Ediηγo nΊ6 - 09/07/99

A Ilustre Casa de Ramires

Profa. Esther Rosado


Eça de Queiroz

 

1. Biografia do autor:

José Maria Eça de Queiroz nasceu na cidade portuguesa de Póvoa do Varzim no dia 25 de novembro de 1845. Filho de burguesia letrada, o pai era um alto magistrado; O escritor nasceu, no entanto, em circunstâncias pouco esclarecidas. Os pais casaram-se regularmente somente depois de quatro anos do nascimento da criança e o menino passou toda a infância na casa dos avós maternos.

Estudou leis em Coimbra, mas não participou da célebre Questão Coimbrã; escreveu alguns folhetins literários nesse tempo ( Notas Marginais, na Gazeta de Portugal, o que lhe rendeu boa dose de escárnio por parte dos leitores, porque já se prenunciavam nele os traços críticos do Realismo-Naturalismo em pleno Romantismo; tais folhetins, mais tarde, foram retocados e acrescidos ao livro Prosas Bárbaras) e, após formado, transferiu-se para Lisboa, onde abriu um escritório de advocacia. Naquela ocasião torna-se também jornalista e, incentivado por Antero de Quental, lê Proudhon. Corre o ano de 1869 e Eça filia-se ao Cenáculo.

É como jornalista que irá cobrir a inauguração do Canal de Suez e desta viagem aparecerá posteriormente seu outro livro, O Egito, notas da viagem que fez àquela região.

Com Ramalho Ortigão, publica no Diário de Notícias de Lisboa sua primeira tentativa ficcionista, mistura de novela policial e suspense: O Mistério da Estrada de Cintra. E é também com Ortigão que publicará uma série de artigos intitulados As Farpas, sátira à vida social e aos costumes burgueses.

Em 1871, participa das famosas Conferências do Cassino Lisbonense, introdutoras do Realismo português e é um dos palestrantes sobre o tema "O Realismo como nova expressão da Arte".

Em 1872, depois de prestar concurso para diplomata, foi nomeado para Havana; entre 1874 e 1878 vai para a Inglaterra e termina seus dias em Paris, também como cônsul português naquela cidade.

Viveu sempre endividado, porque pouco sabia sobre administrar seu próprio dinheiro; teve quatro filhos, mulher amorosa e sofreu a vida inteira de uma doença chamada enterocolite, a mesma que acometia Machado de Assis: tinha cólicas horrendas que o deixavam prostrado por dias inteiros.

Perfeccionista, reescrevia centenas de vezes um só trecho de determinado capítulo, mas teve que escrever obras menores e as entregar apressadamente aos editores, sempre com o intuito de pagar seus credores.

Morre no dia 16 de agosto de 1900, em Paris.

2. Obras:

O Mistério da Estrada de Sintra ( 1870)

O Crime do Padre Amaro ( Cenas da Vida Devota) ( 1876)

O Primo Basílio ( Episódio Doméstico) (1878)

O Mandarim ( 1880)

A Relíquia ( 1887)

Os Maias ( Episódios da Vida Romântica) ( 1888)

Uma Campanha Alegre ( em colaboração com Ramalho Ortigão, n'As Farpas, 1890-91)

A ilustre Casa de Ramires ( 1900)

A Cidade e as Serras ( 1901)

Contos ( 1902)

Prosas Bárbaras ( sátira aos costumes social, na Gazeta de Portugal, com Ramalho Ortigão), (1903)

A Capital ( 1925)

O Conde de Abranhos e A Catástrofe ( 1925)

Alves & Cia ( 1926)

O Egito ( 1926)

A Tragédia da Rua das Flores ( 1980).

 

As três fases do prosador

1ͺ fase ( 1866 a 1875): A primeira fase da carreira literária de Eça de Queirós inicia-se sob a égide do jornalismo, através da publicação de artigos e crônicas na Gazeta de Portugal e termina com a publicação do primeiro romance realista português, em 1876: O Crime do Padre Amaro. Os artigos e crônicas dessa época foram mais tarde reunidos e postumamente publicados sob o nome de Prosas Bárbaras (1903). O autor encontra-se, ainda, sob a influência de Vitor Hugo e Michelet, mas desponta nele a ironia contida nas Farpas e em Uma Campanha Alegre. Constitui a fase menos importante de sua produção, mas já se pode vislumbrar nela o magnífico narrador do futuro.

2ͺ fase ( 1875 a 1887): Aqui encontram-se seus romances realistas-naturalistas. Nela, aparecerão O Crime do Padre Amaro (1875), O Primo Basílio ( 1878), A Relíquia ( 1887), trilogia mais acidamente crítica contra a pequena-burguesia portuguesa. Aderindo à causa republicana, fora de Portugal, pôde criticar largamente as instituições de sua terra e seus inúmeros e intoleráveis vícios: a Monarquia, a Igreja e a burguesia serão atacadas enormemente. Sob a legenda Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia, compõe um painel amplo daquela sociedade que julgava culpada pelo atraso de seu povo: o clero hipócrita, a aristocracia rural acomodada, a burguesia gananciosa, irresponsável e medíocre.

3ͺ fase ( 1887 em diante): Esta é a chamada fase madura do autor; tendo alcançado a maturidade, a crítica aguda vai dar lugar ao nacionalismo, à preocupação moral e um certo otimismo quanto ao que se espera de Portugal. Há um saudosismo dos bons tempos ( ver como exemplo A Ilustre Casa de Ramires ( 1900) ); superando o esteticismo cientificista, aparecerá uma espécie de repúdio ao que é artificial ( A Cidade e as Serras, 1901).

 

 

 

3. Escola literária e autor:

"A obra literária passou a ser considerada utensílio, arma de combate, de reforma e ação social. (...) os realistas pregavam a arte compromissada."

(Massaud Moisés, in História da Literatura Portuguesa)

É preciso levar em consideração que houve sempre direcionamentos realistas desde que surgiu a Arte como expressão. Basta, por exemplo, observar que os nossos ancestrais registravam nas paredes das cavernas cenas do dia-a-dia; um pouco mais distante disso a civilização egípcia fazia, embora mais sofisticadamente, esse mesmo registro.

Na própria França romântica, Balzac e Victor Hugo souberam retratar as misérias de um tempo pós revolução francesa e captaram a face infeliz de uma época de triste memória. Na figura fantástica de um Quasímodo deformado, corcunda, surdo pelo sons dos sinos da Catedral de Notre Dame, desarvorado diante de seus próprios sentimentos, desenha-se um futuro tempo realista; da mesma maneira A Comédia Humana de Balzac capta caracteres, humores, atitudes que nos remetem à compreensão de que esse magistral autor francês era , antes que tudo, um "caçador"de figuras, um fotógrafo de seu tempo.

Estaremos, no entanto, aqui, nos referindo ao período Realista-Naturalista, segunda metade do século do século XIX. Está claro que essas duas tendências daquele período têm características bem demarcadas entre si. O Realismo propriamente dito é arte mais ligada à análise psicológica, enquanto que o Naturalismo usa mais largamente o cientificismo para compor seus tipos humanos. Mas, posteriormente, vamos nos incumbir de tais diferenças, principalmente no estudo de contos ou romances.

É importante observar que o Realismo-Naturalismo deu preferência à prosa, embora em Portugal, por exemplo, houvesse poesia realista ( Cesário Verde , poesia do cotidiano). Passemos às características:

1. Denúncia social: Para o realista-naturalista, a arte deveria refletir a sociedade e a literatura deveria ser "arma de combate, de ação e de reforma social"; portanto, denunciar o tempo do escritor, "funcionar como um espelho, a sociedade burguesa do tempo veria patenteada sua larga e profunda decomposição moral", segundo as palavras do crítico Massaud Moisés.

2. Objetivismo: Preocupação primeira com a verdade, tendo por apoio a análise e a observação.

3. Temas contemporâneos: O presente é matéria fundamental para os escritores; há a recusa sistemática dos romances históricos que fizeram parte do Romantismo. Toda a ficção realista-naturalista tem como fundamento a crítica social (contra o clero, a burguesia e o capitalismo) e a análise psicológica (caminho intrincado para analisar as causas de todas as ações humanas).

 

4. O descritivismo: o realista-naturalista é um detalhista extremoso porque, à medida em que valoriza o meio e suas influências sobre os indivíduos; à medida que observa, analisa e documenta, precisa acumular detalhes do mundo físico ou psicológico: um gesto de mão, o contorno de um lábio, um amontoado de casas na paisagem, uma maneira de andar, são captados no sentido de fazer a obra literária ganhar vida, aproximar-se da realidade, ser seu espelho.

Exatamente pelo fato de serem minuciosas, as narrativas realistas e naturalistas ganham um ritmo mais demorado, lento.

5. Anticlericalismo: Se , ainda que no século XIX, a Igreja mantivesse uma postura conservadora por circunstâncias que a ligavam ao poder dos estados monárquicos fragilizados, os escritores realistas-naturalistas criticavam sua hipocrisia moral, seu conservadorismo ideológico, seu atrelamento a um poder em crise. Eram, portanto, obstinadamente anticlericais ( tomar como exemplo O Primo Basílio, de Eça de Queirós ou O Mulato de Aluísio Azevedo).

6. A contenção emocional: os prosadores desse período pretendem uma suposta "posição neutra" ( impassibilidade) diante do relato literário que concretizam. Fotografando suas personagens "por dentro"(psicologicamente, como o fez Machado de Assis), ou "por fora" (como tão bem o fez Aluísio Azevedo), os escritores procuram não se envolver emocionamente com o que compõem seus livros. Escondidos na condição de narradores apenas, buscam explicações lógicas para o que suas personagens produzem no universos em que trafegam.

7. O herói ausente: as personagens do Realismo-Naturalismo são, geralmente, esféricas; segundo a concepção de Forster, tais personagens surpreendem o leitor ao fim da narrativa. O certo é que há nessa escola literária a ausência do herói, caso consideremos a ótica romântica de bondade, perfeição e fidelidade. Na prosa realista-naturalista, as personagens estão mais próximas dos seres humanos: evoluem e têm profundidade psicológica.

8. O predomínio das sensações: O escritor realista capta o mundo valendo-se, antes de mais nada, dos sentidos. Ou seja, a produção realista é basicamente sensorial. É dessa forma que se justifica a sexualização do amor em contraposição ao sentimentalismo romântico.

9. Personagens planas, tipos: Além das personagens esféricas, surpreendentes, o Realismo-Naturalismo nos oferecerá uma gama enorme de personagens planas, tipos, geralmente no papel de coadjuvantes. Tais personagens compõem sempre o universo de seres que representam as criaturas do cotidiano, fotografadas em seus habitates, com características bem definidas de seres comuns, encontráveis em quaisquer sociedades.

10. Preocupação formal: Alguns autores, entre eles destacam-se Machado de Assis e Eça de Queirós, buscaram um estilo enxuto e pautaram pela disciplina da correção gramatical . É largamente conhecida as histórias que cercam a construção dos romances de Eça, durante o que o autor reescrevia freneticamente seus textos a fim de dar-lhes configuração perfeita. É preciso observar, porém, que aos naturalistas interessou muito mais captar os falares cotidianos, as expressões verbais coloquiais ou gírias, típicas de certas comunidades, desprezando a preocupação com a forma em detrimento da prosa como documento.

 

13. O Determinismo: A rigor, o romance naturalista procurou insistentemente encaixar suas personagens dentro da construção que regia a doutrina de Hipolite Taine: o homem é um ser submetido irremediavelmente às três leis: herança genética, meio social e momento histórico.

 

 

Observar:

Embora Realismo-Naturalismo seja nome genérico para a escola literária de que tratamos, existem diferenças entre o que possa ser reconhecido apenas como Realismo ou como Naturalismo. Vejamos:

a) Realismo:

- Sua origem é a França, com a publicação de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, em 1857.

- Enfoque psicológico: as personagens são analisadas "pelo lado de dentro", ganham dimensão interior (A Causa Secreta, conto de Machado de Assis, é um bom exemplo).

- Crítica aguda ao comportamento pequeno-burguês.

- Romances e contos que analisam e criticam os comportamentos sociais: a ambição, o orgulho, a vaidade.

- Geralmente a obra termina em aberto, ou seja, o leitor é induzido a fechá-la convenientemente.

- Rompimento com a narrativa linear; aparecem a digressão, a atemporalidade no tempo narrativo.

- Romance de características documentais.

 

b) Naturalismo:

- Sua origem é a França, com a publicação de Thérèse Raquin, de Emile Zola, 1867.

- Romance de tese, experimental, baseado na comprovação científica.

- Preferência por retratar as "camadas inferiores" da sociedade

- Presença sistemática de personagens-tipo, pessoas do povo, criaturas comuns de "carne e osso".

- Personagens submetidas à herança genética, meio social e momento histórico.

- Geralmente a obra termina fechada, ou seja, o leitor tem começo, meio e fim bem determinados

O Realismo em Portugal

O início da década de 60 vai encontrar um Romantismo desgastado em Portugal, liderado por Antônio Feliciano de Castilho, poeta cego desde a infância, ao redor do qual flutuavam um sem-número de poetas menores, seus admiradores.

A França já iniciara o seu Realismo e os outros países europeus também ganhavam a mesma trilha. Conhecedores da Escola Naturalista nas artes, um grupo de jovens da Universidade de Coimbra, liderados por Antero de Quental e Teófilo Braga fundam a Sociedade do Raio ,em 1861. Esta associação congrega certa de 200 estudantes e tinha o propósito visível de instalar um novo tempo, acabar com o marasmo da academia e de Portugal. Tal grupo já começa a incomodar e intimidar os velhos autores românticos já nessa época.

Em 1862, Antero de Quental, escolhido pelos estudantes para saudar o príncipe Humberto da Itália, faz, num gesto de suprema rebeldia e inconformismo elogio à Itália livre e a Garibaldi, símbolo lendário por esse tempo.

Em 1865, dois acontecimentos colocam o poeta como centro do torvelinho de transformações : a publicação do livro de poemas Odes Modernas e seu envolvimento na célebre Questão Coimbrã ( Do Bom Senso e do Bom Gosto).

A prosa realista-naturalista de Eça de Queirós:

 

O romance e o conto da época realista-naturalista em Portugal nada seriam não fosse a prosa agudamente crítica de Eça de Queirós. Tais produções literárias abandonam a intriga que visava apenas o entretenimento do público romântico e passam a ser agora armas de combate, agentes transformadores da sociedade portuguesa dos fins do séc. XIX. O romance, principalmente, é instrumento de "ataque e demolição, por um lado, e de defesa de ideais filosóficos e científicos do outro", segundo Massaud Moisés.

 

Eça de Queirós foi também um excepcional contista. O primeiro conto realista do autor é o inesquecível Singularidades de uma rapariga loura, história de uma cleptomaníaca (Luísa) e do apaixonado Macário que só descobrirá a doença da moça às vésperas do casamento, ocasião em que ambos vão a uma joalheria comprar o anel e Luísa furta um outro, sendo descoberta. Macário dispensará o compromisso e, anos depois, numa hospedaria, conta ao seu companheiro de quarto o que acontecera a ele na juventude.

Um outro conto inesquecível de Eça é O Tesouro, história de ambição de três irmãos, os Medranhos, que em plena e absoluta miséria acham um tesouro que poderiam dividir, mas acabam provocando uma sucessão de mortes, até que o tesouro, escondido, continue lá, nas matas de Roquelanes.

Magistral escritor, detalhista, indignado contra os costumes, Eça legou-nos um tesouro onde os julgamentos sobre a natureza humana, a denúncia de seu tempo são os componentes mais importantes.

4. Dois propósitos e um único romance:

Dois ressaltos devem ser feitos com relação a A Ilustre Casa de Ramires:

1. Embora o romance pertença a uma fase em que o romancista se reconcilia com as chamadas "tradições portuguesas", é bom lembrar que não deixa de ser realista e, portanto, crítico. Nele, Eça critica os fidalgos de Portugal na figura patética a acovardada de Gonçalo Ramires que, buscando contar uma história para vê-la publicada nos Anais de Literatura e de História, resgata os "feitos" de seus antepassados apenas com a imaginação, cuja verdade é baseada num poemeto épico, de índole ufanista, romântico.

Gonçalo pretende apenas ascender socialmente, sair da província e, em Lisboa, participar da política como modo de ter prestígio e ganhar dinheiro.

"- E tu compreendes, como eu desejo tentar a política, preciso primeiramente aparecer, espalhar o meu nome..." (p. 53)

 

2. É preciso lembrar que a crítica de Eça recai também sobre os romancistas que, no Romantismo, fizeram os chamados "romances históricos", buscando uma Idade Média portuguesa cheia de heróis: Alexandre Herculano, por exemplo.

 

 

5. Uma narrativa complicada:

 

A estrutura narrativa está dividida em 12 capítulos e seu narrador é onisciente, portanto, o romance é narrado em terceira pessoa:

"Desde as quatro horas da tarde, no calor e no silêncio do domingo de junho, o fidalgo da torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cor-de-rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes Ramiro ( que naquela sua velha aldeia de Santa Irinéia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo "fidalgo da torre"), trabalhava numa novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÓRIA, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada em Coimbra, nos tempos do cenáculo patriótico, em casa das Severinas."

É numa tarde encalorada de junho, num domingo, que nossa narrativa começa. Gonçalo Mendes Ramires, um jovem bacharel em Direito, tem 25 anos e começa a escrever uma novela histórica, impulsionado por um amigo, o José Castanheiro, patriota que quer editar o primeiro número dos Anais de Literatura e de História, a revista acima mencionada.

Fidalgo de uma linhagem antiquíssima dos Ramires portugueses, aparecidos como estirpe em 967, Gonçalo se orgulha de seus antepassados que um dia habitaram a Torre de Santa Irinéia, a mesma que até hoje ele habita:

"Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe), era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal. Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até os vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do borguinhão. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquele agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Irinéia, que se casou em 967 com Dona Eluara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo, o Gotoso Rei de Leão." (p.9)

 

Não se trata de romance fácil de ser lido, no entanto. Observe:

  1. Estruturalmente, o romance é composto de uma narrativa principal , o próprio romance realista-naturalista A ilustre casa de Ramires, tendo como encaixe uma novela histórica escrita pela personagem protagonista: A Torre dos Ramires, ao mesmo tempo em que tal romance é escrito. Para escrever sua novela, Gonçalo toma como base um poemeto épico e por toda a narrativa principal, toca-se um fado, o Fado dos Ramires.
  2. A narrativa principal tem como tempo cronológico um período aproximado de 5 anos e coincide com o início da escritura novela histórica A Torre de D. Ramires, a qual começa a ser escrita no mês de junho de 1896, e termina quatro anos e pouco depois, quando Gonçalo retorna de uma aventura na África. Ou seja: ao mesmo tempo em que o narrador escreve a narrativa principal, sua personagem Gonçalo Ramires escreve a novela história.
  3. Para escrever sua novela história, ambientada no século XIII, Gonçalo Ramires toma como fonte um poemeto histórico chamado O castelo de Santa Irinéia, posto em versos por um tio materno, Duarte, em 1846, cinqüenta anos, portanto, antes do narrador ambientar sua narrativa principal.

"Seu tio Duarte, irmão de sua mãe ( uma senhora de Guimarães, da casa das Balsas), nos seus anos de ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua carta de bacharel e o seu alvará de delegado, fora poeta _ e publicara no Bardo, semanário de Guimarães, um poemeto em verso solto, o Castelo de Santa Irinéia , que assinara com duas iniciais D.B. Esse castelo era o seu' (p.15).Gonçalo é bacharel em Direito e o narrador o descreve da seguinte maneira:

" (...) era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal." (p. 9)

"E foi então que Gonçalo Mendes Ramires, moço muito afável, esbelto e louro, de uma brancura de sã porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos..."(p. 11)

 

Os 12 capítulos, um a um:

Primeiro

Gonçalo Mendes Ramires, como vimos, tem 25 anos, é advogado e leva uma vida sem grandes sustos; acovardado e fraco, mesmo vivendo na Torre dos Ramires, propriedade dos antepassados, passa por situação financeira ruim porque teve que assumir pagamento de empréstimos do pai, quando este morrera.

Sua ambição é grande, no entanto: escrever uma novela histórica . Para tanto, a fim de não desenvolver esforços intelectuais demasiados, resolve apoderar-se das idéias contidas no poemeto épico escrito por seu tio Duarte.

É vaidoso e mais ainda se lhe acende a vaidade quando José Lúcio Castanheiro , editor dos ANAIS, garante-lhe que ele representa toda a tradição portuguesa:

" – Assim, vocês! Por essa história de Portugal fora, vocês são uma enfiada de Ramires de toda a beleza." (p. 14)

Para escrever a novela histórica vai se basear, como já vimos, no poemeto épico de seu tio Duarte, escrito em pleno Romantismo.

Mas pequenas coisas o atrapalham: Rosa, sua cozinheira, anuncia-lhe mais uma das bebedeiras de Manuel Relho "que amanhava a quinta por oitocentos mil-réis de renda". Gonçalo decide então alugá-la a outro, o José Casco, que lhe toma um dia inteiro inspecionando-lhe as terras. Por fim, aluga-a por novencentos e cinqüenta mil-réis.

Não mais consegue escrever e abandona o intento:

"Atirou, num repelão, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto nos dentes; e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta, num tédio imenso da sua obra, daqueles confusos e enredados paços de Santa Irinéia, e dos seus avós, enormes, ressonantes, chapeados de ferro, e mais vagos que fumos." (p. 18)

Dois

Às cinco horas, Gonçalo , que passara o dia inteiro preguiçando, "com uma vaga dor nos rins" , estirado num divã, resolveu daria uma caminhada pela fresca estrada dos Bravais.

"Depois numa visita ( devida já desde a Páscoa) ao velho Sanches Lucena, eleito novamente deputado, nas eleições gerais de abril, pelo círculo de Vila-Clara. Mas a jornada à Feitosa , à quinta do Sanches Lucena, demandava uma hora a cavalo, desagradável com aquela teimosa dor nos rins que o filara na véspera à noite, depois do chá, na assembléia da vila. E, indeciso, arrastava os passos no corredor, para gritar ao Bento e à Rosa que lhe subissem uma limonada, quando, através das varandas abertas, ressoou um vozeirão de grosso metal, que gracejando mais se engrossava, rolava pelo pátio, numa cadência cava de malho malhando:

- Oh sô Gonçalo! Oh sô Gonçalão! Oh sô Gonçalíssimo Mendes Ramires!..."

Era o Titó, Antônio Vilalobos, parente afastado e colega de academia.

Gonçalo o admirava pela independência:

"E Gonçalo, desde estudante, amara sempre aquele Hércules bonacheirão, que o seduzia pela prodigiosa força, a incomparável potência em beber todo um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independência, uma suprema independência, que, apoiada ao bengalão terrífico e com as suas oito moedas dentro da algibeira, nada temia e nada desejava nem da terra nem do céu." ( p. 19)

Gonçalo convida-o para o passeio e Titó convence-o a ir ao Gago, com João Gouveia e Videirinha, a fim de que comam um peixe. Mas insiste em estar doente e encomenda que o Gago arranje-lhe um franguinho assado, coisa pra doente.

Ao sair o amigo, inspeciona-se no espelho:

"No quarto, em mangas de camisa, diante do espelho, um imenso espelho rolando entre colunas douradas, estudou a língua que lge parecia saburrosa, depois o branco dos olhos, receando a amarelidão de bílis solta. E terminou por se contemplar na sua feição nova, agora que rapara a barba em Lisboa, conservando o bigodinho castanho, frisado e leve, e uma mosca um pouco longa, que lhe alongava um pouco mais a face aquilina e fina, sempre de uma brancura de nata. O seu desconsolo era o cabelo, bem ondeado, mas tênue e fraco, e, apesar de todas as águas e pomadas, necessitando já risca mais elevada, quase ao meio da testa clara.

- É infernal! Aos trinta anos estou calvo... "( p. 20)

Pede sal de frutas a Bento, velho servidor do paço. Pede-lhe que o dê também a si e à Rosa, como coisa da moda, que deve ser servido com água tépida.

Indaga-se sobre a vida, os conselho da tia Louredo, em Lisboa: "Não se enterre na província!" Mas como não se enterrar na província?

"- Não! Não se enterraria na província, imóvel sob a hera e a poeira melancólica das cousas imóveis, como a sua torre!... Mas vida elegante em Lisboa, entre a sua parentada histórica, como a agüentaria com o conto e oitocentos mil-réis de renda que lhe restava, pagas as dívidas do papá? E depois realmente vida em Lisboa só a desejava com uma posição política, cadeira em São Bento, influência intelectual no seu partido, lentas e seguras avançadas para o poder. E essa, tão docemente sonhada em Coimbra, nas fáceis cavaqueiras do Hotel Mondego, muito remota a entrevia! Quase inconquistável, para além do muro alto, sem porta e sem fenda!... Deputado? Como?" ( p. 21)

E vai ao jantar , onde come com gosto a tainha e o frango, acrescida de ovos com chouriço, discute política e ouve Videirinha tocar.

No meio da noite, acorda em meios a pesadelos, morto de sede.

Levanta-se, toma sal de frutas e volta a dormir.

E na manhã seguinte, retoma a novela que mal começara.

Três

"Durante a longa semana, nas horas de calma, o fidalgo da torre trabalhou com aferro e proveito. E nessa manhã, depois de repicar a sineta no corredor, duas vezes o Bento lhe empurrara a porta da livraria, avisando o senhor doutor "que o almocinho, assim à espera, certamente se estragava". Mas de sobre a tira de almaço, Gonçalo rosnava "já vou!"- sem despegar a pena, que corria como quilha leve em água mansa, na presa de terminar, antes do almoço, o seu capítulo I." ( p.35)

O capítulo I da novela de Gonçalo narra a chegada de Mendo Pais - genro de Tructesindo - casado com D. Teresa, filha mais velha deste, à torre de Santa Irinéia. Mendo Pais veio rogar ao sogro que não vá a Monte-Mor com a finalidade de apoiar a Senhora D. Sancha e as Infantas contra D. Afonso ( marido e pai delas, respectivamente ).

Mendo Pais informa a Tructesindo que, num local chamado Canta-Pedra, Lobo Baião, o Bastardo, espera-o para a luta, a fim de detê-lo em seu intento. Mas não consegue convencer o sogro e lamenta por isso:

"- Ide por certo a Monte-Mor, Senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado de paz e boa avença, persuadir vossa senhora D. Sancha e as senhoras infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu pai e seu rei!

O enorme senhor de Santa Irinéia parara, pousando no genro os olhos duros, sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas e brancas como sarças em manhã de geada:

  • Irei a Monte-Mor, Mendo Pais , mas levar o meu sangue e dos meus para que justiça logre, quem justiça tem.

Então, Mendo Pais, amargurado, ante a heróica teima:

  • Maior dó, maior dó! Será bom sangue de ricos homens, vertido por más desforras... Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta-Pedra vos espera Lobo Baião, o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem lanças! (...)

  • Só um cuidado me pesa. E é que , nesta jornada, senhor meu sogro, ides ficar de mal com o reino e com o rei.
  • Filho e amigo! De mal ficarei com o reino e com o rei, mas de bem com a honra e comigo!" (p. 37)

Aqui, nesta passagem, percebe-se bem o herói e suas perferências de agir eticamente. O último diálogo, Gonçalo Mendes Ramires vai repeti-lo com satisfação, imaginando as glórias futuras obtidas com o livro, nos Anais.

O capítulo, para ser concluído, custa muito esforço a Gonçalo:

"Ah! E que canseira lhe custara, durante esses dias, esse copioso capítulo, tão difícil, com o imenso castelo de Santa Irinéia a erguer; e toda uma idade esfumada da História de Portugal, a condensar em contornos robustos; e a mesnada dos Ramires a apetrechar, sem que faltasse uma ração nos alforjes, ou uma garrucha, sobre o dorso das mulas! Mas, felizmente, na véspera já se movera para fora do castelo o troço de Lourenço Ramires, em socorro de Monte-Mor, com um vistoso coriscar de capelos e lanças em torno do pendão tendido." (p.35)

 

Mas, quem fora Tructesindo?

O próprio narrador nos informa, à página 15:

"(...) E o poemeto cantava, com romântico garbo, um lance de altivez feudal em que se sublimara Tructesindo Ramires, alferes-mor de Sancho I, durante as contendas de Afonso II e as senhoras Infantas."

Desde cedo Gonçalo estivera à banca de trabalho a escrever. Estava , pois, esfalfado , "mas sentia nele realmente toda a alma de um Ramires, como eles eram no século XII, de sublime lealdade, mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando para a manter, contentamento e vida! "

Chega aos paços o Pereira, o Pereira Brasileiro, homem que herdara uma pequena fortuna no Pará. Quem alugar-lhe a Santa Irinéia. A princípio, Gonçalo diz ter acertado o negócio com o Casco, mas o homem lhe oferece um conto e cinqüenta mil-réis... e o Ramires aceita, fechando o negócio, esquecido que dera a palavra a outro, esquecido do que acabara de escrever sobre nobres comportamentos.

Depois sai para visitar o Senhor Sanches Lucena e dona Ana; vai bem vestido, com roupa nova montar e luvas de pelica. Mas não encontra o casal. Na saída, dá esmola ao velho que lhe abre o portão, e encontra pelo caminho um pobre homem que, mancando e cheio de dificuldades, anda com o tornozelo em chagas que não saram, sangrando.

Gonçalo desmonta e faz o homem , Manuel Solha, subir na égua. O pobre lavrador não quer aceitar:

"- Mas isto é a volta do mundo... Eu aqui, na água do fidalgo! E o fidalgo, o Senhor Gonçalo Ramires, da torre, a pé pela estrada!" ( p.44)

Ia levando o homem ferido , o bom Gonçalo... quando ao desembocar na Bica-Santa, encontra o casal que fora visitar. Ambos se espantaram, mas Gonçalo estendeu-lhes a mão e os cumprimentou. Explica-lhes o motivo de trazer à rédea o pobre lavrador. D. Ana olha-o com admiração e descobrem, ambos, depois, que Gonçalo traz a luva ensanguentada. Sangue do lavrador que o Ramires da torre ajudara a subir na égua... D. Ana e o marido acabam por julgá-lo um bom samaritano.

Lucena conta a Ramires sobre antepassados que ele desconhece. E até aponta-lhe uns túmulos na estrada de Santa Maria do Craquede, que passa por detrás do moinho:

"- E agora acolá, detrás do olival – concluiu Sanches Lucena com respeito – é sítio seu, Senhor Gonçalo Mendes Ramires...

  • Meu?
  • De vossa Excelência, quero dizer, ligado à casa de Vossa Excel6encia. Pois não reconhece?... Além , por trás do moinho, passa a estrada de Santa Maria do Craquede. São os túmulos dos seus antepassados... Passeio que eu também às vezes faço, e com gosto. Ainda há um mês visitamos detidamente as ruínas. E acredite que fiquei impressionado! Aquele bocado de claustro tão antigo, os grandes esquifes de pedra, a espada chumbada à abóbada por cima do túmulo do meio... É de comover! E achei muito bonito, muito filial, da parte de Vossa Excelência, o ter sempre aquela lâmpada de bronze acesa, de noite e de dia...

Gonçalo engrolou um murmúrio risonho – porque não se recordava da espada, nunca recomendara a lâmpada. Mas Sanches Lucena, agora, suplicava um precioso favor ao Senhor Gonçalo Mendes Ramires. E era que Sua Excelência lhe concedesse a honra de o conduzir na carruagem à torre... Alvoroçadamente Gonçalo recusou. Nem podia! Combinara com o homem da perna dorida esperar ali, na Bica, pela sua égua." (p.49)

Gonçalo recusa. Despede-se do homem que, ainda, está extasiado:

"- Porque vi uma cousa que poucas vezes se terá visto: o maior fidalgo de Portugal, a pé pela estrada de Corinde, levando à rédea no seu próprio cavalo um cavador de enxada!" (p.49)

O "maior fidalgo de Portugal", no entanto, acha mesmo uma maçada o que lhe aconteceu, mas sente-se feliz que o Lucena veja-o com bons olhos. Sabe que os políticos saberão de seu exemplo pela boca do velho.

Logo chega o filho do Solha com a égua. Gonçalo tem pressa porque, em casa, esperava-o o Titó para o jantar.

Mas, mal entra nas terras da torre, divida um rapaz do Gago que vem lhe trazer um recado do amigo: não virá esta noite.

Gonçalo descobre que ele vai a outra festa e inventa um recado que manda pelo moço: pena que à sua casa viria hoje a senhora Ana Lucena...

Mais tarde, divida o vulto de Titó, espionando pelo jardim. Ri-se da mentira.

 

 

Quatro

Gonçalo vai a Oliveira para comemorar o aniversário da irmã Gracinha, leva-lhe flores e um guarda-sol de presente. Surpreende o governador civil, André Cavaleiro, a olhar para os solar dos Barrolos.

Seu cunhado José Barrolo, gordo e gentil, vem recebê-lo com amplas demonstrações de carinho, seguido de Gracinha, "viva e linda flor de olhos esverdeados".

Gonçalo cobra deles um sobrinho, um menino que desse continuidade ao nome secular dos Ramires. E que se chamasse Tructesindo... Barrolo se espanta:

"- O quê? Turtesinho? Não! para tal sorte não o fabrico eu!"

E se refere ao governador Cavaleiro como "um burro feio em cima de um cavalo bonito..."

O cunhado se diverte com aquilo e diz que contará a comparação no clube, para que as pessoas se divirtam.

A irmã pede-lhe notícias da Torre , de Bento e de Rosa, do Titó. Gonçalo fica completamente fora de si quando sabe que o Titó fora visto a passear diante da casa dos Lucena. Barrolo fala D. Ana e o cunhado pede que cale-se diante da irmã, "flor das Graças...", com assuntos de devassidão. O cunhado insiste que Gonçalo gostaria de tê-la: "unas verdes, uvas verdes!". .. Mas Gonçalo diz que não a teria nem que ela viesse a se oferecer.

Gracinha corta o assunto perguntando sobre o estômago do irmão. Conta sobre os ataques de reumatismo do padre Soeiro. Gonçalo diz à irmã que anda a escrever uma novela histórica para os Anais:

"- Um romance pequeno, uma novela, para os ANAIS DE LITERATURA E HISTÓRIA, uma revista que fundou um rapaz meu amigo, o Castanheiro...É sobre um fato histórico da nossa gente... Sobre um avô nosso, muito antigo, Tructesindo.

  • Tem graça; o que fez ele?
  • Horrores. Mas é pitoresco... E depois o Paço de Santa Irinéia, no século XII, em todo o seu esplendor! Enfim, uma bela reconstrução do velho Portugal e sobretudo dos velhos Ramires. Hás de gostar... Não há amores; tudo guerras. Apenas, muito remotamente, uma das nossas antepassadas, uma D. Menda, que eu nem sei se realmente existiu. Tem seu chic, hein?... E tu compreendes, como eu desejo tentar a política, preciso primeiramente aparecer, espalhar o meu nome..."

É para isso que Gonçalo está escrevendo sua novela: para ascender socialmente, entrar na política. Para isso, até reinventa um passado histórico, uma d. Menda que pode sequer ter existido.

Anuncia ao cunhado e à irmã que pretende ir para a África.

Desgostoso, ouve de novo, enquanto está com o cunhado no quarto, a fim de se lavar, que o governador ronda a casa da irmã. Sabe que ela cultiva uma certa ternura pelo Cavaleiro "bem enterrada, ainda vivaz, fácil de reflorir"e apressa-se em fazer o cunhado entender que deve jogar sobre ele uma bacia com água suja, caso passe lá mais vezes.

Encontra uma prima meio de viés: Maria Mendonça, que virá à noite compartilhar a festa de Gracinha:

"- Oh prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janela...

  • E para mim, primo Gonçalo, que não o via desde a sua volta de Lisboa! ... Pois está mais lindo, assim de bigode...
  • Dizem que estou lindíssimo; absolutamente irresistível! Até aconselho à prima Maria que não se aproxime muito de mim, para não se incendiar."(p.55)

Aparecem ainda o Titó e o João Gouveia.

Gonçalo perde a paciência quando sabe que o Titó é agora freqüentador da casa dos Lucena, que toma chá com torradas com D. Ana e , pior, que acha qualidades ao marido dela.

Assim, felizes e faladores, são surpreendidos pela chegada das irmãs Lousadas:

" As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de toda a maledicência, as tecedeiras de todas as intrigas.(...) Delas surgiam todas as cartas anônimas que infestavam o Distrito."

Os homens se escondem, Gracinha trata de esconder os copos de bebidas.

Dias mais tarde, o tabelião Guedes dá-lhe notícias de que Ricardo Noronha, o pagador de Obras Públicas, fora transferido arbitrariamente pelo governador civil para uma província dos confins do Alentejo. Guedes anuncia que foi por ciúmes da mais velha das irmãs Noronha. E que nenhum jornal denunciara o fato.

Movido de raiva e vingança, Gonçalo escreve à Gazeta do Porto uma carta com o título Monstruoso Atentado! Assinou-se Juvenal, e no artigo, ressaltou que o governador atentava contra a moral e os bons costumes, a história de Portugal.

Conta ao cunhado o que o Guedes lhe dissera e conta também que fizera a crítica ao governador. Graça, ouvindo a notícia, desaparece no interior da casa, mas Gonçalo está feliz:

"- Aquele velhaco! Para cavalos e para mulheres, não há outro em Oliveiras!"

Cinco

Sobre Oliveira, desabaria a Gazeta do Porto, com a correspondência vingadora, na quarta-feira pela manhã. Mas Gonçalo, medroso, fora para a Torre na terça-feira. Recebeu uma carta do Castanheiro, indagando sobre como andava sua novela, aflito por lançar a revista e voltar, através da narrativa de Gonçalo, a chamar a atenção dos portugueses para a Pátria. Falava em colocar cartezes de anúncio sobre a novela. Em cada esquina, em cada poste. E clamava:

"À obra, pois, meu Ramires, com essa sua imaginação feracíssima!..."(p.69)

A visão dos cartazes que levavam seu nome deleitou o fidalgo da torre. E nessa mesma noite retomou o manuscrito. Iniciava, em meio a uma grande chuva, o capítulo segundo:

"Através delas, e na frescura da madrugada, Lourenço Mendes Ramires, com o troço de cavaleiros e peonagem da sua mercê, corria sobre Monte-Mor em socorro das senhoras infantas. Mas, ao penetrar no vale de Canta-Pedra, eis que o esforçado filho de Tructesindo avista a mesnada do Bastardo de Baião, esperando desde alva ( como anunciara Mendo Pais) para tolher a passagem. – E então, nesta sombria novela de sangue e homízios, brotava inesperadamente, como uma rosa na fenda de um bastião, um lance de amor, que o tio Duarte cantara no Bardo com dolente elegância.

Lopo de Baião, cuja beleza loura de fidalgo godo era tão celebrada por toda a terra de Entre-Minho-e-Douro, que lhe chamavam O Claro Sol, amara arrebatadoramente D. Violante, a filha mais nova de Tructesindo Ramires. Em dia de São João, no solar de Lanhoso, onde se celebravam lides de touros e jogos de tavolagem, conhecera ele a donzela esplêndida, que o tio Duarte, no seu poemeto, lovava com deslumbrado encanto:

Que líqüido fulgor dos negros olhos!

que fartas tranças de lustroso ébano!

E ela, certamente, rendera também o coração àquele moço resplancente e cor de ouro, que, nessa tarde de festa, arremessando o rojão contra os touros, ganhara duas faixas bordadas pela nobre dona de Lanhoso (...) Mas Lopo era bastardo, dessa raça de Baião, inimiga dos Ramires por velhíssimas brigas de terras e preferências desde o Conde D. Henrique..."

A novela continua. D. Violante vai para o Mosteiro de Lorvão... Agora em plena guerra, o Bastardo Baião espera pelos Ramires e sua gente...

O narrador enfatiza o encontro e a luta. O Bastardo diz a Lourenço que vai mandar o corpo dele ao pai, depois da luta. E uma grande luta se trava:

"Trepando por cima dos corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de ferro, o valente moço arremete, a golpes arquejados, contra as pontas reluzentes que recuam, se furtam... E, triunfantes, redobram os gritos de Lopo Baião:

  • Vivo, vivo! Tomade-o vivo!
  • Não, se me restar alma, vilão! – rugia Lourenço." (p.72)

Mas Lourenço é ferido cai cativo de Baião, que lamenta:

"- Ah! Lourenço, Lourenço, grande dor, que bem pudéramos ser irmãos e amigos!"

É assim, com a queixa de Baião e a prisão de Lourenço, que Gonçalo fecha, depois de trabalho de três dias, o segundo capítulo de sua novela.

Pensando sobre os fatos heróicos vividos por seus ancestrais, o fidalgo da torre imagina o quanto foram grandes. Havia chovido e ele, vestido com simplicidade, põe-se a passear nas cercanias da Torre.

E encontra-se com José Casco dos Bravais, a quem dera a palavra de alugar as terras e , depois, de olho no que lhe oferecera o Pereira Brasileiro, descumprira-a. Jose Casco estava possesso e desafia o fidalgo. Gonçalo está aterrorizado com o homem que grita e esbraveja. Covarde, acaba fugindo.

Possesso, desconta sobre os seus trabalhadores a raiva que sentia de si mesmo. Sentia-se mal, covarde, justamente quando erguia bem alto o nome da família. mente para seus solarengos dizendo que o Bravais o perseguira com uma foice, logo após se contradiz e conta a Bento que quase fora morto por um tiro de espingarda.

Resolve ir à Vila denunciar João Casco ao administrador do Concelho. Armado, acompanhado de outros dois rapazes, imagina a foice, a vergonha. Parte para a Vila e fica sabendo que o Sanches Lucena havia morrido de pouco, de angina pectoris.

Conversam sobre o pobre homem, que aos 60 anos parecia ter setenta, por ter se casado com "fêmea forte" de 28 anos, agora sua herdeira de cerca de 200 contos.

Quem, agora, iria substituir o Sanches Lucena na chefia política? O administrador anuncia que deveria ser um homem indicado pelo governador civil, o Cavaleiro, que Gonçalo tanto odiava... e a quem denunciara no jornal.

Mas o administrador do Concelho "cravando em Gonçalo os olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa idéia, quase uma inspiração, o iluminasse..."pareceu ter uma ótima idéia:

"- Oh, Gonçalo, ouça lá... Você agora tinha uma ocasião soberba! Você, se quisesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Vila-Clara!

O fidalgo da torre estacara – como se uma estrela de repente se despenhasse na rua mal alumiada.

  • Ora , escute! – exclamou o administrador, largando o braço de Gonçalo, para desenrolar mais livremente a sua idéia. – Você não tem compromissos sérios com os regeneradores. Você deixou Coimbra há um ano; tenta agora a vida pública; nunca fez ato definitivo de partidário. Lá uma ou outra correspondência para os jornais, histórias!...
  • Mas...
  • Escuta, homem! Você quer entrar na política? Quer. Então, pelos históricos ou pelos regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionais, ambos são cristãos... A questão é entrar, é furar. Ora, você agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o pode embarçar? As suas inimizades particulares com o Cavaleiro? Tolices! "(p.80)

Era a sua vez. O administrador do Concelho insistia que "Pelo círculo de Vila-Clara sai deputado quem o Cavaleiro mandar..." João Gouveia, que também lá estava, revelou ao amigo que o governador há muito tentava restabelecer os laços da antiga amizade que tivera ao fidalgo da Torre.

Gouveia vai mais além: revela que o Cavaleiro dissera-lhe em segredo: "Tem tudo Grande nome, grande talento, a sedução e a eloqüência... Tem tudo! E eu conservo pelo Gonçalo todo o carinho antigo, gostava ardentemente, ardentissimamente, de o levar às Câmaras..."

O fidalgo, revela a ambos, cínico, covarde e ambicioso:

"- Eu , na realidade, também conservo a antiga simpatia pelo Cavaleiro. E certas questões íntimas, adeus!... Envelheceram, caducaram, tão obsoletas hoje como os agravos dos Horácios e dos Curiácios... Como você lembrou há pouco, com razão, nunca se ergueu entre nós morte de homem. Que diabo! Eu fui educado com o Cavaleiro; éramos como irmãos..." (p.81)

Incitado a procurar o governador e reestabelecer os elos da antiga amizade, toma como pretexto ir lá queixar-se de José Casco.

Sozinho, segue pensando: "Eis a fenda facilitadora. Para além reluziam todas as belas realidades, que desde Coimbra apetecera! Mas... – Mas no atravessar a fenda fragosa certo se rasgaria a sua dignidade ou se rasgaria o seu orgulho. Que fazer?"

E havia Gracinha. ir ao encontro do Cavaleiro era abrir as portas para que ele pudesse estar perto dela. Pensava , no entanto, que sua irmã jamais facilitaria um horror desses. Pensou no seu orgulho e, por fim, sossegou ( covardemente) imaginando que o país precisava dele.

E foi, no dia seguinte, falar com o governador. Assustados, os moradores de Vila-Clara esperavam o pior. Mas:

"A todos o caso parecia "de estrondo"! E subitamente um silêncio esmagou a Arcada, trespassada de emoção. Na varanda, entre as vidraças abertas vagarosamente, aparecera o Cavaleiro com o fidalgo da torre, conversando, risonhos, de charutos acesos."

Estava tudo esquecido: cartas para os jornais, inimizade antiga, tudo pela reconciliação.

E no dia seguinte recebeu um telegrama do governador, confirmando que o Ministro o aceitara...

Para comemorar tal feito, põe-se a escrever, então, o terceiro capítulo de sua novela, voltando aos feitos históricos de seus antepassados.

Em meio à prisão de Lourenço, no entanto, ocorre-lhe um fato: a mulher de Casco, banhada em lágrimas e carregando consigo as crianças, vem pedir a Gonçalo que ajude a soltar o marido, preso injustamente como sabemos.

Uma das crianças está febril e Gonçalo teima que a mãe a deixe na Torre, a fim de tomar conta dela. Depois de se certificar, mais tarde, que o menino dormia bem, encontra uma carta que atribui às irmãs Lousadas, sem assinatura, vinda de Oliveira, onde lê que ele fez bem em perdoar ao antigo amigo, uma vez que o Cavaleiro sempre olhava para o solar dos Barrolos com carinho... Estava feita a intriga contra a sua irmã Gracinha?

Volta ao trabalho, imaginando o Baião, Lourenço... mas eis que Videirinha aparece, cantando e tocando o Fado dos Ramires... e o saúda:

"-Viva o deputado por Vila-Clara! Viva o ilustre Deputado Gonçalo Ramires!"(p.97)

Titó aparece mais tarde e estranha em vê-lo sem farda. O fidalgo diz que deputados não usam fardas... mas Titó observa que se ele a usasse seria... um libré de lacaio. Farda de empregado... que votará no que eles indicarem.

Enquanto Gonçalo se envergonha, o Videirinha canta:

-Velha casa de Ramires,

honra e flor de Portugal!

 

Seis

Gonçalo vai a Corinde, almoçar na casa de Cavaleiro. É recebido por ele , que ainda estava de cuecas, com abraços. Fica sabendo, então, que um dos "donos do partido"não gostara da idéia de tê-lo como deputado. O fidalgo fica aflito, mas vê em Cavaleiro uma segurança quanto a seus propósitos. E ambos relembram os bons tempos, o tempo em que André e Gracinha andavam em namoros.

André insiste em ir a Oliveira em companhia do fidalgo, à casa do cunhado, a fim de assegurar votos e iniciar campanha política.

Gonçalo sabe que isso significa proximidade com Gracinha, mas consente.

Em Oliveira, Cavaleiro não quis entrar na casa de Barrolo e deixa para o dia seguinte o encontro com ele. Assim que entra na casa da irmã, o cunhado, esbaforido, pede-lhe explicações :

"- Uma cousa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena morreu, como vocês sabem. Ficou vago o círculo de Vila-Clara. É um círculo por onde só pode sair um homem da terra, com propriedade, com influência. O governo imediatamente me mandou perguntar, pelo telégrafo, se eu me desejava propor...Ora, eu, no fundo, estou de bem com os históricos; sou amigo do José Ernesto... Estimava entrar na Câmara... aceitei!"( p. 106)

Gonçalo pede ao cunhado que também faça as pazes com o governador civil, no que é aplaudido. E quando ambos se encontram, Barrolo convida André Cavaleiro para um jantar.

O fidalgo da torre recomenda ao cunhado que, ao jantar, não use casaca a fim de que se pareça jantar íntimo. Pede à irmã que use um vestido leve:

"-Ouviste, Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que sorria aos hóspedes..." (p.108)

O padre, Gouveia, todos jantam alegremente. Falam sobre a solteirice de Gonçalo e a prima Maria Mendonça sugere que há uma linda senhora interessada nele. Curioso, o fidalgo pergunta se é bonita:

"-Bonita? – exclamou D. Maria – É uma das mulheres mais formosas de Portugal!

Espantado, Gonçalo lançou o nome:

  • A D. Ana Lucena!
  • Por quê?
  • Porque mulher tão formosa, vivendo nestes sítios, e tão conhecida da prima que lhe faz confidências, só a D. Ana.

D. Maria, ajeitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de seda preta, sorria:

-Talvez seja, talvez seja..."

D. Ana, Gonçalo sabia, significava também riqueza: duzentos contos a mais...

Brindam à antiga amizade. Logo, vem uma valsa e André Cavaleiro convida Gracinha a dançar.

Enquanto Gonçalo e a prima Maria ficam escarlates, Barrolo saúda os dois dançarinos:

"Bravo! Bravo! Lindamente!... Bravíssimo!" ( p. 114)

O narrador é crítico ao extremo. Enquanto a novela sobre a Torre dos Ramires louva os heróis fidalgos, a narrativa principal caminha no sentido contrário e nos revela um Ramires frouxo, ambicioso, acovardado.

Sete

Nesse episódio , José Casco vem pedir desculpas ao fidalgo e agradecer a ele o que fizera pela mulher, pelo filho doente. Gonçalo aproveita para justificar-se da fuga covarde no dia do "ataque". Mente, dizendo que estava armado e que tivera medo de perder a razão, atirar contra José.

Visita os poderosos um a um a fim de angariar votos que o tornem deputado, o que contraria o amigo João Gouveia que não quer vê-lo entre os importantes do lugar.

Gonçalo resolve escrever uma carta ao governador, pedindo-lhe conselhos, uma vez que não consegue aumentar sua popularidade:

"Ora se todas estas cousas tão naturais sempre as fiz naturalmente, desde rapaz, sem que me conquistassem influência sensível... Necessito, portanto, que essa querida autoridade me empurre com seu braço possante e destro..." (p.117)

Aos poucos, vai recebendo votos das pessoas: lavradores renomados:

"Para o fidalgo? Pois isso está entendido! Ainda que se votasse contra o governo, que é pai."- E em Vila-Clara, com o Gouveia, Gonçalo deduzia destas ofertas tão acaloradas "a inteligência política da gente do campo."

A prima Maria Mendonça faz manobras para aproximá-lo de D. Ana Lucena. Conversa com o amigo Gouveia sobre D. Ana, inventando desculpas, histórias de que ela , em breve, estaria se casando. Gouveia fica possesso, Videirinha defende-a.

No domingo em que passeará com D. Ana, experimenta muitas gravatas e, por ficar indeciso quanto a roupa que usará, acaba chegando atrasado ao encontro com as duas mulheres. A prima o critica. Vão os três visitar os túmulos e , diante de um, rachado, conta uma história de um avô que ali se enterrara.

Nota que D. Ana parece ter voz mais agradável, queixa-se da solidão, que ainda há de ficar solteiro.

E quando as mulheres partem, resolve voltar ao túmulo, mas, medroso, põe-se a fugir dali:

" Então Gonçalo sentiu a desolada solidão que o envolvia, o separava da vida, ali desgarrado, e sem socorro entre a poeira e a alma errante de seus avós temerosos! E de repente estremeceu, no arrepiado medo de que outra tampa estalasse com fragor e através da fenda surdissem lívidos dedos sem carne! Repuxou desesperadamente a égua pelo muro desmantelado, nas ruínas da nave pulou para o selim, e varou num trote o portal, galgou o adro com ânsia – só sossegou ao avistar, ao fim do pinhal, a cancela do caminho de ferro aberta, e uma velha que a passava, tangendo o seu burro carregado de erva."(p.130)

Oito

Envolvido com a política e desejando ardentemente o poder, Gonçalo havia se esquecido da novela histórica sobre seus antepassados. Castanheiro, no entanto, escreve-lhe uma carta onde cobra os três capítulos iniciais da novela. E avisa ao amigo que se não chegassem os originais até outubro, teria que publicar um drama de Nuno Carreira, em um ato, intitulado Em Casa do Temerário :

"Imagine!... Está claro, o chic supremo seria Tructesindo Mendes Ramires, contado pelo nosso Gonçalo Mendes Ramires! Mas, pelo que vejo, esse chic supremo será impedido por uma indolência suprema..."

Ferido nos brios, Gonçalo lança-se à escrivaninha, anunciando que talvez nem almoce naquele dia. Não sairia de lá enquanto não terminasse o terceiro capítulo sobre seu avô Tructesindo.

O fidalgo, devaneando, imagina que o Bastardo vai até Tructesindo e diz que quer falar com ele. Acrescenta, ainda, que tem como prisioneiro Lourenço e que, para libertá-lo, quer a mão de D. Violante.

Lourenço grita ao pai que não, que não a conceda.

Diante da negativa daquele senhor, Baião crava o punhal na garganta do infeliz Lourenço Mendes Ramires. E depois, entrega o corpo ao pai que o recolhem.

"Depois, foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chão as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos – e atiraram pelo terreiro, como lebres em clareira, atrás do monge que se agachava agarrado às crinas da mula. Numa curta desfilada o Bastardo, os seis cavaleiros, gritando o alarme, mergulharam no arraial, que estacara ao Cruzeiro. Um tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo enublada em pó e sumida para além do arvoredo, num fugidio coriscar de capelinas e de lanças apinhadas." (p.135)

Era a hora da vingança...

"Tructesindo descia, lento e rígido. E as secas brasas dos seus olhos mais se incendiam, enquanto, através do dorido silêncio, se acercava do corpo de seu filho. Diante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida mão que pendia; e, junto à face manchada de sangue e terra, segredou, de alma para alma, num abafado murmúrio que não era de despedida mas de alguma suprema promessa, e que findou num beijo demorado sobre a testa, onde uma réstia de sol rebrilhou, dardejada entre as folhas da aveleira. Depois, erguido num arrebate, atirando o braço como para nele recolher toda a força da sua raça, gritou:

  • E agora, senhores, a cavalo, e vingança brava!

(...)

  • Muros de Santa Irinéia, não vos torne eu a ver, se em três dias, de sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor Baião!" ( p.136)

D. Ana manda a Gonçalo um cesto de pêssegos muito bonitos. Ele pede a Bento que saia e deixe a cesta sobre a cadeira. Imagina que dentro, ao fundo, encontre um bilhete da senhora. Inútil, nada há além de folhas de parreira.

No dia seguinte, recebe a visita do Visconde de Rio-Manso, que lhe oferece "na freguesia de Canta-Pedra o seu préstimo e os seus votos...", recordando ao fidalgo um episódio ocorrido anos antes, com a neta: a bola fora para a rua, além das grades, e o fidalgo a recolhera, entregando-o à menina que, pelo favor, lhe entrega um cravo.

No dia seguinte, Gonçalo manda-lhe uma cesta de belas rosas, acompanhada de um bilhete: "Em agradecimento de um cravo, rosas à senhora D. Rosa."

Era um dia feliz: escrevera um pouco, recebera um presente de D. Ana e o velho Visconde viera oferecer-lhe apoio. Resolvei ir a Oliveira. Mas ao chegar, não encontra nem o Barrolo, nem o padre e sequer Gracinha que descera há pouco, de chapéu, para a Igreja das Mônicas.

Para a tristeza de Gonçalo, supreende a irmã e o Cavaleiro em um encontro de amor. Eles não o vêm:

"E então uma outra idéia o varou como uma espada – e tão dolorosa que recuou com o terror da beira do mirante, de onde ela perversamente o assaltara. Já porém uma desesperada curiosidade o agarrara, o empurrava – e colou a face à persiana com a cautela de um espião. O mirante recaíra em silêncio – Gonçalo temia que o traíssem as pancadas do seu coração... Santo Deus! De novo o murmúrio recomeçara, mais apressado, mais turbado. Alguém suplicava, balbuciava: "Não, não, que loucura!"- Alguém urgia, impaciente e ardente: "-Sim, meu amor! Sim, meu amor!"E a ambos os reconheceu – tão claramente como se a persiana se erguesse e por ela entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era Gracinha! Era o Cavaleiro!"(p.140)

Põe-se imediatamente em fuga e quando o relógio da Piedade batia sete horas, atirou-se à carruagem, foi embora para a torre abatido, bem sumido e esmagado.

Nove

Críspola, uma desgraçada viúva que morava perto da torre morrera e deixara filhos ainda pequenos. A mais velha trabalhava com Rosa na Torre, os rapazes tinham função humildes. Gonçalo fica furioso quando sabe que Rosa escrevera a Gracinha, em Oliveira, pedindo-lhe que recebesse uma das pequenas. O fidalgo insiste que a torre é grande e pode abrigar mais um.

Barrolo escreve-lhe uma carta falando sobre a visita inesperada e narra-lhe que, desde então, Gracinha anda muito nervosa.

Gonçalo responde secamente: "Negócios". E depois, lembrando-se de que deixara na gaveta do quarto que ocupava em Oliveira o manuscrito da novela, manda um recado ao padre Soeiro para que "entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos senhores..."

"Entre a Torre e os Cunhais só desejava separação e silêncio.

E nos encerrados dias que passou na torre ( sem se arriscar a Vila-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome já andasse rosnada pelo estanco do Simões ou pelo armazém do Ramos), não cessou de vibrar numa cólera espalhada que a todos varava... Cólera contra a irmã que, calcando pudor, altivez de raça, receio dos escárnios de Oliveira, tão fácil e estouvadamente como se calcam as flores desbotadas de um tapete, correra ao mirante, ao macho da bigodeira, apenas ele lhe acenara com o lenço almiscarado. Cólera contra o Barrolo, o bochechudo bacoco, que empregava os seus bacocos dias celebrando o Cavaleiro." (p. 142)

Debate-se entre culpas sem fim. Ora culpa o cunhado, ora a irmã, ora Cavaleiro:

"Os dias rolavam – e no espírito de Gonçalo não se estabelecia a serenidade. E sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa intimidade vistosa com o Cavaleiro – tanto pelo cuidado do seu nome, como pela conveniência da sua eleição."

Pôs-se a pensar em casamento com D. Ana, de olho nos duzentos contos da bela viúva:

"- Por que não? Ela claramente lhe mostrava a inclinação, quase consentimento... Por que não casaria com D. Ana?

Sim! O pai carniceiro, o irmão assassino... Mas também ele, entre tantos avós até aos Suevos ferozes, descortinaria algum avô carniceiro; e a ocupação dos Ramires, através dos séculos heróicos, consistira realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos mortos, sombras remotas, pertenciam a uma lenda que se apagava. D. Ana, pelo casamento, subira da populaça para a burguesia. Ele não a encontrava no talho do pai, nem no valhacouto do irmão – mas na quinta da Feitosa, já rica-dona, com procurador, com capelão, com lacaios, como uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a hesitação era pueril – desde que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa e séria. Com esse puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria, para dominar na política, a refalsada mão do Cavaleiro... E depois que vida nobre e completa! A sua velha torre restituída ao esplendor sóbrio de outras eras; uma lavoura de luxo no histórico torrão de Treixedo; as viagens fecundas às terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos não lhes amargava o gozo, como em tantos casamentos ricos, com a sua fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pele relentada... Não! depois do brilho social do dia não o esperava na alcova um monstrengo – mas Vênus."(p. 143)

Manda um bilhete à prima Maria Mendonça,a fim de que esta o ajude em seu intento. Não quis mais ir a Oliveira, o simples pensamento de beijar a face da irmã aonde babujara o Cavaleiro, causava-lhe absoluta repugnância. E não havia notícias sobre a eleição. Gouveia entrara em férias.

Para se ocupar, retomara sua novela histórica.

"Agora era a sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavaleiros, correndo sobre o Bastardo de Baião. Lance dificultoso – reclamando fragor, um rebrilhante colorido medieval. E ele tão mole e tão apagado!... Felizmente, no seu poemeto, o tio Duarte recheara esse violento trecho de bem apinceladas paisagens, de interessantes rasgos de guerra." (p. 144)

Tructesindo sai em busca de Baião, mas esbarra numa ponte quebrada a machado. Vão adiante e encontram três caminhos. Chegam, depois de muita luta, ao arraial do senhor D. Pedro de Castro e pedem agasalho. D. Pedro os trata amistosamente.

Após três manhãs de duro trabalho, termina o capítulo 3, mas não tem certeza de ter feito uma obra que tenha valido a pena.

"Ao rematar este duro capítulo, depois de três manhãs de trabalho, Gonçalo arrojou a pena com um suspiro de cansaço. Ah! já lhe entrava a fartura dessa interminável novela, desenrolada como um novelo solto – sem que lhe pudesse encurtar os fios, tão cerradamente os emaranhara no seu denso poema o tio Duarte, que ele seguia gemendo! E depois, nem o consolara a certeza de construir obra forte. Esses Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses Sabedores, eram realmente varões afonsinos, de sólida substância histórica?... Talvez apenas ocos títeres, mal engonçados em errantes armaduras, povoando enverídicos arraiais e castelos, sem um gesto ou dizer que datassem das velhas idades!" (p.146)

A prima Maria Mendonça dá a Gonçalo notícias de que D. Ana o quer para marido; o fidalgo vai a Vila-Clara atrás do amigo Titó. Conversam ambos e Gonçalo leva Titó para o jantar, queixando-se de uma solidão terrível. Videirinha espera-os, dedilhando o violão e recebe o Ramires com seu Fado:

Quem te verá sem que estremeça,

Torre de Santa Irinéia,

assim tão negra e calada,

por noites de lua cheia...

E acrescentou uma nova quadra:

Que só em Paio Ramires

põe agora o mundo a esperança...

Que junte os seus cavaleiros

E que salve o rei da França!

Gonçalo, ao terminar o jantar, pergunta o amigo o que acha de D. Ana. E acrescenta que vai pedi-la em casamento. Titó estranha, se incomoda e desaconselha. Mas não quer falar o motivo. Despede-se e vai embora, deixando o fidalgo aborrecido.

Mas, retorna imediatamente e diz:

"- Oh, Gonçalo, desce cá abaixo.

O fidalgo rolou pelos degraus com sofreguidão. Para além dos álamos, no luar da estrada, Videirinha afinava o violão. E apenas a face do fidalgo surgiu na claridade da porta, o Titó, que esperava com o chapéu para a nuca, desabafou:

-Oh, Gonçalo, tu ficaste amuado...É tolice! E entre nós não quero sombras. Então lá vai! Tu não podes casar com essa mulher, porque ela teve um amante. Não sei se antes ou depois desse teve outro. Não há criatura mais manhosa, nem mais disfarçada. Não me venhas agora com perguntas. Mas fica certo que ela teve um amante. Sou eu que to afirmo; e tu sabes que eu nunca minto!" (p.152)

Acabava aí o sonho dos 200 contos...

Dez

"Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de que sempre através de toda a sua vida ( quase desde o Colégio de São Fiel), não cessara de padecer humilhações. " (p.153)

Sente-se o mais infeliz e covarde de todos os homens; agora, toda a sua falta de energia e honra se abate sobre ele:

"Ali, no segredo do quarto apagado, bem que podia livremente gemer – ele nascera com a falha , a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza da carne, que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir... A fugir de um Casco. A fugir de um malandro de suíças louras que, numa estrada e depois numa venda o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah, vergonhosa carne, tão espantadiça! "(153)

Faz, de si mesmo, o julgamento cruel e, insone toda a noite, visita a glória e a honra de seus ancestrais:

"Vagarosas, mas vivas, elas cresciam dentre a sombra que latejava espessa e povoada. E agora os corpos emergiam também, robustísimos corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arneses de aço lampejante, embuçados em fuscos mantos de revoltas pregas, cingidos por faustosos gibões de brocado, onde cintilavam as pedrarias de colares e cintos; e armados todos, com as armas todas da história, desde a clava goda de raiz de roble eriçada de puas até ao espadim de sarau enlaçarotado de seda e ouro.

Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade maravilhosa! Sim! Eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós históricos, que, das suas tumbas dirspersas corriam, se juntavam na velha casa de Santa Irinéia nove vezes secular – e formavam em torno de seu leito, do leito em que ele nascera, como a assembléia majestosa da sua raça ressurgida. E até mesmo reconhecera alguns dos mais esforçados que agora, com o repassar constante do poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu "fado", lhe andavam sempre na imaginação...

(...)

Então, por aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu que a sua ascendência toda o amava – e da escuridão das tumbas dispersas acudira para o velar e socorrer na sua fraqueza."(155)

Bento reclama: o patrão está bebendo mais conhaque do que deveria. Gonçalo resolve sair a galopar e pede ao empregado o chicote que este achara no sótão; pensa em visitar o Visconde de Rio-Manso e pára no caminho para pedir informações. Mas surge, de repente, o rapaz das suíças louras, que o desafiara já duas vezes. O primeiro ímpeto é fugir, mas carregado de uma coragem que jamais sentira, como que vinda de seus antepassados, usa o chicote e as patas do cavalo sobre ele.

O rapaz que lhe dava informações deu um tiro para o alto e o fidalgo põe-no também ao chão. Estava furioso, e "sentia uma alegria brutal"como a de seus antepassados. Sentiu que, enfim, usara sua honra, era um homem.

Sabedores do acontecido, Gonçalo recebe as visitas do cunhado, da irmã, repete a história a todos e , em particular, aconselha Gracinha para que não repita os encontros com André Cavaleiro. Esta consente, dizendo que errara.

A cidade toda saúda o fidalgo corajoso que desbancara os valentões. Ã noite, numa assembléia de cidadãos, é recebido como vencedor de batalha ilustre e Videirinha saúda-o com trovas do Fado dos Ramires:

"Os Ramires doutras eras

venciam com grandes lanças,

este vence com um chicote,

vede que estranhas mudanças!

É que os Ramires famosos,

da passada geração,

tinham a força nas armas

e este a tem no coração! "

No dia seguinte aos fatos, recebe uma carta de Cavaleiro, cumprimentando-o pela bravura e até o Visconde de Rio-Manso vem vê-lo, lamentando que o fato tenha ocorrido quando o fidalgo se dispunha a visitá-lo na Varandinha ; D. Ana o convida para ir ter com ela. E Gonçalo trabalha com fervor no último capítulo de sua novela.

Tructesindo, após muita luta, prende Bastardo e seus homens. Decepa deles a cabeça e coloca o inimigo num riacho cheio de sanguessugas, com água pelas virilhas, até que elas lhe roubem todo o sangue. Morre, pois, de morte vil e infamante.

"O desesperado arquejar cessara, e a ânsia contra as cordas, e todo o furor. Mole e inerte como um fardo, apenas a espaços esbugalhava horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado pavor. Depois a face abatia, lívida e flácida, com o beiço pendurado, escancarando a boca em cova negra, de onde se escoava uma baba ensangüentada. E das pálpebras cerradas, entumecidas, um muco gotejava, também como de lágrimas engrossadas com sangue.

(...)

E alguns senhores, estafados com a delonga, afivelando os gibanetes, murmuravam: - "Está morto! Está acabado!" (p. 179)

Onze

Quatro meses se passaram desde que Gonçalo iniciou sua novela histórica A Torre dos Ramires . "Quatro penosos meses desde junho, trabalhara na sombria ressurreição dos seus avós bárbaros. Com uma grossa e carregada letra, traçou no fundo da tira finis. E datou, com a hora, que era do meio-dia e quatorze minutos. Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento esperado. Até esse suplício do bastarde lhe deixara uma aversão por aquele remoto mundo afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós bravios... Mas quê!"(p.181)

Depois do almoço, montou a cavalo para visitar as pessoas influentes do lugar e, a caminho, encontrou o Godinho, um amanuense , que corria com um ofício do governador a fim de prender o valentão de Narcejas, que já estava melhorando no hospital.

Gonçalo reclama: estão quites já, pra que prender o homem?

Vai pedindo votos para o próximo domingo, relembrando nomes, conversando com as pessoas. Apertava mãos, beijava faces sujas de crianças, recebia e dava abraços: em plena campanha eleitoral.

Na cada da irmã, em Oliveira, fica sabendo que há uma novidade a ser-lhe contada, mas esperam que André, o Cavaleiro, lhe conte.

Chega André para o jantar. Gonçalo espera boas notícias relativas à eleição, mas André anuncia:

"El-rei pensou como nós pensamos que um dos primeiros fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia ter um título que consagrasse bem a antiguidade ilustre da casa, e consagrasse também o mérito superior de quem hoje a representa... Por isso, meu querido Gonçalo, já te posso anunciar, e quase em nome de el-rei, que vais ser marquês de Treixedo."

Irritado, Gonçalinho pergunta ao governador com que autoridade o rei de Portugal dá a ele o título:

"O Cavaleiro levantou vivamente a cabeça numa ofendida surpresa:

  • Com que autoridade? Simplesmente com a autoridade que tem sobre nós todos, como rei de Portugal que ainda é, Deus louvado!
  • E Gonçalo, muito simplesmente, sem fumaça ou pompa, com o mesmo sorriso de suave gracejo:
  • Perdão , Andrezinho. Ainda não havia reis em Portugal, nem sequer Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em Treixedo! Eu aprovo os grandes dons entre os grandes fidalgos; mas cumpre aos mais antigos começarem. El-rei tem uma quinta ao pé de Beja, creio eu, o Roncão. Pois dize tu a el-rei, que eu tenho imenso gosto em o fazer, a ele, Marquês do Roncão."(p.186)

Na eleição do domingo, Gonçalo saiu-se vencedor máximo.
"Viva o nosso Ramires, flor dos homens!" era a faixa escrita pelo povo de Vila-Clara; o povo vinha saudá-lo com o Visconde e o José Casco à frente.
"Depois, enquanto jantava, um moço da quinta voltou de Vila-Clara, alvoroçado, contando o delírio, as filarmônicas pelas ruas, a assembléia toda embandeirada, e na casa da Câmara, sobre a porta, um transparente com o retrato de Gonçalo, que a multidão aclamava.
Gonçalo apressou o café. Por timidez, receoso dos vivórios, não ousava correr a Vila-Clara – a espreitar. Mas acendeu o charuto, passou à varanda, para respirar a doce noite de festa, que andava tão cheia de clarões e rumores em seu louvor. E ao abrir a porta envidraçada quase recuou, em outro espanto. A torre iluminara! Das suas fundas frestas, através das negras reixas de ferro, saía um clarão; e muito alta, sobre as velhas ameias, refulgia uma serena coroa de lumes!"(p.187)

A surpresa de Bento e Rosa , dos rapazes da quinta, acende de alegria o coração do fidalgo que, desde a faculdade, jamais pisara de novo na torre. Agora, dá-lhe vontade de visitá-la, a ela que contém toda a história de seus antepassados.

Diante da vitória, pergunta-se se era preciso ter-se apegado ao Cavaleiro para obtê-la.
"Deputado! Pra quê? Para almoçar no Bragança, galgar de tipóia a Ladeira de São Bento, e dentro do sujo convento, escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate, bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das idéias, e distraidamente acompanhar, em sil6encio ou balando, o rebanho de São Fulgêncio..." (p.190)
Em dezembro, saíra o primeiro número dos ANAIS, onde aparece a novela A Torre de D. Ramires. Todos os jornais, amigos e inimigos, partidos de oposição, louvaram a "reconstituição moral e social do velho Portugal heróico".

A amargura de Gonçalo explode: não era mesmo preciso aquele atrelamento ao André Cavaleiro, ele próprio tinha condições de ter feito, sozinho, o seu caminho.
Em janeiro, explode a notícia: hipotecara a torre, arranjara a concessão de um vasto prazo de Macheque, na Zambézia, e parte com o Bento para a África.

 

Doze

Quatro anos passaram "ligeiros e leves sobre a velha torre, como vôos de ave".
Gonçalo regressaria da África em breve. Gracinha e Rosa se esmeravam na limpeza da Torre. Gracinha havia esquecido o André, que, por razões políticas, estava agora em Constantinopla.
Tudo parece estar perfeitamente no lugar: Barrolo queimara o mirante e o divã que nele estava, D. Maria Mendonça escreve uma carta dando notícias de D. Ana, os amigos esperam a chegada do Gonçalinho.
É provável que Gonçalo se case com Rosinha, a filha do Visconde, pra quem mandara rosas ainda em pequena.
Os amigos, reunidos para esperá-lo, comentam sobre ele. Padre Soeira fala da bondade do fidalgo da Torre: "É amorável, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o amam..."

Mas cabe a João Gouveia, definir definitivamente ao nobre Fidalgo Gonçalo Mendes Ramires:

"Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:
-Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o senhor Padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se filia à sua idéia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até a mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar...
(...)
Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?
- Portugal."(p. 200)


E aqui termina o romance.
Fundem-se as histórias dos Ramires, especialmente de Gonçalo, e Portugal.
Eça não deixaria de lado o uso da ironia, nesta comparação. Portugal, idêntico a um fidalgo decaído, vivendo de uma história que nem sabe ser verdadeira, com suas crises de tradição, generosidade, bondades e doçuras...

Ou seja: É o país a personagem mais importante deste romance, tema central da conduta narrativa. Atrelamentos políticos, misérias e desditas da pobre gente inculta e pobre vão se revelando ao longo do romance em oposição a um Portugal culto e respeitado, tradicional e, por isso mesmo, terrível e conservador.

Ao esmiuçar os pensamentos mais escondidos do fidalgo da Torre de Santa Irinéia, Eça cria, através de seu narrador onisciente, um ser inteiro e pleno, com seus atos inescrupulosos, seus desejos escondidos, sua ambição desmedida, mas, sobretudo, com sua generosidade aberta e inesperada. A par disso, o narrador desvenda os meandros da alma que nada mede a fim de que possa obter consagração, prestígio, chances sociais.
Enfim, nas figuras de Gonçalo, Barrolo, Gracinha, Titó, padre Soeiro, Gouveia, André Cavaleira, Bento, Rosa, D. Ana e D. Maria Mendonça, traz toda uma sociedade de seu tempo à vista do leitor.

Pouco mudamos, nós, humanos. Porque nós , de certa forma, também somos as mesmas criaturas que aí vimos.