O
leitor não terá dificuldade em perceber que o livro que tem nas mãos se alinha
junto à melhor tradição da crítica literária brasileira, o que não deixa de
surpreender tratando-se de autor estreante. Se fosse possível colocar entre
parênteses o domínio do aparato crítico que ele demonstra, diria que o segredo
talvez esteja em seu "senso de escuta", atento aos traços finos da
análise , determinado em repensar os claros de nossa historiografia crítica, e ouvindo
essa poesia como se fosse música, interpretando-a em suas várias claves : no
jogo das intenções, segundo a forma dos poemas, o timbre e o pulso dos versos,
levando em conta as mediações ideológicas, contidas na compreensão
histórico-social do período.
Apesar dessa escala de interesses, o ensaio está longe de se
perder em puras generalidades. Ao contrário, diria que sua qualidade central
repousa no deslizar do conforto da moldura ( de época, de escola, etc) para a
inquietação do particular, surpreendido em sua qualidade de diferença. O passo
seguinte do analista é o de relacionar um pólo a outro, especificando a efetiva
realização de parcela de nossa poesia romântica, articulada aos focos de
irradiação do novo gosto que de longe nos vinha. Não custa observar que a
particularidade desses elementos em correlação é bem sentida por Bernardo
Guimarães, poeta; em ensaio "resgatado da poeira e do esquecimento", em
que trata da questão do ócio, cuja discussão chega a nosso século, como
sabemos, opõe o Brasil, "ainda na infância" à velha Europa.
Ora, agarrar o particular em pleno vôo exige pelo menos dois
procedimentos: desconfiança das avaliações rotineiras e decisão quanto a
pontos de apoio para um caminho alternativo. Pois bem, saltando as referências
explícitas de Vagner Camilo, diria que a passagem do geral ao particular ele a
encontrou na reflexão de Sérgio Buarque de Hollanda, quando despreza o mero jogo
das influências, compreendido como uma espécie de "química
literária", apta a solucionar qualquer problema textual, recomendando em vez
disso a necessidade de se "tentar penetrar certos valores subjacentes,
invisíveis a olho nu", capazes de explicar a razão do aparecimento de uma
forma particular em determinado lugar e não em outro. Como explicar, por exemplo,
que o assim compreendido byronismo marcasse tão profundamente poetas brasileiros
"quase sem tocar Portugal" e que, mesmo no Brasil surgisse em S. Paulo
ao contrário do Recife, sensível por seu turno às preocupações sociais da
lírica hugoana?
Obediente a esse chamado e às observações de Paulo
Franchetti em ensaio largamente citado, dos quatro capítulos - e inúmeros
subcapítulos - em que divide seu trabalho, o primeiro é dedicado pelo ensaísta
ao contexto mais imediato da maior parte da produção de Álvares de Azevedo e
Bernardo Guimarães. Trata-se da antiga São Paulo, cenário da boêmia de nossos
poetas estudantes, "sombria como uma peça de enterro", conforme afirma
Satã a Macário. Apoiado em bibliografia específica, o ensaio assinala o
vínculo existente entre o exercício da comicidade e as pequenas associações,
notadamente as estudantis.
Se a matéria é aparentemente exígua (um tópico, a
comicidade, e dois poetas, vistos também em relação), na verdade acontece o
oposto : o exercício crítico se desdobra em compasso largo, indo da ironia e
outras formas reduzidas do riso romântico ao bestialógico,
"variante local do nonsense verse", passando pela sátira, pelo
obsceno e pelo humor noir. Além disso, a argumentação avança pouco a
pouco, acabando por atravessar toda a filigrana crítica instada a comparecer na
argumentação, necessária como calço ao ponto de inflexão, que às vezes muda,
outras vezes matiza, o parâmetro do juízo estético.
Assim acontece no admirável capítulo sobre Álvares de
Azevedo: a cerrada discussão sobre o humour romântico segundo os moldes
de Victor Hugo, bem conhecidos de nosso poeta, acaba por deslocar conclusão
corrente sobre a originalidade de Álvares de Azevedo e por denunciar sua própria
experimentação - e dificuldades - com a dissonância hugoana. Em vez da
tensão dos termos em oposição, conforme defendia Victor Hugo, observamos em
nosso poeta a expressão de cada uma das facetas em poemas diferentes; escorrega
desse modo Azevedo para a velha distinção clássica dos estilos e gêneros (
comédia de um lado, tragédia de outro), distante por conseguinte do espírito
moderno.
A esse respeito vale a pena nos determos nas várias ocasiões
em que o ensaísta observa a dificuldade no empenho de nossos escritores em se
instalarem na modernidade. Décio de Almeida Prado já observara que,
defendendo a necessidade de "inaugurar" nosso romantismo, Gonçalves de
Magalhães revela nos próprios termos da defesa o mau-estar frente às formas
inovadoras, pendendo assim para a escola clássica.
Não será diferente o que ocorre com a geração de Álvares
de Azevedo, geração que ocupa um entre-lugar, entre a afirmatividade dos
indianistas e a combatividade dos condoreiros. Por exemplo, os pendores clássicos
de Bernardo Guimarães vêm à tona numa simples sátira às vestes femininas modernas.
Sente então nostalgia da "clássica roupagem" com que outrora se
trajavam as beldades gregas. Acrescenta Camilo : "Como se pode notar, até no
domínio da moda o poeta deixa entrever o atavismo de seu gosto clássico ao
eleger como ideal de beleza a imagem desataviada e sublime, com a túnica singela
presa ao ombro, deixando pressentir o delineado das formas e a nudez alva dos
braços".
Na mesma direção e de maneira inédita o ensaísta desloca o
que muitas vezes se entendeu como o realismo do jovem Álvares de Azevedo,
conforme aparece nos poemas puramente cômicos, obedientes, isso sim, à divisão
clássica dos estilos, para as "Idéias Íntimas" ( lançando mão aqui
de Barthes e de Antonio Candido quanto à teorização do pormenor,
ingrediente importante, conforme sabemos, para se criar a ilusão de realidade).
"Idéias Íntimas", saudado , e com razão, pela melhor crítica como
poema à soleira de nossa modernidade, pois que exatamente se caracteriza
"pelo afastamento gradativo do terreno do cômico ( ...) para alcançar um
domínio em que o riso tênue se mescla ao pathos, dando origem àquele mixtum
compositum próprio à visão problematizante do humour"; alberga,
portanto,a teoria dos contrastes de Hugo, traduzida na famigerada binomia
azevediana, sobre a qual correu e vem correndo tanta tinta.
Como vemos, não é curta a pernada crítica de nosso
ensaísta, como tímido não é seu esforço interpretativo, que foge dos
círculos rígidos para um raciocínio por aproximação, rodeando aos poucos o
objeto e revelando-lhe aspectos deixados comumente à sombra. É o que acontece,
por exemplo, quando V. Camilo chama a atenção para "O Dilúvio de
Papel" de Bernardo Guimarães, no qual o problema da inserção social do
escritor ocupa o centro da cena ( não nos esqueçamos da "comunidade
marginal" formada pelos estudantes), discutindo-se a mercantilização da
literatura e a prostituição ( literal) da Musa. O ensaísta observa que
não se está aqui muito longe da musa venal de Baudelaire que, segundo
Benjamin, nunca acalentou esperanças quanto ao mercado literário. Em suma, em
meio a risos e ironia, garante-se a dimensão crítica de nosso poeta a respeito
de uma questão que ingressaria pelo século XX a dentro. Somos assim levados a
retraçar os contornos da figura de Bernardo Guimarães.
Não roubo ao leitor o prazer - ou susto? - de ouvir as notas
feridas, nos dois sub-capítulos finais, pelo rude rabecão do poeta. Intitulados
"Proh Pudor...O Riso Obsceno" e "Walpurgirnacht e o Pandemonismo
Sertanejo: nos trilhos do Humour Noir", neles se examinam as formas
marginais à contraluz das formas canonizadas, com o concurso de outros
autores e a costumeira travessia crítica.
O exame, por exemplo, de "A Origem do Mênstruo" traz
à baila, como apoio à compreensão do poema, a própria discussão do gênero,
já exercitado por Ovídio, bem conhecido de Bernardo Guimarães. O vértice do
tema (a menstruação) é também examinado a partir de um grande ângulo de
referências, que vai da marcação naturalista ( Zola e Aluísio de Azevedo),
quando o traço fisiológico é revestido de interesse científico, à
"esfinge sonora" da "Água Forte" bandeiriana, instante em que
a nudez feminina mostra-se espertamente coberta pelo agenciamento das metáforas.
A dificuldade do assunto ingrato leva o ensaísta a se deter no
ficção de Bernardo Guimarães - e em sua bibliografia crítica -,
acrescentando-se a visão antropológica - crenças e medos - quanto à
menstruação, e a pertinência das teorias freudianas sobre o tema. Todo esse
aparato crítico, entretanto, frisa Vagner Camilo, não busca e não pode
"oferecer uma resposta em definitivo".
O aspecto reticente dessa afirmação, em tudo afastado da
complacência do tom satisfeito de si, leva-me a encerrar este comentário
forçando o contraste: em primeiro lugar Risos entre Pares não pretende
reabilitar formas menores em poesia ou prosa, nem explorar com falsa isenção (
mas com que entusiasmo!) temas escabrosos, muito menos desautorizar o sistema
literário. O assunto está lucrativamente na moda há algum tempo, conforme
sabemos, e muitas vezes deve-se a um mau entendimento de pressupostos
antropológicos. Aqui, a literatura é compreendida no coração de um jogo de
forças estéticas e sociais, à semelhança da proposta de Antonio Candido que,
uma vez traçado o sistema, pouco a pouco inclui em seu bojo desenvolvimento de
aspectos particulares, presentes anteriormente em forma às vezes de referência.
Uma vez desenvolvidas, encontram essas formas seu lugar no sistema; pensemos na Dialética
da Malandragem ou em A Poesia Pantagruélica. O tratamento do cômico
já está assim na Formação (já lá está O Sapateiro Silva) e
dele se aproveitou Vager Camilo para tecer sua leitura, principalmente as
certeiras observações de Candido sobre Bernardo Guimarães. Nosso ensaísta
portanto não eqüaliza os assuntos, não abole diferenças nem supervaloriza
estratos legitimados, em suma, não se furta a julgamentos de valor.
Em segundo lugar, Camilo não empobrece o debate teórico por
exclusão ou meia citação. Ao contrário, anima-se com o coro dos contrários,
admite generosamente dívidas, o que é raro, pois seu interesse permanece
centrado na discussão intelectual no melhor sentido.
Apesar do esquadrinhar minucioso do assunto, ele vai na
direção oposta ao isolamento estéril; suas considerações finais - relações
e diferenças entre o humor romântico e o modernista - contribuem para uma visão
dinâmica da história literária.
Por último, devo observar o cuidado com que o ensaísta
trabalha a matéria nacional, lida sempre com discernimento, sem exclusão da
simpatia. Trata-se sem dúvida daquele "efeito de leitura" a que Candido
se refere em prefácio da Formação: anima as obras como o polimento
deixado pelos olhares enamorados sobre os ombros e braços de Helena.