2. A CRISTANDADE DE SÃO SALVADOR

Depois que Paulo Dias de Novais fundou a cidade de Luanda e deu início à penetração no sertão angolano, a partir da entrada natural que o rio Cuanza oferecia, começou a decair a importância política de São Salvador. No entanto, durante algumas dezenas de anos, pelo menos até meados do século XVII, não se obscureceu de todo o antigo brilho da corte dos reis do Congo, mantendo-se em paralelo com a influência que Luanda pretendia disputar não só à antiga sede da actividade política e diplomática portuguesa na costa ocidental da África, São Salvador, como a outra povoação que se considerava a cabeça e centro do reino do sul, Benguela. Todavia, no aspecto escolar, e tendo em conta apenas factos conhecidos, a importância da "Cidade de São Filipe" fica muito aquém da de qualquer das outras duas.

Há notícia de que os missionários jesuítas acompanharam o fundador de Benguela, Manuel Cerveira Pereira, na sua missão de organizador de um reino africano que teria esta cidade como centro. O escritor Abel Augusto Bolota refere os nomes do P. Duarte Vaz e do P. Gonçalo João. E podemos ainda mencionar que, quando em 12 de Janeiro de 1619 o governador Cerveira Pereira foi expulso da cidade, metendo-o num batel velho na companhia de um só soldado, esperando que viesse a naufragar, vemos imiscuídos nesta questão alguns padres. Não obstante, não conseguimos encontrar referência alguma ao funcionamento de escolas nos primeiros tempos da sua história.

Por carta patente de 19 de Março de 1582, o provincial dos carmelitas descalços nomeou alguns missionários para irem trabalhar para o Congo, nas tarefas da evangelização que os portugueses aí haviam iniciado. Embarcaram no dia 5 de Abril, tendo morrido na viagem, devido a um naufrágio. Uma das naus da frota deu violenta pancada no costado daquela em que seguiam, provocando o afundamento. Pouco depois, foi enviada segunda expedição de religiosos da mesma Ordem, que também não chegaram ao destino. Foram apanhados pelos corsários, ao largo de Cabo Verde; os piratas saquearam o navio e abandonaram os missionários com outros companheiros numa das ilhas do arquipélago, depois de os terem despojado de todos os seus haveres e inclusivamente das roupas que vestiam. Algum tempo depois puderam regressar ao reino.

Em 1584, as terras de Angola e Congo foram visitadas pelo bispo de São Tomé, D. Frei Martinho de Ulhoa. Acompanhavam-no vários missionários, alguns dos quais ficaram a trabalhar neste território. Haviam partido de Lisboa no dia 10 de Abril e chegaram a São Salvador em fins de Novembro. O relato da sua chegada e das festas promovidas em sua honra foi remetido para Lisboa em carta que tem a data de 2 de Dezembro desse ano.

Este prelado criou a primeira paróquia da cidade de Luanda, dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Devemos salientar que o serviço religioso estava aqui razoavelmente assegurado, pelo menos desde a fundação da capital, em 1575. Podemos acrescentar ainda que o bispo referido, D. Frei Martinho de Ulhoa, fundou também, em 18 de Maio de 1590, a primeira paróquia do interior de Angola, a de Massangano.

Já antes disso os cristãos de Angola e Congo haviam recebido a visita de dois prelados. Em 1547, esteve aqui D. Frei João Baptista, que alguns autores dizem ser bispo eleito de Meliapor e administrador da diocese de São Tomé, em nome do respectivo antístite, D. Frei Bernardo da Cruz. Foi o primeiro prelado europeu a visitar estas cristandades. E em 1561 efectuou-se outra visita, a de D. Frei Gaspar Cão, bispo de São Tomé; demorou-se nestas terras cerca de três meses.

Em 3 de Fevereiro de 1592, o rei de Espanha e Portugal, D. Filipe II, determinava que fosse paga pelo Feitor da Fazenda Régia do Reino de Angola a importância anual de cento e cinquenta mil reis ao licenciado João da Costa, que tinha sido enviado a estas paragens como administrador da jurisdição eclesiástica e vigário-geral. Tratava-se já, certamente, da criação do bispado, o que veio a verificar-se em 20 de Maio de 1596, com a emissão da respectiva cédula consistorial e a assinatura da bula Super specula militantis Ecclesiae. Nessa altura estava já escolhido o futuro bispo, D. Frei Miguel Rangel (1596-1602).

D. Frei Manuel Baptista (1606-1623) foi o primeiro prelado que visitou as paróquias do interior de Angola, ao tempo três — Massangano, Muxima e Cambambe.

O papa Urbano VIII criou a Prefeitura Apostólica do Congo, por decreto da Propaganda Fide, de 25 de Junho de 1640. Foi confiada aos missionários capuchinhos italianos; tinha a sede em São Salvador e coexistia com o bispado. O seu superior foi Frei Boaventura de Alessano, que morreu naquela povoação em 2 de Abril de 1651. Sucedeu-lhe Frei Jacinto de Vetralha, o qual transferiu para Luanda, em 1654, a sede daquele organismo eclesiástico.

O rei do Congo, apesar da sua pouco ortodoxa maneira de viver, continuava a arrogar-se o título de rei cristão e protector da fé. Tinha aprendido bem a lição que lhe havia sido ensinada pelos monarcas portugueses. Satisfazendo um insistente pedido do potentado indígena, embarcaram para o Congo, no dia 25 de Março de 1610, três missionários dominicanos. Chegaram a Luanda no dia 3 de Julho, e partiram para São Salvador, depois de um período de descanso bastante longo, no dia 16 de Setembro do mesmo ano.

Os religiosos dominicanos encontraram aqui um ambiente pouco propício às actividades apostólicas, envenenado por intrigas ridículas e interesses mesquinhos. Os estudiosos deste período apontam como a alma danada dos negócios eclesiásticos do Congo o sacerdote crioulo e deão da sé, P. Diogo Rodrigues Pestana. São bastante frequentes as referências desagradáveis a este clérigo, e até o próprio bispo, D. Frei Manuel Baptista, fazia queixa dele e dos colegas, P. Custódio de Barros e P. Manuel Castanho, em carta datada em 10 de Julho de 1612. Mostrava-se muito descontente e até desalentado com a situação missionária do Congo. O deão chegou a ser preso e enviado para Lisboa, em castigo do seu comportamento, pouco modelar.

Simeão Nunes Vitória, que foi chefe dos Serviços de Instrução de Angola, desde 1927 a 1931, afirma que foi fundada no Congo, em 1491, uma escola-oficina missionária e que, em 1618, foi criado o colégio jesuíta de Luanda, o qual contava dez professores em 1622. Informa ainda que, na mesma altura, se estabeleceu uma Aula de Geometria e Estratégia, que durou até meados do século XIX. Parece haver algumas imprecisões, algumas inexactidões, nos dados referidos.

Chegaram até nós, com efeito, notícias da carta régia de 11 de Setembro de 1618, pela qual o monarca português, então em Madrid, autorizava o funcionamento do Colégio de Santo Inácio (ao tempo ainda não canonizado, apenas beatificado), iniciativa dos jesuítas, na cidade de São Salvador do Congo. Deveria ter dezasseis professores para as cadeiras de ler, escrever e contar, gramática latina e casos, mas sem implicar qualquer dispêndio para a fazenda real. Parece-nos exagerado dezasseis professores para as necessidades e possibilidades da época! Segundo outras informações, a carta régia defendia que fossem entabuladas conversações com o provincial dos religiosos da Companhia de Jesus, no sentido de providenciar que houvesse em Luanda dezasseis sujeitos ordenados e entre eles alguns capazes de ensinar, salientando também que impunha a condição de não haver agravamento das despesas, a cargo do erário público.

Ora isso altera profundamente o problema, pois o localiza em Luanda em vez de o situar em São Salvador, e fala concretamente de missionários e só marginal e parcialmente é considerada a questão dos professores.

O rei do Congo, à semelhança do que se fazia no reino de Portugal, podia nomear cónegos para a catedral, excepto o deão e o mestre-escola, cujos cargos tinham importância excepcional, que o soberano indígena não avaliava com exactidão e, por isso, a sua nomeação lhe não foi confiada.

No capítulo-geral da Ordem Franciscana, em 1 de Junho de 1618, foi apresentado o pedido de missionários para a região do Zaire. Os representantes das diversas províncias, ali congregados, endereçaram o caso aos superiores principais da Ordem, que resolveram mandar seis religiosos para aquelas terras.

Em 2 de Abril de 1641, embarcaram no porto de Livorno seis capuchinhos italianos, que se destinavam ao Congo. Viajaram no barco "São Domingos". Entraram no estuário do Tejo e encontraram em Lisboa forte oposição à realização do seu projecto de viagem, por não serem portugueses. Consideraram-nos agentes mais ou menos disfarçados do monarca espanhol, que não desistia da ideia de continuar a superintender nas zonas que ele considerava ainda debaixo da sua autoridade legal e real, por se não resolver a aceitar a independência portuguesa, restaurada em 1 de Dezembro de 1640.

As autoridades de Lisboa foram apresentando objecções e entraves, de forma a adiarem o mais possível a sua partida. Os missionários tentaram ainda opor a esta desagradável situação a sua qualidade de naturais dos Estados Pontifícios, portanto súbditos do Papa. Mas os diplomatas portugueses nem assim se resolveram a deixá-los seguir para a África. Vendo que nada poderiam fazer, regressaram à Itália, logo que chegou a Lisboa a notícia da ocupação da cidade de Luanda pelos holandeses, que se soube na capital do reino em 20 de Dezembro desse ano de 1641.

As dificuldades apresentadas poderiam até basear-se em determinações anteriores, do tempo dos monarcas madrilenos, pois no ano de 1620 foi ordenado que se não permitisse aos religiosos estrangeiros irem missionar às terras do domínio português, sem licença real. A proibição parece relacionar-se já com a vinda dos missionários capuchinhos italianos para o nosso ultramar.

Luís XIV, rei da França, escreveu em 18 de Abril de 1644 ao monarca português, patrocinando a causa de quatro missionários capuchinhos, naturais de Génova, que pretendiam embarcar para o Congo. Dizia ele que fazia este pedido por lhe ter sido solicitado pelo seu próximo parente, o Príncipe do Mónaco, a quem os religiosos haviam sido directamente recomendados. Para o soberano francês, o problema estava um tanto simplificado, pois não morria de amores pela Espanha — apesar da sua origem, pois era filho de D. Ana Maurícia da Áustria, infanta de Espanha e de Portugal.

No dia 20 de Janeiro de 1645, embarcaram em Sanlúcar de Barrameda, com destino ao Congo, doze missionários capuchinhos, sendo cinco italianos e sete espanhóis. Devido a condições meteorológicas adversas, só puderam levantar ferro e sair do porto no dia 4 de Fevereiro, chegando ao Zaire em 25 de Maio do mesmo ano, desembarcando na região de Pinda. Estes missionários já não abordaram Lisboa, onde poderiam ver embargada a viagem, como sucedera aos que em 1641 embarcaram com igual destino.

Em Março de 1646, chegava a Angola outra expedição de quatro missionários capuchinhos italianos, com a intenção de desembarcarem em Luanda. Os calvinistas flamengos obrigaram-nos a voltar para a Europa. Desta vez os holandeses deviam recear que se tratasse de nova tentativa de ocupação da cidade pelos católicos, portugueses ou espanhóis. No dia 6 de Março de 1648, chegou a Luanda a terceira expedição de missionários capuchinhos, sendo oito italianos e seis espanhóis. Estes puderam seguir logo para o Congo, aonde se dirigiam.

O rei de Ambasse, São Salvador, então Garcia II, ainda em 5 de Outubro de 1646 aceitava a autoridade do rei da Espanha, a quem escreveu, pedindo que lhe mandasse navios que colaborassem com os seus guerreiros na conquista da cidade de Luanda, cujo território havia pertencido outrora aos seus domínios e de que andava duplamente afastado. Pedia também que, em vez de um só governador, mandasse dois, mas que se entendessem entre si de forma a haver paz entre eles e com o Congo. Aconselhava particularmente que esses governadores não fossem portugueses. Rogava que se fornecesse embarcação aos religiosos capuchinhos italianos, que o Papa ia mandar para as missões do Zaire. Finalmente, pedia que lhe mandasse dois ou três mineiros experimentados, para pesquisarem e explorarem as minas de ouro e prata dos seus territórios. Afirmava que ia mandar a Madrid, na qualidade de embaixador, o missionário capuchinho espanhol, Frei Angelo de Valência.

As demoras provocadas pelas paragens do navio nos portos de escala e as delongas causadas pelas diversas diligências de que estavam encarregados fizeram com que os dois religiosos componentes da embaixada referida, Frei Angelo de Valência e Frei João Francisco, só em 9 de Maio de 1648 prestassem, em Roma, preito de obediência ao Papa, Inocêncio X. O rei Garcia II escrevia também ao Sumo Pontífice, no dia 20 desse mesmo mês e ano, tratando problemas do Congo.

O rei de Espanha continuava a arrogar-se direitos de soberania sobre as terras do Congo. Assim, em 11 de Agosto de 1649, passou diploma em Madrid a favor de uma expedição de missionários, que pensavam dirigir-se ao Zaire. Levava como superior o nosso conhecido Frei Angelo de Valência e acompanhavam-no quarenta e três religiosos capuchinhos.

Entretanto, a situação alterou-se num curto espaço de tempo. No dia 25 de Novembro de 1649, já o P. Boaventura de Alessano, noutro lugar referido, prestava homenagem ao rei de Portugal, em nome de toda a missão do Congo e na qualidade de seu superior. Finalmente, no dia 20 de Dezembro, o Senado da Câmara de Luanda pedia ao rei que autorizasse os capuchinhos a terem residência na sua cidade , havendo notícia de que foi em meados desse mesmo mês de Dezembro que eles fundaram a missão desta capital, a pedido insistente de Salvador Correia de Sá e Benevides. No dia 26 de Dezembro, o P. Serafim de Cortona prestava também homenagem ao rei português; dois dias depois, o governador e capitão-general recomendava ao monarca o P. Boaventura de Sorrento e, a propósito dos capuchinhos, afirmava que eram muito virtuosos e que Deus faria muitas mercês e favores a Angola por os ter ao seu serviço neste território.

Este capuchinho, o P. Boaventura de Sorrento, deixou São Salvador em 12 de Dezembro de 1649 e chegou a Luanda no dia 23 ou 24 seguinte; atingiu a costa brasileira em 30 de Janeiro de 1650 e chegou a Lisboa dois meses depois, no dia 30 de Março do mesmo ano.

Nos fins de 1654, a Prefeitura Apostólica do Congo, que até então tivera a sua sede em São Salvador, foi transferida definitivamente para Luanda. Nos sessenta anos que vão de 1645 a 1705, os missionários capuchinhos italianos mandaram ao Congo duzentos e trinta sacerdotes. E em menos de dois séculos que durou a sua primeira fase da evangelização, interrompida pela expulsão das ordens religiosas, em 1834, e que foi executada em Angola já no ano seguinte, passaram por estas terras mais de quatrocentos missionários a quem tinham sido conferidas ordens sacras de presbítero, não contando portanto os irmãos auxiliares das missões.

No dia 6 de Maio de 1653, a Sagrada Congregação da Propagação da Fé publicou um decreto em que tratava da jurisdição dos missionários capuchinhos, na região do Congo. Por sua vez, o rei Garcia II escreveu à Câmara de Luanda — ou antes, ao Senado da Câmara — em 14 de Novembro de 1654 e em 15 de Janeiro de 1655, tratando dos missionários que tinham entrado nas suas terras com o apoio e sob a autoridade do rei espanhol. Este régulo voltava de novo a colaborar com Portugal na tarefa da ocupação do Congo, da civilização dos seus povos e da elevação do seu modo de viver.

Os religiosos capuchinhos eram muito estimados pelo gentio, devido às suas excepcionais qualidades, acrisoladas virtudes e interesse posto na tarefa da evangelização e ascensão social dos silvícolas. O cabido de São Salvador, constituído quase inteiramente por sacerdotes mestiços comprometidos com os holandeses, entrou em conflito com eles. A corte do potentado indígena, que se dizia irmão de armas do rei de Portugal, era dominada por alguns elementos do clero, destacando-se nesta teia de intrigas e de enredos dois nomes historica e tristemente famosos, os cónegos P. Miguel de Castro e P. Simão de Medeiros.

Eram ao tempo ainda bastante novos, pois haviam sido ordenados em 1637. Actuavam como verdadeiros senhores da sua cidade. Viviam rodeados de luxo, enriquecendo à custa dos rendimentos obtidos a partir da posição social que ocupavam, havendo indícios de se dedicarem também ao tráfico esclavagista. Inteligentes e cultos, exerciam funções de conselheiros influentes e eram os mais destacados colaboradores do rei, desempenhando importante papel nas resoluções tomadas. Parece terem posto em actividade uma complicada trama de maquinações, aproximando-se dos holandeses, dos espanhóis ou dos portugueses, conforme lhes parecesse mais conveniente, e conseguindo equilibrar-se sempre nesta exercício acrobático. O seu atrevimento estava em proporção com as suas qualidades e com os seus defeitos. O cónego Simão de Medeiros chegou a usar o seu valimento para que o rei de Espanha e ex-rei de Portugal, D. Filipe IV, o fizesse bispo; este pedido deverá ter sido feito pelo ano de 1664, no final do seu reinado.

As relações mantidas com os mais diversos elementos, de interesses antagónicos, eram dominadas por autêntica dissimulação e verdadeira habilidade teatral. Conseguiam entender-se com os portugueses, que acreditavam neles; entendiam-se também com os espanhóis, seguros da sua fidelidade; e até os holandeses julgavam tê-los como dedicados servidores.

A campanha nesse tempo movida contra os capuchinhos, religiosos de grande virtude que haviam sido enviados por iniciativa e com a aprovação do Papa, integra-se no conjunto de movimentos de fundo patriótico com que procurou defender-se a soberania lusitana. Como estes missionários eram na sua maior parte italianos, súbditos do Papa (que não reconhecia a restauração da independência), propunham-se afastá-los sob a acusação de serem elementos dóceis da política de Madrid. Isso não correspondia à verdade, pois eles procuravam acima de tudo ser intérpretes fiéis do mandato de Cristo, de evangelizar e ensinar todos os povos. Os missionários naturais das províncias e reinos sujeitos à coroa de D. Filipe IV poderiam mostrar-se dispostos a acatar a autoridade deste monarca; mas os capuchinhos italianos não merecem ser acusados disso. Tinham, certamente, uma forma muito pessoal de ver os problemas e encarar as situações, mas souberam pôr sempre acima dos interesses políticos o objectivo último da sua missão. Nada nos custa acreditar que os sacerdotes sujeitos à autoridade temporal do Papa pudessem admitir que o rei de Espanha fosse o legítimo senhor das terras de Angola e Congo, sem com isso poderem ser acusados de traição ou rebeldia, em relação a Portugal, ou agentes disfarçados de uma potência estrangeira. Em verdade, Portugal tinha-se revoltado!...

As acusações a que nos temos referido foram fruto do ambiente local. As diferentes congregações opunham-se umas às outras, com intrigas pouco edificantes, manifestação clara de inveja e despeito. Os sacerdotes mestiços do Congo armavam complicada trama de enredos com o fim de se destacarem e defenderem posições adquiridas, que viam em perigo de perderem, devido ao prestígio que rodeava os humildes missionários e a eles lhes faltava. Os dois sacerdotes, membros do cabido de São Salvador, já nossos conhecidos, os cónegos P. Miguel de Castro e P. Simão Medeiros, eram em boa parte os responsáveis pela situação, pelos abusos e desmandos correntes. Cometiam toda a espécie de desaforos, tanto sob o aspecto religioso como político e social. Eram acusados de idólatras, pois misturavam os ritos gentílicos com os cristãos; apontados como cismáticos, apresentando os mistérios cristãos em desacordo com o magistério da Igreja; tidos na conta de feiticistas, aceitando os conceitos míticos tradicionais; acusados de simoníacos por se aproveitarem da sua condição de dignitários diocesanos. Opunham-se às determinações das autoridades; contrariavam o prelado, menos informado e que não residia no Congo; conquistavam com dádivas os colegas do sacerdócio; utilizavam de várias formas a sua influência. O reitor da residência dos jesuítas, em Luanda, o enigmático P. António do Couto, noutro lugar referido, tinha comportamento bastante semelhante, era seu colaborador, seu aliado. A apatia, a indiferença e o comodismo formavam a espinha dorsal deste sistema defeituoso.

Os mais dignos e conscientes membros do clero reconheciam não ser fácil emendar defeitos profundamente enraizados e esperavam melhores dias. A época histórica que então se vivia era anormal e facilitava os elementos pouco escrupulosos. Muitos, naturalmente, deixavam-se dominar pelo pessimismo e acreditavam que a solução só se encontraria muito longe, era um problema cuja solução pertenceria ao tempo...



 
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