Jorge Freire Póvoas
No fenômeno da Má-Fé transcendência e da facticidade estão presentes de tal modo que quando captamos um logo depararmos com o outro. É a dialética acima citada onde a facticidade impõe limites, definindo o nosso raio de ação e a transcendência abrindo as portas para tudo o que podemos ser, e assim seremos, prisioneiros de uma nova facticidade. Transcendência e facticidade tem aqui importância vital, são instrumentos que sustentam a base da Má-Fé.
Podemos observar nos exemplos do próprio Sartre como está dialética da transcendência e da facticidade funciona: "da obra de Jacques Chardonne: "O amor é bem mais que amor". Faz-se aqui a unidade entre o amor presente em sua facticidade, "contacto de duas epidermes", sensualidade, egoímos, mecanismo proutiano do ciúme, luta adleriana dos sexos, etc., e o amor como transcendência, o "rio de fogo" de Mauriac, chamado do infinito, eros platônico, surda intuição cósmica de Lawrence, etc. Partimos da facticidade para nos encontramos de súbito – além do presente e da condição factual do homem, além do psicológico em plena metafísica. Ao contrario, o título de uma peça de Sarment, Sou grande demais para mim, que também ostenta caracteres de Má-Fé, nos coloca primeiro em plena transcendência para de repente nos aprisionarmos nos estreitos limites de nossa essência factual. Idênticas estruturas se acham na famosa frase "ele se tornou o que era", ou no seu inverso não menos conhecida "como a eternidade o transforma nele mesmo"(). Carregadas de Má-Fé estas frases demostram a ponte feita entre transcendência e facticidade e vice-versa. Em "O amor é bem mais que o amor" a facticidade está em ato, no ato de fazer sexo. Estamos falando da sua prática. Porém transcendendo para tudo que possa ser representado, como por exemplo: o amor sublime. Em "sou grande demais para mim" temos o contrário da frase anterior, o que se apresenta é a transcendência nos levando para longe do que somos. É uma apologia, uma valorização, como forma de esconder toda a nossa realidade. Nos desculpamos por nossas derrotas nas fraquezas do nosso existir. É a transcendência que se transformou em facticidade. Ou seja, o que é e o que pode ser em uma perpetua troca, um eterno ir e vir, onde é possível deslizar do presente para transcender no que será. Desta forma, não mais serei o que sou e não sendo o que sou, tenho como me livrar das críticas. Pela transcendência escapo a qualquer questionamento. Mas ao escapar pela transcendência, para ser o que não sou, sou minha transcendência à maneira de ser coisa, ou seja, tenho a falsa impressão de que estou me livrando do que é indesejável. A Má-Fé vai me proporcionar essa solução que na verdade é só uma fuga, fuga essa que transforma homem em coisa.
Podemos agora responder aos questionamentos levantados no final da primeira parte deste trabalho. A inversão existe para que haja fuga, e quando essa fuga se concretiza é porque houve Má-Fé, quem era livre para optar, optou para se transformar em coisa, negando sua responsabilidade. Deixando de ser responsável a culpa pelo projeto ter dado errado não terá tanto peso, não haverá muita dor, podendo recorrer a qualquer tipo de desculpas. Quanto as condições de possibilidades são infinitas pois ao transcender o homem pode mudar qualquer coisa até culpar o destino por tudo que deixou de fazer.
A Má-Fé nega o livre-arbítrio por determinar motivos
para ações, ou seja, a Má-Fé faz apologia ao
determinismo por ser necessário para eles sempre uma justificativa,
principalmente para as forças externas. "Bem mais do que parece
"fazer-se" o homem parece "ser feito" pelo clima e a terra, a raça
e a classe, a língua, a história da coletividade da qual
participa, a hereditariedade, as circunstâncias individuais de sua
infância, os hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos
de sua vida. Este argumento nunca perturbou profundamente os adeptos da
liberdade humana: Descarter, o primeiro deles, reconhecia ao mesmo tempo
que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a
nós mesmos do que a sorte" (). O homem nega o que lhe é inerente,
a liberdade, para justificar sua incapacidade. O medo que tem das cobranças
internas e externas faz com que a consciência busque saídas
para estas pressões. A porta que o homem usa para isto é
a Má-Fé, e é através da dialética da
transcendência da realidade humana com sua facticidade, que como
vimos são instrumentos de base da Má-fé, que é
possível a realização deste projeto.
Mas se eu agir com sinceridade escapo a Má-fé, ou seja, seria
a sinceridade uma antítese da Má-Fé? Qual o objetivo
da sinceridade e da Má-Fé? E a "fé" da Má-Fé,
qual é o seu problema? Seria a Má-Fé uma crença?
Podemos ainda avançar um pouco mais em nossa investigação
para sabermos por que toda consciência é consciência
de alguma coisa e qual a ligação da fórmula sartreana
"ser o que não é e não ser o que é" com a Má-Fé?
Estas e outras questões tentaremos elucidar a seguir.
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