para o Brasil volumoso contingente de sinistrados.
O conde de Alvor, D. Francisco de Távora, acima mencionado, que pela sua feliz actuação e pouca idade, quando tomou conta do cargo de governador, mereceu ser chamado "Menino Prudente", mostrava-se favorável aos missionários portugueses, sobretudo aos jesuítas.
O seu sucessor, Aires de Saldanha Meneses de Sousa, era mais favorável aos capuchinhos italianos, em quem via maiores qualidades, destacando-se a sua modéstia, humildade, persistência, abnegação, caridade e espírito de sacrifício. Pretendeu fundar um estabelecimento de formação sacerdotal, em Luanda, e quis confiá-lo aos jesuítas, que não aceitaram. Alguns autores são de opinião que deveria ter havido alguma intriga recente, que eram demasiado habituais. A escolha e preferência dadas aos missionários da Companhia de Jesus deveria considerar-se uma prova de consideração, testemunho de deferência e distinção, reconhecendo-lhes qualidades superiores e aptidão para a docência. A atitude dos jesuítas é difícil de compreender e explicar. Angola precisava muito do estabelecimento de ensino projectado.
Os religiosos da Companhia tinham mais queda para o ensino do que para a evangelização sertaneja; e esta escola, a funcionar, dar-lhes-ia posição destacada. Houve, certamente, motivos secretos a influir; a análise dos que se conhecem não é favorável aos jesuítas. A iniciativa deveria ter feito esquecer ressentimentos ou rivalidades, afrontas ou agravos. Tratava-se de serviço de Deus, da Pátria e da Humanidade.
Em 1680, os religiosos de Santo Inácio de Loiola fizeram nova tentativa de evangelização do interior, sob a orientação do P. Carlos da Silveira. Internou-se no sertão africano, procurando trazer ao caminho da Fé os que nele viviam. Suportou todas as dificuldades com a resignação dos mártires dos primeiros tempos e o ardor dos primitivos missionários. Teve de se sujeitar ao regime alimentar dos povos que o acolhiam. Sofreu as intempéries e a influência de um clima doentio; ao regressar a Luanda, a sua saúde havia sido profundamente afectada. Não conseguiu recompor-se do desgaste sofrido e pouco depois, em 15 de Julho de 1683, terminava os seus dias, rodeado do carinho e da dedicação dos seus confrades.
Mais uma vez se provava que a missionação do interior isolado era um esforço sobre-humano, um sacrifício abnegado e heróico, um verdadeiro desafio à morte, que quase sempre vencia nesta disputa. Os jesuítas cada vez se convenciam mais, e as outras ordens começavam a convencer-se também, de que se tratava de verdadeiro missionarismo de fracasso.
Aparecem nesta altura da História de Angola nomes de governadores cujas qualidades ficaram um tanto diminuídas em confronto com as dos seus antecessores. Podemos citar, por exemplo, João da Silva e Sousa (1680-1684), que um historiador chega a apontar como venal, ambicioso e iníquo, e também o seu sucessor, Luís Lobo da Silva (1684-1688), que ao princípio se mostrou dotado de virtudes assinaladas e com tal preocupação de justiça que parecia destinado a sanar o ambiente deletério angolano e a fazer esquecer o passado, mas que depois mostrou ser também venal, injusto e ambicioso. Mesmo contando com algum exagero, esta imagem do seu retrato não é agradável nem simpática.
O governo de Angola estava desacreditado. A cupidez servia de base a este descrédito. A economia angolense baseava-se sobre o comércio dos escravos, e os governadores tinham interesses relacionados com ele. Para além dos erros estruturais, vinha-se para Angola com a finalidade de enriquecer, de enriquecer depressa, de enriquecer a todo o custo!
Este mal manifestava-se já no tempo de alguns dos mais famosos e melhores capitães, como André Vidal de Negreiros (1658-1661) e João Fernandes Vieira (1661-1666), para não falarmos de épocas anteriores, como por exemplo a de João Correia de Sousa (1621-1623), que foi remetido para Lisboa sob prisão, acusado de crimes nefandos, vindo a morrer nos cárceres do Limoeiro. Mas agora a sua extensão era maior, desacreditando mesmo uma ou outra tentativa de merecimento. Os governadores eram quase sempre, quase todos eles, comerciantes entre os demais comerciantes, os interesses destes coincidiam com os seus, as medidas que pudessem contribuir para o saneamento social reflectiam-se nas suas próprias contas pecuniárias...
No dia 7 de Março de 1682, foi fundada a Junta das Missões, de que faziam parte o governador-geral, o prelado da diocese, o ouvidor-geral e o provedor da Fazenda. Em 18 de Março de 1693, passam a fazer parte dela os superiores das ordens religiosas estabelecidas em Luanda. Pensava-se dar impulso novo à obra civilizadora missionária, já então a entrar em franca decadência. Neste mesmo ano, foi-lhe dada a preferência no embarque de setecentos escravos, de onde provinha a sua principal fonte de receita. Mais uma vez se verifica que o comércio esclavagista constituía a base da economia angolana e sustentava toda a sua vida social.
Ainda nesse ano, o governador-geral Gonçalo da Costa de Alcáçova Carneiro de Meneses, dando conta do estado geral das missões, louvava os jesuítas, os capuchinhos italianos e os carmelitas descalços pela forma modelar como exerciam o seu ministério. Encarecia o zelo, a dedicação e o ardor apostólico dos missionários, reconhecendo que executavam as tarefas do seu múnus com muita seriedade, mesmo num meio em que este louvável hábito poderia ser descurado, adulterado por perniciosas influências. Havia em Luanda, nessa altura, cerca de uma dezena de sacerdotes, mantendo-se este número com pequenas alterações em toda a primeira metade do século XVIII, que ia principiar.
Apesar de ser muito maior o número dos que passavam à África, as febres tropicais iam dizimando as suas fileiras. Eram bastantes os que regressavam à Europa, para descansarem e se tratarem, ou dando por finda a sua participação na obra evangelizadora; outros, por sua vez, transferiam-se para o Brasil, cuja missionação prendia a atenção dos superiores das diversas ordens religiosas muito mais do que a de Angola.
Luís César de Meneses, que foi governador-geral entre os anos de 1697 e 1701, elogiava entusiasticamente os missionários que trabalhavam neste território, distinguindo particularmente os inacianos. Contudo, não deixa de apontar alguns defeitos à sua actuação, que entendia poderem ser remediados e corrigidos. Não escondia a sua admiração pela Companhia de Jesus, e salientava que esta congregação destacava para terras de pequena exigência cultural homens de grande talento, que lhe parecia serem mais úteis noutros meios, mais evoluídos. Referia-se concretamente ao reitor da residência, P. João Nunes, religioso de muitas letras e de virtude invulgar, que desejaria levar consigo, quando regressasse ao reino, vivendo junto dele para lhe seguir os exemplos e ouvir as lições. Poderemos compreender melhor a razão pela qual um dos seus antecessores entendia serem os que estavam em condições de preferência para o cargo do magistério. E também podemos admitir que, mesmo assim, não fossem escolhidos para trabalharem em Angola os elementos de melhor preparação intelectual, os de maior capacidade; o nível de preparação dos jesuítas seria superior ao das restantes ordens religiosas — a par dos oratorianos, que lhes disputavam a reputação de serem os melhores professores. Estes, porém, não exerceram a sua acção em Angola.
O clero nem sempre exercia a sua missão com os olhos exclusivamente postos no prémio celeste, desinteressado dos bens, honras e vaidades terrenas. Tomava a peito, com exagerada veemência, a defesa dos seus interesses imediatos, confundindo muitas vezes o serviço da Igreja com as conveniências e vaidades pessoais. Algumas vezes se deixaram contaminar pelo vírus da ambição, da cobiça, da avareza, da inveja e da sensualidade. O missionário capuchinho Frei Miguel Angelo Nossez (provavelmente o mesmo que o P. Graciano Maria de Leguzzano regista sob o nome de P. Miguel Anjo de Reggio) dizia que, os padres que exerciam o seu ministério no interior da África, ou eram criminosos fugidos à justiça, ou eram condenados a degredo e enviados para os presídios do sertão, ou então eram autênticos comerciantes que procuravam aumentar os seus cabedais, negociando com o gentio e muitas vezes mesmo em escravos.
D. João Manuel de Noronha, marquês de Tancos, que governou Angola de 1713 a 1717, dizia claramente e sem procurar manter segredo da sua pouco agradável opinião, que os padres de Angola, sem excluir os de Luanda, eram quase todos bêbedos e desonestos, vivendo em estado de mancebia, sem se importarem com o escândalo do seu procedimento nem com o mau exemplo que davam aos nativos e aos colonos.
Nesta altura, no Congo, só já restava um padre capuchinho. A boa vontade dos superiores desta congregação e os esforços desenvolvidos pela Sagrada Congregação da Propagação da Fé não puderam vencer as dificuldades que se levantaram à missionação destes povos.
No tempo daquele governador surgiu uma grave questão com os jesuítas, embora só indirectamente estivesse ligado ao caso. Um conhecido administrador do contrato de escravos (outros dizem ser administrador do contrato do marfim, o que parece menos provável) escreveu umas cartas para Lisboa, nas quais acusava o marquês de Tancos de alguns abusos e irregularidades. Ou porque em Lisboa quisessem dar remédio aos males apontados (que não deveriam ser muito graves, pois se o fossem o caso seria tratado de outro modo) ou porque reconhecessem a falsidade da acusação, as cartas foram devolvidas para Angola, remetendo-as ao governador-geral. Quando tomou conhecimento do seu conteúdo, quis ouvir o administrador; este, sabendo que as suas cartas estavam nas mãos de D. João Manuel de Noronha, refugiou-se no convento dos jesuítas, a quem pediu protecção. Ao tempo, já o antigo direito de asilo, que vinha da Idade Média, e que nos nossos tempos se procura restaurar para os perseguidos políticos, não tinha aceitação geral. D. João mandou uma alçada ao convento, pedindo que lhe fosse entregue o refugiado; prometia que nenhum mal lhe aconteceria, coisa em que ninguém acreditou. Travou-se discussão na portaria da residência entre o reitor e o mestre de campo, José de Mesquita Brandão, a quem o caso fora entregue. Não vendo outro processo, foi buscar o refugiado à própria igreja, no decorrer de uma cerimónia, motivo de enorme escândalo, bem natural.
A partir daqui, o assunto passou a ser considerado como questão entre a Companhia de Jesus e o Governo-Geral. Os religiosos consideraram a igreja profanada, deixaram de exercer nela o culto e fecharam as portas, tanto do templo como das aulas. O rei recebeu ofícios, representações e relatórios. O governador saiu, pois chegara ao fim do tempo da comissão... E o problema parece ter morrido assim!
O direito de asilo não se aceitava já muito bem, naquela época. Estava a entrar-se no tempo do "iluminismo" ou "despotismo iluminado", de características fundamentalmente regalistas. Sabemos, por exemplo, que o Dr. Tomé Guerreiro Camacho se aproveitou também dele depois de ter contribuído, por incúria, incompetência ou maldade, para a morte de alguns doentes, deixando a cidade sem médico. Este pormenor vem dizer-nos que, em 1727, era ele o único facultativo de Luanda. A disciplina eclesiástica era também muito defeituosa. Os religiosos carmelitas, v.g., tiveram de ser chamados à responsabilidade por não observarem as ordens régias a respeito dos homiziados que se recolhiam aos conventos. Deu origem a esta observação o facto de terem dado asilo ao tenente-general António da Fonseca Coutinho, e em castigo da sua atitude foram passadas ordens para que lhes fosse suspenso o pagamento do subsídio missionário.
António Albuquerque Coelho de Carvalho escrevia logo em 1722, quando tomou posse do governo, que ficara surpreendido perante os diminutos esforços que se faziam pela evangelização do gentio, nestas terras. Os missionários eram poucos para o tamanho da tarefa a desempenhar, dizia ele. Trabalhavam em Angola cinco carmelitas descalços e dois frades da Ordem Terceira de S. Francisco; a Companhia de Jesus mantinha apenas o seu colégio ou residência de Luanda, não indicando quantos elementos contava, que poucos seriam. O governador-geral censurava asperamente os missionários que se desculpavam com a malignidade do clima do sertão, e apontava o exemplo dos capuchinhos, que o não receavam.
Já vimos em que condições era feito este trabalho e que os jesuítas tinham razão para assim procederem. Mas agora tratava-se quase do abandono da missionação. Aconselhava ao rei que lembrasse aos superiores das congregações religiosas a sua obrigação de enviarem missionários para a África, ficando sujeitas a sanções aquelas que, por desleixo, incúria ou comodismo, deixassem de cumprir este dever. Os males da época manifestavam-se tanto entre o clero, que perdia o fervor religioso, como entre os governantes, que se alcandoravam no despotismo em voga.
No tempo de Paulo Caetano de Albuquerque, que governou Angola desde 1726 até 1732, o colégio dos jesuítas teve notória decadência. Faltavam alunos, que antes abundavam. Diziam que o prelado era o principal responsável, pois chegava ao extremo de ordenar sacerdotes quase analfabetos... Em Lisboa acreditou-se na informação; o bispo recebeu aviso do rei, aconselhando-o a ter maior cuidado neste particular. A diocese de Angola e Congo era governada então por D. Frei Manuel de Santa Catarina.
Este prelado foi o primeiro que havia antes prestado serviço como missionário neste território. Pertencia à Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo. Tinha ensinado Filosofia e Teologia nos seminários de Faial, Évora e Lisboa, passando a desempenhar as funções de reitor do colégio de Coimbra. Acompanhou a Angola, talvez em 1709, o governador-geral, que deveria ser então António Saldanha Albuquerque Ribafria, e exerceu durante quatro anos, até 1713, o cargo de provisor do bispado, no tempo de D. Luís Simões Brandão. Quando este renunciou, D. Frei Manuel de Santa Catarina foi apresentado para seu sucessor; chegou a Luanda, como bispo, no dia 19 de Março de 1722. No seu livro O Carmo em Portugal, Manuel Maria Wermers afirma que governou a diocese até à sua morte, ocorrida em Luanda no ano de 1737. Estranhamos que este autor, ao fazer o estudo da expansão da Ordem Carmelita nos diversos territórios portugueses, se tenha referido muito justamente ao Brasil e não faça a menor referência a Angola, onde desenvolveu notável acção. O problema da data do falecimento deste prelado é objecto de controvérsia e pôs-se já ao eminente historiador Fortunato de Almeida, que o não solucionou.
O lugar de mestre-escola, ou professor de primeiras letras, nunca foi um cargo de destaque e de proventos materiais que satisfizessem. Mas, quando se trata de defender direitos adquiridos ou o prestígio e vaidade de alguém, a simples nomeação para esse lugar pode atingir foros de sensação e garantir mesmo sólido lugar na história, neste caso a História de Angola. O bispo D. Frei Manuel de Santa Catarina nomeara para o cargo designado, afecto à catedral de Luanda, um padre que não tinha a simpatia do cabido nem da maior parte do clero da cidade, cujo comportamento parece ser pouco exemplar, mas que dispunha de influências valiosas e sabia insinuar-se no ânimo do prelado. O caso foi levado ao governador-geral e mereceu o seu interesse, tendo sido objecto de numerosa correspondência, até ofícios para o reino. Alguns estudiosos aceitam a opinião de que o bispo estava enfeudado a compromissos; os cónegos não aceitavam passivamente a obediência ao prelado; há quem afirme que não havia razão para tão grande celeuma, pois os defeitos do sacerdote eram comuns aos outros clérigos; há quem atribua culpas ao governador, Paulo Caetano de Albuquerque. Um pormenor pode ajudar a encontrar uma explicação:— o bispo não devia estar no pleno uso das suas faculdades mentais. Isso deveria contribuir muito para que os membros do cabido se mostrassem pouco dispostos a obedecer, além de que a indisciplina era mal corrente. O sacerdote em questão foi o P. João Teixeira de Carvalho. Há indícios de ter exercido o seu ministério em Benguela, de onde transitou para Luanda; mais tarde foi compulsivamente baldeado para o Rio de Janeiro. Refere-se-lhe o ofício do governador-geral Paulo Caetano de Albuquerque para o rei, de data incerta mas que pode situar-se em Março de 1729. Sugeria a sua extradição, que veio a efectuar-se em Maio do ano seguinte. Na altura da sua detenção foi-lhe feita a apreensão de documentos falsos. Já antes, em 7 de Abril de 1727, fora aprisionado no rio Bengo um barco de que era proprietário, e isso pode levar a pensar que se dedicasse ao comércio esclavagista, pois a foz do Bengo era um dos locais preferidos para o embarque dos escravos e uma das penas aplicadas era a apreensão dos barcos. Algum tempo depois, ainda se salientava que a saída do P. Carvalho permitira que o sossego voltasse à cidade. Mas é estranho que durante tantos anos se falasse no assunto, justificando atitudes tomadas. Há escritores que culpam o governador Paulo Caetano de Albuquerque, acreditando que actuou pouco equitativamente, que se não comportou com a necessária isenção!
Em 1735, o governador-geral Rodrigo César de Meneses escrevia ao rei D. João V, no dia 9 de Julho, apresentando queixas contra os religiosos pelo abandono a que estavam votando as missões de Angola. Referia-se, concretamente, aos carmelitas descalços, aos capuchinhos italianos, aos terceiros franciscanos. Apontava algumas medidas que deveriam pôr-se em execução, interferindo junto dos superiores das congregações, em Lisboa, de modo a que se vissem compelidos a mandar missionários para Angola. O rei seguiu as indicações que lhe foram sugeridas e, dentro de pouco tempo, no dia em que se perfazia um ano sobre aquela carta, já o governador escrevia novamente dizendo que tinha chegado a Luanda um contingente de missionários barbadinhos.
Entre os anos de 1731 a 1740, o estado das missões era desanimador. Notava-se tão grande falta de gente que causava apreensões. O pessoal em serviço carecia de qualidades. O ideal religioso havia sido abafado por interesses imediatos. Vieram, efectivamente, para Angola diversos missionários enviados por iniciativa da Sagrada Congregação da Propagação da Fé, por certo membros da Ordem dos Capuchinhos, os quais foram espalhados pelos diferentes lugares em que mantinham estações missionárias; mas era pouco fermento para fazer levedar tão grande quantidade de massa humana!
O governador-geral de Angola chegou a propor que se entregasse aos capuchinhos ou aos carmelitas o convento dos frades que se desinteressassem das obrigações apostólicas. Referia-se, concretamente aos terceiros franciscanos de Luanda, que mantinham o convento de S. José, situado onde depois se edificou o Hospital D. Maria Pia. Encontram-se notícias que falam dos religiosos de "Cardeais", lapso evidente, pois o nome certo é Cardais, convento de Lisboa de onde devem ter vindo missionários para Angola e que pertencia à mesma congregação.
O problema missionário foi repetidas vezes posto à corte. De vez em quando, vinha de Lisboa uma ou outra palavra de esperança, alguma vaga promessa de socorro e de remédio, mas isso nada ou quase nada adiantava.
A diocese estava frequentemente sem bispo, ou porque estivesse vaga ou porque o prelado estivesse ausente. Estes longos períodos eram extremamente prejudiciais aos negócios eclesiásticos, manifestando-se muitas vezes um ambiente de insubmissão, salpicado de episódios, de lutas, intrigas, invejas e disputas pouco apostólicas e pouco edificantes. Em 1775, a própria Junta das Missões apontava com desagrado o lamentável estado do país, com pouco clero e apresentando aspecto geral de decadência religiosa, inequívoco e angustiante.
Logo que, em 31 de Julho de 1753, o governador-geral António Álvares da Cunha, conde de Cunha, tomou posse do seu cargo, escreveu ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real, apontando os males que afligiam as missões e elogiando a acção dos capuchinhos e dos jesuítas. Salientava que estes missionários em toda a parte procediam bem, eram úteis e levavam vida honesta, dando exemplo de muita virtude. Aconselhava mais uma vez a fundação de um seminário em Luanda, para a preparação da juventude, sobretudo a que quisesse abraçar a vida eclesiástica; na sua opinião, deveria ser confiado ao cuidado dos jesuítas, que sempre mantiveram a sua classe, à qual dedicaram particular atenção.
O elogio do governador, se tem a sua parte positiva, deixa-nos entrever que conhecia os males apontados por outros, embora se não refira claramente a eles. Talvez os elogios fossem um pouco além daquilo que as circunstâncias justificassem. Seria política de entendimento e aproximação!?
As autoridades preocupavam-se com os assuntos mais diversos. Assim, em 30 de Dezembro de 1750, tratava-se da actividade missionária dos capuchinhos, de quem o dembo Ambuíla havia feito queixa, dizendo que pretendiam destruir os seus ritos. Sugeria-se que tratassem os problemas da missionação com prudência, sem imporem a doutrina católica a quem quer que fosse, particularmente a populações que não estavam preparadas para a aceitarem — respeitando, no fim de contas, a liberdade de consciência — e lembrava-se aos superiores da Europa a conveniência de não mandarem para Angola missionários demasiadamente jovens, aceitando-se como idade aconselhável os quarenta anos, para poderem conservar o conceito de moderação e sensatez que sempre tinham merecido. Por sua vez, os religiosos queixavam-se dos brancos, que causavam embaraços e escândalo aos missionários, aos demais colonos honestos e até aos indígenas. Admitindo mesmo que, desta vez, havia razão de queixa contra os capuchinhos, temos de aceitar que mais vezes mereceram elogios. Quanto à opinião que faziam dos brancos, se tem algum defeito, será o de ser ainda demasiado benigna!
A Companhia de Jesus conseguiu, desde os primeiros tempos da sua actividade, logo nos meados do século XVI, atrair a antipatia de numeroso grupo, em que alinhavam, quanto aos territórios ultramarinos, os grandes proprietários de fazendas agrícolas e engenhos de açúcar e os grandes traficantes esclavagistas. Os jesuítas combatiam decididamente — se não de forma absoluta, global e genérica, pelo menos em aspectos concretos e casos determinados — a nódoa da escravatura, que era fonte de riquezas fáceis e alimentava as necessidades de trabalho dos grandes senhores. Eles admitiam o direito natural e inalienável que todo o ser humano tem, o de ser livre; no entanto, nem sempre puderam e souberam ultrapassar o condicionalismo da sua época (como nós não sabemos nem podemos ultrapassar o condicionalismo do nosso tempo), vendo-se forçados a aceitá-lo. A luta contra os jesuítas estendeu-se a diversos países da Europa e atingiu as colónias da África, da Ásia e da América. Onde quer que se manifestasse, tirava do meio geográfico e das condições mesológicas humanas razões particulares que alimentassem a discórdia e estimulassem a luta. A oposição entre as duas forças chegou ao auge nos meados do século XVIII; quanto a Portugal, terminou pela sua expulsão do território nacional; quanto aos demais países, foi dada por concluída quando o Papa, subjugado por forças estranhas, extinguiu a ordem. No entanto, a estranha decisão não foi definitiva, pois uns poucos anos mais tarde veio a ser restaurada.
Está ligado ao longo processo do combate à Companhia de Jesus, em Portugal, por laços que não vem a propósito determinar neste estudo, o famoso e até certo ponto enigmático atentado contra a vida do rei D. José, em 1758, que teve também a sua repercussão em Angola, sentindo-se aqui as respectivas consequências.
Logo que as primeiras notícias do acontecimento chegaram a Luanda, o governador-geral António de Vasconcelos passou a tratar os jesuítas com um rigor que nada ficava a dever ao do primeiro-ministro lisboeta. A galera "Nossa Senhora da Atalaia", que trouxe determinações da corte relativas ao facto, que tão profundamente ia interferir com os religiosos de S. Inácio de Loiola, encalhou ao norte do Cabo Negro, no dia 18 de Abril de 1760; os náufragos que puderam salvar-se só chegaram a Luanda no dia 30 daquele mês. A expulsão dos jesuítas tinha sido decretada já no mês de Setembro anterior, tendo havido uma demora que nos parece exageradamente longa na sua aplicação em Angola.
O governador ficou preocupado. Mas talvez porque o conteúdo das cartas régias já fosse conhecido, por correio recebido por outras vias, pois também o era a ordem da expulsão, já efectuada no reino, ou porque pudesse salvar-se o correio transportado, logo no dia seguinte, 1 de Maio, ordenou ao governador do presídio de Massangano que tomasse conta de todos os bens que os jesuítas ali possuíam. Procurou evitar a fuga dos escravos da ordem e tomou medidas para que os restantes haveres se não extraviassem. Mandou ordens idênticas para outros pontos do interior, onde a Companhia de Jesus tinha propriedades, Muxima, Icolo e Bengo, Dande, Calungo, etc.
No dia 11 de Maio, o colégio de Luanda foi cercado pela tropa e os jesuítas colocados sob guarda, nas respectivas celas. Fez-se rigoroso inventário dos bens que nele havia e a respectiva relação foi enviada para Lisboa, por duas vias, segundo o costume do tempo, as quais saíram de Luanda uma em 7 de Julho, pelo Rio de Janeiro, e a outra em 9 de Julho, pela Baía. O decreto de 3 de Setembro de 1759, que expulsava os jesuítas, só chegou no dia 5 de Julho de 1760, e foi publicado nessa mesma data.
No barco que partiu em 7 de Julho, seguiram já alguns inacianos, que haviam sido embarcados sob prisão no dia anterior, num total de quatro missionários, três dos quais eram sacerdotes. São conhecidos os seus nomes: o P. Joaquim Barreto, que veio a morrer na cadeia de Azeitão, no dia 15 de Agosto de 1767; o P. José do Vale, que foi posto em liberdade em Março de 1777, no final do governo do Marquês de Pombal; e o P. António Galvão, transportado para o exílio na Itália, de onde voltou alguns anos depois. O quarto jesuíta era um irmão leigo, de naturalidade inglesa.
Há autores que indicam as datas de 18 e 19 de Julho para o embarque e partida dos jesuítas. O navio seguiria rumo à Baía, com quatro padres e cinco irmãos auxiliares, cujos nomes desconhecemos. Realmente, o mais lógico seria que um barco saísse no dia 7 e o outro no dia 19 (não 9, pois as datas são demasiado próximas). A História baseia-se em factos e hipóteses racionais apoiadas em factos.
No seu livro O Ultramar Português no Século XVIII, A. da Silva Rego esclarece que "foi ainda D. António de Vasconcelos quem executou em Angola a lei da expulsão dos jesuítas; desempenhou-se do encargo com a sua habitual severidade; não eram muitos estes missionários, 7 sacerdotes e 6 leigos; embarcaram para o Rio de Janeiro em 19 de Julho de 1760; os seus bens confiscados foram devidamente inventariados; como em toda a parte, aliás, sentiu-se logo a sua falta".
O citado autor e na mesma obra dá-nos um apanhado bastante eloquente da situação missionária em Angola. Vale a pena transcrever as suas palavras:
"Sob o aspecto eclesiástico, atravessava-se profunda decadência. A expulsão dos jesuítas em 1760 apressara mais ainda o processo de abandono dos antigos postos missionários. As casas religiosas de Angola não podiam deixar de reflectir o processo de decomposição interna que minava as Ordens na Europa. As ideias propaladas pela Revolução Francesa precipitaram mais ainda o declive em que todas se encontravam. Não havia espírito missionário propriamente dito. Não existiam "missões", mas sim paróquias, à moda europeia. Os religiosos então existentes em Angola limitavam-se a alguns carmelitas descalços e franciscanos da primeira e terceira regras. O clero secular, por seu lado, também não era numeroso. O cabido da sé, pelo contrário, encontrava-se relativamente completo, pois tinha 15 unidades. Fora de Luanda, havia apenas assistência religiosa em algumas 9 ou 10 localidades. As inúmeras igrejas que a devoção tinha construído no passado, praticamente em toda a parte, encontravam-se abandonadas à invasão do capim e à inclemência do tempo. Facto curioso, todavia: abundavam os cristãos "tradicionais". Um dos distintivos dos sobas feudatários era precisamente a profissão do cristianismo".
Deve esclarecer-se, como do texto se deduz, que o autor se refere ao final do século, ao período que se seguiu à expulsão dos jesuítas. Em pinceladas rápidas e em forma de escorço, consegue dar-nos ideia exacta, embora esquematizada, das condições em que era feita a actividade missionária.
Voltemos, porém, a 1760. Por indicação oficial, ficaram em Luanda quatro jesuítas — que não devem ser confundidos com os sacerdotes que embarcaram no segundo navio. Requereram ao bispo da diocese a relaxação dos seus votos, em requerimentos feitos em conjunto; o primeiro, datado em l6 de Julho, era dirigido ao governador-geral, e o segundo, subscrito em 18 de Julho, era endereçado ao prelado, D. Frei Manuel de Santa Inês. O governador apoiou o pedido com tal interesse que as respectivas demissórias lhes foram passadas pelo bispo da diocese com data de 17 de Julho, portanto ainda antes de ser feito o requerimento que lhe foi dirigido. Devemos salientar, como outros autores têm feito, que o bispo não tinha poderes canónicos para conceder a relaxação dos votos aos quatro jesuítas, com a simplicidade e processo sumaríssimo que adoptou; mas, no tempo do Marquês de Pombal, seria ridículo que alguém se prendesse com tais bagatelas, sobretudo estando em causa a Companhia de Jesus!
Houve ainda um missionário leigo que não pediu a relaxação, dizendo que desejava continuar a ser filho da Companhia. Tomaram-no por louco, meteram-no na cadeia e depois mandaram-no para Lisboa, tendo sido e continuando a ser muito maltratado, como naquele tempo era costume tratar os pobres dementes.
Os jesuítas a quem nos temos referido não deixaram de ser vexados, apesar de haverem sido dispensados dos seus votos. Foram proibidos de pregar e, segundo certas indicações, também de confessar. Isso significa que estavam praticamente suspensos do exercício do ministério. Foi-lhes interdito manter relacionamento com estrangeiros; até o acesso ao porto lhes era proibido, nos dias em que nele estivessem fundeados navios de outros países. Em 28 de Agosto de 1767, foram expulsos de Angola, tendo cumprido esta ordem o governador-geral Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Ficaram em Angola cinco jesuítas que a Junta de Inconfidência havia degredado para este território, portanto estavam aqui como condenados e não como missionários. Isso era somente em teoria, pois dois deles morreram antes de atingirem os presídios a que foram destinados, o P. Manuel Girão no dia 22 de Outubro de 1768, e o P. Manuel Gonzaga no dia 26 do mesmo mês e ano. Ignoramos em que local deveriam cumprir a pena de degredo.
A expulsão a que nos referimos acima, realizada por Sousa Coutinho, afectou os jesuítas P. Manuel Ferreira Freitas e Vargas, P. Serafim da Silva e P. Manuel do Amaral, além de alguns coadjutores leigos. Atrás falava-se de quatro padres; um deles talvez tivesse morrido! Foi pena que o brilhante governo de Francisco Inocêncio ficasse empanado com um facto por si duvidoso e certamente injusto. A expulsão dos jesuítas, não podemos negar nem esquecer, foi nociva aos interesses de Portugal, aos interesses de Angola e aos interesses da Igreja!
Para suceder ao bispo D. Frei Manuel de Santa Inês, era apresentado D. Frei Francisco de Santo Tomás. Foi enviado para Luanda ainda antes de ser confirmado pela Santa Sé, tendo chegado a esta cidade no dia 22 de Fevereiro de 1762. Parece que a intenção do Marquês de Pombal foi mais de condená-lo a um degredo camuflado do que de lhe dar um lugar honroso. Fez isso com outros indivíduos, com vários membros da nobreza! D. Frei Francisco de Santo Tomás veio a falecer no dia 13 de Agosto desse ano, sem ter sido sagrado bispo. Angola era, realmente, terra de degredo! E corredor da morte!
Com data de 20 de Novembro de 1761, o rei determinara que a igreja dos jesuítas (talvez a melhor e mais bela de Luanda) passasse a servir de catedral e que a parte melhor do convento fosse utilizada pelo bispo, para lhe servir de paço episcopal, ficando a parte menos boa destinada a um seminário, que não existia ainda mas se projectava fundar. Com efeito, o prelado teve ali residência até ao momento da independência do país. As demais determinações não foram cumpridas.
O tecto da igreja dos inacianos, vulgarmente designada por "Igreja de
Jesus", veio a cair em 13 de Outubro de 1783. Mais tarde, em 17 de Agosto
de 1801, D. Miguel António de Melo, conde de Murça, então
a governar Angola, comunicava que tudo havia sido destruído, excepto
a parte habitada pelo prelado. A linda igreja dos jesuítas chegou
a servir de estrebaria. Funcionou lá, durante bastantes anos, uma
escola primária e uma escola profissional adstritas a diversas entidades.
Foi reconstruída em 1958 e reintegrada nas suas funções,
voltando a servir o culto. Pode considerar-se ainda hoje um dos mais devotos
e mais imponentes templos desta capital, dotada de grande beleza e destacado
valor arquitectónico.
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