Jorge Freire Póvoas
De forma mais sutil a ironia é um outro exemplo de conduta negativa, pois ela nos propicia uma ligação direta, levando-nos para a intimidade de nossa consciência: é pura nadificação. Na ironia, "o homem nadifica em um só ato, aquilo mesmo que diz; faz crer para não ser acreditado; afirma para negar e nega para afirmar"(). Então, agir ironicamente é jogar, negando e afirmando simultaneamente. Aqui estão presentes os dois tipos de negação que falávamos lá no início: da negação relacional com o outro, por representar para que ele acredite, e da negação interna por defender algo que não acredito.
Logo, mentir é adotar uma dupla ação negativa, que tem como objetivo final o outro. Quando mentimos, temos a consciência do que queremos esconder, sendo assim, não há duvidas para nós do que vai ser escondido. O ideal do mentiroso, para Sartre, seria alguém que adotasse "uma consciência cínica, que afirmasse em si a verdade, negando-a em suas palavras e negando para si mesmo esta negação"() Assim, o mentiroso age de forma negativa, quando representa para seu interlocutor, criando o que não existiu, e quando afirma uma verdade para si, sabendo ser somente palavras que não condizem com a realidade dos fatos omitidos.
Entretanto, na Má-Fé não existe interlocutor, estamos falando apenas de um tipo de negação, a interna, de mentir a si mesmo. Não mais existindo a dualidade do eu e do outro, ou seja, esse projeto não ocorre, como no caso da mentira, em dois momentos distintos, mas, em um só.
Logo, na Má-Fé não existe o enganador e o enganado, porque enquanto enganador conheço tudo que eu como enganado busco esconder. Na Má-Fé, a consciência volta sua negação para si mesma, não dimensionando-a para fora. Desta forma, a Má-Fé "não vem de fora da realidade humana, não nos infectamos com ela, não se trata de um estado. A consciência se afeta a si mesma de Má-Fé" (). Portanto, a consciência é consciente deste projeto. Tenho controle do que quero fazer, ou seja, minha consciência é consciência de ser consciência.
Por ser toda consciência, consciência de alguma coisa, quem se infecta de Má-Fé tem consciência desse agir. Ser consciente é conhecer, é saber que se sabe, é perceber o que foi feito, é projetar o que virá, porque uma consciência que não seja plenamente consciência de si, só pode ser inconsciente ou não-consciência. E assim sendo, a Má-Fé seria apenas uma mentira.
Mas não devemos confundir Má-Fé com a mentira, porque apesar de possuírem a mesma estrutura, a dualidade ontológica faz a diferença. Na interpretação psicanalista, recorre-se ao inconsciente como forma de restabelecer essa dualidade, negando assim a consciência do estado de Má-Fé. "A Psicanálise substitui a noção de Má-Fé pela idéia de mentira sem mentiroso; permite compreender como posso não mentir a mim, mas ser mentido, pois me coloca em relação a mim mesmo, na situação do outro; substitui a dualidade do enganador e do enganado, condição essencial a mentira, pela dualidade do id e do eu"().
Negar a Má-fé buscando justificar suas atitudes e agir de Má-Fé. Ao roubar um livro, por exemplo, sou o impulso de tê-lo, toma forma em mim o impulso e concretizo este desejo. Poderia justificar tal ação definindo para ela ser conseqüência de convivências passadas ou presentes, ligações com pessoas que tenham cometido tal delito, mas isto seria Má-Fé, pois todo o acontecido se deu no campo da consciência e recorrer ao inconsciente é submeter ou dar a consciência um papel secundário, atribuindo ao inconsciente o papel principal. "O consciente seria o enganado; o inconsciente e a censura fariam o papel de enganador. Imaginou assim, uma espécie de mentira sem mentiroso, já que apenas o significado dos nossos pensamentos seria acessível à consciência, mas não a causa desse significado. A parte enganadora de nós mesmos ficaria oculta no inconsciente. Estaríamos em consciência eternamente enganadora, comandada pelo inconsciente"(). Ao recorrer ao inconsciente a psicanálise não dá conta da questão da Má-Fé, a consciência, diz Sartre, é translúcida. Então tudo é claro e lúcido na consciência ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência.
Para o psiquiatra Wilhelm Stekel, que contestou o inconsciente freudiano, "toda vez que pude levar o bastante longe minhas investigações comprovei que o núcleo da psicose era consciente"(). No caso da mulher frigida, por exemplo, torna-se bem claro que tal frigidez se deu de forma consciente porque pensava ela em pleno ato sexual nas compras, nos afazeres domésticos, desviando assim seus pensamentos para bem longe do que estava fazendo naquele momento. "A psicanálise freudiana precisou conceber impulsos inconscientes que comandam a nossa ação para explicar porque, por exemplo, realizamos o ato de escrever ou de dirigir um automóvel sem refletirmos sobre esse ato mesmo, geralmente escrevemos pensando no que queremos dizer, sem intencionar nossa conduta de pessoa que escreve, ou podemos dirigir um carro conversando com pessoas alheios à técnica de dirigir"() Mas temos o controle, e podemos deixar de conversar e prestar atenção ao transito, assim não concordamos com a subordinação da consciência ao inconsciente, e o fenômeno de Má-Fé só pode ser entendido se investigarmos sua essência na translucidez da consciência.
No exemplo da mulher que se encontra pela primeira vez com seu pretendente, Sartre nos propicia um melhor entendimento das condutas de Má-Fé. " Ela sabe perfeitamente as intenções que o homem que lhe fala tem a seu respeito. Também sabe que, cedo ou tarde, terá de tomar uma decisão. Mas não quer sentir a urgência disso: atém-se apenas ao que de respeitoso e discreto oferece a atitude do companheiro. Não a apreende como tentativa de estabelecer os chamados "primeiros chamados", ou seja, não quer ver as possibilidades de desenvolvimento temporal apresentadas por essa conduta: limita-a ao que é no presente, só quer interpretar nas frases que ouve o seu sentido explícito, e se lhe dizem "eu te amo muito", despoja a frase de seu âmago sexual: vincula aos discursos e à conduta do seu interlocutor significações imediatas, que encara como qualidades objetivas. O homem que fala, parece sincero e respeitoso, como a mesa é redonda ou quadrada, o revestimento de parede azul ou cinzento. E qualidades assim atribuídas à pessoa a quem ouve são então fixadas em uma permanência coisificante que não passa de projeção do estrito presente no fluxo temporal. A mulher não se dá conta do que deseja: é profundamente sensível ao desejo que inspira, mas o desejo nu e cru a humilharia e lhe causaria horror. Contudo, não haveria encanto algum em um respeito que fosse apenas respeito. Para satisfazê-la, é necessário um sentimento que se dirija por inteiro à sua pessoa, ou seja, à sua liberdade plenária, e seja reconhecimento de sua liberdade. Mas é preciso, ao mesmo tempo, que tal sentimento seja todo desejo, quer dizer, dirija-se a seu corpo como objeto. Sendo assim, ela se nega a captar o desejo como é, sequer lhe dá nome, só o reconhece na medida em que transcende para a admiração, a estima, o respeito e se absorve inteiramente nas formas mais elevadas que produz, a ponto de já não constar delas a não ser como uma espécie de calor e densidade. Mas eis que lhe seguram a mão. O gesto do seu interlocutor ameaça mudar a situação, provocando uma decisão imediata: abandonar a mão é consentir no flerte, comprometer-se; retirá-la é romper com a harmonia turva e instável que constitui o charme do momento. Trata-se de retardar o mais possível a hora da decisão. O que acontece então é conhecido: a jovem abandona a mão, mas não percebe que a abandonara. Não percebe porque, casualmente, nesse momento ela é puro espírito. Conduz seu interlocutor às regiões mais elevadas da especulação sentimental, fala da vida, de sua vida, mostra-se em seu aspecto essencial: uma pessoa, uma consciência. E entrementes, realizou-se o divórcio entre corpo e alma: a mão repousa inerte entre as mãos cálidas de seu companheiro, nem aceitante, nem resistente - uma coisa" () Encontramos assim, neste relato sartreano, características de dupla contraditoriedade, ou seja, a priori, a mulher desarma o projeto ou a idéia intencional do seu companheiro limitando assim sua liberdade, transformando-o em coisa, em "em-si". Mas ela é também esse desejo, e de forma sutil se deixa conquistar também como uma coisa. Ela afirma a sua transcendência quando nega a intenção do companheiro, transformando assim sua ação em pura facticidade, mas, também é pura facticidade quando transcende se transformando em coisa conquistada. Esses conceitos contraditórios de querer e negar, querer para negar, ou negar para querer são possíveis porque na Má-Fé afirma-se a transcendência como facticidade e a facticidade como transcendência.
Assim, agir de Má-Fé é transitar entre a transcendência e a facticidade deixando de ser para-si (consciência) para transformar-se em em-si (coisa), mas porque existe essa inversão? Quais as suas condições de possibilidade? Como negar o livre-arbítrio para afirmar o determinismo se toda ação é por princípio intencional e a liberdade é ontologicamente inerente ao ser do homem como plena consciência de ser? Qual a ligação entre a fórmula sartreana "o ser é o que não é, e não é o que é" e transcendência e facticidade? Temos aqui nestas questões o foco de nossa investigação filosófica. Por ser livre, é consciente, o homem é o responsável pela construção de sua existência e essência , e por não ter uma essência pronta, ou seja, uma vida pré-definida com todos os seus passos harmoniosamente bem elaborados - em Sartre, a existência precede e condiciona a essência - o homem tem medo de optar, e por medo dessa possibilidade, ele a renega. Ao negar sua liberdade para defender o destino concretiza-se a inversão, quem antes era criador passa agora a ser criatura, ou seja, a essência aqui vem a-priori, determinando a existência. Entretanto, Para um melhor entendimento das condições de possibilidade desta negação interna, devemos ver, qual o papel da transcendência e da facticidade no fenômeno da Má-Fé.
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